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Sete Nomes

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Sete Nomes

A vingança destrói qualquer mente,


corpo ou alma. Mas
resistir a essa maldição é pior
que lhe colocar um fim.
E depois…
Nada sobra, só um suspiro
leve de uns lábios cansados.

20–8–2018
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Capítulo 1
Londres não mudava, a velha maldição de estar igual já se tornava enjoativo demais. As mesmas
ruas cheias de lama, o mesmo ar intoxicado pela indústria, o céu sempre cinzento e a chuva de
boas vindas, como se o sol fosse mal-educado por não abençoar os filhos de Deus. O problema é
que Londres nasceu assim, suja e feia. Os reis pareciam gostar desse ambiente, talvez todas as
manhãs acordassem e olhassem pela janela e, ao abrir, respirassem o impuro ar londrino. Então
diziam com todo o gosto “I like this city!”.
Que sarcasmo, os reis não viviam no centro da miséria. Não, eles deixavam o palácio de
Buckingham para as reuniões e viviam no luxuoso palácio de Windsor, bem longe do ar dos
operários. E de lá, regia uma rainha a qual nenhum homem se atrevia a contrapor. Porquê só a
ela? Porque usava coroa sobre a cabeça, as restantes bem que morriam debaixo de fortes críticas,
pedradas e possivelmente, violação. As das ruas, mães de sete ou oito filhos, que trabalhavam de
manhã à noite, eram consideradas mulas de carga, objetos do patrão, mudas na hora de dar opinião
e sem valor. Não deviam ser diferentes, não deviam de dizer “não”, não deviam ser indevidas. Só
as prostitutas é que se libertavam dessa prisão, elas, por si só, nasceram no lixo e morreriam no
lixo, mas tinham o que as outras não tinham, o corpo que se oferecia a todos e isso não era motivo
de chacota. Quando um homem via uma prostituta dizia “Olha aquela ali, como é bonita”. Quando
viam uma mulher mais aprontada que o costume, a opinião mudava “Pobre do marido dela, ter
aquela rameira em casa significa fome o ano todo!”
O reino sabia que morria aos poucos ao pensar assim, a prova disso era a taxa de mortalidade,
quer nas fábricas, quer nas ruas. George já passou por esse castigo ao desafiar o pequeno
Napoleão. O que a sociedade tinha de fenomenal, é que renascia sempre, quer num ano, quer num
século.
Aquela cidade não tinha nada de diferente das outras que estavam no outro lado do Atlântico. As
treze colónias que o rei George perdeu, pareciam cópias daquela, sujas, vazias e amaldiçoadas. O
que mudava era a coroa, lá mandavam os homens de fato negro e cabelo branco, os ditos
Ministros. Ali, era a tal mulher que todos se ajoelhavam.
O barco desembarcou há uma semana com mais de vinte passageiros com nomes falsos. Ninguém
devia usar o verdadeiro, a menos que quisesse ser morto por algum maluco. Desses vinte, vinha
ela, uma mulher qualquer, com um nome qualquer, vestida de negro com uma mala com pouca
coisa. Passagem? De Boston para Londres, sete libras e motivos incógnitos. Qual seria o motivo
que levaria uma mulher a cruzar um oceano inteiro? Mudar de vida, basta perguntar algo sobre o
assunto para a resposta ser essa, queria mudar de vida, se possível, para melhor. Ali, vinda de um
país em expansão, só mudava de vida para pior, até Boston tinha um pouco mais de oportunidades.
Passos acelerados, não seguia relógio algum para saber se ia atrasada ou cedo demais. Isso
também não importava, o movimento na rua já denunciava as possíveis horas. Olhar atento, não
escondia nada, mas também não queria ser vigiada pelos demais. O Capitão do navio avisou que
os estrangeiros eram sempre estranhos, dava-se conta por causa da roupa e do tom de pele. Se
vinham do sul, eram mais morenos, se vinham do norte, nem cor tinham.
Ela não era estranha por completo, nasceu ali, viveu ali parte da sua vida, antes da sua infância
rumar ao outro continente. Mas isso, não importava para o momento, aquela estranha ia direta à
loja Jack & Key, Lda. A dona da estalagem disse que era a melhor loja de pólvora e armamento
da cidade. A mulher disse isso, porque o outro hospede sentado na cadeira mais à direita da janela,
murmurou antes de beber o café “Um ótimo ladrão.” Então, seguindo a lógica que ela mesmo fez,
Jack e a “Chave” roubava os clientes. Libras eram poucas na carteira, predominava mais os Penny

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e xelins, as moedas dos pobres. Por isso, se esse tal ladrão tentasse cobrar mais, não ia ter muita
sorte.
Vira na rua seguinte e compõe bem as luvas, outra mania inglesa, as mulheres usavam sempre
luvas. Mas, até os homens mais ricos e com mania da chiqueza usavam, só para não tocarem o pó
dos pobres. Eles também deviam de não sair de casa, porque as ruas pertenciam aos proletariados.
Para em frente à porta com as gordas letras Jack&. Então e o Key? Se não estava lá o nome, é
porque teve um miserável fim. Olha novamente a rua… Duas mulheres de azul a conversar perto
da padaria, carruagem parada em frente a uma casa… Homens de altos chapéus a passear com o
jornal debaixo do braço, crianças sujas ao pé de um enorme charco que um cão baldio usava para
beber. Levanta a cabeça, nem sempre o inimigo estava a nível dos olhos. Telhados arqueados que
ainda pingavam a chuva do dia anterior. Olhos curiosos, se existiam, usavam a cortina para saber
quem estava na rua.
Sendo assim, abre a porta que alerta o tal ladrão ao bater no sino por cima da madeira. A mente
mira em várias direções o conteúdo. Pólvora, no lado direito só existia isso, caixas com o rótulo
da Companhia das Índias. Nada de admirar, a loja vendia isso. No lado esquerdo, prateleiras
cheias de caixas pequenas com dinamite, balas de canhão, rastilhos… Atrás, ao pé da parede,
mais caixas abertas, mas com armas, mosquetes, caçadeiras, espadas… Um balcão totalmente
arranhado por causa das caixas serem lá colocadas e os pregos rasgarem a madeira. Atrás do
balcão, relógios de vários tamanhos sincronizados. Oito da manhã. Ela deu conta que o dia não
tinha fim, só porque não dormiu nada de noite.
Vira o rosto ao sentir corrente de ar, uma porta nos fundos, a seguir às escadas para o segundo
andar. Sente uns passos que tentam ser sorrateiros. Jack, só podia ser ele, porque Key morreu.
– Good morning, MiLady.
Voz grossa, o mirar de esguelha já dava conta da estatura relativamente pequena. É então que o
olhar castanho se vira para o velho. Um metro e cinquenta, teria setenta anos e a vista matreira
contava as noites em que foi levado para o beco e espancado até só sobrar uma réstia de fôlego.
Magro, roubava tanto que não comia nada, as rugas tornavam-se grandes no momento em que
descaiam pela face suja. Também não dava banho ou lava a roupa. Isso era típico dos pobres, só
se dava banho no verão, só se usava sabão quando o patrão dava à operária um extra por entrar
no escritório e sentar para ser usada mais uma vez.
– Good morning.
– Em que posso ajudar? – Jack abre uma gaveta e pega nas lunetas.
Via mal, mais um motivo para saber roubar os que tudo viam.
– Preciso de balas de chumbo e pólvora.
– Para que tipo de pistola?
Apostava que já fazia as contas… Sete libras e dois Penny.
– Mosquete simples. – levanta um pouco a saia do vestido negro e da perna, retira a pistola – Tem
para este tipo?
Jack pega na arma, puxa a luneta para a ponta do nariz e aprecia o engelho da morte. Não percebia
nada de pistolas, mas para enganar o cliente, fingia saber.
– Winchester. – conclui.
– A marca não importa no momento de matar.
– É verdade, mas os pormenores fazem sempre a diferença. – pousa-a no balcão – O que faz uma
bela mulher com uma arma destas?
Comerciante curioso que espera saber demais para vender mais. Se dissesse que ia assaltar um
banco, o homem sugeria que usasse dinamite. Depois, cobraria pelo silêncio e por fim, dava um
conselho que não era de amigo. Em torno do dinheiro, tudo é negócio.
– É do meu tio.

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– Está acompanhada dele?


– Não. Infelizmente, o Sir teve de ir ao banco. Vai vender a pólvora e as balas ou vou ter que
esperar?
– Não… Só estranhei… – vira-se para o armário atrás de si e abre as gavetas – Não é muito
comum mulheres entrarem em lojas assim. São só boas na cozinha. – ri.
Em Londres, porque em Boston, qualquer mulher que queria matar o marido basta entrar numa
loja daquelas, pedir uma caçadeira e ir embora. Perguntava-se, será que a rainha era boa também
na cozinha? Melhor falando, será que os homens se atreviam a dizer que o lugar dela era lá, ao pé
dos tachos e das panelas? Não, ela usava coroa, isso já fazia a diferença.
– O seu tio costuma usar? – Jack continua à procura da caixa mais cara.
– Caçamos aos domingos em Nothing Hill. Dois veados por caçada.
Ele faz um som de admirado, um caçador nato.
– A menina também caça?
– Não, fico sentada a abanar o leque enquanto discuto os solteiros para casar.
– Faz bem.
Abana a cabeça para o velho que nem dava conta, nunca da vida se sentou ao pé de mulheres
irritantes que se iam casar por casar. Também, não se podia casar por não casar. Ser solteira
significava não ter posses para a boda ou nenhum homem a queria, devido a vários fatores que
eram elencados na lista masculina. Não era casta, já foi casada, andou com muitos homens, é
doente, não tem maneiras, é falida… Fugindo à regra, só os pobres que casavam sem nada e
viviam sem nada, e as prostitutas que não precisavam disso para terem alguém na cama.
– Vai demorar?
– MiLady, a minha vista já não é o que era. – vira o rosto para ela – Ainda ontem ia explodir com
a loja por confundir uma vela com um foguete.
Ela não perguntou isso, mas o vendedor, para fazer de coitado que vai roubar-lhe na hora de
pagar, conta a sua triste vida que de desgostosa não tinha nada.
– Tenho pressa.
– Pronto… – pousa a caixa na mesa – Leva estas balas. Estava à procura das melhores, mas estas
dão.
– E a pólvora?
– Aqui… – abre outra gaveta – Um saco chega?
– E sobra. – pega no mosquete.
– Sabe carregá-la, MiLady?
Existia perguntas que não deviam de ser feitas. Se alguém procura algo perigoso, é porque sabe
usar. Coloca pólvora no cano e depois, pega bala de chumbo e deixa-a cair pela culatra.
Aconchega-o com a vareta do mosquete que fica por debaixo do cano. Puxa a patilha para carregar
e pronto.
– Quem a ensinou?
– O meu tio. Quanto é?
– Quatro libras, MiLady.
Quatro… Por o tempo que demorou a entrar, por estar a falar e a perguntar. No mínimo, devia
de cobrar uma libra, porque as balas de chumbo eram todas iguais.
– Pensei que era pouco. – arruma a pequena caixa na bolsa de pulso, tal como a pólvora.
– Essas balas são vindas da Áustria, aquele país muito longe daqui. – faz um gesto com a mão
para aumentar a distância.
Ela desvia um pouco a cabeça para a gaveta aberta, cheia de caixas iguais às que arrumou, com
o maldito selo da Companhia das Índias.
– Duas libras e já vai com sorte. – ultima.

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– A menina juntou a pólvora vinda da China? – recompõe as lunetas.


Mentia, as mãos enrugadas esperavam que o comprador não fosse mais sabichão que ele.
– As balas vieram da velha caixa que deve estar nos fundos. De tão esquecidas, até ferrugem têm
dentro. Quanto à pólvora… – olha para o lado – De certeza que veio dali. Por isso… – bate as
duas moedas no balcão – Duas libras.
Jack lá respira fundo e aceita o preço, ela podia ser mulher, mas não era burra.
– Qual o seu nome? – pergunta ao pegar num livro de registos.
A mulher vira-se, acabou de pagar a mercadoria e ainda tinha que se registar?
– Smith.
– E o primeiro? – molha o estilete na língua e depois olha-a.
– Isso importa?
– Se não quer dar o seu, dê-o o do seu tio.
Pensa um pouco.
– Lois Smith.
– Sem Sir ou Lorde? Pensei que era um homem rico para caçar em Nothing Hill.
Revira os olhos, tinha um pouco razão.
– Duque Lois Smith…
– Hermys? Eu conheço o seu tio. – pousa o livro – O velho Wolf. Bem me pareceu que a conhecia
de algum lado, a pequena Evy, filha do Marc. Meus deus, como está crescida…
E lá continuava o velho a falar, a inventar que reconhecia aquela mulher vinda de Boston, que
não tinha nenhum tio magnata e muito menos um pai com esse nome. Finge ouvir ao sorrir
levemente, nomes inventados deviam de ser confirmados primeiro.
– Quando eu estiver com o seu tio, vou dizer-lhe que passou por cá. Bem que ele marcou hora
hoje…
O som da bala sair do mosquete ecoa pela loja que abafava o som por causa da tralha. O velho
cai para trás e o armário choca com os relógios que começam a cair subitamente. Por que o matou?
Ponto um, disse que conhecia o homem inventado. Ponto dois, esse tal duque ia ali e o charlatão
comentaria que viu a tal sobrinha que nunca esteve ali. Ponto três, estava cansado de o ouvir.
– Uma bala a menos. – lamenta erguer a saia e arrumar o mosquete.
Ajeita o pequeno chapéu sobre a cabeça, recompõe a gola e respira lentamente, ninguém ia
encontrar o homem.
Abre a porta e ao se virar, dá conta que uns guardas caminhavam naquela direção. Iam há loja,
iam dar conta que o vendedor foi assassinado por uma mulher. Só o facto de ser uma complicava
qualquer julgamento. As mulheres não eram presas, apenas mortas. E advogados? Nem
sonhassem ter um.
Volta para dentro e fecha a porta, não repararam nela, estavam distraídos a falar. E agora? O lado
bom de se ser mulher é que eram credíveis quando ficavam em pânico aos gritos. Deita um
armário abaixo, vai ao balcão e espalha as moedas que estavam dentro de uma caixa, espalha a
mercadoria mais pequena para simular um assalto. Abre a porta dos fundos. Depois, retira o
chapéu, despenteia o cabelo, desaperta alguns botões do vestido, abarrota o vestido e desata a
correr para fora da loja, em total pânico.
– Ajudem, ajudem… – cai aos pés dos guardas – Ajudem, por favor.
– MiLady, o que aconteceu? – um homem agarra as mãos enluvadas dela.
– Um assaltante invadiu a loja e matou Jack. – fala quase em choro.
– Jack&Key?
Assente ao tremer as mãos. Os guardas entre olham-se, a mulher estava totalmente em pânico,
toda despenteada de possivelmente ter sido maltratada. Sem esperar mais, retiram da algibeira o

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mosquete e caminham lentamente para a estabelecimento. Uma pequena multidão surge em volta
da loja, estavam curiosos para saber o que estava a acontecer.
– Está bem, menina?
– Sente-se bem?
As beatas da missa acodem a mulher que se levantava lentamente do chão.
– Levanta as mãos! – a voz do guarda trespassa a porta fechada.
Então as mulheres apressam-se em ir para a porta ver, se conhecessem o gatuno, no dia seguinte
o reino todo saberia. E a estranha? Levanta do chão, fecha os botões, aperta a bolsa na algibeira
e segue caminho pelo beco. Os guardas saem a dizer que o homem estava morto e que deviam de
apanhar o assassino. Qual?
O sorriso escapa pelos lábios, como o velho disse, era raro uma mulher entrar numa loja daquelas,
ainda mais raro matar alguém e simular um assalto. Quando soubessem quem foi, já estaria a
milhas dali.
Para de andar ao ver um homem encostado a uma parede a fumar. Então olha para trás, a porta
da loja estava quase atrás dali, os guardas restantes já passaram… Vira o rosto e segue caminho,
o estranho não iria abrir a boca, até porque não sabia o que aquela mulher fez.
– Eu não o vi a passar por aqui.
Os passam cessam. Sabia do pecado.
– Desculpe?
– Supostamente, o ladrão fugiu por aquela porta… – aponta com a ponta do cachimbo – Eu não
o vi passar.
– Possivelmente precisa de lunetas. – vira o rosto para o homem.
Olhos castanhos como a madeira do cachimbo polido. Cabelo negro por debaixo da boina suja.
Alto e musculado, mãos esfoladas, barba feita naquela manhã. Pele quase morena, mas branca
por pouco sol apanhar. Camisa branca, suspensórios nas calças castanhas e sapatos remendados.
Não era nobre, mas também não era operário. Casado? Não tinha aliança ou marca dela.
De alto a baixo, aquela mulher não era londrina. O homem coloca a mão na cabeça e o cotovelo
contra a parede. Pele pouco branca, não existia muita delicadeza. Cabelo castanho quase negro,
grande o suficiente para chegar à nádega. Vestido negro de luto? Ou não gostava das outras cores.
Luvas a condizer, em couro americano. Lábios carnudos, olhos castanhos que relatavam os
mistérios da vida. Um colar de ouro no pescoço, uma estima.
– O que o velho Jack te fez?
– Falou demais. Cobrou demais. Irritou-me por demais.
– Tens “demais” no teu discurso.
– Falo como quero.
Sorri, dona de si, cheia de respostas na ponta da língua.
– De que cidade americana vens?
– Nenhuma.
O homem aproxima o rosto e o fumo toca a pele dela.
– Reconheço esse couro e sotaque. Philadelphia? New York? Boston?
O olhar dela estremece e denuncia a sua origem.
– Boa terra.
– Duvido que lá tenhas estado.
– Não preciso ir muito longe para conhecer o outro lado do oceano. É verdade que circulam muitos
índios pela rua?
– Isso é Los Angeles, San Diego… Nenhum pele vermelha quer entrar no território dos brancos.
– Agora entendi o teu sangue frio, quem mata um índio mata um velho vendedor. Os americanos
são todos iguais, uma pistola é sempre motivo para uma morte. – reclama.

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Suspira, nem ia dar assunto a um estranho. Começa a andar, já tinha a mercadoria, matou o
charlatão, simulou o assalto…
– Dá-me um bom motivo para não te denunciar.
Nem mais um passo. O corpo vira-se para o estranho que fumava ao olhar para o telhado
adjacente. Um motivo? Não a conhecia, não viu a morte e muito menos teria coragem de fazer tal
coisa. O que ganhava com isso? Nada, talvez Victoria tivesse um pequeno lugar para ele dormir
caso o fizesse. Ou, ela começava aos gritos, rasgava a roupa e dizia que estava a ser violada.
Primeiro assaltada e depois violada, os londrinos nem iam desconfiar.
– O que queres em troca?
– Não sei… Contento-me com pouco ultimamente. Se querias simular um assalto, davas um nome
para os guardas não fazerem uma “caça ao Homem”. Assim não nos dificultavas a vida.
– Que nome daria?
– Dayno Tech, o talhando do Twenty Two. Ele merece ser preso por homicídio, anda a vender
carne de gato e de cão aos pobres. Não tenho nada contra, mas era mais fácil.
Aproxima-se dele e cruza os braços, que homem esperto. Será que sabia da existência de
testemunhas? Não, esqueceu-se disso.
– Ninguém o viu a entrar ali.
– Alguém viu o teu assaltante a entrar?
Não, apenas ela o viu a entrar e sair, porque precisava de um bode expiatório.
– Dou-te o meu dinheiro.
– Não, porque aposto que não terás nada para comer logo.
– A minha pistola.
– Não sou violento. – bate o cachimbo na parede e as cinzas caem.
– O que deseja, Sir?
Um enorme sorriso surge no rosto, que mulher educada.
– Assim gosto. De si, nada mais de um beijo no rosto.
Um beijo? Mostra o dedo do meio, que sonhasse com esse beijo.
– Espera… – agarra no braço dela.
A mulher vira-se e o punho fechado vai direto ao abdómen dele. Mas, a mão forte agarra o pulso,
roda o corpo dela e encosta-a contra a parede, apertando o braço com força contra as costas cheias
de cordéis do vestido.
– Indelicada. Só quero ajudar.
– Seria uma boa ajuda se ficasse de boca fechada. – fala com a bochecha encostada à pedra.
– Apenas lhe quero dar uma lição, antes de fazer algo, confirme a rua. Imagine que estava aqui
um guarda a fumar? Acha que os colegas não iam perguntar? – fala ao ouvido dela.
Tenta libertar-se, mas a força dele não permitia qualquer movimento.
– Dizia que fugiu pela janela.
– Qual delas? A da frente? Pense antes de fazer. Fica a dica, MiLady Boston.
– Esse não é o meu nome!
– Fica a ser. – larga-a e coloca a boina que caiu – Tenha um bom dia. – segue caminho pelo beco.
– Pugilista amador. – fala ao recuperar o fôlego – Luta quase todas a noites. Reflexos rápidos,
defesa instantânea.
O rosto curioso vira-se para a estranha. Como ela deu conta?
– Já me viu a lutar. – sorri.
– Não, as mãos estão esfoladas, o rosto ainda regenera o murro da semana passada. Amadores
como tu lutam todos os dias em Boston. Não ganham muito.
– Porque não sabem lutar. Antes de entrar no ringue, é preciso uma semana a espiar. Por algum
motivo pedimos primeiro o nome e marcamos as datas.

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– És só tu a estrela do ringue? – estende o braço.


– Não, o velho Yves também luta. É um puto de dezanove anos a tentar chegar longe. Aguenta-
se bem até.
E ele era o seu mentor, existia um certo brilho ao falar o nome.
– Estamos quites?
– Sim, MiLady. Apareça um dia no Box Dead, as mulheres também podem entrar.
O convite estava feito, só não sabia onde ficava o local. Nada que um bom mapa não resolva.
Recompõe a bolsa e volta ao caminho que se perdeu.
– Sou o Phill. – anuncia com as mãos nos bolsos.
Os sapatos param, ela não lhe perguntou o nome. Se o disse, é porque sabia que a estranha o
procuraria. Ou queria ter a certeza de que teria um nome a qual pensar. Dá de ombros, nada estava
garantido.
– E tu?
Olha de esguelha. Curioso demais para um pugilista amador.
– MiLady Boston, Sir.
– Bom nome, Boston. – pisca o olho.
Assente, ele entendeu o anonimato. Vinda de fora, acabada de se meter em sarilhos… Era bom
não se denunciar.
Phill fica a vê-la ir pelo beco, direta novamente à multidão que provocou. Sentia que ainda a ia
ver novamente. Ainda bem que das américas vinha os bons charutos e as boas mulheres, mesmo
sendo um enorme mistério.

Quarenta pences por noite, um balúrdio considerável fase ao pequeno quarto virado para o beco
mais sujo do reino. Bastava abrir a cortina para se ver uma prostituta a alimentar os filhos de pai
incógnito. Como se não bastasse, viviam debaixo de um casebre que quase caía, a água das telhas
pingava sobre um barril que serviria depois para saciar a sede deles. E lá estava a mulher com o
vestido esfarrapado no fundo, carregada de rouge no rosto e com uma peruca. Nova, vinte anos e
quatro filhos ainda pequenos. Abanava o leque esburacado contra o rosto, não por ter calor, mas
para chamar atenção. Doente, de vez em quando tossia para o lenço manchado de sangue. Morria
lentamente, não teria mais que três meses. E as crianças? Órfãs, andarão de orfanato em orfanato,
morreriam também na rua devia à fome.
Miséria londrina e não exclusiva. Todos deviam algo e sempre morreriam sem cumprirem
realmente a missão. Como aquela mulher, morreria sem dar condições dignas aos filhos. Tinha
consciência disso? Talvez sim, talvez não.
Dia de sorte, um homem de alta cartola estende o braço à menina que sorri. Também ele morreria,
a tuberculose era passada de boca para boca e só parava quando não houvesse mais nada. A peste
matou metade da europa no século XIV, os pobres matariam novamente se não parassem de ser
os principais causadores das doenças.
Fecha a cortina, a vida para lá do vidro não lhe interessava. No dia seguinte tinha que ir ter com
o que lhe prometeu ter um nome. Chamava-se James, o primeiro ficou algures esquecidos na
mente. Só se devia de lembrar do que realmente importava, não do que não interessa.
Pousa a mala sobre a cama e abre-a. Pouca roupa, poucos documentos. Dois mosquetes com
brasões, um punhal de prata. Coloca sobre a mesinha de cabeceira o relógio de bolso. Uma semana
ali e não deixava nada fora da mala. Os documentos estavam escondidos, nem Deus os devia de
encontrar.

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Desaperta os cordéis do vestido negro. Nasceu rica apesar do azar que teve ao longo da vida. A
última empregada que teve foi uma tutora em Boston, tal como o marido que prometeu ajudar na
sua demanda. Foi com ajuda deles que chegou novamente a Londres, para cumprir o que
prometera.
O tecido cai para o chão e as mãos pegam na túnica branca. Veste também a saia longa castanha
e ajusta-a com um cinto de couro. Na perna com meiotes, prende o mosquete mais pequeno
carregado, nunca se sabe o que há ao virar da esquina. Pega no travesso dourado e enrola o cabelo
à nuca. Aperta os botões da gola da túnica e crava a pregadeira florida no tecido. Passa rouge pelo
rosto, batom nos lábios e pó negro por cima dos olhos. Luvas de renda nas mãos.
Olha-se ao espelho, tinha que mudar de ares para não suspeitarem da hóspede. Além disso, a
moda londrina era vitoriana, então devia de deixar o estilo neutro de Boston.
Sai do quarto após arrumar tudo na mala e trancá-la debaixo da cama. Antes de ir para a escadas,
observa com mais pormenor o corredor. Naquele andar, quatro portas, cinco hóspedes, um casal
e mais dois homens. Uma janela que dava para um telhado, uma rota de fuga.
Anda para as escadas e desce lentamente para ouvir o que a rodeia, hóspedes aos gritos… Um
casal descontente num quarto. Copos a bater na madeira… Alguém na sala de estar. Aroma de
cigarro… Um homem na entrada. Chaves a cair no chão… Dona da estalajadeira descuidada.
Último degrau, tanto se podia saber só com uma simples casa com três andares, oito portas e
cheios de hospedes com nomes falsos.
– MiLady Kia, vai almoçar cá? – a mulher rechonchuda e vermelha pergunta ao agrupar as chaves
que caíram.
– O que tem hoje de diferente dos outros dias? – aproxima-se do balcão.
– Bem, hoje é sopa de ervilha e vitela assada.
Pousa a bolsa de pulso sobre a madeira e olha para a porta, o homem continuava a fumar.
– De onde vem a carne?
– Do melhor talhante de Londres, Dayno Tech. Nunca comi tão bom coelho do campo como
aquele que me vendeu.
O homem do Twenty Two, o mesmo que vendia carne de cão e gato aos pobres por ser mais
barata. Aquele que Phill há umas horas atrás pediu para incriminar. Estala os dedos na madeira,
se o estranho não tivesse dito nada, ela continuaria a comer carne de animais que nunca pensou
comer. E deve ter comido, a semana toda.
– A carne vem de lá? Toda?
– Oh sim, faz um excelente preço de amigo. – sorri.
Retira a bolsa do balcão, ainda se sentia enojada por comer cão ou gato ao almoço e jantar.
Lembrava-se de um bêbedo em Boston dizer que os índios comiam urso e alce. O que seria pior,
animais selvagens ou domésticos?
– Fico pela sopa. A que horas sai?
– Às duas, MiLady.
A essa hora já deve ter arranjado algum lado para comer. Ou não, nem sabia se queria voltar a
passear pelas ruas que fediam a carvão. Faz um gesto com a cabeça e caminha para a porta…
– MiLady Kia.
O rosto vira-se para a voz que ecoava na sala ao lado. Um homem velho arrumava o jornal que
não leu até ao fim. Bigode completamente branco e cabelo panteado para trás. Gordo e vestido há
advogado. Aproxima-se da porta, viu-o quando fez check-in, não o estranhou, mas agora já
começava a suspeitar do seu ar calma.
– Sir.
– Chegou há uma semana, certo?

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Deveria ter chegado há mais tempo se dois anos não se tivessem passado e a pista falsa a tivesse
iludido.
– Sim. Algum problema?
– A sua família… – levanta lentamente e caminha para a garrafa de uísque – Dei conta que
pertence aos falidos Armstrong.
– Desculpa?
– Não é Kiara Armstrong? É a única filha do casal. Eles têm uma enorme dívida para com o meu
banco. Poderia dar um recado aos seus pais?
Claro, se continuasse a inventar nomes que existiam, não teria sossego. Londres parecia pequena
demais, todos se conheciam até pelo apelido. Mais uma vez, é filha de alguém que não precisava
dela ou que nunca esteve ali.
– Não vivo com eles, expulsaram-me de casa.
– Devido ao quê? – fala antes de beber.
Ajeita a bolsa, devido a nada.
– Rejeitei um casamento.
– Não é casada com Charles Freeman?
Ainda por cima, a tal rapariga era casada, o que fazia dela uma mulher casada. Agora tudo estava
mais complicado.
– Exatamente, rejeitei viver com ele.
– E a vossa filha de três anos?
Suspira com violência, que mulher mais complicada.
– Olhe, porque não vai o senhor falar com os meus pais e marido? Sou sua rapariga de recados?
Não, então faça-me o favor de ser um homem de negócios e ir lá ter com eles.
O banqueiro bate o copo na mesa e o olhar fica severo, foi rude? Levantou-lhe a voz?
– MiLady, peça desculpa imediatamente.
– E se não o fizer?
A fivela das calças é desapertada, umas chicotadas e ia se arrepender para o resto da vida. A mão
dela abre a bolsa, não andava assim tão desprevenida.
– Sir August, tem uma encomenda que acabou de chegar em seu nome. – a estalajadeira chega
para evitar o pior.
O homem fica fixo a olhar para a tal Kia atrevida. Não estava nada surpreso de ela ser expulsa
de casa, com aquela conduta, nenhum homem era capaz de esposar. Aperta a fivela e ajeita o
casaco.
– Obrigado Grimy. – caminha para as escadas, mas Para – A conversa não fica por aqui, MiLady
Kiara.
O rosto dela vira-se para o rosto suado, a próxima conversa seria igual à de Jack, mas sem a parte
do assalto, só do assassinato. Sorri, nem todas as mulheres são feitas de vidro.
A estalajadeira confirma se o banqueiro tinha mesmo subido as escadas. Livre, corre para perto
da hóspede que ainda fixa na sala.
– Tem que ser mais benevolente e respeitosa com o Sir August. Já enterrou duas mulheres no ano
passado, sem provas de assassinato.
– O que faz aqui um banqueiro? Não é rico?
– E é, mas vendeu a casa só para ficar ainda mais rico. Prefere viver aqui, sai mais barato ao final
do mês. Hoje evitei uma tragédia, mas a MiLady tem que ter tento na língua.
Um vício terrível de mudar, aprendeu a ser direta, sem rodeios ou delicadeza. Quanto mais
educadas, mais burras. Homens como aqueles não precisam de falinhas mansas, estão habituados
a pedras duras nos sapatos.
– Pode mudar de nome no meu registo?

11
Sete Nomes

– O seu nome não é Kiara Armstrong?


Aproxima o rosto ao ouvido dela.
– Não. Não quero confusões, vim de muito longe e prefiro não ter um nome verdadeiro. Pode
ajudar?
A mulher espreita para os lados e sorri ao assentir.
– Conhece a Valentina Daylux?
Nega, nem o apelido era comum.
– Esse é o seu novo nome. O que me diz, Valentina?
Sorri a deixar no bolso do avental dela quatro libras, gostava de mulheres assim, entendiam as
coisas à primeira e ainda tinham ideias. Fechando a bolsa, caminha para a porta.
– Às duas cá estarei.
– Com certeza, MiLady Daylux.
Novo nome, nova liberdade. A identidade devia ser revelada a pessoas de confiança, aquelas a
qual podia vigiar com frequência, ameaçar e ter algo em troca. Aos estranhos, ficava suspenso os
nomes que pertenciam a alguém. Se conhecessem, devia de mudar novamente. Ser não
conheciam, a liberdade era sempre garantida, não existia documentos de identificação à vista e
tudo era credível na rua. Londres podia ser pequena, mas as ideias podiam ser maiores que a
cidade.

12
Sete Nomes

Capítulo 2
Aprendia muito com a estadia em Londres, as pessoas eram tão estranhas com os seus costumes
que, até dava dó dizer que existia um certo orgulho inglês. No almoço, um cavalheiro se colocou
na mesa destinada para ela. Sendo americana, dirigiu-se ao homem e perguntou se este não se
enganou na reserva. O tal nem uma palavra passou, nem sequer desviou o olhar. E porquê? Diz a
boa conduta que uma mulher sozinha jamais deve ser interpelada por um homem. Absurdo, o
banqueiro cheio de pressa bem que a chamou atenção acerca das dívidas da suposta Kiara
Armstrong. Na hora de pedir a conta, a etiqueta fica na gaveta.
Passou a noite a escrever uma carta longa para a família que lhe restava em Boston. Que ironia,
os tutores jamais seriam uns pais. Mesmo assim, avisava-os que seria a última carta que enviava
a partir de Londres. Se mais nenhuma fosse enviada no espaço de um mês, é porque morreu sem
cumprir o seu propósito. Voltar a sair? Não, precisava de um certo descanso ausente há muitas
horas.
Não teve muita sorte, às quatro da manhã o casal do quarto ao lado começou aos gritos, o hóspede
de cima pousou a agulha no gramofone e a música percorreu os corredores da estalagem, os gatos
da prostituta decidiram andar à bulha ao pé da janela dela e o som de balas de chumbo serem
gastas em algo preencheu a mente. Como se podia dormir em Londres? Boston não seria muito
diferente, mas ao menos, sempre podia abrir a janela e mandar um balde de água sobre o bêbedo.
Ali, que nem se atrevesse a pensar nisso, seria presa.
Oito da manhã, o relógio sobre a mesinha contava bem os minutos e segundos. O som da corda
fazer o ponteiro rodar parecia ensurdecedor, mas às vezes, a memória queria só esse som. Os
últimos segundos de vida… Pouco mais que isso. Na hora de morrer, só os segundos é que
contavam, porque dizia a maldição da vida que eles foram curtos demais.
Passa a água fresca pelo rosto e depois pega na toalha. Não dormiu novamente, como queriam as
pessoas que o bom humor fosse uma regra da manhã? A cabeça não ia parar naquele dia, tinha
que passar nos correios e pagar o selo para Boston, para o senhor Jason Dylan e senhora Maddey
Dylan. Quanto cobrariam por isso? Quando trocou o dinheiro no banco, o homem com alta cartola
e bigode negro garantiu que no Reino Unido, a vida era mais barata que na América. De facto
seria, se os pobres continuassem a comer carne de gato ou cão e os ricos continuassem a cobrar
os pobres.
Vira o rosto para a lata de prata e ao abrir, retira de dentro o papel com a morada do tal James.
– Interessante.
Não conhecia a rua, não conhecia a casa. Nunca viu o homem, mas a sua fama cruzava o Atlântico
inteiro. Enviou uma carta antes de se aventurar para ali e a resposta foi que, só saberia do nome
se chegasse à terra da rainha. Rasga o papel, estava uma semana ali e já queria voltar para a velha
vida em Boston.
O bater na porta ecoa como se fosse um enorme tambor dentro do quarto a tocar com muita
intensidade. Lá está o problema de não dormir a noite inteira.
– MiLady Daylux… O seu breakfast.
Comida? Não se lembrava de pedir à dona da estalagem pequeno-almoço no quarto.
– Não pedi nada. – queima o pedaço de papel dentro da caixa.
Depois, aperta o robe e abre a porta para a rechonchuda mulher com uma bandeja na mão.
– Good morning.
– Good morning, MiLady Daylux. – entra no quarto.
– Eu pedi serviço de quarto? – cruza os braços.

13
Sete Nomes

– Oh não… – pousa a bandeja – O Lorde Marchel não deseja cruzar consigo na sala de jantar.
Nem o Sir August deve vê-la tão cedo. Não acha?
Um banqueiro, um Lorde… Aquela estalagem estava cheia de pessoas ricas, mas que decidiram
passar os dias no local mais pobre de Londres, onde a carne era barata, as sobras ainda serviam
para o dia seguinte e a limpeza dos quartos se assemelhava às cadeias. Enfim, na hora de morrer,
todos iam para a mesma cova.
– Este país vai de mal a pior. – comenta ao espreitar a comida.
Não, nem o pão era fresco, nem o chá com natas dava gosto de ser bebido. Até que ponto aquela
água era limpa? Será que não usou o mesmo barril que a prostituta?
– Não está habituada, MiLady?
– Não. – caminha para a janela – Em Boston, já quase gritamos por eleições livres. Aqui, não
passamos de bonecas manipuladas pelas mãos de homens que nem de si cuidam.
– Não sabia que a América era assim tão livre… – ajeita bem a almofada da cama – Bem que
chegam jornais de New York, mas como não sei ler, fico distante das novidades. Melhor assim.
Melhor? O céu nublado nem se distinguia das nuvens constantes do fumo das fábricas. Talvez
fosse um magnifico céu azul, mas como a rainha queria a industria a andar a mil, nem o dia
trespassava, nem o tempo sabia se dava dias de chuva ou sol.
– Não se acha ignorante ao ficar analfabeta em relação à vida?
– Não… Minha mãe dizia que nasci para trabalhar na cozinha e casar. Acho que não ganho nada
em saber o que escrevem nos jornais.
Um ensinamento totalmente diferente daquele que teve ao longo da sua vida. Talvez fosse pensar
o mesmo caso a vida não desse uma enorme volta.
– Vai almoçar cá, MiLady?
– No quarto?
– Se assim o desejar.
Sempre era melhor que descer e dar de caras com os enfadonhos homens de posses.
– Quero aquela sopa de ervilhas.
– Hoje é coelho com espinafres.
– Pedi sopa… – vira o rosto – Vai desobedecer quem paga a conta todas as noites?
Considerando isso, a mulher sorri para afastar o receio que o rosto denunciava. O cliente tinha
sempre razão e, se ela pedia sopa, era sopa que teria.
– A que horas sirvo, MiLady?
Espreita pela janela, um dos filhos da prostituta dividia o pão que a mãe ganhou no dia anterior,
com o cão baldio. Nem a criança dava valor à comida, já vivia na miséria e ainda se dava ao luxo
de alimentar o animal que sempre comeria atrás de um talho qualquer. Os pobres eram assim,
pensavam que conseguiam dar sempre mais do que tinham para dar. Já os ricos, nem davam, nem
queriam dar.
– Quando chegar, serve.
Curto e grosso, como qualquer pessoa curiosa deveria de ouvir na hora de tentar saber um pouco
mais sobre a vida do próximo.
– Belo relógio, MiLady… – pega na peça em prata – Brasão da sua família?
Não tinha mais brasão, foi manchado com um espesso sangue que ainda hoje carregava nas mãos.
Se olhasse com mais pormenor o relógio, daria conta que este não se movia. Por aquela altura,
seria oito e quarenta, mas o ponteiro continuava fixo no oito. E o tom vermelho na corrente que
servia para prender ao bolso, era sangue que durante dias e dias ficou sobre a prata ao ponto de
esta o absorver.
– Comprei esse relógio numa loja qualquer, com um charlatão qualquer que queria mais dinheiro
do que o que oferecia. – vira o rosto – Esclarecida, Lady?

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Sete Nomes

Nem uma palavra, pousa tal coisa sobre a mesinha e retira-se do quarto sem chamar o último
nome da hóspede, outra mania inglesa que nunca se haveria de entender.
Arranjou um mapa de Londres. A dona garantiu que este estava atualizado e que todas as ruas
coincidiam. De facto, enganou-se em algumas ruas, onde casas cresceram quase como os
cogumelos ao tentar consumir um tronco. No pequeno papel que o tal James deu, estava escrito
apenas 228B. Nem foi ele que deu, na noite em que pediu quarto, um papel foi passado por
debaixo da porta. Então entendeu que era recado do tal homem.
Quantas portas daquelas existia? Passou por umas vinte, em diferentes ruas. Todas elas podiam
ser casa dele, mas só uma é que era verdadeira.
Fecha o mapa, Baker Street. Não suava a nada de bom, nem parecia ser uma rua muito pobre.
Três andares e janelas com cortinados vermelhos que esvoaçavam ao sabor da brisa envenenada.
Porta negra e o número 228. Pelo menos aquela casa tinha melhor especto que a última que
passou.
Como o tal pugilista disse, antes de fazer uma loucura, era melhor ver bem o que a rodeava. Casas
cerradas, ou seja, não existia janelas laterais. Muito movimento, se alguém entrasse naquela casa,
qualquer pessoa veria. Curiosos atentos, mesmo que fossem rápidos demais, denunciavam-se com
o simples toque leve da cortina. Deveria de existir portas traseiras, mas não tinham acesso para a
rua. No fundo, ali não tinha como simular algo louco.
Sobe as escadas e bate à porta com subtileza. Roupa vestida? Novamente o negro do vestido que
usou no dia anterior. Ainda não comprou a moda da rainha ou estava disposta a usa a etiqueta
londrina que exigia cartoline com frequência, mesmo em dias de chuva. Só respeitava a gola justa
ao pescoço, não queria escandalizar os olhos mais arregalados dos solteiros e casados que
escondiam o anel na hora de beber.
Um som medonho surge e o trinque da porta soa igual a um baú que não é aberto desde que
Napoleão foi enterrado. De lá, um homem louro de cachimbo na boca penteia o cabelo que não
lavava há mais de quinze dias. Robe vermelho e cheio de pó, talvez tenha estado tempo a mais
esquecido dentro do armário. Pijama, tão usado que ainda tresandava ao brandy dos vários dias
que o bebeu para apagar algo. Idade? Pouco mais que quarenta e três, algumas rugas no rosto e
um olhar curioso que parecia examinar bem a convidada.
– MiLady Rossemary?
– Não, Without.
– “Sem” o quê? – coça a cabeça.
Entra sem autorização, dizia a boa educação que ninguém devia ficar à porta. Casa desarrumada?
Não, estava bem mais limpa que o próprio proprietário. Talvez tivesse uma mulher a dias que
todas as manhãs tinha o cuidado de tratar do que o tal homem desprezava. O intenso aroma a
tabaco no ar estragava por completo a delicadeza, mas os ingleses já estavam habituados ao fumo
da rua, mesmo que o fizessem no interior.
– Ah… Without, a MiLady de Boston que me mandou um pedido.
– Essa. – vira-se – Tem o nome que lhe pedi?
– Tenho tantos nomes na cabeça que para procurar algum, preciso de um bom uísque. – caminha
para a sala ao lado – Pode refrescar a minha memória?
Os passos lentos contemplam a pintura na parede. Não conhecia os seus autores, mas tinha
consciência de que estavam a ser expostos para os convidados pensarem que eram caros. Para no
quadro que mostra um homem com dentes afiados a segurar num coração que, parecia uma
enorme esponja cheia de água que ao ser apertada, deprime-se.
– Quem é o seu pintor?
– Admira arte sem sentido? – senta na poltrona e estica as pernas.
– Não sou adepta de qualquer quadro que não retrate o real.

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Sete Nomes

O homem faz um som de ser interessante essa opinião. Maior parte diz que a beleza está no
abstracionismo, no surrealismo, no futurismo… O renascimento há muito que foi colocado na
gaveta.
– Que quadro favorito tem em sua casa, MiLady?
Boa pergunta, os tutores fartavam-se de comprar quadro para preencher os corredores vazios.
Pintores? Qualquer um que tenha uma tela e moldura, pode ser amador, copiar os originais e
vender os falsos, mas logo que pintem algo que choque, já vale apena gastar dinheiro.
– Só conheço Da Vinci. O resto, se não me lembro, é porque não interessa.
– Parou no renascimento, quebrou por completo o novo conceito da sociedade.
– Isso importa para o momento? Nem aprecio arte.
James pousa o cachimbo e levanta, metendo as mãos nos bolsos.
– Chama-se Matrê Noire. O quadro chama-se Le courage. É uma tela muito criticada em Paris
por causa de inventar algo que nasceu da cabeça dos transilvanos. Esteve no museu de cá, mas
muitas Lady´s queixaram-se da violência extrema. O que vê no quadro?
– Alguém que gosta de comer corações.
– Não, tem que o interpretar mais a fundo. Le courage…
Como isso ia ajudar a obter o tão desejado nome que queria? Nada, talvez o tal homem estivesse
a fazer tempo para inventar o que ela ansiava. Um nome qualquer que possivelmente ninguém
conhecia. Um simples apelido para tentar arrancar da pequena bolsa de pulso uma libra. A
ambição dos homens nunca se definia por causa de ser admirante. Como os corações se rendiam
ao dinheiro? Não tinham amor à vida? Concordava, para quê viver num reino completamente
sujo, lento e cheio de etiqueta. A morte significava libertação e, se era para morrer feliz, pelo
menos era enterrado com um enorme sorriso no rosto, por ter sido ambicioso.
– O nome?
– Que nome, MiLady?
– Aquele que se não der, serei obrigada a ir embora sem pagar.
– Nem devia ter entrado, uma mulher sozinha é insignificante… – aproxima-se – Como sabe que
eu tenho o nome que tanto quer?
Repara no olhar dele, tentava intimidar quem não tinha receio algum do que pudesse acontecer.
– Reconheceu o meu nome.
– Posso ter inventado para a senhora entrar. Em Londres, nunca se confia na porta mais à esquerda.
Não, só à direita de Deus é que devia de ser atravessada. Religião? Dela, só se devia de rugar ao
supremo na hora de aflição. Não era isso que as pessoas faziam? Andavam o ano todo a ignorar
os dias santos e missas. Depois, quando algo acontecia, lá erguiam a mão ao céu e pediam
clemência.
– Está a tentar fazer-me frente?
– MiLady, não fui eu que entrei por aquela porta. – aperta o braço dela com força – Quem lhe
garante que não a vou violar? Posso vendê-la em qualquer lado. Matá-la silenciosamente lá trás…
Um enorme sorriso aparece no rosto. Quando o olhar dele revela a pergunta muda, ela desata a
rir da ameaça. Medo, morria de medo de um homem cuja a profissão era preguiça.
– Passas o dia a beber, sentado nessa poltrona maldita. O nome que conseguiu, não foi devido ao
facto de levantar esse rabo e ir atrás da pessoa. Pagou ao rapaz que vende jornais na ponte, todas
as manhãs a sua empregada passa por lá e deixa esmola no bolso dele.
Recua a mão, como ela sabia isso? Ninguém o espionava, os londrinos não se davam ao trabalho
de serem tão descuidados.
– Como…

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Sete Nomes

– James é o nome do rapaz, mas usa-lo para atrair clientes. Acha mesmo que iria entrar por aquela
porta se não tivesse seguido primeiro o seu espião? Se quer matar-me, força… – abre os braços –
Aposto que nunca pegou num mosquete.
– Também viu isso?
– Não, basta olhar para o seu tique nervoso. Uma mão trémula não se atreve a fazer mira, a menos
que precise mesmo.
Assente lentamente, estava impressionado com a perspicácia dela. Pensou que daria o nome a
uma mulher ignorante que devia de andar atrás do marido. Mas, a surpresa deixa sempre o
destinatário com as mãos atadas.
– Sir Chester Alfie.
– Tem a certeza?
– O meu lacaio nunca erra nos nomes. Pode ser novo, mas se ele sabe fazer algo de bom é isso,
espiar e encontrar o que procuramos.
Pousa sobre a mão dele um pequeno saco de pano com moedas. Nome certo? Se deixava o
dinheiro, é porque encontrou o que queria.
O homem apalpa bem as moedas, quantas teria?
– Fifty pence. Deve servir para pagar a sua mulher a dias.
Olha de esguelha, ela era mesmo detalhada nas observações.
– Ah… – Para na porta – Pensei que Londres tinha uma etiqueta muito severa. Entrei, nem me
ofereceu chá, nem beijou a minha mão.
– Um deslize, MiLady. Não é todos os dias que uma mulher entra sem autorização.
Faz um som de ser uma meia verdade, mas quando se abre é porta, é porque se convida para
entrar. Sai e respira o impuro ar. Como sabia que aquele nome estava certo? Como podia acreditar
nas palavras de uma pessoa desmazelada? A questão é que antes de entrar em território inimigo,
é preciso conhecer bem a terra que se vai pisar. O nome? Já o sabia muito antes de embarcar para
ali, mas queria ter a certeza que esse homem vivia ali, podia perder o seu tempo com uma procura
inútil.
Agora, só devia de confirmar a morada.

Box Dead, o tal espertalhão fez o delicado pedido simples para a estranha mulher visitar o espaço
destinado a amadores. Diferente das tabernas, mas com o mesmo ar pesado do álcool e suor.
Mulheres? Ele avisou que eram autorizadas, apesar de a única que circulava com uma bandeja na
mão ser uma negra. Apreciadora da arte de bater no outro por dinheiro? Não, ela era escrava, o
sinal da cruz no pescoço significava comprada. Comprar um produto é sempre mais confortante
que ir a uma feira comprar um escravo. Preguiça humana e conduta dos mais ricos, pensavam que
com um lacaio, poderiam ter tempo para a real vida. Qual? Beber chá de manhã à noite, animar a
rainha e escrever os longos contratos de casamento. A escravatura foi abolida, Inglaterra deu esse
enorme passo que arrastou os restantes reinos europeus. Porém, nas sombras dos becos, tudo era
possível.
Balcão no lado esquerdo do alpendre, quem estrava tinha que descer as escadas para o corredor
cheio de mesas. Camarote VIP, de cima via-se bem o combate a dois. A arena ficava no andar
ainda mais abaixo, um enorme circulo com barreiras para os apostadores não entrarem na arena.
No chão, farinha para os pés descalços não perderem a aderência. As paredes de madeira
abafavam o ar, nem existia janelas para saberem se era dia ou noite.

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Sete Nomes

Pousa as mãos no corrimão das escadas e repara nos homens que disputavam o dinheiro do dia.
Casa quase cheia, de dia eram poucos os que se descolavam para ali. Mas de noite, apostava que
enchiam por completo. Alguém tinha que pagar os funerais.
Os homens andavam em círculos, galo contra galo. Nas mãos, os tecidos enrolados estavam
manchados de sangue. Deles? Da última luta. No ar, os homens gritavam, abanavam os papeis
com as apostas e desejavam ver a vitória.
O olhar dela não precisava de ser preciso para saber que aqueles dois não sabiam lutar. Nem um
deles ele o Yves, o aprendiz de Phill. Sorri ao baixar o rosto, o estranho tinha mesmo razão, deu
o nome para que ela não o pudesse esquecer. Se não o tivesse dado, não estaria ali a perguntar por
onde andava o Phill. Parecia eco, mesmo que não o quisesse chamar.
– MiLady, vai desejar mesa? – a escrava pergunta ao se aproximar.
– Não. O dono da casa?
– Vai entrar em breve. Deseja vinho?
Levanta o rosto para a rapariga. Dezanove, até a voz denunciava essa idade. Egito, nasceu mais
a sul, mas o sotaque vinha de lá. Mulata, o cabelo apanhado na nuca queria tentar dar mais idade
apesar de não a conseguir ter.
– Solta o cabelo, assim tens vinte e dois anos.
A rapariga coloca a mão no cabelo, já lhe tinham alertado para isso. E ignorou, alguns piropos
devem ser esquecidos.
Uma sineta toca e os dois homens desistem da luta inútil. Alguns batem as mãos nas barreiras
que davam pela cintura, apostaram à toa. Quem não diria que talvez a luta fosse manipulada? Sem
vencedores, não podiam pagar ou receber, os empates eram justos nisso.
Phill… O olhar acompanha o esperto que retirava o robe ao pé das escadas.
Lá estava ela, os lábios rasgam um enorme sorriso ao saber que a MiLady Boston estava presente.
Enrola o pano branco no punho e continua a fintar a estranha. O que tinha de especial? O que
escondia? O que podia revelar?
– Vou ganhar ou perder, MiLady?
Pergunta muito interessante.
– Se acordou com os pés dentro dos lençóis, é porque vai ter sorte.
– Supersticiosa? Pensei que os americanos dependiam da fé.
– Dependemos de muita coisa. Vai ganhar se saber lutar.
– Olha lá o meu oponente. – faz sinal com a cabeça.
Os olhos reparam no homem gordo que se gabava ao despir o robe azul. Lutavam em calças e
deixavam o tronco nu ser alvo de massacre. Ganhar com ele? Careca e imundo, cuspia para a
arena o que a garganta não aguentava guardar. Mas… Só quem tinha olho é que dava conta que
a força não se destacava nele.
Desce as escadas e ajuda a enlaçar as mãos.
– Um murro direto por debaixo do queixo, teve papeira.
– Eu sei, MiLady. – fica sorridente ao vê-la a ajudar.
– Já fraturou uma costela, a cicatriz revela isso. Volta a fraturá-la.
Vira o rosto para o rival, não viu isso.
– Tuberculose, cuspiu para o chão sangue. Bate com força nas costas.
Phill estava quase imóvel, não espionou bem o oponente, nem sabia que estava doente. Olhos de
águia, não custa nada ajudar um pouco a ganhar.
– Lento. – larga a mão dele – Só perde se quiser.
– Estou com uma enorme vontade de a beijar.
– Então prove que merece.
Sorri ao assentir e caminhar para a arena.

18
Sete Nomes

– Não se vai arrepender, MiLady.


Já se arrependeu de entrar ali.
Como favorito do Box Dead, abre os braços para o público e ouve o nome a ser aclamado. Phill
parecia um deus acabado de pisar a terra, todos apostavam nele, todos queriam ver novamente um
emocionante show. A mulher ainda nas escadas revira os olhos, odiava as pessoas que pensavam
que podiam ser superiores às outras.
A sineta toca e o outro oponente limpa os lábios antes de estica o braço para dar um murro. O
pugilista baixa-se e bate-lhe por debaixo do queixo, no local onde ainda era visível as marcas da
papeira. Atordoado, o oponente começa a recuar para se segurar nas barreiras. Os braços assentam
na madeira e deixam caminho livre para Phill bater com o pé na costela direita que esteve
fraturada. O homem grita e engrunha-se para suportar a dor.
– Vamos Sir Oscar, pagou duzentas libras para ganhar. – incentiva.
O homem respira fundo antes de levantar e partir para o ataque. Esquerda, direita, esquerda,
direita… Acertava o ar, porque o corpo do pugilista recuava a cada tentativa. Quando sente a
madeira, esgueira-se pela esquerda e com o cotovelo, bate com força nas costas. O grito ressalta,
os joelhos esgotam-se e o corpo cai no chão sem forças. Mais alto, mais forte e, no entanto, perdeu
por causa de ser lento e ter pontos fracos.
– Vamos contar, senhores. – Phill pede ao bater palmas no alta da cabeça – One… Two… Three…
Contavam em curo, nem desafinavam. A mulher passa os olhos por todos os homens que batiam
na madeira e contavam sem pressa. Ganhou, para amador, conseguiu somar mais uma vitória.
– Nine, ten! – aponta o dedo – Ganhei MiLady.
Sem uma luta corpo a corpo digna de um bom curativo? Nem parecia um combate. A multidão
aclama, Phill nem conseguia sair da arena sem ser tocado pela legião de fãs. Por outras palavras,
o pugilista era o rendimento deles. Se perdesse, eles também perdiam. Se ganhava, eles ganhavam.
A escrava veste o robe ao patrão sorridente que estava desejoso de receber o beijo.
– O que achou?
– Batoteiro. Nem levou um murro. – fala ao olhar para a arena.
– Também matou sem Jack a tocar. Além disso… – desenrola o tecido da mão – Não teria ganhado
se não me tivesse dado tantas dicas.
– O que sabia ao certo, Phill?
– Onde está o Sir?
– Não está. – fica a nível dos olhos dele.
Dona de si, rodeada de homens mortinhos por apanhar uma mulher sozinha e nem assim ficou à
porta. Faz um gesto com a cabeça para a escrava que, volta a subir as escadas.
– Só te conto um segredo se vieres comigo.
– Não pedi nada.
– Nunca pedes, pois não?
Não, nunca se atrevia a pedir, nunca chegava ao pé de alguém e dizia o que mais desejava ouvir.
Pedir era para os pedintes, aqueles que todos os dias iam à igreja pedir misericórdia por a vida ser
tão dura.
– Queres confiar em mim, MiLady Boston? – estende a mão.
Quem é que pedia confiança? Alguém que estava a viver o que não lhe pertencia. Aperta a mão,
nem todos os caminhos escuros indicam a morte.

19
Sete Nomes

Capítulo 3
Os dedos voltam a tocar a pele dela. Lia os nomes escritos nas costas que formavam uma
corcunda por causa dos braços agarrarem as pernas nuas. Phill já viu muitas tatuagens, a maioria
era feita nos escravos para os identificar, outros tinham-nas para dizer que já passaram pela guerra.
Os nobres não se tatuavam, nem os pobres se submetiam a isso. Então, só os mais loucos é que
pegavam nos ferros em brasa e colocavam sobre a pele.
Nunca viu uma mulher tatuada, elas tinham sempre a mania de usarem a delicadeza para tudo.
Também, não tinha como saber, os longos vestidos tapavam a garganta e os pés, nem os braços
eram descobertos.
A pergunta ecoava na mente, porquê que tinha sete nomes nas costas? Baixa a mão e coloca-a
atrás da nuca, levou-a para o quarto que estava ao lado do Box Dead. Uma cama estreita encostada
à janela, uma mesa com espelho, uma cómoda cheia de gavetas desarrumadas e uma pia para lavar
o rosto. Phill apesar de ser pugilista, só ganhava para pagar a renda do quarto e manter o seu
pequeno cantinho de luta aberto ao público. O que ganhava por fora em serviços secretos, só
garantiam a comida na mesa.
– Já posso saber o teu nome?
O olhar dela não focava nada em concreto, nem a mente dava sinais de estar distante. Não foi
forçada a entrar no quarto, nem a despir-se. Não, ela quis ir para a cama com Phill, ela quis fazer
amor com o homem que disse que podia negar. A virgindade já tinha sido roubada em Boston,
ela mesma garantiu que não seria dada como casta na hora de casar, assim era rejeitada de várias
maneiras, os médicos redigiam as cartas para os noivos saberem. Ninguém se casava com uma
impura. Os tutores também não a obrigavam a casar, mas devia jogar pelo seguro.
– Porquê o meu nome?
– Acho que ambos conquistamos a confiança.
– O contacto físico muda algo?
– Não, mas acho que só te deitavas aqui se confiasses em mim.
Faz um gesto com a cabeça, não era uma mentira.
– Se te conta, guardas segredo?
– Não tenho motivos para abrir a boca. Só estrago a vida aos vencedores. – sorri.
Não podia confiar em ninguém, Jason pediu-lhe isso, para ter muito cuidado quando pisasse
Londres.
– Rachel Clarel.
– De verdade?
A mão dela vai ao fundo das costas e os dedos tocam a tatuagem com o nome verdadeiro. Phill
fica ainda mais confuso.
– Tatuaste o teu nome?
– No orfanato onde estive, tatuavam as crianças ao fundo das costas para quando fugissem, as
pudessem encontrar.
Ele não conhecia isso porque em Londres todos queriam que os abandonados na roda crescessem
e desaparecessem.
– Ficaste órfã? Com que idade?
Rachel levanta da cama estreita e olha-se ao espelho. O corpo não era perfeito, tinha cicatrizes
leves e mais profundas em certas zonas. Cresceu quase tão rápido como o ódio que nunca a largou.
– Quantos nomes tatuei?

20
Sete Nomes

O pugilista encosta-se à parede e repara nas costas dela. Na linha da coluna, sete nomes negros
bem salientes marcavam-na. Não foi feito a ferro, ouve um certo cuidado em usar agulha e tinta
chinesa.
– Quem são?
Fez a pergunta certa.
– Donald Noah, Darwin Logan, Carter Archie, Chester Alfie, Merle Thomas, Backer James,
Bronwen Daniel. Oito de agosto de mil oitocentos setenta e um, num domingo de manhã, a
carruagem saiu cedo da casa de férias dos Clarel.
Podia ser nova na época, mas a memória jamais apagaria o dia em que a vida acabou. A mãe
colocou-lhe um vestido rosa e um chapéu florido na nuca para poder passear na floresta. À porta,
bate o homem de fato negro com um enorme sorriso no rosto. Confirma as horas no relógio de
prata. Sete e meia da manhã, a hora perfeita para apanhar camélias.
– Alice diz “Sir Cristian, o que vai almoçar?” “Prepare para a minha Rachel o bolo favorito
dela. E para a minha Angellyne o coelho de ontem.” Ninguém voltou para o almoço.
A carruagem partiu lentamente para a floresta ao lado da mansão. Todos os anos, aquela família
ia para Boston passar férias. Não eram duques ou barões, mas perante a coroa inglesa, tinham um
enorme destaque nos negócios que incluíam o comércio da Índia. Uma família rica que não
precisava de título, apesar do brasão indicar que eram primos de um duque inglês.
Cristian tinha hábito de pegar na filha e sentá-la ao colo, só para ela puder ver a paisagem. Em
todas as viagens, pedia para ela identificar as flores, as árvores, os pássaros e ainda pedia para se
lembrar dos nomes que estavam escritos nas histórias que lia. Aquela manhã não foi diferente.
Sentada no colo, os dedos ainda pequenos apontavam para as borboletas monarcas que pairavam
na zona. Tell me Rachel… Tell me what you see. Ela desvia o olhar para o relógio, sete e cinquenta.
Os cavalos agitam na presença de estranhos, o cocheiro é morto a tiro e quem estava na carruagem
é puxado para fora. Alguém agarra na criança que estava apavorada, alguém arrasta o homem que
gritava para ela não ter medo.
Rachel fecha os olhos ao reflexo do espelho, contou demais.
– Mataram-no. – Phill conclui.
– Fui levada para o orfanato mais remoto. As freiras não gostavam de nós, vendia os mais fracos
para a indústria, trancavam os restantes em quartos escuros, torturavam os mais velhos,
dormíamos nas caves, sobre cobertores rotos. Morriam muitos de fome, de doença, de tortura…
Quem fugia era capturado e preso nas varandas, os braços perdiam as forças e o corpo desfalecia.
Fugi num dia de chuva, com doze anos.
Chocado, o pugilista nem tinha palavras para reconfortar aquela mágoa dela.
– Descobri que a minha mãe morreu de exaustão, procurou-me durante dias e dias… Ainda hoje
me revolto ao saber que cheguei tarde demais.
– Foram esses homens, não foram?
Assente sem uma única lágrima no rosto.
– Jason era advogado do meu pai, acolheu-me de imediato e prometeu-me que não voltaria para
a rua ou orfanato. O cabecinha deles ordenou a morte do meu pai, roubou-lhe o dinheiro, o nome,
a honra e a família. Ele e os restantes que trabalharam para melhorar o comércio. Já matei um…
– a mão passa por cima do ombro – Apanhei este na taberna em Boston.
Carter Archie, a tatuagem estava rasgada, a lâmina passou por cima da pele e rasgou até ficar
uma cicatriz. Morto, mas o nome continuaria ali porque nada sarava da alma o que a morte roubou
à vida.
– Qual o próximo? – Phill levanta.
– Chester Alfie.
Um som percorre o quarto. A cabeça de Rachel vira-se, só se reagia quando se conhecia.

21
Sete Nomes

– Conta.
– Esse… – veste a túnica – Aposta às sextas, mas vai embora com os bolsos vazios. Eu sei onde
ele mora.
Encosta-se à mesa e cruza os braços.
– Qual o preço?
– Que preço? – olha-a – Não contrato prostitutas, por isso, não te vou pagar.
– Pela ajuda!
– Ah… – deita na cama – Olha cherry, eu gosto de ti, de verdade, és a mulher mais misteriosa e
peculiar que se deitou aqui.
– Margaritta, a tua primeira namorada também deitou aqui.
A cabeça levanta, como ela sabia isso? Nem sequer se sentou para contar a história de vida.
– Já sei, a carta que está debaixo da mesa com o selo de Itália. Olha que aprendi italiano.
– Morreu, não foi?
– Dívidas. Hyas não gosta nada quando os prazos não são cumpridos. Envenenou a água dela no
jantar do restaurante.
– E a Charlote?
Levanta e vai direto à gaveta, estava a revelar-se demais.
– Para de olhar para as minhas coisas.
– O lenço estava à mostra. Essa morreu de quê?
– Enforcou-se, disse que ia casar na semana seguinte, já não gostava de mim e ia ser rica. O
médico disse que ela não era casta e… – fecha a gaveta – Atou uma corda, saltou da ponte e olhou
para o rio.
– Nem pergunto pela Mynna.
Phill olha para o quadro na parede com o nome da mulher no rebordo.
– Tu gostas de saber mais que os outros só com o olhar? – coloca as mãos na anca.
– Culpa do meu pai, os pormenores importam sempre.
– É mesmo? Também não te pergunto quem foi o teu último amante.
– Não tive. Qualquer mulher pode perder a virgindade. É a única forma de ninguém me colocar
um anel no dedo.
Coça a cabeça, de facto, nenhum homem casava com uma mulher que já teve com outros homens.
Esperta demais, dona de si.
– És a quarta nestes últimos… Dois anos.
– Então tens vinte e cinco.
– E tu vinte e três. Fiz a conta, MiLady.
– Eu também, ainda não pagaste o carregamento de uísque.
Phill vira-se e fecha a porta do armário, ela era mesmo detalhada.
– Tá… Falemos em assuntos mais sérios. – tose ao senta na cama e vestir as calças – Tu precisas
de alguém para te guiar por esta cidade, conheço homens que sabem tudo por cá… Daqui a uns
dias os guardas vão seguir-te porque começas a ser suspeita, vão pedir documentos… Não vais
conseguir pagar o quarto ou confiar em alguém.
– E devo confiar em ti.
– Deves, porque se quisesse tramar-te, ia denunciar-te pela morte de Jack. Se te quisesse usar e
deitar fora… – levanta – Não te oferecia ajuda.
A lógica era simples, não havia como enganar. Estendia a mão, mesmo que ela não aceitasse.
Contou-lhe algo que ninguém sabia e isso já era confiar. Estava sozinha, rodeada de olhos que a
qualquer momento, iam vender ao diabo as informações. A melhor forma de ser invisível é andar
com alguém conhecido demais.
– Há mais um motivo por detrás disso, não há?

22
Sete Nomes

Phill deixa o suspiro escapar. Na primeira gaveta da cómoda, retira uma caixa de ouro. Ela não
era a única a ter uma infância terrível.
– Sou filho bastardo de um príncipe austríaco que dormiu com a minha mãe na Rússia, durante
um recital. Ela era… Cantora de lírica e nesse dia, ela não subiu ao palco. – abre a caixa e revela
o saco com moedas de ouro – Morreu cá quando fiz três anos e o meu pai decidiu mandar isto
quase dez anos depois.
Ouro… Rachel pega na túnica por lá esquecida veste-a. Aquele pugilista tinha oportunidade de
mudar de vida, podia ser rico, nobre, viver numa mansão, estar rodeado de empregadas… E não
era, vivia ali, no quarto ao lado, com vista para um telhado. Lutava para ganhar dinheiro, devia
mais do que conseguia pagar, ficou órfão cedo e não tinha sorte com as mulheres. A ganância não
era a sua maldição, aquele homem era capaz de dar a vida por alguém do que vender a alma ao
diabo por riqueza.
– Podias ter salvo a Margaritta.
– Podia Rachel, mas eu não quero este ouro. Foi ele que matou a minha mãe, eu vi o símbolo da
coroa austríaca. Sempre deve ter pensado que eu queria algo do reino dele… – fecha a caixa com
força e pousa-a com violência na gaveta – Prefiro que morra. Não quero nada dele, só queria que
me enfrentasse, que tivesse coragem de me dizer o motivo para ter matado a minha mãe, uma
mulher que nunca lhe pediu nada, nunca foi ao castelo dizer que estava grávida.
– Sabia que não ia receber.
Fecha a gaveta e repousa a cabeça sobre a madeira, os filhos bastardos nasciam incógnitos de
pai, cresciam sem nome e viviam sem saber a verdadeira identidade. Muitos ainda reclamavam a
má sorte, outros preferiam nem conhecer a realidade. Phill não queria ter o nome do príncipe no
seu, não queria sequer ser recordado que nasceu de um homem que após se arrepender, manda
ouro para tentar remediar o assunto. Nada paga uma morte.
– Deixa-me ajudar-te Rachel, deixa-me… – suspira.
– Fazer justiça. Por isso que lutas todas as noites, para conseguires dormir à noite sossegado,
prometendo à tua mãe que ela foi vingada.
– Não farias o mesmo?
– Estou a fazer… – caminha para a janela – A tua avó educou-te bem, na minha opinião. Não és
um homem de grande ganância.
– Como…
– O travesso pendurado no lado direito do armário. Foi com o dinheiro dela que abriste o Box
Dead. Admiro grandes motivos para a revolta.
Vira o rosto e sorri, nem perdia tempo a elogiar a esperteza.
– O homem que te educou ensinou muita coisa, não?
Rachel sorri, ele também tinha jeito para os pormenores.
– O meu colar, não é?
– Latim… Só um advogado sabe essas coisas. Rara, MiLady Boston.
Olha de esguelha.
– Raro, amador.
Coça a cabeça ao assentir, não se cruzaram por acaso. Tinham em comum uma revolta que os
movia, queriam vingar quem perderam, enfrentar os riscos da vida para as almas sossegarem. Não
era fácil suportar uma morte no peito, tal como o peso de não se ter feito nada para ajudar. Se
podiam, iam… Até ao limite.

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Sete Nomes

Passa na porta com calma, já era quatro da tarde e a hora do almoço há muito que deu lugar ao
lanche. Mesmo assim tinha fome. Phill ofereceu dinheiro para ela comer num restaurante onde
não consumia carne invulgar, mas esta recusou, qualquer pagamento feito era sinónimo de
prostituição. Ainda queria a sopa, a estalagem podia ser um casebre a cair aos pedaços, mas a
sopa era mesmo boa, nem na mansão em Boston a empregada fazia algo tão bom.
Faz sinal para a dona, chegou e queria o pedido no quarto.
– Tem sorte MiLady, guardei para si um pouco antes que acabasse.
Por outra palavras, se não tivesse tido a gentileza de se lembrar dela, comeria os restos. Sobe as
escadas e retira as luvas, não tinha só o nome como arranjou um aliado que sabia onde vivia. Não
o queria envolver muito na sua revolta, depois de ajudar naquele, pediria para se afastar. Gostar
dele? Não, apenas queria garantir que ninguém fosse apanhado na sua vingança.
O pé Para no degrau que range. O olhar fixava o homem que tinha a porta aberta e uma mão a
fazer gesto para entrar. O rosto faz sinal para a estalajadeira que levava na mão o prato com a
sopa. Recuar? Era bom que aquela mulher não tivesse visto aquela forasteira.
Continua o degrau e caminha para o banqueiro que deveria de querer um acerto de contas. Quem
o devia de fazer era Kiara Armstrongs, a sua dívida assombrava aquele homem. Mas, como não
estava…
Sente a porta bater com força, a conversa ia ser longa.
– Como está, MiLady?
– Bem. E o Sir?
O som do cinto das calças desapertar ecoa pelo quarto. O olhar de Rachel seguia os passos mal
contados do homem. O que ele ia fazer? O que qualquer homem fazia a uma mulher sozinha,
ignorante, cega e ingénua. A violação era uma forma de dizer que qualquer pedaço de carne
alimentava o cão. Poucas escapavam a isso e quem sofria, jamais conseguia recuperar.
Tentaram uma vez, mas a faca do jantar entrou pelo peito do violador. Jason até bateu palmas,
uma mulher forte defendia-se a qualquer altura.
– Falou com os seus pais, MiLady? – retira o colete.
– Já disse que não falo com eles. – deixa a bolsa cair.
– Uma pena… – desaperta os botões das mangas – Uma senhorita como tu não devia ter saído da
casa dos pais.
Sorri, até parece que a vida não deu outra alternativa.
– Deite-se.
– Não.
– Kia… Não queira ver-me violento.
Queria mesmo que deitasse? Muito bem, Rachel deita sobre a cama e espera. August passa a
perna por cima das dela e desaperta o botão da túnica.
– Se gritar, vai ser pior.
– Sou toda sua. – abre os braços.
O banqueiro baixa o tronco e começa a beijar-lhe o pescoço. As mãos dela vão baixando os
braços que ficavam controláveis, o pescoço ergue-se para ele se concentrar no que fazia. Como
se controla um homem violento? Dando o que ele quer, porque depois de começar, só foca no que
quer fazer. Com força, roda o corpo dele para lado e coloca-se por cima. Os joelhos prendem os
pulsos à cama.
– Quantas mulheres enterrou?
– Não me desafie, Kia.
– Duas. – pega na almofada ao lado.
O banqueiro era forte, mas os joelhos superavam a força.
– Não sou essa mulher que tanto quer violar. Se quer a Kiara, encontre-a no inferno.

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Sete Nomes

– Quem…
Coloca almofada sobre a cara dele e usa o corpo para pressionar o tecido contra as vias
respiratórias. O corpo mexesse, precisava se libertar para respirar. Uma mão liberta-se, mas não
consegue segurar aquela assassina, as forças perdiam-se aos poucos… A vida rendia-se à morte…
A mão…
Retira almofada do rosto dele e aproxima o ouvido às narinas. Sim, morto. Fecha os olhos, morreu
a dormir.
– Dívida saldada. – sai de cima dele – Quanto te devia? – pousa a almofada e ajeita-a bem – Nada,
mas Kiara tem muito que me agradecer.
Pega na manta sobre uma cadeira e aconchega o morto. Ninguém a viu a entrar, ninguém a viu a
sair do quarto. Ajeita o cabelo em frente ao espelho e apanha a bolsa.
– Phill tem razão, devo planear bem as coisas. – abre a porta – Acho que planeei.
O vendedor teve um infortuno de morrer numa loja onde pessoas passavam. Ali, o banqueiro
sufocado nem teve testemunhas. Fecha a porta, tinha que comer a sopa, sentia fome. Desce as
escadas e Para ao ver a dona a limpar o balcão.
– Já pode levar a sopa.
– Como correu a conversa com Sir August, MiLady?
– Bem, ele entendeu que não podia pagar a dívida. Decidiu falar com os pais daquela rapariga
que… Não sou eu.
– Claro MiLady, o seu nome é Valentina. – pisca o olhos.
Sorri, ainda bem que ninguém sabia o verdadeiro nome.
– August pediu para não ser incomodado até de manhã, parece que se sentia fraco e precisava de
descansar.
– Pode deixar, MiLady.
– Ótimo. – começa a subir – A sopa, sem demora.
A mulher volta à cozinha para pegar de novo o prato.
Descansar até de manhã… Rachel ri ao abrir a porta do quarto, quando dessem conta de que
morreu, já o banqueiro tinha chegado ao inferno. O rosto vira para as escadas, o corpo ainda nem
tinha dado um passo para o interior do quarto. Marchel… Mirava a hóspede como se desconfiasse
de algo. O que pedia com aquele olhar? Nada, por enquanto.
O Lorde desce as escadas e Rachel olha para o quarto, bem que existiam olhos a vigiá-la dia e
noite, espiões prontos a entregar. Um novo problema que seria resolvido em breve.

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Sete Nomes

Capítulo 4
O relógio não deixava dormir, aquele tic-tac ensurdecedor ecoava na mente. Sete e cinquenta da
manhã, cedo demais para levantar. Os olhos ainda descansaram, mas quando o cão esfomeado do
filho da prostituta começou a ladrar, o sono perdeu-se. Estende a mão e pega no relógio, qualquer
dia devia de arrancar a corda dele, assim parava de vez. Estudou que existia civilizações que
usavam o sol para saberem as horas. Ainda bem que esses povos não conheciam a maldição dos
ponteiros. O tempo não Para, mas também não dá sossego.
Levanta da cama e pousa o relógio, o vento que entrava pela janela já intoxicava os pulmões.
Caminha para o vidro e espreita para o beco. A prostituta dava o seio ao bebé. Afinal não eram
cinco, a família aumentou para seis. Os restantes quatro filhos comiam sobre o prato de porcelana
partida o pão encontrado no lixo e bebiam a água do barril. Miséria, a jovem nem a si se
alimentava quanto mais os filhos.
Rachel fecha a janela e a prostituta levanta o rosto. Ambos os olhares se fixam. Era fácil ser-se
observado, não era? O olhar sem brilho perguntava isso a ela, aquela que por detrás do vidro
contemplava o mundo sem fazer algo para o mudar. É difícil saber que se vai morrer nessa vida.
A prostituta baixa a cabeça, ela sabia que os dias estavam contados, mas não podia parar de lutar
por algo.
A cortina tapa a visão lamentável. Chegava perguntas com respostas óbvias, uns nasceram ricos,
outros pobres. Uns lutavam, outros dormiam. E o mundo girava sem escolher um único lado.
Pega no robe e veste-o, ia pedir à dona que o pequeno-almoço fosse todos os dias no quarto,
assim evitava cruzar-se com os outros indesejáveis hóspedes. Ao abrir a porta, repara num guarda
ao pé da porta de August. Vira o rosto para o outro lado e dá conta que os restantes também
vestiram o robe e foram ver o sucedido. Qual a festa? O banqueiro morreu a dormir. A curiosidade
alimentava qualquer mente que não tinha vida própria a cuidar.
No interior do quarto do morto, um médico examinava o rosto roxo do banqueiro. Tentava
entender como este morreu tão subitamente se a saúde era boa. Lá também, o guarda supremo da
realeza analisava o caso, vistos que o homem era deputado da camara dos Lordes. Como morreu?
Alguém o assassinou. Perguntava à dona da estalagem quem foi a última pessoa a falar com ele.
Entre um choro miúdo, diz que não sabe bem.
– Por favor, diga o nome do presumível assassino.
– Sir, não…
O rosto da mulher vira-se ao ver quem espreita pela porta. Valentina, foi ela que falou pela última
vez. O guarda repara no olhar da dona da estalagem e conclui que esta encobria um hóspede,
naquele caso, uma mulher.
– MiLady… – caminha para a porta – Podemos falar sobre ontem?
Rachel cruza os braços, seria a única a depor ou os restantes seriam interrogados também? Era
impossível desconfiar assim tanto da estranha que queria ver quem morreu.
– Onde quer falar?
– Na sala, MiLady. – faz um gesto para ser a primeira a ir na frente.
Falar não significada que ia ser presa, mas aquele olhar tão focado denunciava a vontade disso.
Caminha para as escadas, os abutres devoravam a carne fresca. Was she, I knew. Diziam isso a si
mesmos, como se tivessem apanhado o culpado antes de terem provas. Was she. A estranha
mulher que chegou há uma semana e alertava ser perigosa para a sociedade inglesa.
Senta na poltrona da sala e ao cruzar a perna, cobre os pés que se denunciavam. Finta o guarda
que tinha o chapéu aplumado nas mãos. Antes de ser o que era, serviu a marinha, tinha o cabelo
queimado do sal do mar. Sessenta anos, as rugas manifestavam isso apesar de estar bem

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Sete Nomes

alimentado e tratado. Alto, devia ter sido almirante, condecorações no lado esquerdo, por debaixo
da prega da farda vermelha. Porque saiu? Perdeu a pontaria, olho direito estava esbranquiçado,
quase cego. Apanhou poucos piratas no mar, ou teria cicatrizes nas mãos ou no rosto.
Puxa o banco para frente da poltrona e encara a mulher sentada.
– Tem nome, MiLady?
– Valentina Daylux.
– Posso ver os documentos, MiLady?
– Não, perdi-os no caís, um ladrão roubou a minha bolsa.
O guarda sorri, não acreditava nisso.
– Se for ao seu quarto, tenho a certeza que os encontro.
– Vá Sir, caso os encontre, devolva porque preciso mesmo deles.
Assente, supondo que ela não os tinha mesmo. Pousa o chapéu sobre a mesinha ao lado da
poltrona.
– O que fez ontem, MiLady Daylux?
– Levantei, lavei o rosto…
– Passe à frente a sua higiene. Para onde foi?
– Saí para a feira, até disse à dona da casa que queria a minha sopa no quarto às duas.
– O que fez na feira?
– Vi a mercadoria, peguei nos tecidos coloridos, examinei os sapatos… Quer provas disso?
Pergunte à comerciante de vestido castanho.
O guarda coça o queixo, parecia convincente demais.
– Chegou às duas ao quarto?
– Não Sir, passei no St. Martin´s. Rezei e confessei-me ao padre George. Pode ir lá conversar
com ele.
– Espero não estar a ser enganado.
– Deu motivos para isso? Creio que não. Sei dos riscos que corro ao mentir à coroa britânica.
Calma, o homem conseguia ver o ar pacifico dela. Se fosse a assassina, estaria a denunciar-se…
Um pé batente na madeira, umas mãos tremules, um morder de lábio, suor, olhar pestanejante
demais, gaguejar… Não tinha isso.
– Regressou a que horas?
– Quatro da tarde. Subi as escadas depois de pedir a sopa, mas tive que declinar ao ver o Sir
August na porta do seu quarto. Entrei.
– O que falaram? O que queria de si?
– Vendo relógios em Boston e vim para cá procurar compradores. Sir August queria o relógio que
pediu pronto no dia seguinte. Disse para não se preocupar que estava. Depois, pediu para que
saísse e ninguém o incomodasse até de manhã.
– Quero ver o relógio.
– Só subir as escadas e segurar naquele que está em cima da cama. Recuperei as peças e está
quase como um novo. Acha que mataria o meu cliente se preciso de dinheiro? Algo foi roubado
do quarto dele?
Nega, quem o matou não roubou um único centavo. Continuava a ser estranho ela ser a única a
ter estado naquele quarto. Ninguém a viu a entrar, ninguém a viu a sair.
– Suspeita que foi assassinado?
– Duvido, ontem estava muito estranho. A janela estava aberta, abanava a mão contra o rosto.
Sabe que Londres está cheia de doenças, se olhar pelo beco, vai ver uma prostituta que tosse todos
os dias. Sir August morreu vítima do seu coração, meu tio perdeu a vida a dormir e ninguém
suspeitou que alguém o matou.

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Sete Nomes

Sem perguntas, o guarda não tinha provas que a denunciasse ou podia suspeitar de alguém que
supostamente, acabou de perder o negócio.
– Lamento tê-la incomodado. – levanta – Penso que muitos anos no mar tomaram conta da minha
sanidade.
Almirante, Rachel sorri ao ver que não se enganou.
– Caso veja alguém estranho, avise MiLady, Londres tem muitos homens suspeitos.
– Venho de um país onde os índios são mortos mal pisem o mesmo chão que nós. Se sobrevivi às
balas perdidas de Boston, vou sobreviver a isto. Parto daqui a um mês, se isso o conforta.
– De maneira alguma.
– Passar bem… – levanta e caminha para as escadas.
– MiLady. – baixa a cabeça em forma de respeito.
Relógios… Se vendesse esses “gasta tempo”, morreria antes de chegar ali. Passa pelos abutres e
Para. Para onde olhavam? O que queriam? Não, ela ainda não ia presa.
– Com licença. – pede.
Baixam a cabeça, autorizavam a sua ida. Os olhos ainda seguem o corpo da estranha, a suspeita
que se livrou do laço da corda. Prometeu algo ao guarda, só isso explicava a sua libertação. O
médico sai do quarto e avisa os hóspedes que o banqueiro morreu de causas naturais. Naturais?
Enquanto Rachel entra no quarto a sorrir, os demais murmuram que isso é impossível. Nada
podiam fazer, o tempo ainda não recuava ao ponto de ressuscitar as pessoas outra vez. Ainda bem,
porque se o banqueiro acordasse do seu longo sono, diria que a hóspede do quarto três colocou-
lhe uma almofada sobre o rosto. E ela diria que ia ser violada e agiu em legítima defesa. Quem
teria razão? O homem, porque foi seduzido, porque ela entrou no seu quarto a pedir prazer.
Naquele mundo de ricos, as mulheres são mudas por completo.

Conseguiu sair depois da carroça levar o banqueiro rico para a morgue. Foi tão ganancioso que
agora todo o seu dinheiro ia para a coroa da rainha, não existiam herdeiros a reclamar e isso
significava que a realeza ficava com a herança. Também não cobraria mais dívidas, não pagaria
o quarto ou gastaria dinheiro com a bebida. Depois de mortos, todos iam para o mesmo buraco,
quer ricos, quer pobres.
Os olhos acompanham o movimento da mão da escrava. Limpava a mesa de madeira, esfregava
o tecido húmido sobre a marca de vinho que o copo de barro deixou. Os seios dela batiam contra
a túnica branca que revelava os ombros. Da saia negra, um avental preso à cinta. Usou-o para
secar o cabelo na noite anterior, o intenso aroma a sabão identificava-a.
Ao longe, Phill conversava em privado com o fornecedor de presunto. Pagar mais pela
mercadoria? Rachel conseguia ver a fúria dele, não podia abrir as portas sem que existisse vinho,
brandy, uísque, pão e presunto. Podia faltar o resto, mas isso é o que alimentava as apostas.
– O patrão não paga as contas há meses… – a escrava fala ao olhar também para lá – Temos
poucos lutadores, poucos apostadores e muitas dívidas.
Disso sabia, há dois anos que não paga o uísque que compra.
– Caminho, vende o Box e eu vou para a rua.
– Tens sempre o corpo para te dar sustento.
– Acha que quero prostituição? – vira o rosto – Ser negra já é um atormento, ser prostituta é uma
maldição. Dou graças por o patrão me ter comprado na feira, vivo num quarto nos fundos, como
os restos, tenho salário e não vivo na rua.

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Sete Nomes

Uma escrava que agradecia a sua pobreza… Pelo menos não contribuía para a miséria do reino,
não causava doenças, nem vendia o corpo para sobreviver. A prostituta do beco devia desejar ser
negra e ter sido comprada, assim teria um teto para viver.
– Tens nome?
– Abibatu, mas trata-me por Abie. – dobra o pano – Quer vinho?
– Ajuntam água?
– Para si, o patrão avisou que devia servir o melhor. Venho já.
Sorri, o melhor… Já se sentia em casa, comida genuína e sem medidas económicas. Repara no
pugilista que levanta e faz um gesto com a cabeça para os fornecedores, negócio suspenso. Um
homem com fama de devedor nunca conseguia comprar uma casa ao banco, nem comida.
Phill cumprimenta uns velhos conhecidos e vira a cadeira para se sentar na mesma mesa que ela.
O enorme sorriso denunciava o dia anterior.
– Fizeste negócio?
– Boston… Presunto bom eu sei onde arranjar. Só preciso que anoiteça e a porta dos fundos fique
aberta. Yves sabe como é.
– Vais roubar.
– Não, peço só emprestado. Quando tiver dinheiro, eu pago.
Olha para a arena, quando isso seria… Se nem as outras contas pagou, quanto mais aquela.
– Conversaste com a Abie… – mete um palito à boca – O que ela te disse?
– Que a violaste.
Phill vira o rosto para a empregada, ela inventou isso?
– Que ingrata. Fica a saber que nunca violei uma mulher, acho algo… Nojento. Se eu fosse
mulher, não queria ser violada, então, não faço.
Acreditava, o olhar dele não conseguia mentir assim tanto.
– Disse que estavas cheio de dívidas e que ia ser despedida.
– Talvez. – vira o rosto.
– Boston… – cospe o palito – Dívidas tu sabes, mas não sabes que tenho pena daquela rapariga.
Comprei-a na feira, quinze anos e um farrapo a tapar o corpo magro. Dei o lance mais alto e livrei-
a de ser vendida a um duque que a violaria dia e noite. Posso não pagar as minhas contas, mas o
salário dela não falta um único mês, nem que venda algo para lhe pagar.
– Tanto apreço por uma escrava. – coloca a cabeça sobre a mão.
– Abie e Yves são como meus irmãos, os únicos que cá estão quando a vida corre mal. Não gosto
da escravatura, nem aprecio os nobres que os compram para usar. Estão melhor aqui que na rua.
– Salvador da pátria.
– Qual a tua… – aproxima o rosto – Rachel?
– Não voltes a dizer o meu nome ou faço-te a caneca entrar pela boca!
A escrava bate o pedido na mesa e o pugilista recua o tronco. O que ela tinha? Não parecia a
mesma mulher do dia anterior, estava mais fria e revoltada. Deve ter-se arrependido e agora nem
o podia ver a frente.
– Olha… Se é por causa de ontem, se eu fiz algo que te tenhas arrependido… Lamento…
– Matei o banqueiro da estalagem. – pega no copo após a empregada se retirar.
Phill suspira de alívio, afinal não era isso.
– Pensei que tu tinhas arrependido. – sorri – As costas ainda estão arranhadas e… Fico distante
ao sentir a dor ainda. – coloca as mãos atrás da cabeça.
O olhar fixa no rosto dele, não se arrependia de algo que um dia aconteceria.
– Por que mataste August Unless?
– Alguém te veio dizer. – conclui.

29
Sete Nomes

– Chegou cá um tipo… – olha para as unhas – “O banqueiro morreu Phill, a tua dívida está
liquidada.” Maravilha, devo a menos um ladrão. “Uma mulher de Boston foi interrogada.” – olha
para ela – O que fizeste?
Volta a focar a arena, o que fez? A primeira morte que fez foi no orfanato, a freira ia cortar o
cabelo dela e a tesoura acabou por ser cravada no rosto da mulher. Nessa manhã, o pânico tomou
conta do corpo dela, pensou que nunca mais conseguiria dormir à noite. Um rapaz mais velho
disse que se matava por necessidade, não se devia ficar arrependido, deviam ser invisíveis para
sobreviverem. Voltou a matar, ganhou gosto em se defender dos perigos da sociedade, aprendeu
a fazê-lo sem errar ou ser apanhada.
– Ia violar-me. Sufoquei-o, coloquei uma manta nas pernas dele e disse a dona da estalagem que
August não queria ser incomodado. Fiz mal?
– Não, morreu a dormir, a janela aberta arrefeceu o corpo e a pele ficou roxa. Esperta.
– Pensei antes de fazer. – fala antes de beber.
– Liquidaste uma dívida. Quanto te devo?
– A morada de Chester.
Sim, ele ofereceu ajuda e ia cumprir o que disse.
– Chester é um Lorde da pólvora, vive no caís, no lote quatrocentos. Supostamente, deve vender
carne seca para a Noruega, mas as caixas verdadeiras nunca chegam a sair do armazém. É vigiado
por catorze homens colocados nos telhados em volta do espaço, um guarda fica todos os dias
parado ao pé de uma casa, só para vigiar a entrada. No barco atracado, é onde Chester vive.
– Parece perigoso. Gosto.
– Boston, o último que o tentou matar foi partido ao meio e vendido ao Twenty Two. – fala ao
aproximar o tronco.
Rachel aproxima-se também e os rostos ficam a centímetros de se beijarem.
– Tens medo?
– Não, só podes ter o mesmo destino que o teu pai.
– O meu pai não era violento e isso o matou. Tu és violento e ainda vives.
– Só luto na arena, fora, não passo de um coração de manteiga.
O corpo dela recua, pensava que o pugilista era um atormento na rua, que perdia a cabeça com
pouco e era rude. Mas, pelos vistos, não passava de um urso que dentro da caverna, hibernava.
– Partiste-me o coração.
– Pensei que não tinhas. – Phill bebe.
– Não me deito mais na cama de uma galinha. – levanta.
– Vá lá Boston… O que a minha bondade tem haver com o nosso relacionamento?
– Nosso… Nosso… – bate as mãos na mesa – Eu não tenho nada contigo. Uma hora juntos e
pensas que és algo a mim?!
– Boston… O nosso relacionamento é profissional. Quando te pedir a mão, tu lá decides.
Pedir a mão? Aperta o pescoço dele, estava a ir longe demais.
– Rachel… – murmura – Não finjas que és muito violenta, que tens raiva de mim e vais matar-
me. Tentas ser um vidro inquebrável, mas não és.
– Somos ambos semelhantes. Disseste-me o nome para ele ecoar na minha mente.
– O que aconteceu ontem ainda anda por aí, não anda?
O olhar não mentia, andava, remexia a mente, pedia mais e mais, a mesma adrenalina, o mesmo
toque. Naquele quarto, as horas, pela primeira vez da vida, pararam para ela. Beija-o, os limites
da vida deviam ser testados.
Phill ainda morde os lábios dela quando a cabeça recua.
– Amanhã, às sete ao pé do lote. – recua a mão.
– Lá estarei, Rachel. – sorri.

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Sabia que ele não quebraria a palavra dada. Corajoso, podia negar sê-lo, mas era. Ainda bem que
não escolheu a nobreza, iria perder o seu encanto natural.

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Capítulo 5
O fumo começa a sair, o palito é abanado no ar para a chama deixar de existir. Suga pela madeira
as ervas que foram bem aconchegadas no cachimbo. Manhã… Não acostumava acordar cedo, só
aos domingos para vestir algo e ir à missa rezar a morte da mãe e da avó. Parecia que não, mas
Phill era religioso, dava esmola aos pedintes do lado de fora e colocava a cartola para condizer
com o fato negro. Redimia os pecados que cometia, as malditas contas que devia, os mortos
estendidos na arena e claro, pedia perdão por ter ódio do pai que nunca conheceu. Deus devia de
entender o seu rancor, agradecia a sua existência, mas não tolerava o esquecimento.
Os olhos vigiavam a rua pouco movimentada. O nevoeiro subia o caís rapidamente e isso ajudava
no momento de se movimentar. Boina na cabeça e um casaco castanho, devia de parecer um
operário que esperava que a fabrica da frente abrisse.
Sabia onde estavam os compinchas de Chester, ia trocar de turno às sete e meia, por isso, se a
sua sócia chegasse cedo, apanhava ali uma oportunidade de entrar sem ser vista. Puxa o relógio
de bolso, sete e oito.
– Vamos Boston. – fala ao retirar o cachimbo da boca.
Não sabia se ela era pontual, nem disse a que horas devia de estar ali. Pôs-se a pensar… Uma
mulher vingativa deve madrugar, então mandou a empregada do Box acordá-lo mais cedo, Abie
começava a limpar às seis. Lá foi a escrava ao quarto acordar o patrão que dizia que não queria.
Ameaçou atirar-lhe um balde de água e Phill levantou o tronco, se o colchão apanhasse água,
tinha que comprar outro porque só no verão é que ele secava.
Sopra o fumo e repara nos dois rapazes de mãos dadas ao pé de poste de correio. Órfãos que
viviam na rua, vestiram o casaco mais roto que tinham para se protegerem do frio. Não roubaram,
alguém o deu por pena. O mais velho teria sete, o mais novo quatro. Esfomeados, os rostos pálidos
e sujos pediam esmola com os olhos sem brilho. Descalços, quem deu o casaco não teve a bondade
de dar uns sapatos também.
O pugilista não gostava de ver crianças assim na rua, é como se tivesse coragem de ir ao castelo
e pedir à rainha que tivesse clemência de quem não tinha o que comer. Ela não faria nada, ainda
mandava cortar a cabeça dele por ter a audácia de elevar o tom.
Volta a rever a rua e cruza-a. Vira o cachimbo para as ervas ainda incandescentes caírem no chão.
Moedas? Vai ao bolso das calças e abaixa-se ao pegar na mão do mais novo.
– Tens nome, boy?
– Lewis. – a voz rouca não hesita.
– E tu? – levanta o rosto para o outro.
– Michael.
– São nomes de grandes guerreiros. Hoje vão comer porque… Eu tenho algo para vocês
venderem. – levanta.
O mais novo abre a mão e levanta o rosto radiante para o irmão, dez libras.
– É o cachimbo mais antigo que tenho no meu quarto. – mostra a madeira a Michael – Pertenceu
ao Sir Wellington. Conhecem o general inglês que derrotou um minorca italiano com um reles
sotaque francês?
Negam, não frequentavam a escola para saber o nome deles.
– Bem… Napoleão tinha o tamanho de Lewis quando desafiou o nosso general. Ele disse algo
estranho em francês e Sir Arthur meteu este cachimbo à boca… – coloca na boca também e cruza
os braços, fazendo um ar de zangado – “Sir Ney, quem é o pequeno rapaz no outro lado do campo?

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Sete Nomes

A mãe dele não lhe deu educação? Vamos bater-lhe no cu até aprender a não desafiar o nosso rei
George.”
As crianças desatam a rir.
– Napoleão ao ver as tropas inglesas a avançar aprendeu uma palavra em inglês. Então disse…
“Foque, foque! Terrible angles!” Morreu sem aprender os restantes palavrões. Ainda me pergunto
como ele beijou a esposa na hora de casar, aposto que era mais alta. Esperem…– estala os dedos
– Deixaram usar escadote, isso explica o quadro exagerado dele em Paris, foi pintado em cima de
um escadote.
Os risos davam cor aos rostos malnutridos. Há quanto tempo não riam sem darem conta que
nasceram na miséria? Nunca, ninguém se deu ao trabalho de ensinar algo, nem que fosse a história
mais ridícula da batalha de Waterloo. Para os pobres, todos os dias eram dias de funerais, chuva,
nuvens e trovoada, raramente existia um enorme sol sobre as cabeças a alegrar a alma.
– Vendam o cachimbo e comprem sapatos, comida… Qualquer coisa. Digam que é do Wellington,
tem o brasão dele aqui. – aponta para a marca na madeira polida – Vivam um dia que nunca
viveram.
– Obrigado, Sir. – ambos se agarram às pernas dele.
Phill faz um som de não ser preciso isso. Pousa as mãos sobre cada nuca e dá um mimo que
duraria uns segundos, mas para eles, faria toda a diferença. Sente um corpo a mover-se e o rosto
vira para o outro lado da rua. Rachel. Com um ar de que não queria fazer caridade àquela hora. O
que disse no dia anterior? Bem, que não se deitava mais na cama de uma galinha. Lá larga os
rapazes e ajeita a boina ao cruzar a rua, ela nem se devia de dar ao trabalho de ir à missa. Repara
no novo estilo dela, calças, túnica e casaco de homem. Mosquete na cintura, botas de couro até
ao joelho. Corpete negro no tronco. Onde estava o vestido? Onde estava a moda inglesa?
– Belas calças. Roubaste-as a alguém?
– Ao contrário de ti, pago o que compro.
Murro no rosto… O pugilista até sacode a boceja, foi direta demais na hora de apontar o dedo.
– Mal-humorada… Azeda… Áspera… Devias de consumir açúcar.
Não estava para brincadeiras, Rachel passou mais uma noite sem dormir. Daquela vez, ninguém
do beco da prostituta fez barulho, os gatos dormiram debaixo das telhas, os cães sossegaram aos
pés das crianças e nem a jovem foi vender o corpo. Finalmente, silêncio. O gramofone tocou após
a meia noite ser denunciada, o casal voltou a discutir, alguém foi bater à porta deles, à do hóspede
de cima… Um desentendimento começou, August voltou a chegar à estalagem para atirar as
culpas… Enfim, quando tentou dormir, às cinco da manhã, o relógio ateimou em contar os
segundos. Conclusão? Que ninguém lhe pedisse um sorriso no rosto.
– Não dormi bem.
– Também não, as unhas nas costas… Doí-me a anca por causa de ter treinado Yves… – alonga
o braço – A que horas acordaste?
– Oito, como sempre.
Oito… Phill fica confuso, ainda não era oito da manhã. Puxa o relógio de bolso e confirma a
hora. Sete e quinze, nem um segundo a mais ou a menos.
– Ainda deves estar pela hora de Boston. – conclui.
– Não. Aquele maldito relógio não me dá descanso, ecoa na mente aquele barulho infernal… – as
mãos quase tapam os ouvidos – Estou farta dele.
– Devias deixar a corda acabar.
– E deixo, mas ela não acaba.
O pugilista coça a cabeça, os erros de fábrica davam sempre a volta à cabeça.
– Boston, isto é o seguinte. Sete e meia, eles trocam de turno, demoram cerca de dez minutos a
fazê-lo. O guarda enfardado senta ali… – aponta para as escadas ao pé de uma porta – Oito em

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Sete Nomes

ponto. Chester libera as amantes às oito e oito e trata dos negócios habituais. Hoje é sexta, então
ele vai apostar em mim. Vais lá, matá-lo e pronto, riscamos um nome da tua lista… Quer dizer,
costas. Ready?
Os braços cruzam-se, ele sabia as horas, mas esqueceu-se do resto.
– Pensaste nisso a noite toda?
– Deitei-me à uma da manhã, depois disse para mim mesmo “Tenho um plano para a minha
Rachel seguir…” Pronto, não há como errar. Temos dez minutos de invisibilidade.
Faz um som de comovida com tanto apreço dele, pensou no plano de sonho. Errou, não chegava
as horas, devia de existir o resto para o plano ser perfeito.
– Sete homens lá em cima, nos telhados, sete a comer lá dentro, com a porta do armazém bem
aberta para verem quem entra. Ao pé do barco, um velho pescador que faz redes é um espião.
Podemos entrar, dez minutos, mas não nos livramos dele.
– Enganaste, às sete e quarenta, esse mesmo homem levanta para aliviar a bexiga, nunca segurou
a urina e por isso, come às sete. Quarenta minutos depois e tem que ir à esquina. Três minutos a
despir e vestir.
– Certo. E no barco? A empregada com a esfregona na mão faz questão de vigiar bem a porta do
camarote.
– Correct, mas até ela tem horas. Sete e cinquenta e nove minutos, despeja o balde nas docas,
desce a rampa toda e isso leva… Cinco minutos, o velho regressa do mijo, os capangas acabam
de trocar de turno, o guarda ainda não chegou. Quanto tempo temos? Dezoito minutos de
invisibilidade. Mais algum pormenor, MiLady?
Não, ela tinha as posições, ele tinha o tempo. Devia de bater palmas, nunca conheceu um homem
tão detalhado.
– Vários dias a espionar?
– Não Boston, vários dias a tentar matar aquele homem. – sorri – Devo-lhe dois dentes de ouro,
pelo menos, é o que diz no Box.
Sorri, aliado de peso, ainda bem que o encontrou.
– E tu, como sabes assim tanto?
– Phill, vim cá ontem espionar ao pormenor.
– Esqueceste de olhar para as horas… – sussurra.
– O meu relógio está estragado! Ele não funciona há treze anos.
O… Fica confuso, completamente perdido do norte ou do sul. Queixava-se do som que ele fazia
ao trabalhar, mas se não trabalhava, como o ouvia a trabalhar? Estala os dedos, o ponteiro devia
estar sempre a bater na mesma hora, isso a prendia há anos ali, no mesmo número.
– Vou-te oferecer o meu, assim sabes há quantas andas. – vai ao bolso.
– Não quero Phill, não gosto de relógios.
– Então vais contar os dezoitos minutos?
Também não pensou nisso, precisava de algo que a alertasse de que estava a ficar sem tempo.
Estende a mão, lá tinha que aceitar a oferta.
– Muito bem, Boston. – pousa o relógio nos dedos dela.
– E tu?
– Conto como qualquer homem inteligente. Estou habituado a contar, os torneios duram trinta
minutos. – ajeita a boina.
Rachel repara no ouro, não era um simples relógio de prata, aquele tinha a cor do ouro, amarelo,
reluzente, simétrico... Ouvia o som dele a trabalhar, antigo, com as peças trocadas ou nunca
precisou disso. Fecha os olhos e aproxima-o ao ouvido, então aquele é que era o som da corda a
trabalhar. Estava vivo. Não estava preso no tempo. Não a despertava do sono.
– Tu és estranha. – Phill sorri.

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Sete Nomes

Não, apenas nunca mais teve o gosto de ouvir um relógio de bolso a trabalhar.
– Vamos?
Assente ao abrir os olhos.
– Dezoito minutos, se não estiveres aqui, eu vou atrás de ti. – começa a andar.
– Por que farias isso?
O pugilista dá de ombros.
– Já que me dei ao trabalho de levantar, deixa-me bater em alguém. Farias o mesmo por mim.
Fecha a mão, é bom que não estivesse tão certo disso. Não ia arriscar o seu pescoço por causa de
um homem comum que estava cheio de dívidas. Entrou na sua vida e não o devia de ter feito,
porque se fosse salva por ele, ficava a dever-lhe. E essas dívidas são as mais difíceis a pagar.
Sete e vinte e cinco, o aroma do chá a fervilhar na chaleira percorria o armazém. O presunto era
cortado pela longa faca, os scones mal arrefeciam sobre o prato de bronze. Os sete homens
preparavam-se para trocar de turno, alimentavam-se pela última vez, uns iam aliviar a bexiga,
outros despertavam da longa noite de sono.
A correria já infernizava o lugar, desciam e subiam as escadas, gritavam, chamam os nomes dos
colegas de turno e diziam que havia presunto. Claro que os esfomeados não queriam saber da
vigia, quem ia entrar àquela hora? Descem a correr, enchem as bocas desdentadas e falam sobre
as damas da corte. A chaleira faz um ensurdecedor som da água estar a ferver, o vapor relembrava
os comboios sobre os caris. Eles não ouviam, estavam felizes a comer.
A mão é colocada sobre a boca, o bafo iria denunciá-lo. Espreita para o interior do armazém,
catorze homens a comer e a falar. Chester pagava àquela cambada de preguiçosos? Phill faz sinal
a Rachel, podia passar pela porta.
Respirando fundo, desata a correr para o outro lado e encosta-se à parede do armazém. Vira o
rosto, o pugilista ficaria ali de vigia. Bate uma mão no pulso. Dezoito minutos. Ela assente, estava
a contar.
Sandes de atum, estava farto de comer isso. A mulher não lhe fazia mais nada, só sandes, só
atum. Como era peixeira, as sobras sempre serviam para o jantar… Lanche… Almoço…
Pequeno-almoço… Para qualquer hora do dia. O pescador trinca o pão duro com sinais de bolor,
saboroso. No momento em que não tinha mais nada para comer, qualquer coisa sabia pela vida.
Bota os queixos à garrafa de vinho e bebe para aquecer a alma. Então, olha para a empregada que
acaba de encerar o chão com óleo de baleia. Boa mulher, peitos fartos, bom ventre, deu à luz onze
filhos. Ela precisava de um marido melhor, o bêbedo que tinha em casa não ajudava nas despesas.
Pousa a sandes, larga o vinho e caminha para a prancha.
– Grace… Temos de falar.
A mulher levanta o rosto e passa o pulso pela testa suada.
– O que queres?
– Dou-te dinheiro se casares comigo.
– Já sou casada. – pousa o pano no balde – Volta para o teu posto.
– O teu marido não vale nada… – as mãos vão diretos à cintura dela – Anda Grace, eu sei que
precisas de dinheiro.
– Preciso. Mas não do teu.
– Dou-te o necessário… – começa a beijar-lhe o pescoço – Pede que dou.
A empregada fecha os olhos, precisava do que não tinha.
– Aqui não, o patrão vai ver! – empurra-o.
– Atrás daquele barril… – pega na mão dela – Ninguém nos vê lá deitados.
A empregada lá retira o lenço da cabeça, o dinheiro ganhou. Desaperta o avental e puxa a saia
antes de deitar.
– Seja rápido.

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Sete Nomes

O velho sorri, velocidade era o seu nome do meio.


A porta é encostada com muita delicadeza. Horas? Nenhum dos vigias cumpria horário, nem
aqueles que decidiram dar uma fugida a meio do expediente. Rachel caminha em bicos de pés
pelo camarote. Viagens, as paredes em madeira estavam repletas de quadros, lembranças, mapas,
fotografias, expedições… Chester esteve por toda a parte, desde a Índia ao Chile. Rico, dois
enormes baús estavam ao pé da escrivaninha cheia de papeis. Desorganizado, deixava para depois
o que não queria ler durante a semana. O navio não era um qualquer, roubou-o a um almirante da
realeza, o luxo dele denunciava que a rainha Victoria perdeu um brinquedo da sua frota.
Outra porta, e dez minutos para o matar. O mosquete é retirado da algibeira, a aldraba é rodada
com calma e o clique do trinque é rápido.
Fome, agora Phill tinha fome. Por que até aqueles homens comiam melhor que ele? Presunto?
Ainda estava a dever o seu carregamento ao talhante do outro lado da cidade. Pousa a mão sobre
o estômago, comeu antes de sair do Box, mas sentia fome outra vez.
– Anda Rachel, quero comer. – murmura.
Nove minutos bem contados se fosse rápida.
O olhar espreita pelo aro da porta. Chester Alfie, o homem que segurou nela e tapou a boca
quando foi arrancada dos braços do pai. Decorou o rosto dele, o aroma a tabaco, a tatuagem
debaixo da gola e até a voz fez questão de relembrar todas as noites. Cobarde, deixou-a no
orfanato, sem sequer olhar para trás. Abre um pouco mais a porta, como Phill disse, uma amante
estava lá deitada.
Pousa o calcanhar do pé primeiro antes dos dedos. Sabia que a madeira dos navios era instável,
rangia como as escadas das casas. Pousa o outro, a respiração era quase sustida para não ser
apanhada.
O corpo de Chester vira para o lado direito e Rachel Para. Acordou? Não, passava o braço por
cima do corpo nu da prostituta que, naquela noite, ganhou o ordenado. Volta a andar, a madeira
começa a ranger… Os dentes trincam o lábio, os olhos fecham-se…
O tronco levanta e a culatra do mosquete é apontada contra a pele. Apanhada, pensou que dormia
profundamente, mas enganou-se, nem se deu ao trabalho de examinar bem quem ia matar.
Chester encara a mulher com o mosquete apontado. Como entrou? Como a deixaram passar? A
mão desliza pelo lençol da cama, ia…
– Nem penses! – sussurra-lhe.
– Quem te mandou?
– Vim por contra própria, Mr. Chester.
– Dívidas? O seu marido não as pagou?
Força ainda mais a culatra contra a cabeça dele, estava a brincar com a situação?
– A bala vai tirar-lhe a vida mais rápido que pensa.
– Ótimo, faça isso.
O dedo puxa a patilha sobre o mosquete e o dedo segura no gatilho.
– O que o levou a matar o meu pai?
Pai… Então tratava-se de uma vingança. Só não sabia de quem ela era filha.
– Talvez ele tenha feito algo que não tenha gostado. Já pensou se era um homem de palavra?
– Sempre o foi, sempre o seria se não o tivesse matado. Mais concretamente, se não visse a ser
morto.
– Olha… Eu já matei muitas pessoas… – faz um gesto discreto – Sê mais específica.
O corpo sente o movimento rápido, mas não vai a tempo de reagir. O braço agarra no pescoço
dela, a mão é torcida até largar o mosquete. A prostituta acorda aos gritos, a empregada que
tentava atiçar o pescador levanta o tronco ao ouvir.

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Sete Nomes

Chester faz sinal para a mulher na cama sair. Atira o mosquete ao chão e levanta. Uma jovem
vingativa… Uma filha que perdeu o pai e agora ia ali reclamar a morte… Coça a cabeça com
força, como ela entrou? Como passou pela segurança que montou? Sem resposta, dá um forte
murro no abdómen dela. O grito abafado sai, mal conseguia respirar por causa do braço sobre a
garganta.
– Se não fosse o West, eu seria morto. Onde raio estão os outros?! – grita furioso.
– Grace devia de estar a vigiar. – o homem fala.
– Ela e os restantes. Isto não podia acontecer, se uma mulher consegue entrar, então qualquer um
consegue!
– O que fazemos com ela?
O olhar dele tinha a resposta. Seria morta e atirada ao rio. Rachel tenta libertar-se, não podia
morrer sem cumprir o que prometeu. Mexe o corpo, tenta fazer com o braço a largue.
É então que outro murro abre-lhe a boca que queria gritar de dor. A mão agarra no rosto e aperta
com força.
– Se matei o teu pai, é porque ele não prestava. Quem pensas que és para me vir matar? Achas
que não estou habituado a isto?
Cospe-lhe, quando não se fala, pelo menos, atira-se à cara o que se pensa.
Passa a mão pela saliva antes de puxar o braço atrás, matá-la-ia assim se fosse preciso.
A porta abre e a cabeça vira-se.
– Chester, meu sócio favorito. – Phill retira a boina.
O olhar de esguelha mira a mulher, o que o pugilista tinha haver com ela?
– O que fazes aqui? – baixa o braço.
– Os teus vigias fazem uma festa no armazém, a tua empregada dá a vagina ao pescador… É
difícil não passar.
Sem vigia… As mãos passam por entre o cabelo branco, estava desprotegido por completo.
Presa pelo pescoço, o rosto vermelho denunciava a dificuldades a respirar. Contou, aos cinco
minutos deu conta que estava atrasada. Mesmo que não tivesse, iria ver se conseguiu matá-lo.
Pelos vistos, se não tivesse ido, perderia a sócia.
– Então, o que esta prostituta fez de mal? – Phill abre as cortinas para a claridade do nevoeiro
entrar.
– Conhece-la?
– Eu Chester? Não, nunca a vi na vida. – serve-se do vinho – Podes continuar a bater-lhe.
– É mesmo?
– Sim, se ninguém a veio reclamar, é porque não faz falta.
Sendo assim, outro murro forte é dado na barriga dela. O grito sai, o sofrimento percorre o
camarote e estremece o corpo de Phill. Outro grito, os olhos de Rachel largavam pesadas lágrimas,
a boca já deixava escorrer para fora o sangue que subia pela goela. Queria perdê-la ou ajudar? Foi
ali para a ver morrer com uma costela partida? Não, perdeu muitas mulheres e não estava disposto
a perder aquela.
– Pronto, chega. – bate o copo na mesa.
Chester vira o rosto.
– Vim cá para avisar que deves-me cento e quarenta libras.
– O quê? – aproxima-se do pugilista.
– É verdade, venci os teus combates organizados e nunca pagaste. Vais mentir?
Não, devia-lhe realmente isso. Mas não queria pagar, jamais pagava aos devedores.
– Depois de a matar, falamos…
– Ela tem todas as horas do mundo para morrer. Hoje há noite vou encher os teus bolsos, então
paga um pouco adiantado.

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Sete Nomes

– Primeiro ela morre… – caminha para a mulher.


– Está bem, espero que na hora de te matarem, alguém apareça para cobrar algo. – fala ao meter
as mãos aos bolsos.
O murro é suspenso no ar, o que estava a insinuar?
– O que queres dizer? – olha-o.
– Tu sabes que nasci com humanidade. Então, o dinheiro é mais importante que a vida. West não
a vai largar e não.
Era verdade, Chester só tinha aquele aliado para o proteger. Encara o rosto vermelho, estava a
morrer, o ar não entrava tão rapidamente pela boca.
– Quanto é mesmo?
– Cento e quarenta libras.
Puxa a manga para cima e sai do quarto, ia tratar primeiro da dívida. Vai à gaveta, a chave estaria
algures. A cabeça levanta ao ouvir o sino a tocar, algo raro. Alguém entra pela porta do camarote
a correr.
– Guarda real, a polícia está a chegar! – um grita.
Chester fecha a gaveta e correr para o lado de fora.
O pugilista ouviu bem?
– Hm.
O inspetor estava a chegar. Nunca se sentiu tão feliz em toda a sua vida.
– Olha, acho que vais ficar sem um dente.
West vira o rosto e o pesado murro obrigando-o a largar o pescoço.
– Boston, sempre desprevenida. – coloca o braço dela à sobre os ombros.
Fraca, não conseguia ver bem, doía-lhe a barriga e estava com vontade de vomitar. Andar? Rachel
se não fosse ajudada, caía no chão, gritaria de dores e pediria clemência a si mesma por pensar
que conseguia.
– Desculpa chegar agora. – Phill baixa ambos os corpos ao ouvir tiros – Estavas a demorar muito.
– Querias que morresse? – fala com dificuldades.
– Bem, era melhor que pedir para seres libertada. Nunca te vi, lembraste?
Sigilo, nem a visse a morrer, jamais a entregaria. Abraça-o, agora devia-lhe a vida.
– Não é o melhor momento para isso.
– Devia ter-te contado uma coisa antes de vir.
Recua o corpo dela.
– Conta depois. Temos que saltar para a água.
– Mal consigo respirar.
– Vê se entendes algo. – coloca as mãos sobre os ombros dela – Guardas maus, porque eu devo à
rainha, que manda nos bancos, que me fizeram o empréstimo que não pago. Eu preso e morto, tu
presa e morta por Chester. Se formos, matamo-lo depois. Capisci?
Rachel olha para a água negra do Tamisa. Sobreviver para voltar ali, não tinha muitas escolhas,
os guardas invadiam o armazém, apreendiam a mercadoria, Chester tentava chegar a um
consenso, alguuns disparavam… Salta para a água.
– Boa escolha. – Phill agarra na boina e salta.
O rio não era o melhor lugar para refrescar o corpo, os esgotos das fábricas encaminhavam para
lá as sobras do carvão, as casas descarregavam lá os dejetos, lavavam naquela água os cascos dos
navios, deitavam para lá os cadáveres decompostos. Mesmo assim, os pobres confiavam no que
alimentava Londres, bebiam aquela água, usavam-na para cozinhar e lavar a roupa. Morriam mais
depressa? Já morriam com o ar, que diferença fazia serem vítimas do essencial?
A cabeça emerge ao aproximar-se de umas escadas no outro lado da margem. O braço é esticado
e os pés batem com mais força para acabar com a exaustão. Logo atrás, o pugilista dava grandes

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Sete Nomes

braçadas na água para não ir na corrente. Nunca atravessou o rio a nado e isso, já se assemelhava
a um recorde. Sobe para cima das escadas e estende a mão a Rachel. Puxa o corpo que tose para
cima das pedras.
– Banhos no inverno. – retira a bota e vira-a para a água sair – Só dou banho no verão.
Nem o ouvia, não estava para piadas.
– Agora a roupa vai levar uma semana para secar, tal como as outras que Abie lavou. Lindo… –
torce a boina – Vou ter que usar o fato dos domingos!
– Cala-te! – grita-lhe – A ideia foi tua.
Repara na mão dela sobre a barriga. Claro que estava irritada, acabou de levar murros.
– Phill… – um rapaz grita no beco.
O pugilista levanta ao chamamento, conhecia a voz.
– Yves, aqui. – acena com a mão.
Rachel levanta o rosto para o tal rapaz que ele treinava. Novo, dezanove anos. Cabelo negro e
olhar azul, não tinha sinais de ter vivido na rua, nem que se alimentava mal. Baixo e magro, tinha
nódoas dos treinos e das lutas da semana passada, usava a roupa do patrão apesar de ainda não ter
corpo. Tose com força e o sangue sai pela boca.
– Chamei os guardas, disse que vendiam ilegalmente carvão. Fiz bem?
– Se fizeste? – coloca a mão no ombro dele – Nunca fiquei tão feliz por ver os soldados da rainha.
Yves sorri e repara na mulher no chão.
– É aquela que falou ontem? – aponta.
– Yves, Boston. Boston, Yves. – apresenta.
Nem acena, nem olha, estava partida por dentro.
– Tem nome de cidade?
– Yves, fica pelo que te digo. – abaixa-se e pega no braço de Rachel – Temos de a levar, pode ter
descolado uma costela.
O rapaz passa o outro braço por debaixo da cabeça e ajuda a caminhar.
– Ainda temos uísque?
– Temos boss.
– E água quente, Abie aqueceu hoje?
– Não sei. É para ela?
Assente ao agarrar na cintura dela para ajudar a andar. A dor é denunciada pelo grunhir violento.
– Queres que te leve ao colo, Boston?
– Não, só preciso ficar esticada no chão.
– A minha cama é fofa, ganhei a aposta e fiquei com a cama do Barão de Manchester. Tenho
sempre sorte. – sorri.
– Uma vez, ganhou uma carruagem e dois cavalos brancos. – Yves conta.
– Sim, vendi à frota da rainha para pagar dois salários, a renda e metade do rum.
– Depois ganhou um candelabro de ouro e cristais. – continua o aprendiz.
– Também vendi para consertar os canos, ou beberíamos a água da chuva.
– Há algo que não tenhas vendido? – Rachel Para.
– Que me lembra… O meu corpo e os meus empregados. De resto… Vendo tudo.
Admirada, ganhava pertences que davam para redecorar uma mansão. Invés de usar, vendia para
pagar as dívidas. E nem assim as liquidava por causa de elas serem infinitas.
– Vou falar com aquele cocheiro, estamos longe do Box… – larga o braço que segurava – Yves,
cuida dela como se eu te pagasse para isso.
– Certo, boss. – sustem o corpo fatigado.

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Sete Nomes

Novo, mas forte, Rachel conseguia ver que as mãos esfoladas tinham as veias à mostra, isso
significava que as esforçava por causa do trabalho. Nasceu na Irlanda, apesar de pintar o cabelo
de negro, tinha as pontas ruivas. Receio, tinha medo que algum dia Phill o abandonasse na rua.
– O teu pai era soldado, não era?
– Como sabes?
– Noto como andas. Mesmo que tenhas aprendido boxe, não largas esse tique de marchar.
Yves baixa o rosto, tentava corrigir isso, mas não conseguia.
– Ele morreu há muito tempo. Queria ser soldado também… Perdi a minha mãe na fábrica e vim
para cá, há procura de alimento. Pensei que a passada larga não era notada.
– E não é, mal dei conta que eras filho de um soldado. Mas, quem consegue observar com
pormenor, dá conta. Não há mal nenhum nisso… – ergue o tronco e grunhe – Phill gaba-te muito.
– Ele também a gaba, diz que tem olhos de águia como ele. Nunca conheceu uma mulher que
viesse de tão longe para vingar o pai. Também não sabe de onde vem a sua força para lutar por
algo.
O olhar dela foca o pugilista a falar com o cocheiro. Disse aquilo? Os homens em Boston só
tinham tempo para o trabalho e as danças de salão, jamais algum se sentou à mesa dela e discutiu
o que os rodeava. Não, detalhistas nunca se cruzaram no seu caminho. Ninguém era capaz de
perder dez minutos a olhar para uma flor, bastava vê-la de relance. Se a flor exigia tempo, é porque
tinha algo mais que a cor, o aroma e as pétalas. Dela, podia ver imensas coisas que diziam o seu
percurso de vida. Phill revelou ser esse tipo de pessoas que sentavam no chão e olhavam para a
insignificante flor.
Baixa o olhar, não pediu nada da vida, não pediu para um homem lhe surgir e alterar o percurso
traçado.
– Falou isso por falar.
– Acho que não. O boss perdeu três mulheres, a última morreu com dez murro no peito, o coração
parou em menos de oito minutos. Se ele gosta de si ao ponto de arriscar a vida, é porque reparou
que é diferente.
– Sou igual às outras mulheres. O que ele disse mais?
– Que é muito boa nos seus aposentos, os seus seios são…
Tapa a boca dele, que nem falasse uma só palavra.
– Não queres morrer hoje, pois não?
Nega com receio.
– Ótimo, então não fales dessa tarde.
– Boston… – Phill chama a correr – Temos carruagem. O que Yves fez? – repara na mão sobre a
boca.
– Tu abriste a boca acerca de nós?
– Especifica.
– Bem, aquela tarde em que eu estive na tua cama.
O pugilista faz uma careta e coça a cabeça, esse segredo. Bate a boina no corpo do aprendiz.
– Não te disse para não pensares nisso!
– Boss, ela perguntou. – tenta agarrar na boina.
Vira o rosto para Rachel e estende o tecido engrunhado. Depois, faz sinal para Yves ir para a
carruagem, ia ficar de castigo. Coloca a boina na cabeça e enche os pulmões com ar.
– Boston… Nunca peças para ele te contar coisas. É igual aqueles jornais da rua, sabe tudo.
– Tu contaste algo intimo.
– O rapaz é virgem e tem curiosidade.
– O que tem os meus seios?
Dá de ombros.

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– São perfeitos. Ele é que exagera. Podemos ir? Abie tem que pagar a carruagem porque dei o
dinheiro aos meninos pobres. – ajuda-a a andar.
– Aqueles que vi?
– Esses mesmo. Sinto pena das pessoas.
Pena… Ele devia é ter pena de si mesmo, não pagava o que devia e ainda gastava dinheiro com
os pedintes. Se podia, é porque tinha para dar, caso contrário, ignorava-os. Não, Phill não queria
ser igual ao pai, por isso que tentava ser igual à mãe pobre que devia de dar as sobras aos órfãos.
Se continuasse assim, só pagaria as contas quando morresse, porque vivo, jamais conseguiria
terminar a longa soma de números grandes.

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Capítulo 6
Partiu sem aprender uma coisa, pagou as passagens ao pensar que usar mosquete era suficiente.
Erro, grande erro. Os homens usavam a força, as mulheres tinham a mania de esperar. Devia ter
matado Chester quando levantou o tronco. Perguntas? Perdeu tempo a pensar que teria a resposta,
um sanguinário como ele não queria saber se destruiu uma vida. Não disparou, não deu conta de
o outro entrar e a agarrar.
Coloca o queixo sobre os joelhos, agora entendia o que Jason disse acerca de não ser fácil a
vingança. Se fosse lenta e sentimentalista, não ia longe. Não partiu costela nenhuma, teve sorte
do corpete emparar o impacto dos murros. Ganhou uma enorme nódoa negra que doía a sentar e
levantar, o pescoço parecia ter sido cortado ao meio e cozido novamente. Como o ia matar se
fracassou?
Agarra os joelhos, pelo menos a água estava quente, não ouvia a infernal estalagem cheia de
olhos traiçoeiros, nem estava em casa de um estranho que a ia entregar. Tinha que admitir que
Phill preocupava-se com a ela, até foi comprar roupa para não usar a mesma que a escrava.
Cavalheiro, salvou-a, pensou que morreria nas mãos de Chester, mas ele fê-lo pensar após ter
mandado bater até quase se engasgar com o vómito.
– O que tu não sabes, Rachel?
A cabeça vira-se para o sentar dele na borda da banheira de porcelana. Pensou que vendia tudo e
mais alguma coisa, mas enganou-se.
– De quem era isto?
– A banheira? De um duque que vivia no palácio. O tipo mandou arrancá-la do quarto e mandou-
a para cá. – sorri – Não a vendi, precisava de uma banheira nova, dei a minha de cobre à Abie.
Não estranhava, sempre teve boa mobília em casa do tutor.
– O que ias contar no navio?
– Nada. – deixa o tronco cair para trás e estica os joelhos.
– Mentira, até me abraçaste.
– Foi um deslize.
– Mesmo? – retira a túnica.
– Não estás a pensar ir para a água, pois não?
– Boston, a água demora uma hora aquecer, só há um pote grande e os canos estão estragados no
segundo andar. – baixa as calças – Devemos reutilizar a água, como os pobres fazem.
Rachel encolhe as pernas quando ele entra na água e senta no fundo da banheira. Já era pequena,
com dois corpos lá dentro, ficava minúscula.
– Nós já nos vimos nus, então, qual o problema? – pega no sabão.
– Nunca dei banho com um homem. – fala ao agarrar o seu tronco, tapando os seios.
– Eu também não, nem com homem, nem com mulher. – esfrega o peito – Deve ser algo do outro
mundo.
Não demorou muito a tingir a água com espuma, o aroma a rosa misturava-se com o ar morno
do quarto vazio. Rachel continuava no seu canto da banheira, como se fosse uma criança indefesa
ao lado de um predador. A diferença é que Phill já tinha estado com ela, então, não existia tabu
acerca do assunto da nudez. Mesmo assim, fica no canto que lhe pertence. Repara no tronco dele,
algo que não fez na tarde que estiveram juntos. Cicatrizes, uma bem grande ao pé do coração.
Alguém o tentou matar e falhou. O médico que o cozeu teve o cuidado de fazer bem o trabalho,
mal se notava que ela existia. Debaixo do braço, ao pé do sovaco, outra cicatriz, não de uma
lâmina. Alguém lhe cravou um gancho pequeno. Teve sorte, não perdeu o braço por causa do
ferimento.

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– O que foi, Rachel? – passa o sabão pela cabeça.


– Detalho o teu corpo.
– Falta a parte debaixo. – ri – Estás aí no canto… Até parece que te bati.
– Mandaste bater!
– Está bem… – pousa o sabão e pega na malga para passar a cabeça por água – Fingi não te
conhecer. O que preferias? Que ambos fossemos mortos e vendidos ao Twenty Two?
– Nem sei o que preferia.
Repara no olhar triste dela, perdeu, a derrota era difícil de aceitar. Suspira ao pousar a malga e
sacudir o cabelo ainda com sabão.
– Sabes, no meu primeiro desafio, o tipo cravou-me uma faca aqui. – aponta para o peito – Pensei
que ia morrer. Tive a sorte de o médico estar a ver e ajudar a curar. Foi assim que comecei aos
dezasseis, alguém me treinou, pagou a minha renda e depois morreu.
Yves teria o mesmo destino que ele, começou cedo e um dia, perderia o mestre que o ajudou.
Pelo menos, aquele espaço teria um dono para dar vida.
– Na próxima vez vais conseguir.
– Não vou. Só sei disparar Phill, não sei lutar.
O sabão cai para dentro de água e o olhar fica vidrado no rosto dela. Não sabia lutar? Quer dizer
que não se defendeu naquela manhã porque não sabia como o fazer? Abana a cabeça para
despertar, nem acreditava no que ouvia.
– Eu pensei que eras uma assassina profissional. – procura o sabão.
– Não, Jason treinou-me para disparar a longa distancia e curta. Ensinou-me subir telhados, a
escapar pelos becos, andar no escuro, usar uma faca e pequenos truques de defesa pessoal. Lutar
a sério… Não aprendi. Por isso que hoje ia morrer.
– Não ias, aparecia de qualquer maneira.
– E se não existisses? O suposto era nem existires.
– Penso o mesmo aos domingos quando redimo os pecados. Mas lembro-me do que ganhei a mais
na minha vida.
– As dívidas?
– Sim… – tateia o pé – Essas aparecem sem avisar, batem à porta e entram sem pedir. – sobe a
perna macia – Acho que te encontrei.
Rachel retira a mão dele da sua pele.
– O sabão está no meio das tuas pernas.
– Credo. Não sejas tão direta. – tateia a banheira outra vez – Oh! Está mesmo. Olha… – esfrega
o sabão na perna peluda – Eu posso treinar-te de graça, Yves precisa de alguém que seja um saco
de porrada.
– Obrigado por veres que sou isso.
– Não. Podes ficar por tempo ilimitado. Quando souberes boxear, vais atrás desse cabrão e mata-
o.
– São seis a matar.
Sim, não pensou nos restantes que ainda faltava enterrar.
– Seja como for, aprendes todos os truques para não seres apanhada novamente. – pega na malga
cheia de espuma – Depois, até em mim podes bater, já sei que tens esse apetite.
Não ia negar que por vezes queria matá-lo por ter entrado na sua vida atribulada. Mas, dependia
da ajuda dele para sobreviver àquele inferno londrino. Talvez devesse agarrar na mão estendida,
nem sempre alguém se dá ao trabalho de fazer isso.
– E então, como é dar banho com um homem?
– Nojento.

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– Nem sou assim tão sujo. Dou banho os domingos, quartas e sextas. Conheço uns nobres que só
dão uma vez por mês.
– Mesmo assim, não tenho espaço nem privacidade.
– Queres que dê banho de olhos fechados?
– Quero que saias.
– A banheira é minha e a água é minha. – coloca as mãos atrás da nuca – Deixa-me relaxar um
pouco.
Queria mesmo isso? Rachel começa a levantar da banheira e uma mão pega no pouso dela.
– Fica, estás com dores e a água quente alivia.
– Destes conta pelo olhar.
– Dei.
De facto, as dores insuportáveis nem a deixaria dormir à noite. Nem podia regressar à estalagem
assim, a dona perguntaria que diabo a levou. Senta na banheira e permanece no canto, engrunhada
para se tapar da nudez.
– Vá lá, eu não mordo.
Não, e se quisesse ser abusador, teria feito algo pior. Os joelhos esticam as pernas que se alinham
às dele. Os braços deixam de tapar os seios e agarram-se à porcelana. No meio da água com
espuma, a cor negra da barriga ressalta para a visão de Phill.
– Já tive dias desses, nem conseguia dormir. Com o tempo, o meu tronco começou a ganhar
músculo e endureceu. Suporto melhor os murros.
Rachel via isso, a pele branca pincelada de alguns pelos negros e um magnifico tronco trabalhado
com os anos.
– Sinto falta do dono do Box. Ele não devia nada, paga no dia em que pedia. Eu dei um salto
maior que a perna. Daqui a uns meses, vão leiloar isto. Não consigo pagar a renda, a lenha para a
caldeira, a comida, a bebida… – as mãos passam pelo rosto – Tento fazer com que Yves e Abie
pensem que as coisas vão bem, pago-os, sacrifico-me para os ver bem. Quando isto for vendido,
farei de tudo para que eles vivam numa casa boa.
– Tens aquele ouro. Salva isto.
– Eu nunca salvei uma mulher e hoje, mudei a minha cobardia. Não peças para usar aquele
dinheiro que não me pertence.
– Não entendo o porquê de as outras morrerem.
– Para mim, as mulheres vinham e iam, nenhuma quer casar com um homem que luta, tem dívidas,
dois jovens ao encargo e mania de olhar para as coisas com outros olhos. Isto não é vida.
– Merecia viver?
– Rachel, eu gosto de ti. Encontrei uma pessoa semelhante a mim. Se mereces ou não… Não sei.
Não é todos os dias que alguém entra no meu quarto e lê a minha vida com simples objetos. Posso
não saber muito sobre ti, mas sei o suficiente para ver que precisas de mim.
Precisava e ele nem imaginava. Só os tutores se deram ao trabalho de a ajudar naquela loucura,
os restantes, viraram as costas, chamaram-na de maluca. Quem ia ver que a vingança era uma
forma de voltar a dormir? De todos os dias acordar e lembrar-se que alguém fez algo pela família?
Levanta da banheira e ajoelha-se ao pé do tronco dele. Depois, abraça-o, gostava disso. Phill sorri
e passa a mão pelas tatuagens que desciam a coluna. Sozinha, sentia-se tão sozinha que precisava
daquilo, de um forte abraço para ver que existia alguém.
– Quando este pesadelo acabar, vais voltar para Boston?
– Não tenho vida aqui.
– Podes sempre criar uma.
– Não gosto da rainha, nem da moda, nem das pessoas, nem do sotaque, nem da comida. O ar é
péssimo e o céu parece não ter vida.

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O pugilista também não gostava de espreitar pela janela e não saber se ia fazer chuva ou era o
fumo das fábricas.
– Posso ir contigo?
– E isto? – olha-o.
– Aposto que terei que fugir para pagar as dívidas. O que se faz na América?
– Qualquer coisa.
– Conheces um bom lugar para lutar?
– Conheço muitos pugilistas amadores.
Faz um som de estar interessado.
– E tens casa lá?
– A mansão dos meus pais que passou para os meus tutores. Queres mesmo ir comigo?
– Pareces interessante. – a mão sobe o pescoço dela – Tenho chance?
Aproxima os lábios.
– Não te quero amar. Tu vais perder-me, eu vou perder-te. Ambos vamos sofrer.
– Gosto de sofrer por algo que valha apena.
Beija-o. A mão dele agarra no cabelo com força, a outra o rosto molhado. Dores? Rachel não
sentia mais dores com aquele toque meigo, é como se nada tivesse acontecido de manhã. Separa
os lábios lentamente, os dentes ainda puxam a pele dele e os olhos fecham-se.
– Somos sócios e o nosso relacionamento é profissional. – relembra.
– Mudo o acordo.
Ela nega ao sair da banheira e pegar na toalha.
– É muito bom que cumpras o que disseste, o resto… – olha-o – Nem deve existir.
– Vá lá, tens tudo o que eu preciso para ser feliz.
– E ficar a dever. – enrola a toalha.
– Passas cá a noite?
Estava a pensar em regressar à estalagem, mas ir para lá significava ter olhos à cuca.
– Fico.
– No meu quarto, não há outro.
– Está bem. – revira os olhos – Mas nada de amor.
Ele levanta as mãos e nega, nem a tocava. Rachel sorri e caminha para a porta, até gostava de o
provocar. Phill coloca as mãos atrás da nuca, como era bom ter uma mulher daquelas em casa,
sentia-se mais confiante. Até ia assobiar se não desse conta de algo.
– Rachel… – chama – Boston! – grita.
Não tinha toalha, Abie só deixou ali uma. E agora? Ninguém o ouvia no andar debaixo, ainda
estava longe do quarto. Não podia ficar na banheira para sempre, tinha coisas a tratar, o fornecedor
de pão chegaria em breve.
– Boston! Toalha! – volta a gritar ao sair da banheira.
Nu, tinha que ir para o quarto nu. E se a empregada aparecesse? Pior, e se algum fornecedor
aparecesse? Coça a cabeça, o problema de ser pobre é que nunca se lembrava de levar a dobrar.
Neste caso, caiu na conversa de uma mulher. Suspira, nudismo nem sempre era mau visto na
sociedade.

Sentados em volta da mesa, quatro homens de negro apresentavam as contas do mês. Os papeis
estavam bem alinhados, assinados, lacrados, enrolados… Cheiravam a tinta, secaram ao pé de
uma lareira para ser mais rápido. Lá, as clausulas relembravam aquele proprietário de que estava
a dever mais do que tinha para pagar. A renda já estava em saldo negativo, o banco salientou o
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enorme buraco, o nobre que investia exigia o que estava em atrasado e, claro, como se a desgraça
não fosse maior, estava a dever à corte da rainha. Bastava fazer a soma, não tinha dinheiro nem
para arrumar um papel e pensar no outro. Nada.
Phill estava de braços cruzados, olhava para os homens de negócios na esperança de arranjar um
podre que livrasse a forca. Dispensou Abie e Yves, eles não deviam de saber que estavam prestes
a ficar sem teto. Coloca as mãos sobre a mesa, o negócio estava difícil.
– Vejamos… Todos querem dinheiro, eu também. Não posso pagar, o Box anda a ter poucos
combates.
– Sir Phill, prometeu pagar esta semana. – um fala.
– Também prometi não fazer mais dívidas e aqui estou eu, preste a perder o que construí. Querem
ver os bolsos vazios? Querem ver o cofre vazio? Se tivesse como pagar, chegava aqui, pousava o
saco cheio de moedas na mesa e pronto, iam embora felizes da vida.
– Não é preciso relembrá-lo que isto vai ser leiloado em breve. – o banqueiro fala.
O pugilista coça a cabeça, parecia um pesadelo. Estava morto e foi presente ao tribunal de Deus
para enfrentar as duras contas por pagar. Suspira com força.
– Posso lutar dia e noite, assim talvez morra e liquide as dívidas.
– Caso morra, Sir Phill, o seu aprendiz herda a dívida.
– Ele não é o meu filho.
– Parece que o seu testamento é claro demais.
A cabeça é pousada por entre as mãos, eles passaram no notário, leram o que advogado escreveu
e condenaram o pobre Yves que não tinha culpa de ser aprendiz de um devedor.
– De quantas libras estamos a falar?
Os homens viram o rosto ao ouvirem a pergunta. Uma mulher, com um elegante vestido cinzento.
Entre olham-se, quem seria a dama que entrava? Uma amante do falido? Ajeitam as golas
aplumadas, em todo o caso, ela poderia pagar.
– MiLady. – um homem levanta e pega na mão esquerda para beijar – Está bela.
Rachel recua a mão antes dos lábios secos tocarem a pele.
– Fiz uma pergunta, quero uma resposta.
– Quatro mil libras, Boston. – Phill fala chocado.
As mãos dela passam pela cabeça ainda húmida. Deixou-o sem toalha, viu-o a entrar no quarto
completamente nu. Invés de berrar, rasgou um enorme sorriso e beijou-lhe o rosto. Agora, o
sorriso devia de estar por entre o fumo intoxicante das fábricas, o beijo esvaneceu por entre o
pensamento perturbado. As dívidas consumiam-no mais rápido que a cidade doentia.
– Digam, se estivessem no lugar dele, o que faziam?
– Não pedíamos dinheiro e poupávamos para pagar. – o do canto responde.
– Da terra onde venho, os bancos são assaltados por homens mascarados de índios. Depois, atam
os banqueiros pelos pulsos e os cavalos arrastam-nos pelas ruas.
Aconchegam o corpo com os casacos negros, estavam horrorizados com essa informação.
– Têm sorte de serem pedinchões em Londres.
– Somos quem tem dinheiro, MiLady.
Assente ao arrastar uma cadeira e sentar-se à mesa.
– Quem vos disse que ele não vai pagar?
– Boston. – Phill chama ao levantar a cabeça.
– Tem lá em cima um pequeno baú cheio de ouro pronto a pagar tudo o que deve. Sabem porque
não o faz? Porque está farto de pedinchões que chegam com esses fatos emprestados da loja, com
chapéus sujos da poeira exterior e com bancos a falir. Já para não falar que, dois senhores aqui
sentados, não pertencem à Câmara dos Lordes por deverem à rainha. Não têm vergonha na cara?

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O silêncio era a resposta, a palidez quase dava a entender que iam vomitar. Phill estava sem
palavras, estava a ser direta, rude e esperta.
– Então? Para pedir têm voz, mas para responder são mudos?
– A senhora está a afirmar coisas muito sérias. – um fala ao enrolar o papel.
– O que vão fazer? Chamar os guardas no lado de fora? Vão, aproveitem e entreguem-se, o Sir
Untey está acusado de furto no banco, é por isso que esconde a sua carruagem no beco mais sujo
da cidade.
As cabeças viram, os olhos arregalados não queriam acreditar no que ouviam. Estava a dever? O
pugilista até se sente mais aliviado, não era o único.
– Não fique assim Sir Marshal, a sua esposa fez questão de esbofetear uma princesa e isso o
afastou do palácio. Ainda consegue financiar este lugar? Devia de rever a sua conta no banco,
aquela que o Sir Thomas tem dificuldades em obter para pagar a sua alma.
Ambos tosem, nem queriam falar sobre o assunto.
– Falta o Sir Nightlight, vem cobrar esta renda sem pagar a sua. Quantas casas tem mesmo?
– Feche essa boca, sua mesquinha! – levanta com violência e a cadeira cai para trás – Trate da
sua vida!
– Quer fazer-me um favor? – levanta e pousa as mãos na mesa – Levantem esses rabos gordos e
saiam do Box antes que cometa uma loucura. Antes de chegarem aqui e cobrarem, paguem a Deus
as vossas dívidas. Estão a ver aquela porta ali? – aponta.
Os rostos viram-se para a tal porta sombria de madeira.
– É onde enterramos os fornecedores cobradores que pensam estarem acima da lei. Na outra
semana, enterramos quem fornecia vinho. Está lá enterrado, com o maxilar aberto até ao peito,
com os ossos partidos. Os cães até o devem ter devorado.
– Não acredito. – o nobre passa o paninho pela testa.
– Então venham ver. – faz um gesto com a mão – Apostem comigo que as vossas famílias ficaram
sem saber se morreram. Quem é o primeiro?
Não hesita em pegar no papel, enrolar, colocar a cartola alta e caminhar para a saída.
– Vemo-nos daqui a um mês, Sir Phill.
Rachel olha para os restantes, iam ser inteligentes ou sujeitavam-se?
– Daqui a um mês… – o banqueiro ultima ao pegar nos pertences – Nem um dia a mais ou a
menos.
Medricas, pegam nas coisas e saem quase a correr do Box. Nem olham para trás, não queriam
morrer algures, serem enterrados num beco qualquer e sem justiça. E as verdades? Fugiam delas
porque doíam, deviam tanto quanto aquele homem, mas queriam ver se pagava, assim dividiam
o dinheiro pelos quatro e tentavam viver mais um dia.
Phill olha para a tal porta da morte. Beco? Não, ali era a cozinha, onde Abie cozinhava. As
cozinhas são assombrosas, é onde as facas mais afiadas são usadas na hora de assassinar. Coça a
cabeça, aqueles homens caíram no bluff dela.
– Não sabia assim tanto. Afugentaste estes ladrões mais rápido que eu a chutar os cães baldios em
volta de um pedaço de carne.
– Enquanto tu os recebias, eu desci e dei-me ao trabalho de falar com um cocheiro. – senta na
cadeira – É fácil apontar um mosquete e ver o que ele faz.
– O homem contou-te isto tudo?
Derrama o vinho no copo e bebe com calma, todos os cocheiros eram espiões fieis dos nobres,
viam as mortes, os lugares, as pessoas que entravam na carruagem, aquelas que iam lá a casa…
Quem tinha um, sujeitava-se a ser entregue a qualquer momento.
– Foi fácil. – pousa o copo.

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– Uma jogada de mestre. Estava aqui a ter um ataque do coração e tu apareces para salvar o dia.
Agora, adiamos as dívidas. Na próxima vez… – pega na garrafa – Conta algo mais chocantes.
– O que contei é verdade. A oeste da América, os bancos são assaltados quase todos os dias. Os
xerifes não fazem muito.
– Sabes assaltar um?
Nem assente, nem nega, não era preciso muito para os banqueiros levantarem os braços e darem
o dinheiro.
– Estamos quites, salvaste-me de Chester, livrei-te dos pedinchões.
Phill assente ao beber, agora estavam sem dívidas.
– Como está a dor?
– Aliviou com aquele creme. O que é? – Rachel coloca a mão sobre a barriga.
– Banha de porco. – levanta da cadeira – É o que uso para curar as mãos.
Fica um pouco estranha, colocou gordura sobre o inchaço negro. Bem, leu algures que isso fazia
bem, a matéria gorda regenerava a pele com facilidade.
– Amanhã treinamos às seis. Às sete Yves tem uma consulta no médico. – coloca os copos no
balcão.
– Está doente?
– Disse que lhe dói um dente. Acho que foi por causa do assalto, levou um murro e ele deve ter
partido.
– Deve ter dores lastimáveis. – levanta.
– Não, está sempre a encher a boca com água ardente para aliviar. Tem é o rosto inchado.
– Não notei isso de manhã. – pensa um pouco.
– Piorou. – fecha a garrafa – Tenho que cuidar dele.
– E vais ficar a dever a consulta?
Nega ao fechar o armário.
– Ele é que paga. Eu faço o papel de patrão, ele de bom trabalhador que poupa.
– Devias de aprender algo com as pessoas que te rodeiam.
Encosta-se ao balcão e pensa sobre o assunto. De facto eles poupavam muito, não gastavam à toa
ou faziam contas ilimitadas. O problema é que, quando se está em acima dos empregados, a
mentalidade é outra.
– Tens planos para daqui a umas horas? – estica os braços.
– O que sugeres? – sorri.
– Não sei… – olha para o teto – Segundo andar, janela fechada… Vela acesa…
– Eu disse que não quando saí da banheira.
– Boston… – puxa a mão dela – Isso foi há três horas atrás.
Respira fundo e olha para o espaço vazio, ele não ia abrir, ela não ia voltar para a estalagem. A
mente estava mortinha para voltar para os braços dele, queria beijá-lo e perder o nome.
– Tu és meu sócio.
– Sócios também fazem extras fora do horário. – baixa-lhe o tecido no ombro e o rosto aproxima
para sentir a pele.
Os olhos fecham-se ao toque meigo dos lábios. O arrepio sobe o corpo, a chama ardente acendia-
se ao sentir as mãos a desapertar os cordéis do vestido.
– Promete ser a última vez juntos.
Um som sai e a cabeça recua.
– Última?
– Sou uma mulher ocupada, não quero compromissos desse tipo.
– Está bem… Queres assim, eu respeito. – caminha para as escadas.

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Sete Nomes

Que mal tinha estarem mais uma vez juntos? Afinal de contas, devia de aproveitar o facto de
estar ainda ali, brevemente voltaria para casa e nunca mais o veria. Nem todos os homens se dão
ao trabalho de entrar numa vingança que não lhes pertence.
– Demoras muito tempo a desfazer os meus cordéis?
Os passos de Phill param, um enorme sorriso surge no rosto que se vira para ela. Não demorava
assim tanto se o vestido facilitasse a pressa.

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Capítulo 7
O sol espreitava por entre a cortina de fumo, tinha a coragem de entrar pelo vidro e tocar os
nomes tatuados na pele branca. Sete, como se eles fossem o número do azar. E eram, sete homens
que mataram apenas um, sem lhe darem a oportunidade de se defender, sem terem a honra de o
deixar lutar. Ainda foram cobardes ao abandonar a criança de dez anos num orfanato.
Os olhos abertos contemplam esses raios finos e dourados, era tão raro ver o sol. Vira o rosto
para o lado, as costas de Rachel estavam destapadas e tinham o privilégio de sentir o calor que
vinha de fora. Dormiu serena na almofada ao lado, de barriga para baixo e rosto sobre o tecido
macio. Phill repara no relógio sobre a mesinha, Rachel o colocou lá antes de se deitar novamente
na cama. Disse que acordava muito de noite para ver as horas.
Estica a mão por cima da cabeça dela e pega no relógio. Prata irlandesa. O tom rosado na corrente
parecia cobre, mas não deveria de ser. Abre e repara no ponteiro parado sobre o oito. Estranho.
Aproxima o ouvido e… Nada, o relógio estava parado.
– Parou finalmente. – murmura.
Finalmente ela poderia dormir em paz, o seu desassossego deu tréguas.
Vira o rosto, aquele relógio era do pai dela, por isso que não o trocava por outro. Por isso que
todas as noites o colocava sobre a mesinha, só para sentir a presença dele. Só ela é que ouvia o
relógio a trabalhar, o tempo só ia parar quando os sete nomes estivessem riscados da lista. Oito,
estava presa àquela hora, presa no infinito e no seu atormento.
Pousa-o na mesinha, de certeza que Rachel sabia disso. Agarra-se ao corpo nu que sentia o calor
dos raios, sentia pena dela, o atormento que vivia ao ponto de ouvir algo que parou. A perda do
pai foi um abalo enorme, por isso que o vingava.
– Já são seis?
– Não, deve ser sete. – beija-lhe a pele.
Rachel boceja com os olhos fechados, conseguiu dormir uma noite completa pela primeira vez,
desde que pisou solo inglês. Só não queria que tivesse sido na cama dele, tinha que voltar para a
estalagem e as insónias não teriam dó.
– O Yves?
– Ele… – Phill levanta o tronco – O Yves! – levanta.
– Esqueceste. – murmura.
– Tu cansaste-me ontem, dormi como uma pedra. – veste as calças – Abie não veio cá.
– Disseste a ela para não subir as escadas.
O pugilista bate na cabeça, queria privacidade e pediu isso ao seu despertador.
– Ele vai matar-me. – procura uma túnica lavada – Onde está a roupa?!
Nem responde, Rachel estava muito confortável deitada. A vingança podia esperar mais umas
horas, também tinha direito a descanso.
– Boston! – chama desesperado.
– Não sei.
Passa pelo espelho e olha-se.
– As minhas costas estão uma lástima por causa das tuas unhas. – fica abismado – Como vou lutar
em tronco nu?
Dá de ombros, nem ia abrir os olhos.
– Lavada. – abaixa-se e apanha a roupa debaixo da cama – Volto às oito… – enfia a cabeça pelo
tecido – Depois vais treinar, hoje não abro o Box.
Faz um som de estar de acordo.

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Sete Nomes

– Tenho que comprar comida com urgência… – calças as meias – O carvão acabou e a caldeira
vai ficar sem trabalhar. A chaminé está entupida… – faz um som de estar arreliado – Vou ter que
falar com o Bills, preciso que metam lá uma criança de três anos.
Os olhos abrem, ouviu bem?
– E a tua pena pelos órfãos?
– Rachel, isso é na rua. Quando eles são precisos, têm que trabalhar. – ajeita o cabelo e coloca a
boina – Pronto, estou lindo. Vais ficar aí?
– Gosto da tua cama. – espreguiça – Tens sorte de gostar do colchão.
– Terei de o vender em breve. Põe creme na barriga e enfaixa-a com o algodão para doer menos.
Depois… – pega na carteira – Desce e come algo.
Assente.
– Se vier cá algum homem à minha procura, diz que morri ontem. – beija-lhe na boca.
Rachel agarra o cabelo dele com força, agora tinha a certeza que não ia alevantar da cama.
– Porta-te bem, meu pequeno diabo. – caminha para a saída.
– Não faças mais dívidas!
Bate a porta, isso é o que ele sonhava no natal.
O relógio sai do bolso, segundo combinaram, às sete da manhã já estariam no tal consultório.
Sete e quarenta e nem sinal do patrão. Esqueceu-se, mais uma noite com a tal mulher com nome
de cidade e já nem se lembrava dos compromissos.
– Yves!
Levanta o rosto para cima das escadas.
– Boss, está atrasado quarenta minutos.
– Eu sei… – ofega ao chegar ao último degrau – O relógio da Boston está estragado e… – limpa
o suor ausente – A noite foi longa.
– Voltou a apertar-lhe os seios? – pergunta curioso.
Phill arregala os olhos e… Faz um enorme sorriso.
– Segredo. – pede ao piscar os olhos.
Yves ri ao assentir, não contava mais nada.
– O teu rosto rapaz… – toca no inchaço – Isso está mesmo mau.
– Dói muito. Não consigo comer, não dormi.
Acreditava nele, passou pelo mesmo aos dezoito, quando um murro certeiro lhe roubou um dente.
Teve que beber muito para a dor amenizar.
– Anda, isso já se resolve. A Abie? – começa a andar.
– Limpa a arena, está a colocar areia lá.
– Ótimo. – abre a porta – Tens o dinheiro?
– Acha que trinta xelins chegam?
Suspira ao olhar para o aprendiz, isso era pouco. No mínimo, quarenta pences.
– Vai ter que dar. – espreita para o beco – Ficamos a dever.
– Mais uma dívida, boss?
Bem que não as gostava de fazer, mas apanhou gosto em levar e pagar depois. Talvez Rachel
tivesse razão, devia de aprender algo com os empregados que pagavam na hora e poupavam. Ela
salientou para não fazer uma dívida, mal cruzou a porta dos fundos e já estava a fazer outra.
– Reza para o médico estar de bom humor.
O rapaz seguia o mestre, cabeça baixa e rosto inchado no lado direito. Frio, vestiu o casaco de ir
à missa, mas não parecia suficiente.
Phill mete as mãos aos bolsos e abranda o passo para o aprendiz não se afastar muito. Baixo, com
dezanove anos e não atingia um metro e sessenta e oito. Corajoso, lutava, apanhava e dizia que
não tinha medo. Havia quem se risse dele na arena, quando entrava com o robe vestido e com as

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Sete Nomes

mãos enlaçadas. Quando vencia, Phill gritava pelas apostas, erguia os braços e dizia Good boy!
Good boy! Homens com a idade dele, ainda viviam na casa dos pais, ou já se casavam para se
livrar da pobreza. Aquele, só queria ter um teto para viver, mesmo que se sacrificasse para isso.
– Temos de tingir o cabelo outra vez, estás a ficar ruivo. Deste banho?
– Passei a cabeça por água, Abie não deixou dar banho por causa disso.
Notava-se bem a cor desbotada do preto a tornar-se laranja nas pontas. Ajeita bem o chapéu dele,
talvez ninguém desse conta.
– Depois dou um jeito nisso.
– Phill Smith.
Vira o rosto para o gordo que fumava ao pé da sapataria. Quem era? Apostador habitual que
estava a dever-lhe um bom dinheiro. Como um devedor, conhecia outros devedores. E assim, as
dívidas ficavam negativas, porque quem devia, não pagava a quem devia.
– Lays, quanto tempo, Sir? – estende a mão que é apertada.
– Vais passear o teu rapaz?
– É. Vai ver se arranja noiva para virar homem. – dá um murro de leve no braço de Yves.
– Não, ele luta bem. Deixe-o ficar solteiro.
– E a despesa, Sir? Nem paga a renda do Box.
– A tua escrava bem que podia ajudar… – suga o fumo do cigarro e depois liberta-o lentamente
para o ar gélido – Ela tem um bom corpo.
Mete a mão ao bolso e olha em volta, estava a pedir para vender a sua empregada na feira
novamente? Tose e sorri, passou dos limites.
– Eu comprei Abie para viver debaixo do meu teto. – o tom de voz fica mais rude – Volta a
insinuar isso e vai ter problemas. As minhas quarenta libras?
– Phill, alguma vez deixei de te pagar? – atira o cigarro ao chão.
– Deixa-me ver… – olha para cima e faz a conta – Desde de o natal que não pagas. Gastas o
dinheiro a encher esse barril?
O homem baixa o rosto para a enorme barriga redonda.
– Está a ser muito deselegante, Sir.
– Estou com pressa. – agarra no braço de Yves e desata a andar.
– O Box vai ser vendido, todos sabem disso! Deves muito Phill, vais morrer a dever!
Tenta ignorar a praga que lançava. Atravessava o campo de balas com o rosto erguido, não
receava os vários olhares que conhecia bem. Que dissessem o que quisessem, que falassem, que
rugassem pragas, mas o que não lhe roubariam era a casa.
– Caminho até a prostituta nova vendes! – o homem ainda grita.
O passo abranda, que prostituta nova? Vira o rosto, o que chamou a Rachel?
– Anda pugilista, bate-me em frente às pessoas. – desafia.
As pessoas juntavam-se em volta, murmuravam para o lado, comungavam o homem que
trabalhava para pagar as malditas dívidas que fazia. Dá um passo em frente, ia enfrentar a multidão
sem qualquer medo de morrer na forca, mas defendia a sua honra.
– Boss, o meu dente. – Yves pede ao agarrar o pulso dele.
Repara no rosto cheio de medo do aprendiz. Pedia para não avançar, tinha receio de perder o teto
seguro, ser preso e morto. Claro, Phill devia de pensar nas pessoas que envolvia na sua vida.
– Tenha um bom dia… – vira o rosto – Sir mande comprimentos à sua mulher.
– Com medo, Phill?
– Não, apenas tenho compromissos mais urgentes que limpar o seu cebo. Não se preocupe, o seu
dia está guardado.
– Uma ameaça? Estás ameaçar? – avança – O inspetor vai trás de ti, vão prender-te vigarista!
Ignora, volta a segurar no braço do aprendiz e abre caminho por entre a multidão.

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Sete Nomes

– Tu vais ter os teus dias bem contados, vigarista! Ladrão! – o homem grita.
Que tivesse, estaria pronto a enfrentar quem quer que seja, logo que não fosse um banqueiro com
uma frota inteira para lhe pedir o pagamento, o resto, era canja. Vira de rua e opta pelo beco,
assim livrava-se dos olhares alheios.
– Ia bater-lhe, boss?
– Ia. Ia arrebentar aquele rosto de bolacha, dar uns murros bem dados naquela barriga cheia de
vinho e brandy. – aperta com força o braço – Ele morria ali, juro por Deus que morria.
– Boss. O meu braço.
Phill abre a mão e desacelera o passo.
– Desculpa Yves. – respira fundo – Estou a dar em louco.
– Vão vender o Box?
Coloca as mãos atrás da nuca, não podia esconder-lhe mais esse segredo.
– Vão. Estou com quatro meses de atraso. A Boston correu com os fornecedores ontem e, só tenho
mais um mês para arranjar quatro mil libras.
– Quatro… – Yves Para e senta sobre o baril.
Para a rua, aquele rapaz não queria voltar para lá, dormir ao relento, comer as sobras dos
restaurantes, roubar e pedir com a mão estendida. Levanta o rosto para o mestre, jurou-lhe que
jamais voltaria para o buraco de onde saiu.
– Eu sei! Eu sei Yves! – grita desesperado – Também não quero perder o Box. Mal durmo só de
pensar que tu e Abie vão para a rua. Eu não tenho dinheiro para pagar as contas, tento pagar o
vosso salário, mal como para a comida sobrar e terem o que comer. Por Deus… – encosta-se à
parede – Nunca devia ter pedido dinheiro. Quem deve não paga.
– Vou voltar para a rua. – os olhos enchem-se de lágrimas.
– Eu juntei um dinheiro de emergência, já suspeitava que isto ia acontecer. Comprarei uma casa
para viverem e ficam por lá.
– E o boss?
Dá de ombros, não queria saber para onde ia, apenas queria assegurar-se que eles ficavam bem.
– Sempre posso trabalhar numa fábrica e viver numa casa cheia de tijolos de burro. O que não
quero é ver-vos na rua a pedir. Posso não ter honra, mas a vossa fica intacta.
Yves levanta e agarra-se ao mestre. Desespero, o choro saía com tanto sofrimento que até Phill
sente as lágrimas nos olhos.
– Boss, eu gosto de viver consigo, não vá embora, por favor.
Retira a boina dele e passa os dedos pelo cabelo tingido, nunca teve filhos e sentia na pele o peso
do dever de pai. Pobre Yves, não voltaria a dormir ou a comer, perderia a vida por causa do mestre
cheio de dívidas que não arranjou uma solução. Aquele rapaz merecia esse destino? Viver na rua
lamacenta que todos os dias acolhia quem não pagava o que devia?
– Prometo que vou tentar arranjar uma alternativa.
– Pode ser que a MiLady Boston possa ajudar. – recua.
– Não, ela já tem problemas que chegue. Limpa esses olhos Yves, homens de garra não choram
na rua.
– O boss também está a chorar. – passa a manga pelos olhos.
– Não. – respira fundo – Malditos mosquitos… – abana a mão no ar – Sempre no meu caminho.
Vamos, estamos atrasados e o médico cobra sempre a mais pela demora. – começa a andar.
O rapaz coloca a boina e segue o mestre.
A medicina estava sempre a evoluir, desde que a lâmpada foi inventada por Thomas Edison que
os consultórios ganharam uma mais valia. Claro que para haver luz, devia de existir eletricidade
e isso, era um luxo escasso na velha Londres. Os médicos de verdade conseguiam pagar a despesa,
os vigaristas ainda usavam velas. A anestesia também começava a facilitar as operações feitas

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Sete Nomes

nos hospitais, desde que a rainha a usou para dar à luz os seus nove filhos que o reino todo se
dava ao luxo de usar essa maravilha. Nem todos trabalhavam nos hospitais, um consultório por
conta própria era mais rentável.
Por precaução, o pugilista só se dava ao trabalho de ir ao médico que o livrou da morte, o Doutor
Eyes. O nome não tinha nada a ver com o que realmente fazia. Digamos que os dentes não eram
o forte dele, mas dentistas de rua era o que não faltava, tal como a vigarice.
– Diga-me, vou ter que comprar um caixão?
O médico quase enfia a lâmpada pela boca do rapaz. Os óculos não ajudavam nada a ver o
problema. Ou o problema era não saber nada sobre o assunto.
– Phill, não tens dinheiro para um. – comenta ao tocar nas gengiva de Yves.
– Há uns de madeira que só custam setenta xelins. Para morrer eu tenho dinheiro. – vira a página
do jornal.
– Sabes que não sei nada sobre os dentes. – vira o rosto.
– A última vez que me sentei num banquinho e abri a boca, o homem arrancou-me o dente a
sangue frio e estava preste a arrancar outro. Se confio em si, é porque é o melhor Sir.
– Creio que seja motivo para uma pequena operação. Mas está inflamado, já deu conta do inchaço
do rapaz? – toca o rosto pálido.
– Também passei por isso e não morri. Eyes… – fecha o jornal – Tira-lhe o dente que eu pago a
cirurgia.
– Tens cem pences?
Suspira com força ao passar a mão pelo cabelo, até para arrancar um dente era preciso pagar bem.
– Dá para ficar a dever?
– Não Phill, as coisas não estão bem para ficares de fiado. – pousa a lâmpada – Não é só a tua
vida que está má, desde que os navios vindos de Macau deixaram de trazer o ganha pão da
indústria que a sociedade está a viver mal.
– A rainha que resolva isso. O meu problema chama-se dinheiro, não navios.
– Aí é que te enganas. Se não pagas, eu não pago, os outros não pagam… A bola de neve aumenta.
– O doutor ganha bem, que mal tinha de pagar metade agora?
O problema é que sabia que aquele homem não teria dinheiro para pagar depois. Olha para o
rapaz, sofria de dores, a gengiva estava inchada, a inflamação causaria dores horríveis.
– Lamento Phill. – retira os óculos – Cem pences e eu ajudo o teu aprendiz.
Como ia arranjar assim do nada? Já tentou esticar a mão para fora de janela e esperar que o
dinheiro caísse do céu. Mas em Londres, nem chuva caía.
– Yves, fica aí que eu vou arranjar o dinheiro. – levanta e coloca a boina – Doutor, comece a
operação.
– Recebo o dinheiro?
– Se não receber, eu vendo metade dos meus dentes para pagar. Combinado? – estende a mão.
Desconfia um pouco da proposta, cem pences não caíam assim do nada para a rua.
– Pode confiar, conheço um homem que me está a dever. Livre o Yves da dor.
– Vou fazer isso porque sei o quanto ele sofre. – aperta a mão – Se dependesse de ti, morreria à
fome.
Sorri, ainda bem que não dependia.
– Yves, não grites quando te arrancarem o dente com força.
– Phill, vou usar anestesia. Não assustes o rapaz.
– Claro, dê uma grande quantia, assim logo pode lutar sem medo. – abre a porta e sai.
O médico olha para Yves. As sobrancelhas levantadas perguntavam se ele estava bem entregue
àquele homem. O aprendiz lá dá de ombros, não sabia o que era pior. O suspiro sai, Eyes tinha
que fazer de dentista pela primeira vez. Como a vida dava voltas.

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Sete Nomes

Quando se precisava de dinheiro, só havia uma forma desesperada de arranjar. Pedir na rua
parecia essa milagrosa forma, mas ainda existia outra chamada miracle. Acelera o passo, em
situações desesperadas, a vergonha de estender a mão ao velho amigo devia de ser colocada de
lado. A esse ficaria a dever a vida toda, nem a morte pagaria tal ofensa.
Cruza a rua, retira a boina da cabeça e olha para o alto da igreja matriz. É bom que Deus o
ajudasse, porque caso contrário, ficaria sem dentes. Benze-se ao passar pela porta. Uma vez ouviu
de um apostador que as freiras da igreja matriz estendiam as mãos aos mais necessitados, quer
em alma, quer financeiramente. Phill pensou que era mentira, os padres não deixavam que as
igrejas dessem assim dinheiro a quem pedia. Bem, o homem pagou a dívida graças a esse miracle,
bastou falar com o padre, inventar uns dez filhos, uma tragédia qualquer e teve na hora duas mil
libras para pagar ao banco. Sendo assim, se ele ajudou um fiel, então também ia ajudar aquele.
Por enquanto só queria cem pences, mas se Deus tivesse a misericórdia de lhe dar quatro mil
libras… Rezava de manhã à noite.
Ajoelha-se no altar e ajunta as mãos. A igreja estava vazia, a sua abençoada sorte.
– Deus, eu sei que te peço todos os dias uma pequena ajuda para o meu sofrimento. Enviaste-me
uma mulher, obrigado por isso, ela é muito boa. Agora preciso de uma pequena mãozinha para
salvar Yves, ele vai morrer. Não, desculpa Deus… – benze-se e beija a cruz no pescoço – Eu é
que vou morrer desdentado e cheio de dívidas. Se não tiveres muito que fazer hoje, ouve este filho
querido que precisa de ti.
Fica a olhar para o cruxifixo no altar, adornado a flores.
– Claro que pago. Vinte pai nossos à noite chegam?
Uma pomba branca pousa perto do vidral e Phill levanta agradecido, era um sinal divino de que
podia ir em frente.
– Oh grande Deus, como sóis generoso. – faz uma vénia – Prometo começar semana que vem.
Isso se o sono não chegasse primeiro, ou tivesse que contar o salário pequeno que ganhava, ou
reparar algo, ou dar uma escapadela com Rachel… Coça a cabeça e caminha para as portas no
fundo, tinha que arranjar tempo para rezar, ou até aquela dívida aumentava. Como será que Deus
cobrava as dívidas? Um arrepio frio sobe o corpo dele, a morte devia de ser a liquidação. De
morto não servia muito, também vivo pouco servia.
Coloca a boina na cabeça e corre para parar um padre que ia subir as escadas.
– Father.
O padre vira o corpo para o lado contrário e repara no homem que corria.
– Em que posso ajudar, Sir?
– Preciso mesmo de ajuda. – coloca a mão no ombro dele – A minha mulher está a dar à luz. –
fala ofegante.
– O que posso fazer?
– Bem… A parteira disse que tenho que pagar o parto. Por amor de deus, sou pai de dez crianças
pequenas. Se não pagar, ela vai roubar o meu único filho primogénito. – fala com uma voz de
choro – Por Deus… Tenha piedade de mim. Perdi o meu pai semana passada, a pobre da minha
cunhada já pede na rua para termos o que comer na mesa. Agora vou ficar sem o meu filho. –
encosta a cabeça ao peito dele – Por favor padre, ajude este homem desesperado.
– Tenha calma. – pede ao bater de leve nas costas dele.
– Vivemos num casebre sem condições. Rezamos todos os dias por dias melhores, mas eles não
aparecem. – continua a o choro fingido.
– De quanto precisa?
– Quatrocentos pences. É um roubo… – assoa o nariz ao lenço que retira do bolso – Mas só agora
é que tenho um filho. Ganho cem xelins por mês, como isso paga metade de uma vasilha de leite.
De facto, os padres conheciam a miséria que o povo passava, principalmente o proletariado.

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Sete Nomes

– Isso é muito dinheiro. – suspira com algum pesar.


– Tem razão. – limpa os olhos e dobra o pano – Não quero ser pedinte, nem ficar a dever a Deus.
Como vou pagar o que devo? Vagabundo é o que sou, trabalho de manhã à noite e ainda venho à
igreja pedir. Devia de ter vergonha! Vou para casa dizer à minha esposa que perdemos o nosso
John George. Ela estava tão feliz… – volta a chorar – Aquele rosto cheio de alegria ao ver o
menino nos braços. Até para nascer é preciso pagar.
O padre com pena, volta a abraçar, coitado, ia perder o filho que tinha acabado de nascer.
– Quatrocentos pences nem é assim tanto. Deus hoje vai abençoar o seu menino com essa prenda.
Phill recua um pouco e limpa os olhos.
– Não vou perder o meu menino?
– Claro que não. Fique aqui que vou buscar o seu dinheiro.
– Que Deus o abençoe… – pega na mão dele e beija – Que Deus lhe dê um lugar no céu.
– Dará, meu filho, dará. – assente ao caminhar para as escadas.
O pugilista salta de alegria ao ver que o padre já não estava ao alcance da vista dele. Afinal
resultava, por isso que metade das famílias que perderam o título pagavam as dívidas, chegavam
ali com uma história triste e pronto, dinheiro fácil na mão.
– Para a próxima vou à outra igreja, invento que tenho quinze filhos deficientes, uma mulher com
tuberculose e arranco quatro mil libras. – murmura – Oh Phill, como és burro.
Se tivesse pesado nisso antes, tinha pagado o que está há dois anos atrasado.
O padre desce quase a correr as escadas e mostra o pequeno saco com moedas.
– Estão aqui quinhentos pences. Creio que está com pressa de ir ver o seu menino e… Não quero
prendê-lo mais aqui a chorar. – pousa na mão dele.
– Louvado seja, louvado seja. – volta a beijar-lhe os dedos – Salvou a vida do meu filho.
O homem murmurava algo com a mão erguida consoante Phill caminhava para a saída. De costas
para o pastor, sorri ao arrumar o dinheiro no bolso. O pior já passou, só esperava que Yves ainda
estivesse vivo.

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Sete Nomes

Capítulo 8
Um dente a menos, estava proibido de comer coisas duras. Não podia lutar e devia de ter cuidado
com os pontos na boca, se fossem abertos teria de pagar cinquenta xelins pela linha e setenta
pences pela anestesia. No final de contas, arrancar um dente saía mais caro que dar à luz um filho.
Phill coloca o braço nos ombros do aprendiz, quando chegou ao consultório encontrou-o a chorar,
com as mãos atadas à cadeira e uma enfermeira sempre a limpar-lhe o suor. Eyes garantiu que foi
uma operação de sucesso, apesar de a anestesia demorar muito a atuar ou ele não a saber
administrar bem na boca.
– Passei pior que tu. – comenta ao despenteá-lo.
– Duvido boss. – fala quase com a boca fechada.
– Duvidas? O homem arrancou-lhe um dente na rua, com um cão sarnento ao lado. Sem anestesia,
gritei até ficar rouco. Desde então tenho cuidado na hora de levar murro. Tu foste a um local com
higiene, a agulha que me cozeu foi esterilizada na brasa e a pinça já tinha sangue de outro.
Yves faz um som de arrepiado com essa imagem.
– Eu sou melhor mestre do que o mestre que tive. Acredita que ele não te levava ao Eyes, ias ao
Gouil da Street River.
– Fico-lhe a dever, boss?
– Ficas. Cem pences descontados no teu salário. – abre a porta do Box – Mês que vem menos uns
cêntimos…
A boca abre-se ao ver quem estava pendurado no alpendre que tinha vista para a arena. Yves
coloca a mão no inchaço, é como se sentisse a dor novamente. Um homem preso a uma corrente,
estava pendurado nas grades de madeira ao pé das mesas especiais. A cabeça virada para o chão
ainda pingava o sangue da pancada forte que levou, tal como a barriga pingava o enorme corte
que o deve ter matado.
– Acho que alguém lutou hoje. – comenta ao descer as escadas.
– Abie?
– Não… – entra na arena e agarra no cabelo negro para ver o rosto.
Trinta e dois anos, barba feita e roupa comprada na feira. Um metro de setenta, trabalha numa
fábrica, tinha marcas de trabalhar com o aço, tresandava a ferro incandescente a ser fundido.
Repara nas mãos, não era casado, mas foi antes de se divorciar. Pago para matar alguém, ainda
tinha no bolso os papeis que confirmavam a ida até ali.
– Boston. – chama.
– Foi ela, boss?
Assente ao ver quem o enviou. O banqueiro que foi corrido quase a pontapé, queria dar aquele
homem a desgraça de perder outra mulher. Pior, avisar que a próxima cobrança era com a vida
dele.
– Yves, vai para o quarto descansar.
– Não precisa de mim hoje?
– Desse estado, eu preciso que estejas bom para amanhã.
O rapaz desce as escadas e caminha para a outra porta dos fundos.
– A Abie?
Das sombras do espaço que a claraboia iluminava, Rachel levanta e pousa os braços nas grades
de madeira.
– Ficou apavorada. Mandei-a ir comprar algo.
Levanta o rosto e fica chocado ao vê-la coberta de sangue no rosto.
– Iam matar-te. – conclui.

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Sete Nomes

– Enquanto dormia. Tive que me defender.


– Mesmo sem saber lutar?
– Tenho que improvisar de vez em quando.
– E as correntes?
– Olha, ele é que me ia enforcar, não eu. Só dei a volta à situação.
De facto deu, nunca chegou ali e viu um homem pendurado sobre a sua arena.
– Tu não és igual às outras que conheci. – sai de dentro do círculo.
– Isso é bom?
Nega ao bater o dinheiro na mesa.
– Tens que ir embora Rachel, eles virão atrás de ti por minha causa. Estas malditas dívidas irão
aumentar, virão mais vezes para te matar. Não quero que morras por minha causa.
Porquê que encontrava receio no olhar dele? Um enorme medo de não a voltar a ver viva assim
que cruzasse a porta? Também nunca o quis envolver na sua vida atribulada, não bastava ter que
matar sete homens como ainda tinha que lidar com aquele.
– Não precisas de mandar carta, é a última vez que me vês.
– Tenta entender que é arriscado.
– Não sou tua amante ou futura esposa. Tu é que me quiseste ajudar, não te implorei por nada.
– Receio ter que ficar de fora. Tenho problemas que chegue aqui. Vou perder tudo o que consegui,
tenho que cuidar deles porque ainda precisam de alguém. Segue com a tua vingança, nada te irá
parar.
Agarra com força o queixo dele, o que aconteceu ao homem que ainda ontem se ofereceu para a
ensinar a lutar? As dívidas consumiam a alma, apagavam tudo o que estava em volta e o medo
surgia como forma de esperança. Se assim queria, assim teria. Caminha para as escadas, ia levar
o que trouxe por acidente.
– É para o teu bem Rachel.
– Os homens ingleses são todos iguais… – abre a porta com força – Medricas, pedinchões,
abusadores e cobardes! Não me admira perderes tantas mulheres.
– As minhas dívidas mataram-nas. – segue – Tu vais morrer na mesma maneira.
Abre a porta do quarto e despe o robe.
– Está à vontade, é a última vez que falamos. Amanhã, esquece que estive aqui. Se me
cumprimentares na rua, vou ignorar-te, se vieres atrás de mim, denuncio-te à guarda.
– Que exagero.
Calça os meiotes, veste a saia do vestido e aperta-o com força à cintura.
– Não vais longe ao pensar assim.
– Tu não entendes. – senta na cama.
– Não. – aperta o corpete antes de vestir a túnica branca – Não entendo como vais à igreja pedir
e depois, chegas aqui a pensar que vais fazer uma boa ação ao expulsar-me daqui.
– Como…
– O saco tinha uma cruz da igreja matriz! – vai ao espelho e passa água pelo sangue.
– Não tinha dinheiro para pagar a consulta do Yves. Preferias que chegasse sem dentes a casa?
– Nunca tens dinheiro, nunca consegues sair à rua sem fazeres uma dívida. Burra, eu não devia
ter caído na tua laia, vim para procurar vingança, restaurar a honra da minha família, não para me
envolver com um homem azarento cheio de problemas! – prende o cabelo.
Levanta da cama, estava a ficar irritado.
– Tu é que és azarenta. Desde que chegaste que todos vêm aqui reclamar algo. Quase morri por
tua causa, Chester não terá dó na próxima vez. Ando há dois dias com o Box fechado por tua
causa, sempre a pensar no sossego que mereces! Isto dá-me um enorme prejuízo, isto é o meu

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Sete Nomes

ganha pão, não sou um rico qualquer que vem aqui procurar a morte. Esquece esses homens, nada
trará de volta os teus pais!
– É?! E tu?! – vira-se – És filho de um príncipe austríaco, tens ouro suficiente para pagar esta
dívida e outras. Não o usas por causa do teu maldito orgulho! Preferes colocar os teus empregados
na rua que salvar a sua casa!
– Não me digas o que fazer! – levanta a mão.
Rachel cessa a voz e os olhos desviam-se para aquele acto. Ia ser capaz de lhe bater? Um homem
que vive do boxe não devia de saber distinguir a vida do combate, todos eram rivais, tudo era uma
aposta fácil de ganhar. Desvia-se, pega no relógio e abre a porta com força.
O pugilista repara quem estava para lá da porta. Yves e Abie, chocados com a discussão,
assustados com aquela mão levantada no ar. Ia bater nela? A pergunta parecia ensurdecedora, é
como se não se calassem com isso. É filho de um príncipe austríaco? Os olhares gritavam com
força. Tinha ouro que os podia salvar da miséria?
Phill baixa a mão e senta na cama, os olhos cheios de lágrimas desprendiam do peito os pesados
soluços.
– Eu devia ter-vos contado. Não sou filho de um boxeador, não herdei isto. Eu comprei… Gastei
o dinheiro todo que a minha avó tinha para ficar dono disto. No inicio parecia fácil, mas quanto
mais queria, mais pedia e não conseguia pagar. – fala por entre os soluços – Não vos devia ter
envolvido nisto.
Yves vira o rosto para Abie, ele não era um mau patrão, sempre festejou os aniversários, nunca
pediu contas das despesas, nunca reclamou de ficarem doentes, nunca lhes berrou e ainda protegia.
A escrava suspira, devia-lhe muito a boa vida que tinha, mesmo que continuasse a ser uma pobre.
– Sabe… Acho que juntos podemos superar esta dívida. – entra e ajoelha-se no chão.
– Quatro mil libras não caem do céu. – limpa o rosto.
– Sou boa na cozinha graças àquele livro francês. Posso vender bolos na feira.
– É boss… – Yves faz o mesmo – Posso vender carvão, eu sei onde arranjá-lo.
– Assim, juntamos sempre algum dinheiro para pagar a dívida.
– E o Box? – Phill pergunta.
– Fica fechado. Dissemos que estamos a fazer obras. O senhor podia tirar retratos e vender no
jornal, ouvi dizer que os nobres cobram bem por um bom retrato.
– É, o boss ainda tem a máquina escura.
O pugilista repara no olhar deles, estavam cheios de esperança, prontos a fazer qualquer coisa
para salvar aquela casa. Puxa-os para os braços, por isso que podia dever ao mundo inteiro, mas
não a eles, estavam sempre lá, nos piores momentos, nos melhores. Eram os seus melhores
amigos, como filhos mais novos, mesmo que a diferença de idades fosse pequena. Adotou-os,
devia de cuidar.
– Vamos então recuperar o Box.
– Acha que a MiLady Boston volta? – Yves pergunta preocupado.
Depois daquela discussão, Phill sentia que a perdeu para sempre. Daquela vez, a mulher que
gostava não morreu, apenas a perdeu por ser um medricas. Melhor assim, longe dos problemas
que não lhe diziam nada, a focar no que realmente importava, mesmo que isso fosse uma grande
queda para o abismo.

A chuva, há uma semana que chegou e o céu não se abriu para água cair. Escolheu logo agora,
quando estava a caminho da estalagem que já deve estar a perguntar-se se perdeu a sua cliente
misteriosa. As ruas moviam-se igual ao ferro que saía em brasa, quanto mais rápido fosse
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Sete Nomes

arrefecido, mais fácil ficava de o vender na hora. Ninguém queria estar à chuva, mesmo que as
capas nos ombros fossem boas ou os guarda-chuvas eficientes. Ficava mal um nobre caminhar
debaixo de uma tempestade, até os burgueses odiavam abrir as lojas num dia assim, tão cinzento
e deprimente. Fechavam as portas e rodavam as placas ao pé das portas de vidro. Closed. Só eles
é que corriam na rua, pareciam baratas a fugir dos enormes pés da rainha. Os pobres, que estavam
habituados àquilo, escondiam o rosto por debaixo dos cestos à cabeça, ou colocavam os fracos
casacos sobre os ombros e a boina que os protegia. Os mendigos encostavam-se ao pé das
varandas e os órfãos metiam-se por debaixo das caixas de madeira que faziam de abrigo.
Velha Londres, sempre pronta a castigar quem tudo ou nada tinha. De que reclamava? Boston
era parecida, nos dias de chuva as pessoas fugiam, nos dias de sol abriam a sombrinha. Ninguém
gostava da água que Deus oferecia, nem mesmo os padres.
Rachel não tinha pressa de chegar à estalagem, assim aparecia lá com o rosto lavado do sangue
que não ficou bem limpo. Também não tinha medo do que vinha do céu, no orfanato foi presa a
um poste e passou duas noites debaixo daquilo que se chamava chuva. Não estava apresentável,
parecia que alguém a deitou ao rio. Não ia agradar ninguém, por isso, se não gostavam, que
virassem o rosto.
Um rapaz tapava-se com os jornais que não acabou de vender. Esperto, pelo menos não
abandonava o posto. Parecia o Yves, magro, mas forte na hora agarrar a vida com unhas e dentes.
Seria mais novo que ele, ainda tinha pais e irmãos esfomeados que dependiam da pequena ajuda.
– Um jornal. – Para em frente a ele.
O rapaz vira-se e o olhar fica quase cintilante.
– Quer o de hoje ou o de ontem, MiLady?
– O que conta o de ontem?
– Bem… – retira os jornais da cabeça – Ontem morreu o ministro da rainha, o enviado à Índia.
Dizem que o negócio vai ficar pior, a crise vai ser pior que quando os franceses declararam guerra.
– E o de hoje?
– Hoje saiu quentinho… – procura um jornal seco – Câmara dos Comuns pede uma baixa dos
impostos. Os Lordes votaram contra e o povo vai continuar a pagar.
– Só isso?
– Não MiLady. Soube que o telefone vai chegar a Londres brevemente, tal como a lâmpada. Como
deve ser aquilo? – fica pensativo.
– É só pegares na peça para o ouvido, rodares a maçaneta e chamares pela telefonista.
– A mulher fala de dentro da caixa? – fica cativado.
– Sim, parece algo fantasioso, mas na minha casa já tínhamos um.
– Uau. Nunca vi um. Dizem que vai ser uma grande revolução, como o gramofone. Ouço sempre
a vizinha a tocar as mais belas faixas.
Sorri, um sonhador com futuro no ramo das notícias, parecia saber mais que um rico que passava
os dias sentado no sofá a ler.
– Pega… – vai à bolsa – Já sei das novidades.
O rapaz repara na libra que aparece na mão.
– Não MiLady.
– Aposto que tens fome. Alguma vez comeste bacon com ovos?
Nega, nem sabia o que era bacon.
– É a melhor coisa do mundo. Desde que cheguei que bebo chá com natas e scones. Pede um café
com natas e um bom bolo. – pousa a moeda na mão dele.
– Mas não vai levar um jornal?
– Sabes, às vezes basta ouvir. – volta a caminhar.
Uma libra sem ter vendido um único jornal à chuva? Trinca a moeda e sorri, era verdadeira.

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Sete Nomes

– Obrigado MiLady. – grita feliz.


Rachel acena, afinal não custava nada dar uma moeda a quem tinha fome. A caridade não fazia
as pessoas ficarem pobres ou ricas, na verdade, só faziam o dia ter outra cor. Phill tinha razão, às
vezes o que é fácil de fazer, parece difícil. Bate na cabeça, não devia de pensa nesse homem que
lhe levantou a mão. Não o queria ver à frente ou sequer pensar no nome, os cobardes nem deviam
de existir.
Chuva, isso afastava os clientes em dobro. Suspira e fecha a porta, a estalagem não voltaria a ter
hóspedes naquele dia. A dona, Grimy, vai ao balcão e abre o livro de registos, tinha que fazer as
contas a certos clientes. Falha a luz da receção, mas a conta estava paga.
– Oh, as bobines falharam novamente. – abaixa-se e procura as velas.
Sempre que chovia, a eletricidade, que ainda não chegava a toda a parte da cidade, ia abaixo
devido ao facto de a água estragar com frequência os dínamos. Nos dias de trovoada era pior, nem
as ligavam só para prevenirem sobrecargas que explodiam com as lâmpadas.
A porta abre e a mulher acende a vela para ver quem era, podia ser dia, mas as nuvens cinzentas
limitavam a claridade vinda de fora.
– MiLady Valentina, o que lhe aconteceu? Já há alguns dias que não a vejo por cá.
– Tive que resolver uns problemas. – torce o cabelo.
– O que aconteceu com o seu rosto?
– Como disse, problemas. Têm chá? Apetece-me beber algo quente.
– Vou buscar. Sente-se na sala, hoje poucos cá estão.
Pega na bolsa e caminha para a sala de estar. Cansada, só queria que o dia passasse depressa.
Senta na poltrona e o corpo estremece ao som da trovoada. Uma desgraça não vem só. Estica as
pernas, fecha os olhos e repousar a cabeça, ainda bem que tinha um quarto onde dormir.
Os ouvidos captam os passos que tentam ser inaudíveis. Até eram, a chuva a bater com força na
janela camuflava qualquer coisa. Não, a madeira não era assim tão traidora.
– Os anos que passou na França não lhe ensinaram nada?
– Como sabe que lá estive, MiLady?
– Marchelli Delphin… C´est vrai?
O Lorde caminha para a outra poltrona.
– Sabe francês? – senta lentamente.
– Pouca coisa, não tive tempo de aprender. – permanece de olhos fechados – Sobreviveu à época
de Napoleão ao passar-se por camponês cá, ou seria expulso.
– Foi um ano terrível, o rei George não queria nenhum francês em seu solo britânico.
– Depois de Vitoria subir ao trono, teve coragem de voltar a pedir o título. O que quer de mim?
Devo-lhe algo? – abre os olhos.
Velho, teria pouco mais setenta e nove anos. Não se casou, talvez algo o tenha privado desse luxo
simples que sempre unia os fidalgos com os nobres. Vivia ali há mais de dois meses, talvez tenha
perdido a casa que construiu. O sotaque era quase perfeito, se os pequenos deslizes não
denunciassem a verdadeira descendência. Um termo elegante que usava todas as manhãs ao
descer as escadas, nunca lavou o casaco, nunca comprou outro. Estava ali porque sabia de algo
relativo a August, ou se não sabia, porque se deu ao trabalho de entrar sorrateiramente?
– Mademoiselle, seria indelicado perturbar o seu descanso. Não deu conta que ia chover?
– O tempo em Londres é uma incógnita.
– Como maior parte da população, vrai?
Entrelaça as mãos sobre a barriga e sorri, os maiores mistérios eram aqueles que obrigavam a
pensar mais lentamente.
– O que insinua, monsieur?
– A menina Valentina está cá quase há duas semanas. O que a trouxe a este país?

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Sete Nomes

– Os relógios que vendo.


– Posso vê-los?
Desafiava-a na mentira? O olhar fica mais sério.
– Não, pedisse ontem, antes de os vender.
– Por isso que passou a noite fora?
– A minha vida está a ser controlada? Devo-lhe algo? Posso permanecer aqui como qualquer
hóspede de longa data, logo que não intrometa na vida dos outros.
O Lorde assente ao ver a dona da estalagem a entrar com o chá na mão. A trovoada aumenta os
nervos dela, a xícara tremia no pire como se o vento estivesse a interferir na trajetória.
– Obrigado. – Rachel faz sinal para pousar ao lado.
– Sir, deseja algo? – limpa as mãos ao avental.
– Preciso do jornal de hoje.
– É para já, Sir.
Faz um gesto com a cabeça.
Os dedos pegam na xícara fervilhante. Os olhos do Lorde devoravam aquela concentração que a
permitia suportar a temperatura da água a escaldar. Não era delicada, não gritava à dor nem se
atrevia a largar a porcelana branca.
– Não queima, mademoiselle?
O olhar de Rachel repara naquela atenção pormenorizada. Se queimava? As pontas dos dedos
ardiam, mas depois de aprender a suportar a dor, tornou-se hábito.
– Um pouco. – sopra o vapor.
– Parece muito quente. Fico admirado com a sua resistência.
– O que não me admira é esse olhar de águia. – murmura.
– Disse algo?
Nega ao pousar o chá, perdeu a súbita vontade de o beber.
– O que faz, Sir?
– De momentos, nada. Antes era negociante de arte. Gosta de arte?
– Sou uma ignorante por completo nisso. – levanta.
– Já vai? – entrelaça os dedos sobre a pança.
– Devo ficar?
– Seria mais reconfortante, vistos que ambos sabemos muito sobre a vida.
Ambos? Senta e compõe a saia encharcada do vestido, claro que a viu sair do quarto de August,
viu-a a entrar certamente. Aproximou o ouvido à porta, escutou as últimas palavras do banqueiro.
Após ouvir a alegria dela, correu para as escadas e fingiu estar a descê-las. As paredes tinham
olhos e ouvidos, traidores de primeira instância.
– Sabe o que me levou a tal acto.
– Uma violação… Confesso que não gostava de August, ele era rude, ateimava em cobrar dívidas
e é como se a vida não dependesse disso. Fez bem em o matar.
– Mas?
– Devia ter cuidado. Eu vi, a dona desconfiou. Ela estará a entrar daqui a alguns segundos, com
o jornal na mão e um sorriso forçado… – fala com prudência – Abandone este lugar o mais rápido
possível.
– Teme ser o próximo?
– Temo pela vida de todos.
– Se permanecer no seu silêncio, focado na sua vida, não terá que me temer. Se insistir em
conversar, não terei muitas alternativas.
O Lorde coloca a mão sobre o queixo, que ameaça terrível.
– Chester perguntou-me se estava morta. Disse que sim. Parece estranho estar viva.

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Sete Nomes

A trovoada não estremece o corpo que se distanciava da sala de estar. Conhecia o homem que ia
matar? O espião que o alertou no dia seguinte, aquele em que decidiu passar a noite na cama de
Phill. Como poderia viver ali, se estava rodeada de olhos e ouvidos?
Pega no chá e saboreia a água a escaldar, o dia acabou de ficar negro.
– Diga a Chester que tem as horas contadas, tal como o senhor. – levanta.
– É mesmo? Agora estou a morrer de medo.
– O que acontece se eu subir até ao seu quarto e pegar fogo às suas malditas relíquias?
– Que nem se atreva a isso.
Atrevimento era a palavra proibida para ela. Desata a andar para as escadas, corre cada degrau
direto ao quarto. O Lorde levanta, desaperta o cinto das calças, faz sinal de que já não queria o
jornal e sobe as escadas. Grimy corre para a cozinha, a janela aberta estava a fazer com que o
vento entrasse.
Terceiro andar, Marchel sobe cada degrau lentamente, a luz da vela do quarto trespassava a porta
aberta. Ela estava lá dentro, pegaria fogo a tudo e depois culparia outra pessoa.
– Não seja maluca, Valentina. – fala quase em sussurro.
Último degrau, enrola o couro nas duas mãos e estica o cinto, ia estrangulá-la e entregar o corpo
a Chester, pegando na recompensa amigável que merecia por a apanhar.
Uma mão aperta as narinas do nariz rugoso, a outra tapa a boca com um pano grosso. O Lorde
anda para trás e bate com as costas na parede de madeira, tentando esmagar Rachel. Larga o cinto
e as mãos agarram no cabelo dela, puxando-o com força para que o largasse.
Cerra os dentes, não podia gritar, o Lorde não podia ser audível naquela chuva infernal que
percorria a madeira da estalagem. O corpo volta a bater contra a parede, o rosto vermelho já
desfalecia, as mãos não conseguiam agarrar mais, quanto mais se mexia, mais ar precisava e não
tinha.
Após um minuto, Marchel cai no chão e Rachel suspira de alívio ao largar o nariz e a boca dele.
Tonta, matar parecia fácil, mas dois no mesmo dia, em tão poucas horas… Nem devia se ter
deitado na cama no dia anterior.
– Hoje estão todos contra mim. – arranja o cabelo ao ofegar.
O que ia fazer com o corpo dele? Lançá-lo escada abaixo no segundo piso, ou abrir a janela e
esperar que ele caia com o vento. Pega na mão direita e arrasta o corpo com os olhos abertos. Se
o vermelho desaparecesse, talvez também morresse de ataque cardíaco, tal como August.
Grimy vira o rosto ao tremendo barulho que percorre a estalagem.
– O que é isto, meu Deus? – corre para a entrada.
O grito sai assim que encontra o Lorde no chão, com os olhos e a boca aberta.
– Sir! – abaixa-se e abana o homem – Ajuda! Ajuda! – grita.
Não aparecendo ninguém, Grimy corre escada acima e bate na porta da única hospede ali.
– Valentina, por favor! – bate com força.
Rachel roda a aldraba e aperta o robe ao ver a cara desesperada da dona da estalagem.
– O que aconteceu?
– O Lorde Marchel morreu… – desata a chorar – Ele morreu ao cair nas escadas abaixo.
– Isso é estranho.
– Não entendo, ele estava tão bem a falar consigo na sala…
– Subi porque estava a sentir-me mal… – pousa a mão na testa – Acho que tenho febre.
A mulher limpa os olhos e pousa a mão na testa dela, estava quente.
– Creio que é a próxima. Os mais importantes já morreram, o diabo vai levá-la também. – benze-
se.
– Acho que é o clima londrino. Chame alguém antes que cheguem hóspedes e vejam aquele
homem. – fecha a porta – Como ele morreu?

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Sete Nomes

– Não sei… – desce as escadas – Não sei mesmo.


A resposta era fácil, mas Valentina não sabia o que Rachel fez, apenas entrou no quarto, despiu
a roupa e colocou outra limpa. Sorri ao ver o Lorde no chão, de barriga para o teto e morto.
– Que Deus o tenha. – Grimy fecha-lhe os olhos.
Que o diabo o corroa no inferno, porque em vida fez muitos pecados. E agora, o que o antigo
almirante diria? Que o matou? Não tinha culpa que ambos a quisessem matar, não tinha culpa de
ser a última testemunha, estar nos lugares errados e prevenir o destino fatal da sua vingança. O
que a vida já lhe tirou, não devolvia. Apenas lhe restava defender-se.

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Capítulo 9
Ouviu, de leve, que o dono do navio da doca, o intitulado Chester, estaria perto do tribunal, a ser
testemunha de um amigo que ia ser preso por fraude fiscal. Como se ele pudesse fazer muito, se
comprasse o juiz, o caso estava encerrado na hora.
Espreita pela parede de granito, o sol deu-se ao trabalho de aparecer uma semana depois da chuva
torrencial que abalou Londres. Houve quem gritasse que o mundo ia acabar no dilúvio. O que eles
não sabiam é que o inverno ia ser rigoroso e impiedoso para quem vivia na rua. Meio-dia, algures
nos relógios alheios. No dela, oito da manhã, hora perfeita para matar um homem. Planeou bem
aquele dia, Chester sairia para a carruagem a qual tomaria o lugar do cocheiro. Levá-lo-ia para
um armazém vazio, amará-lo-ia a uma cadeira e perguntaria o porquê de ter matado o seu pai.
Depois de morto, amarraria uma pedra em volta da cintura e atirava-o ao rio. Ou pegava fogo ao
corpo. Ou enterrava algures. Ou vendia ao Twenty Two. Faria qualquer coisa, mas primeiro tinha
que o apanhar.
Marchel foi dado morto por causas naturais, tal como o banqueiro tinha sido dado. O guarda
chamado ao local voltou a desconfiar nela, mas segundo Grimy, Valentina não teve nada haver
com a morte. Suspirou de alívio com essa defesa de peso, mas não se livrou do casal que ainda lá
estava, os Mrs. Wreck, ou o Sir Stanny, aquele que a meio da noite ligava o gramofone. A dona
disse que não se tinha que preocupar com eles, eram calmos, saíam o dia todo e discutiam de
noite. O outro vivia na sua vida e nada mais importava. Como se isso fosse motivo para dormir
descansada, também pensou que ia ser uma hóspede estranha no seu canto, até ser provocada por
dois homens importantes.
Desvia o olhar para o outro lado da rua, não conhecia o rapaz com o rosto cheio de borras de
carvão? Não, era apenas cisma, desde que deixou de ver o tal pugilista que a vida pareceu um
ciclo fechado. Acordava após duas horas de sono e não conseguia dormir por causa do relógio.
De vez em quando a prostituta dava sinais da sua vida noturna e a música tocava às duas da
manhã. Os dias eram monótonos. Seguia pessoas, espionava outras. Um plano aqui, outra acolá…
Nem em Boston a vida tinha sido assim tão parada.
Volta a olhar para o tribunal, só esperava que não demorasse muito a sair.
As fotografias só deviam de ser feitas aos mortos, existia uma tradição de embelezar quem morria
e enviar o retrato à família para dizer que morreu. Ou simplesmente tirar uma foto para guardar
na parede, assinalando que já morreu. O problema, é que Phill tinha um receio enorme da vida
após a morte, depois, estar ao pé de quem já não tinha vida era repugnante, não ganhava muito,
não vendia nada. Quem queria comprar a foto de um morto? Ninguém. Então, seguiu o conselho
de Abie e colocou a câmara escura na rua. Por cada retrato ganhava cem penses. Os nobres
adoravam aquela coisa do outro mundo. Em casamentos ganhava uma libra, só foi a um e rendeu
dez libras, um pequeno começo para a longa dívida.
Limpa a lente com o paninho, o Box fechado não tinha piada, os homens fartavam-se de bater à
porta e reclamar por diversão. Phill disse que estava em obras de restauro. Yves ao vender carvão
dos comboios ganhava mais de quatrocentos pences, ainda limpava chaminés, carregava caixas
nas lojas, pintava paredes… Abie lá ganhava outros tantos nos bolos franceses que, segundo
soube, já chegavam ao palácio. Cospe para a lente e pole bem o vidro, pequenas medidas que
ajudavam um pouco. Dez libras… Estavam quase nos quatro mil, só faltava três mil novecentos
e noventa. E a dívida divina? Bem, lá rezava de joelhos na madeira, mas ao fim de sete pai nossos,
adormecia sobre o colchão. Deus devia de entender o sacrifício, afinal de contas, era um homem
muito ocupado.
– É para hoje, Sir? – o nobre de bigode negro pergunta.

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Sete Nomes

– Um momento. – arruma o tecido.


Vai para detrás da câmara, passa a cabeça por debaixo do pano negro, ergue o pedaço de madeira
com pólvora, segura no botão e foca bem o casal burguês que sorria.
– Pronto. – clica.
A pólvora queima, faz um som agudo e eles estremecem o corpo.
– Feito. – sai debaixo do tecido.
– Quanto tempo leva a revelar, Sir?
– Um dia. Diga a morada que amanhã a recebe. – pega no caderno de notas.
– Palácio de Windsor, Sir.
Phill coça a cabeça com o lápis, eles viviam no palácio da rainha? Compõe a boina, nunca foi
para esses lados.
– Quarto quê?
– Trinta e oito. – a mulher fala ao ajeitar a sombrinha.
As sobrancelhas levantam, como ia encontrar isso antes de ser preso? Tinha que correr pelos
corredores com a encomenda na mão.
– Em que nome?
– Duque Henry.
– Querem uma moldura bonita ou mais ou menos?
– Bonita, Sir. – a mulher fala sorridente.
– Claro. – fecha o caderno – Vinte libras.
O homem arregala os olhos, que roubalheira.
– Desculpe, isso é muito.
– Acredite, eu gasto imenso para comprar pólvora, o líquido para as revelar, a moldura… Coloque
na sua conta o que vou pagar pela caixa colorida, o vidro para proteger, o cocheiro para Windsor,
a coragem para falar com o moço na entrada…
– Já entendi, Sir.
– É complicado ser fotografo em Londres. Ninguém quer ter um retrato. – reclama ao abrir os
braços.
A mulher lá faz um som de ter pena e olha para o marido rico que, vai ao bolso buscar a carteira.
– A duquesa sabe o que é bom. – sorri ao ajeitar a boina.
– Vamos ser os primeiros a ter um retrato. – fala vaidosa.
Iam, se a rainha já não se tivesse lembrado de fazer um. Talvez ainda fosse o fotografo dela
quando morresse, assim pagava a dívida.
– Aqui tem. – o homem estende as moedas.
– Obrigado. – arruma no bolso – Sabem se Majestade vai estar nesse dia?
– Não lhe sei dizer, Sir. – o duque ajeita a cartola.
– Claro. Tenham um bom dia.
O casal assente ao seguir caminho.
O pugilista faz as contas. Trinta libras, então só precisava de arranjar três mil novecentas e setenta
libras. Mais uns nobres e a dívida diminuía. Começa a assobiar ao limpar a lenta novamente e ao
virar o rosto, dá conta da espiã que olhava para o tribunal. Rachel, com um lindo vestido roxo.
Coloca o braço sobre a câmara e suspira, como aquele cabelo ficava bem ao sol. E aquela atenção
focada em algo? Estava apaixonado por completo. Quando rezava também pedia para o coração
dela não ser roubado por outro homem. Ou para ser perdoado. Na via das dúvidas, pensava nela,
sonhava com ela, até cheirava a roupa dela que por lá ficou esquecida. Sentia falta das unhas nas
costas, no corpo quente sobre a cama…
– Tira retratos, Sir?
Vira o rosto para a mulher elegante vestida de negro.

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Sete Nomes

– Não. – volta a olhar para Rachel.


– Pago bem… – retira da bolsa uma carteira de couro – Preciso de faça um retrato ao meu falecido
filho que vai ser enterrado amanhã.
– Estou fora de serviço.
– Disse que pago bem, trezentas libras. É uma emergência, Sir.
– Volte amanhã.
A mulher suspira ao arrumar a carteira.
Phill ajeita bem a túnica e o casaco negro, talvez se dissesse bom dia ela mudasse de ideias e
fizesse as pazes. Respira fundo e arregala os olhos ao olhar para o lado. Os ouvidos captaram bem
as trezentas libras por um retrato? Procura a mulher na rua, onde estava com a cabeça para recusar
tal oferta divina?
– Merda! – atira a boina ao chão – Eu sou mesmo burro!
Perdeu a oportunidade divina. Não dava para trabalhar naquelas condições. Vira o rosto para o
outro lado da rua e coça a cabeça, até Rachel acabou de perder de vista.
– Ela vai fazer algo. – pega na boina – Não estarias aqui se fosse para passear.
Ia atrás dela. Para, e a câmara escura? Dá de ombros, que se lixasse aquela vida de fotografo, a
mulher que gostava corria perigo.
A sentença acabou mais cedo que o previsto, Chester cumprimentava uns amigos antes de entrar
na carruagem e fazer sinal para o cocheiro. Rachel despe o casaco ao passar pela diligência que
ia começar a andar, acelera o passo ao meter pela rua estreita e olhar para onde iam os cavalos.
Desaperta a saia e deixa-a cair, revelando as calças. Aperta o cabelo à nuca com o laço, atira a
bolsa para a borda e Para ao ver que a carruagem ia mesmo no caminho que traçou.
Corre por entre os estendais no beco e sobe às escadas que davam para uma varanda que ligava
duas casas. Momento ideal, era por debaixo desse corredor que o cocheiro ia passar. E os capangas
para proteger Chester? Não estavam, ele avisou que ia sozinho por causa ninguém o querer matar
naquele dia, ia ser suspeito demais tal ideia.
Coloca-se no outro lado das grades de madeira e ao ver o momento perfeito, salta, desaperta a
capa do homem e atira-o para a fora da carruagem. Senta no lugar, coloca a capa e pega nas rédeas.
Fácil? Aquele bêbedo foi pago para facilitar as coisas. Bate nos cavalos para acelerarem o galope.
Chester olha para o relógio de bolso, ainda ia a tempo do almoço que a empregada ia fazer.
Londres estava habituada àquela correria constante das carruagens. Às vezes, as ruas ficavam
intransitáveis por causa delas, eram tantas, mas tantas no mesmo lugar que parecia não haver
ordem. O sinaleiro ainda tentava dar ordens com o apito, fazendo gestos de que podiam avançar
ou parar. Isso não estava a acontecer naquele dia, o movimento nas docas era facilitado devido ao
comboio que cruzava quase todos os armazéns.
Os cavalos começam a parar e Chester espreita pela janela.
– Isto não é o meu armazém! – grita ao abrir a porta.
Ia perguntar ao homem o que lhe deu… Repara que não existia ninguém no lugar.
– Mas que raio…
Ao virar-se, leva com uma pá no rosto. O corpo cambaleia contra as rodas de madeira, o sangue
não hesita em sair pela boca. O olhar foca a capa que é retirada do rosto e revela quem o levou
para ali.
– Tu! – levanta e estica as mãos para o rosto.
Esgueira-se pela direita e bate a pá nas costas dele. Chester cai no chão, grita as dores que
percorriam a coluna.
– Desta vez não falho.
– O queres de mim? – pergunta ao virar-se.
– Muita coisa. – ata uma corda ao pé dele.

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Sete Nomes

– Tu vais-te arrepender disto! Os meus homens vão chegar, eu marquei horas.


Ela sabia disso, só se perguntava se eles sabiam onde estava o seu patrão. Dá o nó e arrasta o
corpo dele com a corda.
– O que te fiz?! – tenta agarrar-se a algo.
– Tenta lembrar-te. – abre as portas e volta a arrastar o corpo pesado.
Não conseguia, tinha vontade de tossir, doía-lhe o rosto, as costas que sentiam o chão cheio de
gravilha. Porque não levou os seus homens? Pensou que não ia ser tentado a nada naquele dia,
domingo é sempre santo.
Os olhos arregalam-se ao ver o gancho onde se pendurava a carne.
– Eu pago-te a minha liberdade, dou-te uma quantia boa para viveres para sempre como nobre!
Ri ao puxar o gancho e colocar o laço da corda na ponta. Iça o corpo que ainda tenta se libertar
daquele pesadelo.
– Pensa um pouco Chester. – prende as correntes a um pilar de ferro – Quem eu sou?
O mosquete dele cai, tal como as facas na cintura. Os braços ficam suspensos no ar, o rosto
apenas mirava a gravilha no chão.
– Valentina Daylux. – fala ao olhar para o rosto.
– Não. – senta na cadeira e aponta a culatra contra a cabeça suspensa – Rachel Clarel, a única
filha de Cristian, o homem que mataram na floresta. Lembraste de me segurar?
Ela, a rapariga de dez anos que deixou ao pé do orfanato? Ela, a única herdeira dos nobres
londrinos que rejeitavam ser parentes de um Duque? Estica os braços para a esganar, não
acreditava que estava a ser vingado por ela, deixou-a naquela casa de tortura para morrer de vez.
Rachel recua o corpo e levanta.
– Devias de estar morta! – grita ao deixar os braços caírem – Deixei-te lá para morrer!
– Sim… Não contavas que tivesse ajuda para fugir aos doze anos. – pega na pá – Minha mãe
morreu um dia antes de chegar a casa, morreu a chorar, doente por negar comer ou ser tratada,
por procurar a sua amada filha em todo o lado e não a encontrar. Que mal a minha família te fez?
– O teu pai era um corrupto de merda, não percebia de negócios e estava preste a abrir mão das
minas de ouro! Não nos pagava há mais de um mês.
– Mentira, mentira. – bate-lhe com a pá.
O grito percorre o armazém, os corvos assustam-se e desatam a voar. Chester tose o sangue que
escorria pela boca.
– Cristian negava dar-vos os dois navios, negava vender os escravos, negava explorar as terras de
África e ser desumano com quem lá vivia. Mataram-no para ficarem ricos às suas custas,
roubaram-lhe o título e deixaram a minha mãe na miséria, lá em Boston!
– Ela envenenava a mente do teu pai, dizia que devia de ter dó dos negros. “Não vale apena vender
esse ouro negro, são pessoa Cristian, pensa na filha que vai crescer sem saber distinguir o bem do
mal”. Teve o que mereceu!
– Como tu vais ter! – bate-lhe novamente.
Chester volta a gritar, a perna que não estava presa não facilitava o equilíbrio do corpo. Que
balançava.
– Como me encontraste? – fala ofegante.
– Quando assaltaram a mansão e roubaram maior parte do que era nosso, esqueceram de queimar
as cartas que estavam no lixo. Sete nomes condenados, valeu apena destruir uma família pacífica?
– Valeu. – ri e mostra os dentes com sangue – Cada um de nós enriqueceu, dizimamos aquela
aldeia perdida e vendemos o ouro todo. Não mudava nada do que fiz, nada! – grita para salientar.
Agarra no cabelo dele com força e puxa para cima.
– Carter Archie está morto, ele confirmou-me que os restantes amigos do passado estavam aqui,
em Londres. Olha a minha sorte, a ninhada nunca está longe do mestre.

68
Sete Nomes

– O Archie… – murmura.
– É. Um a um, até que encontre apenas o homem que me roubou a honra ao se passar pelo meu
pai e regressar a Londres. Sabes quem é ele?
– Darwin Logan. Não chegas a ele, bem podes sonhar por essa morte, podes matar cada um de
nós, mas o Logan… – nega – Por esta hora já deve saber que chegaste a Londres, já deve ter
planeado a tua morte.
– Sobre que nome? Emaly Bowlling? Achas mesmo que viajava com o meu verdadeiro nome?
Demoro o tempo que for preciso, mas ele vai morrer.
– Tenho pena de ti Rachel, devias de ter seguido com a tua vida invés de procurar vingança!
– Eu não tenho vida desde os dez anos. Cresci com sete rostos entalados na garganta. Vivo aquela
maldita manhã todos os dias e não tenho descanso. Quando os nomes estarem todos riscados, eu
finalmente sigo com a minha vida. – recua.
– Cristian não ia querer criar um monstro. Nem a tua mãe.
Não, sabia que os estava a desiludir dessa maneira, mas também sabia que eles estavam felizes
por verem alguém a fazer justiça. A vida ficou parada no tempo, é como se estivesse morta há
mais de treze anos.
– O lado bom da vida… É que nascemos para morrer, mais cedo ou mais. Os que vão mais cedo,
não conseguem acabar as missões. Os que vão mais tarde, acabam-nas. Diz-me Chester, como
gostarias de morrer?
– Já estou morto. – ri e tosse o sangue – A tuberculose está a matar-me lentamente. Vivi anos de
ouro. Devias agradecer-me, Logan queria violar-te e vender-te como escrava. Eu é que disse que
tinha um destino melhor para ti.
– Acho que devias ter feito o que ele disse, a esta hora não estava aqui à procura de vingança.
– É verdade… Que erro! – ri.
Retira a faca da bota e agarra no rosto dele.
– Garganta cortada? – Chester pergunta.
– Estou a pensar.
– Sabes o que mais admiro em ti? – tosse com violência – Mesmo depois de tudo, és a única Clarel
que se deu ao trabalho de vingar. Mas também tenho pena, Logan vai partir-te os ossos todos, vai
arrastar-te pelas escadas de mármore e…
Crava a faca no pulmão dele e arranca-a com força. O sangue começa a escorrer, Chester começa
a ter soluços, afogava-se com o próprio sangue que era puxado pela gravidade. Os olhos ficam
vermelhos, da boca pinga a cor que um dia manchou aquela floresta.
Rachel deixa a faca cair e senta na cadeira. A mão tremule fazia o corpo entrar em pânico, um
certo peso é tirado de cima. Recua no tempo, vê aquele mesmo homem a deixá-la no orfanato, a
empurrá-la contra o chão e a vender o corpo inocente às freiras que tinham o destino perfeito.
Ouve o relógio a trabalhar, mesmo dentro do bolso o som parecia abalar Londres. Morto, Chester
estava morto.
Olha de esguelha para o vulto que entrava no armazém.
– Uau.
Levanta e vira-se para a entrada.
– Estás bem?
Nega com os olhos em lágrimas, nunca lhe custou tanto matar um homem.
– Dei conta que não foste à missa. – Phill aproxima-se.
O corpo dela recua, não queria nada dele.
– O que prometeste está cumprido. Matei Chester, podes sair da minha vida. – Rachel limpa o
rosto.

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Sete Nomes

– Um ladrão morto não resolve a minha vida. Ainda precisas de mim Boston, sozinha não vais
longe.
– Não estás a ver o que fiz?! – grita – Onde estavas quando planeei isto?
Mostra a mão coberta de sangue, esfolada de ter batido em alguém no outro lado do armazém.
– Achas sempre que este homem anda sozinho.
Toca no punho com meiguice, quer dizer que os homens de Chester iam mesmo entrar ali se ele
não os tivesse esmurrado.
– Phill… – nega – Não te perdoo do que fizeste!
– Só quero proteger-te, vi duas mulheres morrerem por causa das minhas dívidas.
– Isso não é motivo para levantares a mão.
Assente, era a mais pura verdade a ser espetada na cara.
– Eu gosto de ti, não posso fazer nada quanto a isso.
Rachel suspira ao ver aquele olhar que pedia para não o expulsar da sua vida complicada.
– Esta vingança não te diz respeito!
– No momento em que entraste na minha vida, é como se ela me pertencesse.
– Não venhas com falinhas mansas… – caminha para a saída.
– E ele? – aponta para o morto.
– Twenty Two.
Phill coloca a mão no queixo, excelente ideia.
– E se ficar aqui?
Dá de ombros, os corvos deviam de estar cheios de fome.
– Tens alguém que vai riscar esse nome nas costas?
Para de andar.
– Tu sabes, não está no alcance dos teus dedos… A faca… Não.
Respira fundo, sabia o que ele estava a tentar dizer. Não conseguia nem cozer a pele depois de
aberta.
– O Box está aberto?
– Para ti, ele nunca fecha as portas. – sorri ao ajeitar a boina.
Já suspeitava disso, por mais que a vida o obrigasse a fechar portas, Phill abria-as para o que
realmente importava. Uma sem casa tinha sempre refugio debaixo das telhas dos apaixonados.

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Sete Nomes

Capítulo 10
Os dentes cerram-se assim que sente a lâmina passar por cima da pele. A tatuagem era rompida,
o sangue que escorria pelas costas manchava os restantes nomes que teriam o mesmo destino. O
olhar fixo no espelho notava os anos de vida que perdeu há conta daquilo. Ainda ia perder mais
se não cumprisse o que devia ao túmulo do pai. Bebe mais um pouco, a cozedora ia ser pior.
Phill passa a agulha pela chama da vela, só cozeu Abie uma vez, quando se cortou com a faca no
braço. Ela disse que tinha arte naquilo e nem desconfiava, talvez o pai incógnito fosse bom em
alguma coisa. Passa a linha pela cabeça da agulha, quantos pontos aquele nome levaria? Os
necessários para ficar ilegível.
– Pronta?
Rachel assente ao colocar na boca a rolha da garrafa, assim não trincava os lábios. O pugilista
pousa a mão esquerda sobre a pele e a direita, com a maior mestria, toca a sinfonia ao passar a
agulha pela carne sanguentada de uma ponta à outra. Cozer carne humana não era igual à cozedura
de um tecido, exigia estômago, paciência, precisão e delicadeza. Ouve o grunhir abafado dela,
tinha vontade de gritar, mas não o fazia para prevenir que os restantes ouvissem.
– Cry of a banshee… Fly for other way, sleep on my window and cry on my bed… Don´t forget
your voice tells me everything, just let me heard.
A tesoura corta a linha no último ponto dado.
– Revenge make us be most strong, but always failed. We are warrior, fight on the street, life
without love… Just died when found true house… Or nothing changes us.
– De quem é isso? – Rachel retira a rolha da boca.
– Da minha mãe. Ela cantava de vez em quando… – arruma a agulha na caixa – A minha avó
continuou a cantar para eu não esquecer. Chama-se Ice Heart.
– Coração de gelo… Isso é uma indireta?
Nega ao levantar e arrumar a caixa.
– Tu não és um coração de gelo, és uma… Black Sparrow.
– Porquê? – tapa os ombros com o cobertor.
– Porque consegues ser livre, a sociedade não permite esse voo tão alto no céu. Vais além dos
teus limites, travessaste um oceano inteiro só para honrares o teu passado. Que mulher se daria
ao trabalho de fazer tal coisa? Que… Que mulher se priva de morrer?
Agarra-se aos joelhos, poderia morrer depois de cumprir o seu dever, não se importava disso.
Logo que a alma do pai descansasse na tumba, a sua podia vaguear algures na terra.
– Nunca estive com alguém como tu. Ainda hoje perdi trezentas libras só por estar a olhar para ti.
O olhar levanta, perdeu assim tanto dinheiro à toa?
– Até a câmara escura perdi. – murmura ao sentar na cama.
– És louco ao fazer isso, precisas de dinheiro.
– Eu sei. Mas o coração falou mais alto.
– Amas a mulher errada, não te posso dar um casamento de sonho ou uma família.
– Rachel… – aproxima o rosto ao dela – Eu pedi-te isso? Algum dia sussurrei ao teu ouvido
enquanto estavas aqui deitada que queria de ti uma vida normal?
Não, nem enquanto dormia a chamou mãe dos seus filhos. Murmurou doçuras de arrepiar, mas
isso nunca pediu.
– Mesmo assim.
– Vê o lado positivo, podemos viver em qualquer casebre, comer as sobras do dia anterior e
alimentar os órfãos do beco.
Um enorme sorriso escapa dos lábios, ele queria alimentar metade de Londres.

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Sete Nomes

– Dei uma moeda a um rapaz que vendia jornais à chuva.


– Custou alguma coisa?
Nega ao se aconchegar nos braços dele.
– A minha raiva foi sempre invejar quem viveu na rua, longe de um orfanato madrasto que matava
aos poucos. Eles pelo menos podiam estender a mão, eu nem isso.
– É. A minha avó dizia que a minha sorte é não ter sido deixado na roda. Ou o meu pai ter-me
matado. Ou morrer de alguma doença. Acho que ainda sou sortudo. – conclui pensativo.
Era e nem sabia, não dependia de vinganças fúteis para viver, não precisava de cruzar um oceano
para procurar respostas, não necessitava de um relógio parado para sobreviver ou matar para se
tornar invisível. Na verdade, o azar de Phill eram as dívidas, de resto, tinha uma vida de sonho.
– Não podes fazer muitos esforços ou os pontos abrem.
– É, eu sei. – beija-lhe o pescoço – E a tua mão?
– Rachel, estou habituado a isto. Não morro por causa de uma esfoliação.
Pugilista de ferro, eram raros naquele mundo amador. Passa a perna por cima do colo dele, o
tronco vira-se para o peito musculado. Puxa-lhe a túnica para cima.
– E os pontos?
– Queres que beba para aliviar a dor? – atira a túnica ao chão.
– Não… – afasta o cobertor e beija-lhe a pele.
Rachel fecha os olhos e a cabeça cai ligeiramente para trás, adorava sentir aquele calor aparecer
no corpo, aquela sensação de que não vivia sem aquilo. As mãos esfoliadas seguram nas costas
dela, os lábios já percorriam os seios bem feitos. Um suspiro sai, Phill sorri ao ouvi-lo.
– Boss. – a porta abre repentinamente.
Phill e Rachel viram a cabeça para Yves com os olhos fixo naquela posição. Mulher sobre o
homem, estavam exatamente como o recorte que arranjou num livro da biblioteca. Era assim que
se fazia amor? Não parecia complicado, se não o mestre não parava de fazer aquilo que chamava
“viciante” e “proibido para os mais novos ou pessoas da sociedade tabu”.
– Yves, e o bater à porta?
– Pensei que estava sozinho, não sabia que a MiLady estava. Estavam a fazer amor?
– Achas que com roupa se faz isso? Sai e bate a porta.
Coça a cabeça suja, o mestre estava de calças, tal como a mulher com nome de uma cidade. E os
seios dela? Eram perfeitos como os da Abie.
– Yves. – Phill chama impaciente.
– Tem convidados na sala, boss.
Convidados? Olha para Rachel, quem é que seria? O banqueiro? O sapateiro? A quem devia
daquela vez?
Os olhar negro de Abie não parecia focar outra coisa. Homens enfardados que não queriam beber
vinho ou brandy. Estavam com pressa, andavam de um lado para o outro, não queriam que o
homem com capuz sentado na cadeira fosse obrigado a ver a escrava negra. Porquê? Porque era
escrava e negra. A sociedade não tolerava pessoas com cor, nem se podiam dar ao trabalho de os
considerar gente. Abie também não se importava em não ser vista, só estava ali a guardar, nada
mais. Não reconhecia as fardas azuis, a rainha só preservava a cor vermelha que se tornou
tradição.
– Abibatu… – a porta debaixo da varanda abre.
– Aqui. – corre para as grades.
– Diz-me que não é o banco. Pior, não me digas que são os quatros sangue sugas. Acho que a
Boston não tem paciência hoje.
– É pior que isso.

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Sete Nomes

Phill desacelera o passo ao ver os guardas. A madeira range no último degrau ao ver o homem
sentado na cadeira. Não era nenhum cobrador de impostos ou velho rival de lutas de outros
tempos. Conhecia aquele brasão bordado na capa, conhecia aquela farda azul. Estala os dedos da
mão, parecia que estava perto de fazer um grande acerto de contas.
– É preciso ter coragem. – Rachel murmura ao caminhar para o balcão.
Phill desata a andar para o homem, mas os guardas travam o avançar violento.
– Queres perder um dente ou a vida para vires até aqui?! Filho da mãe! Quando te por as mãos,
vais pagar a morte da minha mãe!
– Phillipe, do que falas? – retira o capuz e levanta.
Tal pai, tal filho. Os mesmos olhos, a mesma altura, o mesmo cabelo. Phill tinha mais cabedal
que o tal príncipe austríaco que nunca praticou boxe. A idade também não permitia uma
semelhança perfeita. Quarenta e dois anos, pai de três infantas ainda pequenas. Casou-se com
uma princesa austríaca e vivia na corte do sogro. Seu nome? William de Orange, um dos
descendentes do rei taciturno holandês que governou o Inglaterra durante anos e anos. Ficou o
título, mas não o juízo. Barba bem-feita, poucos cabelos brancos na cabeça. Mãos enluvadas para
preservar a delicadeza, magro por causa da etiqueta rigorosa.
– O meu nome é Phill. Vieste aqui acabar com o que não acabaste há vinte e dois anos atrás?
– Acusas-me da morte da tua mãe, mas eu não a matei.
– Alguém da tua corte a matou. Não precisas de admitir a culpa, já deve pesar muito de noite,
quando dormes na cama com a tua amada Mary. Espera, os príncipes nunca dormem com as
esposas, só com as amantes.
O príncipe até entedia a arrogância dele, nunca teve uma educação digna do seu estatuto.
– Prepara-te que isto vai aquecer. – Rachel murmura para Yves.
– Phillipe, estás um homem. – faz um gesto para os guardas recuarem – Nunca pensei que sairias
assim tão perfeito.
– Desculpa? – faz um sinal de não ter ouvido bem – A minha mãe fugiu de Viena após saber que
estava grávida, porque tu a ameaçaste que não querias saber da criança! Agora chegas aqui como
pai zeloso? Volta para a tua casa que eu sou filho de pai morto.
– Só tinha dezassete anos, um casamento à porta. Não podia casar com uma jovem que cantava
lírica, não fazia sentido algum.
– Também não faz agora. Não preciso de pai, quando precisava, lembrava-me que estavas sentado
no teu trono de sonho, a comer alguma coisa boa enquanto eu comia sopa com os legumes que a
minha avó arranjou! Não sou teu filho, nem quero ser.
– Achas que a corte permite que tenhamos asas para fazer tudo o que queremos? Tenta entender
que eu me arrependi imenso do que o meu sogro fez à tua mãe, matou-a. Tentei saber se estavas
vivo.
Mas aquele homem pensava que o pugilista era burro? Vira o rosto para Rachel, a quem ele
queria tapar os olhos?
– Sai do Box antes que parta a sua cara. – aponta para a saída.
– Phillipe, tentei ir a bem, mas tu não tens maneiras. Mary morreu na semana passada no parto.
Como deves ter sabido, o meu filho morreu.
– Tem as infantas.
– As gêmeas morreram vitimas da peste branca e a mais velha asfixiou devido a uma alergia que
o médico não disse. És a minha última esperança, o meu único filho vivo e com idade suficiente
para fazer parte da corte.
O pugilista levanta as mãos em sinal de nem pensar sobre o assunto. Era filho bastardo, o
renegado da coroa, o afastado por medo de ser morto. Durante anos e anos o seu nome foi alterado
nos registos, filho de um homem qualquer que não fosse um príncipe. Foi educado para sobreviver

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Sete Nomes

sem depender dessa sombra, cresceu a aprender boxe para fazer disso a vida. Não ia abandonar
aquilo para fazer parte de uma corte fútil, obrigado a seguir etiqueta e mudar de país para fazer a
vontade ao pai que nunca se lembrou dele em pequeno.
– A porta é ali, saia, não volte, esqueça que existo. Morri, Phillipe de Orange morreu. Vá com
deus, com o diabo, como raio que o parta. Não o quero voltar a ver!
– O teu nome foi anunciado à rainha, não penses que a tua vida vai ser fácil daqui para a frente.
És um príncipe, o teu lugar não é aqui. – abre os braços – Nesta barraca, a viver com uma escrava
negra e um rapaz fedorento. O teu lugar não é ao lado de uma prostituta, cheio de dívidas…
– Prostituta? – Rachel sai do balcão – O que me chamou?
– Não falo com pessoas da sua laia.
– Não fala? Passa a falar! Que direito tem de chegar aqui e dar ordens? Está desesperado para não
perder o seu lugar ao trono, por isso que chega aqui para salvar a pele? Fique a saber que o seu
filho não é igual a si, um homem aplumado que veste bem para não parecer mal.
– Quem é ela? – William aponta.
– A voz da razão. – Phill cruza os braços – Continua Boston.
– Não ouviu o que ele disse? Vá que já vai tarde. Ou vai querer que mate o seu filho?
Matar? Phill vira o rosto.
– É bluff.
– Acha? – retira o mosquete e aponta-o à cabeça do pugilista.
Os guardas movem-se ao apontar as armas, estava a colocar em perigo o futuro do reino austríaco.
O olhar do príncipe desafiava. What you waiting for? Kill him! Força a culatra contra o rosto do
pugilista, era uma mulher de palavra.
– Boston, não faças nada que te possas arrepender. – Phill murmura com um certo receio.
– Não tenho problema nenhum em te matar.
– Desafia a coroa austríaca? – William pergunta.
– Não sigo coroa alguma no momento em que vivo em democracia e justiça popular.
– Não pode ter as duas coisas. Na europa segue as nossas regras. No seu país, siga as suas. Se
matar Phillipe, sujeita-se a ser condenada à morte, matar um membro da realeza é inadmissível.
– Não. – sorri – Phill é pugilista, filho de pai incógnito. Tem fama de dever, está na lista de espera
para morrer. Se o matar, ninguém se atreverá a dizer que ele era príncipe, não encontra registo
algum que o ligue à casa Orange.
O pugilista assente, era a mais pura verdade, ninguém o registou como filho bastardo de um
príncipe. Aliás, quem nascia fora da realeza, não ascendia a um.
– Falou com a mulher, que manda no país, acerca dele? Quem é que quer enganar? O seu tique
nervoso denuncia-o das mentiras.
– Que tique?
– Pestanejar forte. Phill faz o mesmo.
O rosto vira-se.
– Não faço nada!
– Fazes, por isso que ninguém dá conta quando mentes.
Sem palavras, a ela não conseguia enganar. Olha para o pai, estava encurralado.
– Então paizinho, não vai embora a bem? – cruza os braços.
O príncipe aproxima-se dele, olha-o bem nos olhos e tenta ver se herdou algo da amante lírica.
Sim, dela herdou a teimosia certamente, o sorriso, a amargura e a mágoa. Dele, herdou o que era,
mas não dava conta disso. Assente ligeiramente, aquele rebelde não se ia dar ao luxo de mudar de
vida, não tinha modos, nunca teria, cresceu na miséria e não aprenderia a viver no conforto. No
fundo, era o filho bastardo mais indomável que tinha. Claro que Phill não foi o único a nascer
fora da corte, tinha mais uma irmã bastarda a qual aquele desesperado não recorria por ser mulher.

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Sete Nomes

– Tens um mês para decidir. Admito que matei a tua mãe, tive a cobardia de a matar porque
receava que ela chegasse ao castelo contigo no colo e reclamasse algo. Arrependi-me, tentei
remediar a situação e acabei por piorar. Devia ter mandado vir-te buscar, só tive filhas e é
lamentável perder um homem como tu.
Matou… É como se não ouvisse nada em volta. Estava imóvel, a focar o rosto que admitia a
crueldade humana que o atirou para o abandono. Matou a mulher que cantava nas tabernas de dia
para pagar a comida ao seu pequeno prince. Tirou-lhe a mãe que depois de cantar para adormecer,
lavava a roupa dos nobres para ganhar mais algum. As mãos fecham-se, estava chocado, andou a
vida toda a pensar nisso e agora, ouvir da boca dele… Chocado, os olhos em lágrimas
denunciavam isso. Não conseguia mover-se, não conseguia dar aquele merecido murro na cara e
gritar-lhe que o odiava de morte.
– Um dia vais fazer uma escolha difícil a qual ades de te arrepender. – caminha para a saída – Um
mês apenas e depois, eu é que escolho o teu destino.
– Sir.
O príncipe vira-se, tal como os guardas.
– Se não teve escolha, quer dar uma ao filho que fez questão de fazer, mas abandonou? Cuidado,
um mês pode ser o início e o fim de muita coisa. – Rachel alerta.
William fica pensativo com isso. O que estava a tentar alertar? Que poderia ser assassinado?
Volta a andar, aquela mulher dava-lhe arrepios.
– Yves, uísque. – pede ao pousar o mosquete.
O aprendiz corre escada abaixo.
– Phill… – dá pequenas estalas no rosto dele – Ele já saiu.
– Tu ouviste? – fala ainda em choque – Matou a minha mãe.
– Não és o único a viver com isso na cabeça. Querias tanto bater nele que perdeste a oportunidade.
– Ele matou-a. – murmura ao ser sentado.
– É, a minha também morreu por minha causa, cheguei tarde demais a casa. – faz sinal a Abie
para trazer água.
– Eu sempre soube disso, a minha avó tinha razão. – agarra nas mãos dela – Não acredito que
aquele monstro fez-me!
– Os monstros gostam muito de procriar para depois usar. – estica a mão para o uísque.
– Matou-a. Por deus, ela não merecia isso, só tinha apenas dezanove anos, teve um parto difícil,
cuidava de mim como podia, tentava ser uma mãe presente, mimava-me, tratava de mim como se
fosse o seu pequeno príncipe…
Rachel bebe, ele não deu conta que a realeza era assim, eliminavam todas as pedras do sapato
para que pudessem caminhar sem tropeçar?
– Mataram-na à minha frente, uma criança com apenas três anos, apavorado por ver homens a
entrar em casa…
A estalada forte ecoa pelo espaço vazio, Yves até coloca a mão no rosto, parecia sentir a dor. Os
olhos de Phill ficam arregalados, os dedos são colocados na bochecha, tentava entender o que
estava a acontecer.
– Obrigado Abie. – pega no copo de água.
Atira-o ao rosto repentinamente e o pugilista levanta, estava a ir longe demais na sua crueldade.
– É bom que tenhas rédeas, ou eu tas coloco! – grita.
– Acordou. – vira-se para os restantes – Aprendam, este método é infalível. Sempre que o vosso
patrão parecer estúpido, deem uma estalada forte.
Claro que não iam dar, jamais levantariam a mão a quem pagava o salário.
– Phill, tu não és o filho que aquele homem procura, ninguém pode provar que és filho dele, não
há registos de nada, quem sabia do caso morreu, a corte não vai vir cá e levar-te à força. Podes

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Sete Nomes

até inventar que este príncipe procura forjar um filho para não perder a linhagem. Usa a
invisibilidade a teu favor.
Começa a pensar direito, tinha razão no que dizia, nada provaria que o pai era da realeza, as
mulheres podiam engravidar de qualquer vagabundo na rua. Faz um gesto com o dedo, como ter
uma mulher em casa fazia a diferença.
– Depois, ele só confirmou o que já sabias. Tiveste a porcaria da oportunidade e falhaste. Daqui
a um mês, espeta-lhe um gancho naquele rosto e pega nas vestes dele, arrasta-o para fora daqui e
pronto, vingança cumprida.
A boca cai, essa ideia estava fora de questão, era um príncipe, não um devedor.
– Melhor?
– Ainda bem que estás debaixo do mesmo teto que eu. – Phill sorri.
– Quem diria que és tão parecido a ele. Ambos tentam salvar-se das merdas que fazem.
Coça a cabeça molhada, agora sabia de quem herdou o azar.
– Vamos esquecer o momento? Este homem nunca entrou aqui, nunca veio cá meter nojo… –
pega na mão dele – Estávamos a meio de algo que não quero perder.
– Vão voltar a fazer amor? – Yves pergunta.
Abie dá-lhe com o cotovelo, que curioso.
– Yves! – Phill vira-se e aponta o dedo – Lava o chão e faz duzentas flexões.
– Mas…
– Abie conta e fica de olho nele, já dei conta que anda com cio.
O aprendiz fica corado, apenas queria também ser homem. Mas para isso, tinha que ter coragem,
algo que ainda não aprendeu.

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Sete Nomes

Capítulo 11
A notícia abalou a cidade logo pela manhã. O corpo de Chester foi encontrado pendurado ao pé
do navio, com a cabeça dentro de água e as mãos a segurar numa faca. Ninguém entendia o crime,
como aquele homem rico, que vivia no próprio navio, morreu? Os vigilantes testemunharam,
acreditam que o patrão não se suicidaria dessa maneira violenta. Disseram ainda que ele esteve a
tarde toda fora de casa, foi ao tribunal testemunhar algo e depois, desapareceu. Homicídio, um
detetive foi convocado para investigar o caso e depois dar conclusões ao inspetor da rainha.
Segundo o médico, que se deu ao trabalho de ver o cadáver, concluiu que tinha uma costela
partida, o sangue atingiu a cabeça e o pulmão estava perfurado. Quem o matou? Aquele homem
tinha muitos inimigos, qualquer um o podia ter matado.
Os jornais não falavam de outra coisa. Semanas trágicas, morreu um banqueiro, um Lorde francês
e agora um comerciante de carne. Na rua, os homens que logo pela manhã pagavam pelo jornal,
comentavam entre si que um assassino andava por entre as ruas, podia ser o vizinho, um parente,
ou mesmo alguém da monarquia a tentar livrar-se dos grandes nobres de Londres. As mulheres
nem se davam ao trabalho de parar para falar algo sobre o assunto, era indiferente se um homem
morria de causas naturais ou era assassinado.
Grimy não sabia ler, mas a notícia chegou-lhe por um hóspede atento ao mundo que o rodeava.
Admirada, nada previa a morte do grande comerciante de carne, não dessa forma violenta. O
homem que o matou deveria de ter muito ódio ao ponto de o pendurar perto do rio.
– Bom dia, MiLady Valentina.
Rachel boceja por detrás da mão e pousa o braço sobre o balcão.
– Como foi a noite por cá?
– Não dormiu cá, dei conta. – limpa um baú pequeno.
– Estive a resolver umas coisas na minha vida.
– Que coisas?
– Coisas que não são do seu interesse. – sorri.
A dona sorri também para não parecer mal-educada.
– Chegou uma carta para si… – abre a gaveta – Está no seu antigo nome.
A mão agarra no envelope cheio de selos. Boston, sentia o peso da encomenda longínqua, os
tutores enviaram-lhe algo que talvez fosse útil.
– Foi aberta?
– Não MiLady, ainda não fazemos esse controlo.
Nem queria que fizessem, não queria ser obrigada a se livrar dela também.
– Soube da morte de Chester? – volta a limpar.
– Não se fala de outra coisa. – analisa o envelope.
– Coitado, esse homem deveria de o odiar muito. – lamenta.
– Homem? – olha-a.
– É. Descrevem-no como um predador. Assassino da rainha ou de algum nobre londrino. –
sussurra – Temos que ter cuidado, o nosso hóspede, o Stanny, não gosta de ouvir falar mal da
queen.
E qual era o inglês que gostava disso? Seguiam a realeza como se a vida dependesse disso.
Comiam o mesmo pão da rainha, usavam a mesma moeda, ouviam a mesma música, cantavam o
mesmo hino… Já o ar não era o mesmo, Windsor parecia um pedaço de terra afastado da cidade,
nem o fumo lá chegava.
– Vai almoçar cá?
De momentos, focava a sua atenção para o envelope.

77
Sete Nomes

– Sopa. – fala ao caminhar para as escadas.


– Só come sopa, MiLady.
O que preferia? Que comesse a carne do Twenty Two? Sobe os degraus lentamente, retira a luva
da mão direita e começa a rasgar o lacre. Jason tinha novidades, só isso explicaria o risco de enviar
algo para Londres. Ficou combinado, enquanto estivesse no outro lado do oceano, só avisava que
estava viva e pouco mais. E ele, nada mandaria para não a colocar em risco.
Fecha a porta do quarto e tranca-a à chave. Vai à janela e corre a cortina, nem os telhados seriam
espiões. Acende a vela e senta em frente à mesa com espelho. Abre o envelope e os olhos admiram
as lentas dentro do pano de veludo. Ao lado, um cheque passado alertava para a ajuda financeira,
ninguém sobrevivia sozinho numa cidade nova. Para quê que servia as lentes? Pega na carta longa
que estava escrita com letra invisível. Tinta de limão, só era possível saber o que lá estava escrito
se passasse a chama da vela por debaixo.
– Esperto Jason. – murmura ao afastar os objetos.
Caso o envelope fosse aberto para ser revistado, não saberiam nada sobre a mensagem oculta.
Estica bem a folha de papel por cima da chama da vela e espera um pouco… As letras surgiam
lentamente...

“Querida Rachel,
Eu sei o que combinamos, não te devo mandar cartas. Mas acho que sozinha não consegues
fazer o trabalho todo. Por esta altura já deves ter apanhado Chester. Em todo o caso, eu sei onde
podes encontrar Backer James. Se fores esperta, saberás como usar a lentes, em que ocasião e
sobre tudo, no lugar indicado. Uma pista, ele usa batina. O dinheiro é para te manter aí, não
sobrevives com aquele que levaste. Quando souber mais, ajudo. Encontra a tua paz, meu anjo.
Jason.”

Umas lentes, como aquilo poderia ajudar? Pega nelas, só sabia que eram usadas nos monóculos,
nos óculos e lupas. Assim, tão concava e convexa… Não encontrava a utilidade. Batina? Seria
um padre, um monge, um médico, um juiz… Podia ser qualquer profissão.
Queima a carta na pia da água e depois, livrasse das cinzas ao abrir a janela e atirá-las para o
beco. Repara num dos filhos da prostituta. Tinha a colher de madeira ao pé da boca, olhava para
aquela janela aberta na esperança de comer algo melhor do que comeu. Rachel faz sinal para não
fazer barulho, o dedo sobre os lábios era simples de entender. A cabeça dele assente.
– Valentina… – Grimy bate à porta – Tem aqui um senhor que quer falar consigo.
Um homem? Fecha a janela e corre para a mesa, tinha que arrumar aquilo. Abre a porta do
armário e, por entre as botas de cano alto, arruma as lentes no tecido e o cheque. Depois, abre as
cortinas, despe o casaco e pega no robe.
– Já vou. – avisa ao desfazer a cama e passar água pelo rosto.
– Este senhor é…
A porta abre e Grimy fica admirada com aquela aparência. Estava deselegante, parecia suar,
parecia estar cansada…
– Sente-se bem, MiLady?
– Sim. – aperta o robe – Muito bem.
– Está suada… – pousa a mão na testa dela – Parece ter febre.
Os olhos acompanham aquela audácia que descia até ao pescoço.
– Estou bem, só passei água no rosto.
– Ah! – recua a mão – Pensei que tínheis febre.
Mesmo que tivesse, ia ao médico saber qual era o mal, não ficava ali deitada à espera de dias
melhores.

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Sete Nomes

– O tal homem…?
– Ah! Sim… – começa a caminhar – É o Ministro dos Estrangeiros. Diz que o seu passaporte não
foi apresentado a um advogado para carimbar. E que está há um mês aqui, não trabalha, não
apresenta morada fixa… Essas coisas do costume.
Aquelas em que ignorou por pensar que se livrava das filas. Quantos entravam ilegalmente em
Londres? Imensos, mas os conhecidos ficavam em risco de não voltar a pisar a rainha dos mares.
Cruza os braços ao se aproximar da sala de estar. Um homem, o tal Ministro dos Estrangeiros.
Velho, bigode branco, rugas no rosto… Na mão, segurava a cartola negra, uma pequena cicatriz
ao pé do dedo indicador, uma queimadura. Alto e magro, pertencia à Câmara dos Lordes, relógio
de bolso em ouro, luvas escondias no bolso esquerdo.
– Good morning, MiLady.
Atrevia-se a estender a mão, mas não conseguia pedir a mão dela para ser beijada, ambas estavam
por entre os braços. Volta a segurar na cartola, ela não deveria saber o significado de etiqueta.
– Em que posso ajudar, Sir?
– MiLady, o seu nome é Pauline Tigher?
Mais um nome que encarnou. Só esperava que aquela mulher não tivesse também uma família
com dívidas ou que fez algo ao estado inglês.
– Sim.
– Venho informá-la que está proibida de cá viver.
– Sobe que acusação?
– Seu pai fez um lamentável crime. Tem cerca de vinte e quatro horas para abandonar este país.
Fez, acabou de se condenar por causa de um nome inventado, de uma passagem comprada para
uma estalagem sem importância. Aquela mulher era pior que as outras, filha de um assassino
odiado. O que ia fazer? Entrar com documentos falsos também era considerado crime.
– Vinte quatro horas… Bom prazo. – caminha para as escadas.
– Já vai, MiLady?
– Deu as horas, tenho que obedecer.
O ministro estava confuso, aquela jovem não teve uma boa educação, muito mal-educada.
– Valentina Daylux…
O pé range no degrau das escadas. Outro homem, outra mulher, outra pessoa condenada. Aperta
com força a madeira do corrimão, não conseguia ser tantos nomes ao mesmo tempo. Nasceu com
apenas um e a sua invisibilidade começava a perder o efeito.
Vira-se e desce as escadas.
– Daylux? Não, ela chama-se Tigher. – o ministro comenta ao se aproximar – É um engano,
detetive Bogges.
– Lamento informar que esta mulher é Valentina Daylux. – mete um cigarro à boca e olha para a
mulher – Verdade ou mentira?
O ministro também vira o rosto, estava confuso com aquela informação. A verdade, é que não
era nenhuma delas, nem Kiara podia ser por causa das dívidas. Mas também não lhes podia dizer
o nome verdadeiro, não os podia matar ali mesmo por serem muito conhecidos pelo público, além
de ela ser imediatamente suspeita. Causa natural estava fora de questão, não conseguia fazer duas
mortes ao mesmo tempo.
– O que quer, detetive?
– Soube pelo inspetor que dois homens morreram nesta estalagem… – olha em volta – Ambos
tinham falado consigo. Não é suspeito logo a seguir, num espaço de uma semana, morrerem dois
homens e na semana seguinte, outro?
Touché. Certamente que alguém abriu a boca e apontou o nome dela como suspeita. Nome não,
apenas deu a descrição ideal para ser suspeita. Porquê? Porque esteve com Chester antes de

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Sete Nomes

morrer, porque falou com Marchel antes de morrer, porque esteve no quarto de August antes de
morrer. Três homens mortos pela mesma mulher, com necessidades diferentes e locais
semelhantes. Sem testemunhas, sem provas incriminatórias. Podia ter as suas dúvidas acerca dos
dois homens mortos ali, mas a morte de Chester, nada a indiciava.
– Digamos que não tenho culpa do que acontece com os meus vizinhos. Se a sua mulher morrer
ao entrar por aquela porta e eu tenha dito um simples olá, certamente que a culpa não foi minha.
O detetive apaga o cigarro no balcão de madeira. Rachel tenta ver que podres ele escondia por
debaixo do casaco negro. Não era casado, não existia aliança no dedo ou marca dela. Tinha um
filho, usava o nome dele ao pescoço, na medalha de prata com a imagem de cristo. Trinta e sete
anos, barba feita à pressa, noite mal dormida no quarto que fedia a uísque. Cabelo negro cortado
pela empregada, só ela é que tomava conta do filho. Precisava de dinheiro, o olhar desconfiado
tentava encontrar provas no corpo dela, algo que a denunciasse. Estatura média, vinha da Escócia
e vivia perto das fábricas têxteis, tinha tinta nos sapatos engraxados. Tentava se destacar, ser
amador naquela cidade era fácil quando se pagava aos órfãos da rua para seguirem as pessoas.
– Posso revistar o seu quarto, MiLady?
– Não.
– Estou confuso, é a MiLady Tigher ou não? – o ministro pergunta.
– Não.
– Qual é o seu verdadeiro nome?
– Muito curioso detetive?
Aproxima-se e sente o aroma dela.
– Perfume francês. Quem o pagou?
O olhar vira-se para o rosto muito próximo do seu. Inteligente, não se daria como perdedor num
jogo de sombras.
– Se me permite, vou buscar os meus documentos.
– Duvido que o faça, irá fugir pela porta detrás.
Sorri ao aproximar os lábios aos dele.
– Não há nenhuma porta detrás. Ainda não tenho asas para voar e não quero problemas neste país.
Fique aqui à espera dos documentos ou pode simplesmente pegar no colar e sentir o nome do seu
filho, só para sossegar.
O olhar dele fica vidrado, como ela deu conta desse tique que nem fez? Beija-lhe os lábios antes
de subir as escadas. Bogges mete as mãos aos bolsos e suspira, não gostava de mulheres
provocadoras.
Aquele dia amanheceu da pior maneira possível. Abre a porta do quarto e despe o robe ao tirar
debaixo da cama a mala fechada por dois cadeados. Os dias de paz acabaram de acabar, agora
seria procurada pelo crime de falsa identidade. Malditas mulheres que existiam, malditas famílias
problemáticas que ateimavam em arruinar Londres. Arruma as botas com as lentes e a carta, não
tinha mais nada valioso naquele quarto. Veste o casaco roxo, coloca um chapéu negro na cabeça
e arruma o relógio na mala antes de a fechar. Ia embora sem se despedir da hospitalidade? Espalha
a pólvora seca do mosquete no chão, fazendo uma linha que acabava no balde com óleo de baleia,
ficou ali em caso de ela precisar de alimentar a candeia à noite. Coloca a vela ao pé da cortina que
balançaria ao sabor do vento e incendiaria o rasto deixado.
Bogges vai ao relógio de bolso, cinco minutos já tinham passado. Vira o rosto para o ministro
que já se servia de chá na sala de estar. Onde estava a mulher com os documentos? Parecia muito
decidida em mostrar a sua verdadeira identidade, mas acabou de dar uma escapadela muito
suspeita. Faz sinal para a dona, ia subir. Lentamente, para os degraus a ranger não serem audíveis.
Retira da algibeira o mosquete, um som estranho percorria o corredor do segundo andar. Baixa o
braço e aproxima o ouvido à madeira da porta, o que seria aquilo?

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Sete Nomes

A cabeça vira-se ao sentir o estrondo que assusta quem caminhava nas ruas. Uma nuvem de fumo
começa a intoxicar ainda mais o ar já poluído. Os vários rostos pálidos tentavam entender o que
aconteceu na estalagem Better Time. Uma explosão, talvez algum hospede não tenha tido o devido
cuidado com a caldeira de água quente. Os palpites eram lançados ao ar como se fosse dia de
feira, vendiam aos curiosos as mil e uma formas de fazer uma explosão.
Rachel sorri ao olhar para a frente e seguir caminho, só esperava não ter matado o pobre detetive
ou o ministro. Talvez tivesse mais pena da prostituta, foi a única que não a tentou tramar. E agora,
quem era o culpado?

O segredo para um bom assalto era o movimento de pés. Quanto mais rápido e mais ágil fosse o
pugilista, mais descuidado ficava o oponente. Quem ia ao Box lutar não percebia nada de boxe,
ia lá apenas para ganhar por sorte. Não sabiam o jab, hook, uppercut, direto ou cruzado. Mal
conheciam o knockout, muito menos o sparring, o começo de muitos pugilistas amadores. Phill
aprendeu aos poucos, tinha na mente os cuidados a ter para não sair com um nariz partido ou um
pé torcido. Tentava ensinar tudo a Yves, ser melhor que o mestre bêbedo que veio de Philadelphia
e construiu o Box Dead quando ficou sóbrio.
Naquela manhã, só porque Abie estava com os dias vermelhos, Phill decidiu dar um dia de
descanso e treinar o aprendiz que parecia ainda estar a dormir. Com as mãos enlaçadas, testavam
o sparring, ou seja, uma luta simulada entre os pugilistas. Nessa luta, estava decidido os golpes,
quem ia ganhar ou perder, onde deviam de acertar e como devia de parecer real. Claro que nem
sempre apareciam pessoas na arena para lutar assim, quando era de verdade, alguém saía
magoado.
Yves tinha os punhos levantados, seguia os passos do mestre que, não dobrava o tronco para
atacar por baixo. De vez em quando, esticava o braço para ver se ele se desviava. Sorri ao ver a
atenção dele, como trincava a cortiça nos dentes com força, não queria arrancar outro dente.
Respiração acelerada, suor na testa e força naqueles punhos mortinhos para lhe bater.
Nas escadas, Abie descascava os feijões para o almoço. De vez em quando, ria do colega de
quarto. A confiança dele era o que o descuidava, nos combates marcados ficava sempre com os
mais fracos ou quase cegos, só para não levar um murro no rosto e cair no chão a pingar sangue.
– Quantas flexões fez ontem? – Phill pergunta.
– Cento e um. Estava quase a morrer. – Abie comenta sorridente.
– Cem? Isso é pouco, precisavas de duzentas.
– Eu sei porque o boss mandou fazer isso, não queria que espreitasse pela fechadura da porta.
– Privacidade Yves, sabes o que isso significa? Já não basta espiares a Abie no banho.
O olhar dele vira para o rosto que parecia surpreso com essa novidade. Baixa os punhos e tenta
negar, não queria que ela ficasse zangada.
– Não acredito! – bate o balde no chão.
– É só às vezes. – retira a cortiça da boca.
– Pensei que eramos como irmãos!
– Desculpa, o boss deixa-me curioso…
– Agora eu sou o culpado? Yves, tens todo o tempo do mundo para conheceres uma mulher. –
compõe o tecido no punho – Tens que conhecer os truques para agradar, como não a engravidar…
– trinca o nó dado – Não penses que é fácil na primeira noite.
– Foi difícil na sua?
Assente ao desapertar o nó, a mulher deixou-o tão envergonhado que fez tudo rápido demais.
Mais tarde aprendeu que rápido significava asneira e irresponsabilidade.
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Sete Nomes

– Quando fizeres anos, tratamos disso.


– Ainda falta.
– Então até lá, cuida da tua saúde.
Quando olha para o mestre, é agarrado pela virilha e pelo ombro e, erguido um pouco no ar, é
atirado contra o chão. Yves fica estendido, a olhar para o teto do Box, com um rosto de que estava
morto de dores. A boca aberta nem conseguia gritar, o suposto era não perder a concentração.
– Continuas o mesmo! – Phill ri ao abrir a porta e sair da arena – Abibatu, ele ainda não te violou,
porque no dia em que o fizer, vai ter que desaparecer de Londres. – senta ao lado.
– Pensei que era respeitada. Afinal, não passo de uma escrava.
Coloca o braço no ombro dela e aproxima-a do peito nu.
– Confias em mim, Abie?
Assente, devia-lhe a liberdade e o conforto.
– Só o apanhei uma vez a espreitar. – fala baixo – Na idade dele, eu era apanhado a fazer dívidas
e a roubar. O meu mestre puxou-me a orelha até ao teto e disse “Tens tomates para outras merdas
que não estas!” Não aprendi muito, continuo a fazer dívidas. Yves está só na idade da curiosidade,
depois de uma noite e não vai querer pensar no assunto.
– Acha?
– Ou vicia. Temos que lhe dar a volta.
Olha para Yves a sair da arena, talvez o facto de viver na curiosidade aumenta-se esse
atrevimento.
– Vais dar banho?
– Vou boss.
– Tem cuidado com o cabelo, vais ficar ruivo outra vez.
Sabia disso, mas naquele momento só queria a água quente na banheira para aliviar as dores.
– Vês, é uma criança ainda. Se ficar igual aos cavalos bravos, capo-o. – sorri.
Abie fica arrepiada, uma vez viu um burro a ser capado e ficou repugnada.
– Ainda com dores?
– Tomei um chá. – pega no balde.
– Não tens de ter medo de falar-me disso. Não sou mulher… – coça a cabeça – Não sei lá muito
sobre o assunto. Mas, sangue igual a não gravidez. Sangue igual a fertilidade, segundo um médico
qualquer da rua. Apenas fica à vontade.
– Eu sei.
– Quando uma das minhas ex teve isso… Ela disse que as mulheres não falavam sobre o assunto.
Outra coisa tabu. Sou homem por isso… Deve ser diferente, acho. Deve ser estranho falar sobre
essas coisas femininas. Quer dizer, se fosse mulher não chegava ao pé do meu patrão e dizia…
Porque o meu peito dói?
A rapariga vira o rosto, sentia-se embaraçada com aquela descriminação feminina.
– Sabes que mais, esquece o que disse. – levanta e sacode as calças – Qualquer coisa, diz.
Assente com os olhos arregalados, aquele homem não parecia dentro da sociedade fechada.
Um grito é dado quando o corpo ressalta. Phill apoia a mão no corrimão e coloca a outra sobre o
peito.
– Queres que morra, Boston? – fala ofegante.
– Parece que viste um fantasma.
Não viu, apenas não estava há espera dela no cimo das escadas, com uma mala na mão. Avisou
de manhã cedo que não passaria pelo Box durante a semana, tinha que chegar a outro nome. Phill
até nem reclamou, também ia andar ocupado a arranjar dinheiro. Agora estava ali?
– Não ouviste a conversa… Intima… Pois não? – faz sinal com os olhos para Abie.
– Ela tem razão, não falamos disso, muito menos a um homem.

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Sete Nomes

– Não sou um qualquer. Vais dizer-me que não tens dias vermelhos? – coloca as mãos atrás das
costas.
– Como disse, não falamos disso a ninguém. – desce as escadas.
Volta a fazer sinal e então entende o que ele queria sobre o assunto, a escrava estava com o dito
período. Tose ao sentar no degrau ao lado dela e pousar a mala ao pé do balde. Abie vira o rosto
intimidador e sorri para não parecer esquisita.
– Quando te veio?
– O quê? – quase murmura.
– A coisa vermelha que fica nos calções.
O olhar dela é levantado para o patrão que fazia sinal para não ter receio da conversa, ela deveria
de ser perita nisso.
– Há três meses. – fala com alguma timidez.
– Deu muitas dores?
– Tive algumas, pensei que ia vomitar algo. Gritei quando levantei da cama e vi sangue.
– Eu expliquei que era uma coisa de mulheres.
Rachel vira o rosto para Phill, ele explicou algo que era intimo? Algo que nem as mães falavam
às filhas? Ele, que era homem?
– Não fiques tão admirada, não sou burro. Achas de Margaritta não tinha isso? Era sempre sinal
de que não engravidava, foi o que me disse. – coloca a mão no queixo – Como ela sabia isso?
Sabedoria italiana é outra coisa.
Assente confusa, nunca viu um homem tão aberto ao assunto.
– A mim… – vira o rosto para a escrava – Veio quando tinha dezassete. Também fiquei com
medo, não sabia de onde estava a sangrar. Então, a minha tutora disse que nós somos iguais às
rosas, dias vermelhos duram pouco e significam que estamos bem.
– Então é normal?
– Sim. As mulheres não contam quando têm, tentam ser discretas nisso. Sabes que sangrar na
nobreza significa impureza. Então, quanto menos falares sobre o assunto, melhor.
– Isso não ajuda, depois ela tem dúvidas, e as dúvidas fazem mais dúvidas e uma enorme bola de
neve aterra aqui. – Phill fala ao fazer sons – E eu fico preocupado.
– Tu és o patrão dela, não o pai, nem a mãe. Se tem dúvidas, que as descubra sozinha, eu também
as descobri.
– Como por exemplo? – cruza os braços.
– Por exemplo… – tenta pensar em algo – Bem… Agora não me lembro.
– Fala do peito, porque incha e dói?
– Phill! – levanta subitamente – Tu nem tens peito.
– Abie tem.
– Se dói é porque… Porque… Por causa daquilo.
– Porquê?
– Não sou perita na matéria. Apenas sei que há coisas que nos mudam e o sangue é sinal disso. O
que queres que lhe explique? Não falamos sobre isso, não sabemos nada sobre isso. Não sabemos
porque vem, porque Para, quando volta a vir… Se vem… É como o sexo, não sabemos quase
nada sobre o assunto, apenas que se engravida após aquilo.
– Mas, se fazermos como eu faço, esse risco diminui.
– Eu não sei quem te ensinou essas coisas, mas só sei que não pertences a este mundo. – pega na
mala.
– Não és a primeira a dizer-mo. – segue-a.
Os homens não queriam saber das mulheres, viam-nas como objetos de prazer e procriação.
Jamais se sentaram na mesa e perguntaram se estavam nos dias vermelhos, ou se sabiam como

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Sete Nomes

engravidavam. Tinham de estar prontas para casar e serem o que os maridos quisessem que
fossem, mudas, submissas e nada mais. Uma mulher com asas era deixada na rua, sem herança
ou título familiar.
– Vais de viagem?
Rachel pousa a mala sobre a cama após abrir a porta do quarto.
– Fui apanhada. – vira-se.
Phill espreita para o fundo das escadas, Yves estava no outro lado do Box e Abie não se dava ao
trabalho de ouvir as conversas.
– O que aconteceu? – fecha a porta à chave.
– Pauline Tigher é filha de um assassino e tem vinte e quatro horas para desaparecer de Londres.
Valentina Daylux acabou de explodir com o quarto da estalagem, com o ministro e o detetive
Bogges no primeiro piso. Kiara Armstrong tem dívidas e está fugida dos pais. Ser Rachel Clarel
não é uma opção.
Sem palavras, ouviu três nomes diferentes e… Uma explosão? Nunca conheceu uma mulher tão
problemática como ela, estava apenas há três semanas e já tinha feito quatro mortes, uma explosão
e uma fuga.
– Vieste para cá?
– Fugi pela janela, tive sorte de ter testado bem as rotas de fuga. Se não me quiseres aqui, vou
embora. – pega na mala – Já tens problemas que chegue.
– Tu nunca és um problema. – sorri – Só estou admirado por ser a tua primeira escolha.
– Acho que ninguém me vai vir procurar aqui, debaixo do teto de um devedor com dois hóspedes
que os trata como filhos mais novos que nasceram ontem. Não foi a primeira escolha, foi a última.
Dá um longo assobio, e era assim que se pagava a ajuda dada.
– Gosto que eles se sintam bem comigo e não me vejam só como o patrão, também posso ser
irmão, pai, mãe, tio, avô… Qualquer coisa.
– Envergonhas a pobre da Abie com esse assunto intimo.
– Só tento ajudar, ela nunca teve mãe e foi vendida muito nova. O que querias que fizesse quando
lhe veio o sangue? Que dissesse que ia morrer?
Maior parte das vezes era isso que diziam, que estava perto da morte. Pelo menos, a única amiga
que ia a casa dela contou que quando lhe veio o sangue, a mãe disse que ela estava preste a perder
a vida. Rachel tentou sossegá-la ao explicar o mesmo que lhe explicaram.
– Dizias que não sabias.
– E ela quereria ir ao médico e passava uma enorme vergonha. Mal por mal, melhor assim. Nem
tem nada de estranho, os homens têm as suas coisas, as mulheres têm as dela. Se me perguntasse
por onde saiam os filhos, era capaz de nem saber ao certo, nunca vi um a nascer.
Ela também não, talvez quando chegasse a hora soubesse.
– Fico ou não?
– Fica Rachel, my house, your house. – salta para a cama.
Pelo olhar dele, tê-la por perto significava mais noites juntos. Nisso os homens não mudavam.
– Regra um, quero uma cama.
– Tens aqui uma. – bate no colchão.
– Noutro quarto. – revira os olhos.
– Yves dorme com Abie. Queres ficar na dispensa?
– Aqui cabe uma cama, se tirares aquele baú dali.
Ergue a cabeça e olha o baú ao pé da parede, mesmo em frente ao armário fechado por precaução.
– E cama para ti?
– Compra uma.
– Sem dinheiro, cherry. – deita a cabeça e fecha os olhos.

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Sete Nomes

Sobressalta ao sentir uma bolsa com dinheiro. E agora, qual era a desculpa para não ter uma cama
ali? Sente o peso das moedas, quantas seriam?
– Antes que faças contas, são quarenta libras, trezentos pences e cem xelins.
– Não devias de andar com tanto dinheiro na mala. – fica com um enorme sorriso no rosto.
– Ainda não viste o cheque com dólares.
Dólares? Dá um longo suspiro, uns nascem ricos, outros nascem pobre.
– Mais alguma coisa, MiLady?
– Sim, preciso de um lençol para dividir o quarto…
Faz sinal para parar de falar.
– Rachel, isto já é pequeno, queres que fique minúsculo?
– Não quero ter que olhar para ti todas as manhãs ou todas as noites. Tenho os meus segredos,
gosto da minha privacidade e respeito é uma regra.
– Respeito? Tu ontem mandaste o meu pai passear para vires para a minha cama. Ainda tenho as
unhas nas costas. Que respeito é esse?
– Foi para aliviar a dor.
– O prazer é sempre melhor. – murmura sorridente – Ainda sentes dor?
Pousa a mala e faz um gesto, nem teve tempo de ver se os pontos ainda lá estavam, teve que
pensar rápido.
– Pronto, só por seres minha convidada, vou obedecer. Cama, lençol…
– Armário, roupa, banheira…
– Usa a minha, as banheiras são muito caras.
– Está bem. Quero que Yves fique longe do segundo andar e que a carne não venha do Twenty
Two.
– Yves é só curioso e nunca vem cá em cima. Desse talho não entra nem os ovos das galinhas, só
comemos o melhor.
– Depois, tu deves respeitar-me. Nada de beijos, nada de espreitar para me ver nua, nada de dar
banho comigo, nada de me chatear e nada de voltar a dormir comigo.
Phill sentia-se censurado até de respirar para não a incomodar.
– Entendido?
– O que eu posso fazer contigo?
– Falar.
Faz um som de ficar contentado com o pouco que sobrava da lista.
– Mais alguma coisa?
Rachel pensa ao olhar em volta, o quarto era maior do que aquele que tinha na estalagem.
– Sabes o que é proibido de dizer?
Levanta da cama e alonga o braço antes de apanhar a túnica.
– Rachel. Por cá és Boston. Fica sossegada, nem ao diabo conto as minhas ideias. Vou tratar da
tua lista de compras, não quero que a queen Boston fique desconfortável no meu castel.
– Não fazes mais que a tua obrigação.
Ri ao sair do quarto, a sua obrigação era pagar o que devia e não dar ouvidos à amante que agora,
virava nariz empinado. No lugar dela fazia o mesmo se estivesse preste a perder a liberdade. Pelos
menos exigia um quarto para a sua privacidade. Mas ali, só a dispensa estava livre se os ratos não
andassem por lá. Sentia que as noites ainda iriam ser longas, o que o capricho humano não muda?

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Sete Nomes

Capítulo 12
Animais, sem civilização, sem modos, sem bases na etiqueta simples para uma boa conduta à
mesa. Nada, nasceram no mato, comiam como os lobos, devoravam as presas a sangue frio e
quase espichavam o sangue. Nunca comeu ao pé de pessoas sem civilização, onde os talheres
eram substituídos por mãos e facas por dentes.
Rachel estava sentada no canto da mesa polida de madeira. Segundo ouviu, aquela mesa foi onde
Charles I foi cozido depois de a cabeça ser cortada. Porquê comer na mesa de um morto? Valia
dinheiro e isso é o que importava. A louça também era de requinte, cinco copos de cristal, sete
pratos de porcelana, travessas de prata, talheres de cobre e panos de linho. As cadeiras eram
almofadadas e vinham da Índia. No fundo, a pequena cozinha com uma lareira pequena, um
armário com alguma louça e uma janela virada para o beco, tornava-se acolhedora, requintada e
cheia de simplicidade luxuosa. Até o candelabro era de cristal, vindo de um castelo belga, tal
como o tapete floral do Egito.
O que estava errado? Os potes negros ao fundo da lareira, sobre o chão de pedra branca. A banca
de cimento com a torneira a pingar para o ralo, o presunto pendurado ao pé do único quadro da
parede pintada de amarelo. E claro, o dono da casa com dois animais esfomeados que comiam
como se fossem pobres acabados de sair do beco.
Era a única que comia com os talheres, que tinha o pano sobre as pernas e limpava a boca para
beber a água. A única que deitou pouco ao prato e comia lentamente o jantar. Os restantes, comiam
com as mãos as partes do frango assado da brasa, lambiam os dedos, pegavam nos copos sem
limpar a gordura, arrotavam sem licença, comiam de boca aberta e ainda falavam alto. Rachel
sentia-se… Longe de casa.
– Estás bem, Boston? – Phill pergunta ao pegar numa batata com a mão.
– Os talheres são acessórios na mesa?
O pugilista baixa o rosto para a faca e o garfo. Faz uma careta, às vezes até se esquecia de como
os usar.
– Olha, estes dois gostam de comer carne com a mão. É mais fácil que chegar lá com a faquinha,
com o garfinho… – faz gestos disso sobre a carne – Depois salta uma ervilha, uma cenoura…
Essas coisas são para os ricos como tu. Sentaste, deitaste pouco e comes como se tivesses algo
nos lábios. Sabes… Abre pouco. – imita.
Bate o pano na mesa após ouvir os risos que se cessam.
– Tu és um príncipe, mesmo bastardo, tu és. Devias no mínimo ter modos, não seres um animal
selvagem. Etiqueta não tem classe social no momento de ser educado.
– Boston, passei o dia acartar as tuas ordens. “Lençol aqui… Lençol ali… Tapa isso, deixa
aquilo…” No mínimo, deixa-me comer como quero, com os dois animais como eu, com o frango
que fui comprar…
– Com o meu dinheiro!
Sim, coça a cabeça ao assentir. Se não fosse a pequena contribuição que deu para a renda, iam
comer raspas de presunto com pão de há dois dias.
– Não gostas da refeição? Até há leite creme.
– A refeição não é um problema. Já olharam em volta? Mobília e louça requintada. Não encontro
nem um pouco de etiqueta.
O pugilista bebe o vinho, mulheres, quanto mais exigiam, mais dores de cabeça davam.
– Pronto. – bate o copo – Vamos comer como a dama quer, para ver se deixa de dar ordens.
– Eh… Boss. – Yves reclama.
– Vamos lá. Garfo na direita e faca na esquerda.

86
Sete Nomes

– Ao contrário. – Rachel corrige.


– O mesmo. Arrotar, digam licença, limpem esses dedos gordurosos e comam de boca fechada.
Eles entre olham-se, estavam habituados a comer como queriam, sem manias chiques ou
limitadoras. Tentam partir a carne, separar o osso duro ou colocar nos dentes do garfo o que ia à
boca. Tentam até comer uma ervilha. Do nada, a força obriga a comida cair sobre a toalha branca,
lá se vai o copo de cristal contra o chão, mancha o tapete que era difícil de lavar. O som da faca
riscar a porcelana fazia a alma arrepiar.
– Chega! – Rachel bate na mesa – Animais! – caminha para a saída.
Olham para Phill com ar de que aquela hóspede não ia ser fácil de aceitar.
– Isto passa-lhe. – limpa a boca ao pano.
– Acho que ela só quer sentir-se em casa. – Abie comenta.
– Não, esteve tempo a mais sozinha e rodeada de pessoas civilizadas. Acredito que ao comermos
assim, relembramos-lhes uma ferida por fechar.
– O quê?
Vira o rosto para Yves.
– A infância num orfanato duro e cruel. Eles comiam assim lá. Vi isso no olhar dela, a dor que
lhe causávamos ao sentar na mesa e comermos como se fossemos animais.
Sentiam-se triste, ambos cresceram com pequenos traumas e não gostavam de os relembrar. Se
soubessem da dor dela, teriam tentado comer como pessoas civilizadas.
– E agora, boss?
Dá de ombros, todas as dores passavam com o tempo.
Lentes, andou o dia inteiro a pensar do que isso tinha haver como o próximo da sua lista. Seria
astrónomo? Nem sabia como as usar, pareciam sem graduação. Alinha-as e levanta no ar. Não
aproximavam ou distanciavam. Desfocavam. Aproxima e afasta, talvez na posição certa
revelassem algo. Sente passos nas escadas, Phill voltava para o quarto. Arruma as lentes dentro
da mala, fecha e empurra-a para debaixo da cama. Ao ouvir o trinque da porta, deita a cabeça e
fecha os olhos.
O pugilista repara na vela acesa no lado dela. O lençol dividia as duas camas ao meio. No lado
da janela, o espaço dele com a cômoda, a cama e a mesinha, num aperto de dar aflição. No lado
da porta, o dela, com a cama estreita, um armário e a mesa com espelho.
Pousa a chave na mesa e espreita por cima do cobertor. Não dormia, fingia dormir só para não
falar sobre o que aconteceu.
Despe o casaco e retira a túnica na sua parte. Puxa o lençol e já não a via. Nunca se sentiu tão
sufocado no próprio quarto. A cama estava contra a parede, mesmo por debaixo da janela. Ao
fundo, a duas gavetas da cómoda, perto do chão, estavam privadas de correr por causa do colchão.
Tinha a sorte da mesinha ficar rente ao lençol, ou até isso era retirado. Descalça as botas e vira o
rosto para o mover dela para debaixo da cama. Podia não a ver com nitidez, mas a chama da vela
criava a sombra.
– Ignora Phill. – murmura ao retirar a túnica.
Tinha que se habituar ao desconforto.
– Amanhã a Abie vai acordar-me, tenho que passar no banco para saber em quanto está a dívida
do Box.
Rachel vira o rosto para o lençol. Ainda não se deitou e deu conta da sua sombra. Apaga a vela
e desiste de mexer nas lentes.
– Logo que não me acorde, não há problema.
Não, a empregada tinha um dom nato de entrar sem ser ouvida. Felinos negros de África, o único
elogio que nunca a ofendia. Despe as calças, ainda se ia arrepender de dormir só com a roupa
intima, as noites estavam frias.

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Sete Nomes

– Se alguém vier cá, principalmente o meu pai, diz que morri. – deita na cama.
– Eu não os recebo.
– Podias. – vira-se para o lençol – Agora pertences aos problemas da casa.
Rachel vira-se também, o que estava a insinuar? Que a dívida dele também era sua?
– Fica a saber que os teus problemas não são meus.
– Mas ajudas a pagar, certo?
– Eu pagava quarenta pences por noite. Quanto queres que te pague?
– Quarenta libras.
Fica muda, isso era um balúrdio pelo lugar sem condições. Se fosse um hostel até podia reclamar,
aquilo não passava de uma enorme taberna com dois andares, uma cozinha requintada com
animais selvagens, um quarto nos fundos e uma casa de banho estranha onde a sanita estava ao
pé da janela. Melhor que nada, na estalagem nem tinha banheira ou sanita.
– Pago o mesmo que pagava na estalagem.
– Está bem, queen. Fiquei a saber que o detetive Bogges ficou hospitalizado. Levou com a porta
na cara e está mal de um ouvido. O que usaste? Um barril de pólvora?
Antes fosse, se tivesse isso, mandava a estalagem abaixo.
– Óleo de baleia e pólvora.
Phill estava admirado, que suicida.
– Agora, todos andam atrás de ti, Valentina Daylux. Uma vez conheci uma slut com esse nome.
– Tens a coragem de me comparar a uma galdéria?
– Não, és mais que isso. Hoje provaste ser um nariz empinado que deu banho de espuma, com
toalhas de seda, chinelos de pelo e sabão de mel. Para limpar os pontos, algodão e brandy. Já para
não falar que reclamaste da forma como Abie lava a roupa. Sabes quantos dias demora a secar?
– Se não sabem viver, alguém tem que vos ensinar.
– Nós somos pobres! Não podemos viver como ricos na miséria que vivemos. Aquele luxo todo
lá em baixo foi ganho através de combates. Já te perguntaste se isso não custou a ganhar?
Muda, parecia estar deitada a ouvir Jason a gritar por causa do jantar a qual atirou vinho ao rosto
de alguém.
– Se tu és assim tão… Irritante, é bom que vás embora. Pensei encontrar alguém como nós, não
uma nobre perdida na sua dor.
Phill levanta o tronco ao ouvir a porta bater. Suspira, acabou de a ofender. Também não podia
ouvir as verdades. Feita de vidro e ainda tinha estômago para matar.
– Americanos… – levanta da cama – Porque raio aquele navegador chegou à América? Não podia
ter dito que não tinha nada lá? – veste o robe – Não, We found a new India. Now, let´s go building
a new kingdom.
Se soubesse que ela ia ser assim tão problemática, tinha-a deixado ir à sua vida naquele beco, no
dia em que Jack morreu. Mas não, Phill quis ficar preso à misteriosa mulher. Agora pagava pelo
erro.
Nem ali podia contar com alguém. Avisaram, fartaram-se de avisar que Londres já não é o que
era, tudo mudou desde que Victoria subiu ao trono, os georgianos renderam-se aos vitorianos,
adaptaram as vidas atribuladas pela censura da sociedade. Depois de George IV, Londres morreu
e renasceu misteriosa, cheia de pessoas que se dividiam por estatuto. O proletariado vivia como
um, o burguês vivia como um, o nobre vivia como um. Em Boston, os pobres tentavam imitar os
ricos, até roubavam as roupas mais requintadas e vestiam-nas. Ali, um coitado não vestia nada de
um nobre porque não era o seu dever imitá-lo.
Abre a porta da cozinha e encontra Abie a lavar a louça na pia de cimento.
– Desculpa, pensei que já tinhas ido deitar.
– Não… – passa o pano pelo prato – Só me deito depois de lavar e arrumar.

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Sete Nomes

Dezanove anos… Essa era a idade da pequena mulher que foi salva da escravidão. Fecha a porta
e caminha para a lareira acesa. Com a idade dela já planeava tirar a vida aos homens que lhe
tiraram tudo. Tinha acabado de fazer as tatuagens nas costas, passava as noites no escritório a ler
as cartas cheias de ameaças e aprendia algo mais sobre o trabalho feito pelo pai. Não sabia limpar,
cozinhar ou lavar roupa. Só aprendeu o que não era útil.
– Lembraste da tua mãe? – pergunta ao se encostar à chaminé.
– Não. – pousa o prato e pega noutro – Ela morreu no parto. A minha tia não tinha dinheiro para
cuidar de mim e, aos oito anos, fui vendida a uma nobre da Cidade do Cabo. Sabe onde fica?
– Extremo de África. Colónia inglesa.
– Exato. Trabalhei lá durante sete anos, fui muito maltratada, batiam-me, ameaçavam assassinar,
não davam comida… – limpa as mãos – Quase me violaram enquanto lavava a roupa no rio. O
que me salvou foi uma mulher mais velha que lhe bateu com a vara. Aos quinze sou vendida a
um traficante e acabo numa feira em Londres.
– Pensei que eras do Egito, não és muito negra.
– Os meus pais eram, fiquei com o sotaque deles. E tu? Conheceste os teus pais?
Pergunta difícil no momento mais delicado da sua vida. Os olhos em lágrimas pareciam cristais
à luz da chama. Abie dá conta que fez a pergunta errada, devia antes ter perguntado se gostou do
jantar.
– Desculpa. – volta à louça.
– Vivi com eles até aos dez anos. Nasci aqui, em Londres. Cresci lá, em Boston. Um dia… Perdi
o meu pai na floresta, a minha mãe morreu dois anos depois, vitima da sua dor. Estive num
orfanato terrível e depois de fugir… O advogado do meu pai fica meu tutor.
– Lamento, se soubesse, não tinha tocado no assunto.
– Eu é que toquei. – limpa os olhos – Achas que sou irritante?
Sorri ao arrastar uma cadeira para ela sentar.
– Sabe, eu não sei o que é ter uma mulher cá. Ainda conheci a última namorada do patrão, ela era
mais tolerante, mas não falava comigo, tinha nojo dos escravos. – ajeita a almofada – Tu és a
única que não tem nojo do que eu sou.
– Os negros são como nós, só nasceram com outra cor.
– Nem sempre pensam assim. – senta na cadeira – Phill e Yves são os meus melhores amigos.
Devo muito ao meu patrão, cada centavo, cada pedaço de carne… Os dias em que estive doente
e por ser meu concelheiro. Yves é mais arrogante de vez em quando. Faz muitas perguntas, não
consegue ter respeito… A culpa foi da guerra, ele esteve no campo de batalha e herdou esse feitio
bruto. Phill tenta colocá-lo na linha e teve grandes progressos.
A lenha a estalar na lareira percorre a cozinha silenciosa.
– Nunca o vi tão atencioso como está. Nunca fez o que uma mulher pedia, dizia que eu era a única
exceção. Agora, até foi comprar uma cama para ti.
Sorri, comprou o colchão mais fofo que lá havia. Podia parecer rude, mas fazia mais que os
outros.
– No dia em que discutiram, ele chorou à noite. Andou a semana toda a suspirar. “Como ela deve
estar Abie? Será que precisa de mim? Será que tem dores?”
– É… Também tentei não pensar nele. Esse é o problema de te envolveres com alguém. Não posso
casar com ele, eu sei que vou morrer em breve e a dor dele vai aumentar. Tem o azar de perder
quem gosta, pode nem chorar mais, mas noto o carinho que tem por mim. Não há nada pior que
viver nas sombras de uma dor.
– É assim tão perigoso o que faz?

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Sete Nomes

Logan seria o mais difícil a matar, quando soubesse que tinha sobrevivido ao orfanato, faria de
tudo para lhe colocar um fim. Rachel podia parecer forte, mas não era e sabia disso, que quando
o enfrentasse, morreria como o pai morreu naquela manhã.
– Sabe, sempre podemos mudar o nosso caminho. É o que ele diz. Podemos cair no rio e morrer
afogado ou podemos ir pela ponte e adiar essa morte. Tudo depende de nós.
– Achas que não vou morrer em breve? – olha-a.
– Não devia de estar morta a esta hora? Se não está, se vive para mais um dia… É porque Deus
não quer que morra. Confie nos seus instintos.
Devia ter morrido há treze anos atrás e não morreu. Devia ter morrido na travessia do mar e não
morreu. Chester devia a ter matado e não aconteceu. O Marchel… O assassino que pensou matar
a amante do pugilista… Ato de sorte que ainda a perseguia. Iria longe se soubesse usar isso a seu
favor.
O corpo estremece quando sente Phill sentar na cadeira e acender o cachimbo. Olha de esguelha,
nem deu conta de a empregada levantar e sair. O fumo começa a intoxicar o ar, acabou o momento
de reflexão e acabava de chegar o sermão de quem mandava.
– Mais calma, Rachel?
– Boston.
– Ela já está no quarto e Yves já dorme. Estamos só nós os dois.
– Mesmo assim.
Deixa o fumo sair pelas narinas, como fumar aliviava a alma.
– Fui duro contigo no quarto. Tá, sê exigente, irritante, mandona… Manda o Box abaixo com as
tuas regras. Precisamos de alguma civilização.
Já não queria saber disso, é como se a história de vida da escrava fosse pior que a sua. Perdeu os
pais com dez anos. E? Abie perdeu os dela quando nasceu, foi maltratada, vendida como se fosse
mercadoria. Não encontrou no rosto dela uma réstia de ódio, aquele sentimento vingativo de quem
lhe fez mal. Aquela mimada devia de viver a vida, tinha o que precisava para isso.
– Sim, também estou a fazer-te frente. Não estou habituado a ter uma mulher tão exigente debaixo
da barraca.
– Achas que… Que sou… Burra? Quer dizer, o que faço é estúpido. A minha vida era boa em
Boston, mesmo que me faltasse algo na alma. Desde que comecei a beber e a ver homens a vingar
as famílias que pensei que conseguia fazer o mesmo. No fundo, eu não sei o que faço, não sei
porque estrago a minha vida desta maneira.
Pousa o cachimbo no parapeito da chaminé e respira fundo.
– Rachel, achas que sou burro? É o seguinte, a minha mãe engravidou com dezasseis anos, morreu
com dezanove por causa do meu pai. Meti-me nesta vida graças ao facto de limpar o chão do bar,
aprendi a boxear e fiz muitas dívidas. Achas que devia ser filho do meu pai rico e ir para Viena,
viver naquele castelo luxuoso e ter amantes a qualquer hora? Não sei, mas parece que não sei o
que faço, estraguei a minha vida. E agora? Vou ao castelo, bato à porta e digo “Pai, tinhas razão,
eu nasci para ser teu cão.”
– Isso não faz sentido, não no momento em que gozas comigo. – fica séria.
– O que estou a tentar dizer-te é que não podes voltar atrás do tempo ou aceitar a escolha mais
radical da tua vida. Se achas que fazes o certo ao vingar, vinga. Se achas que só assim dormes
descansada, vai em frente. Eu não troco os meus pesadelos por sonhos manipulados. Estes eu sei
as consequências. No outro, ando de olhos vendados.
O olhar dela estava cheio de lágrimas, a chama iluminava aqueles cristais que Phill queria
segurar. Sofria com o que fazia e não fazia. Sofria com o passado e o presente. Sozinha, perdia a
sua consciência e cometia as maiores crueldades. Acompanhada, a vida tornava-se frágil demais
e o medo percorria o corpo. O que nos tornava fortes? Phill levanta e abraça-a, o que a tornava

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Sete Nomes

forte era a solidão, passou muitas noites no quarto, a enfrentar os medos na escuridão. Como ia
ser feliz se nem isso conseguiu ultrapassar?
– Only the hearts breaks sometimes. Cry on my shoulder, black sparrow. Remember, the sun
always born.
– Ice hearth?
– Não, Black Sparrow.
Sorri, ele tinha sempre uma música para preencher a alma, nem que fosse feita no momento.
Agarra-se bem ao peito dele, sentia um enorme conforto, é como se o seu calor a livrasse da dor
interior. Não conhecia mais o sinónimo do mimo, mal se lembrava da vida magnifica que teve até
aos dez. Com ele, aprendia a ver o que realmente a vida era. Debaixo dos tetos de madeira,
famílias pobres davam valor a outras coisas. Debaixo dos tetos de vidro, o pouco se tornava o
essencial. Tudo ou nada, ir em frente até ao fim era uma lei imposta pela determinação. Contrariar
era um crime. E crimes deviam de ser evitados.

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Sete Nomes

Capítulo 13
Os bancos tinham sempre uma enorme correria, quer de manhã, quer à tarde. Só fechavam portas
ao domingo. Eram peritos em emprestar dinheiro e cobrar a altos juros. Os nobres que lá
trabalhavam, muitas vezes, faziam de tudo para que os clientes não pagassem, assim cobravam a
casa, os terrenos e colocava-los na rua. Eram tantos os banqueiros que, Londres não sabia se
suportava. A alta burguesia comandava, dava as cartas para jogar e não diziam os trunfos. O
proletariado já sabia como era estar nas mãos de quem mandava mais que os outros, dependiam
disso para sobreviver. Um dia, talvez fosse o contrário.
A fila estendia-se até à porta, dia de contribuição para o estado real. As mulheres tinham nos
braços os cestos, levavam pela mão os filhos pálidos da fome que passavam. Homens com sacos
às costas, esqueciam-se que o antigo regime feudal já tinha passado. Recém-casados que
depositavam a primeira conta da vida e a última, se não a soubessem gerir. E os burgueses com
letra pequena, deviam as lojas de pouco rendimento aos grandes, nem todos nasciam para aquilo.
Phill estava atrás de uma velha que vinha de Manchester. Segundo ouviu, o filho morreu e não
havia dinheiro para o funeral. Levava na cesta uma galinha e sete pães para convencer o banqueiro
a ajudar. Até para morrer era preciso pedir um empréstimo. Vira o rosto para Rachel, que levou
um chapéu com um véu negro por causa de ser procurada. Parecia cansada de estar na fila que se
estendia até ao próximo posto de correio. Ainda nem era meio dia e já sentiam na pele a hora de
ponta.
– Devia ter trazido o Yves, assim fingia que era meu filho.
– Ele tem dezanove anos.
– Sim, mas não achas que passa por um de dezasseis anos? Ainda não viste nada.
Ela não duvidava das falcatruas que ele fazia para pagar menos. Yves tinha um rosto muito
infantil, a estatura baixa passava-o facilmente por outra idade. Não foi, o aprendiz disse que ia
vender carvão para outra zona. Phill também não se importou, com a cabeça ocupada não pensava
em outros caprichos.
Dão um passo em frente, MiLady Daylux andava na boca dos bêbedos e adeptos da taberna. Uma
mulher perigosa, que veio do outro lado do Atlântico e que ia matar mais nobres. Por onde
andava? Desaparecida, escondida em alguma casa amiga. Mas de quem? Ela não foi vista com
terceiros, nada revelou da vida. Quem sabia de mais foi morto.
Valentina estava na rua, de braço dado ao pugilista devedor. O olhar estava sempre atento, o
detetive Bogges teve alta apesar de andar com um ouvido enlaçado. Ficaria surdo por uns tempos.
O Ministro dos Estrangeiros nem se deu ao trabalho de procurar a tal Tigher, talvez ela tenha ido
embora.
Outro passo em frente e a procissão não tinha fim. Só não gritavam para o andor ir mais rápido
porque na terra de homens, deus é dinheiro.
– Já viste quantas pessoas trazem subornos? Só eu é que trago uma mulher.
– Consideras-me suborno?
– Não, um rosto bonito faz sempre a diferença nestes apertos de alma. Vou dizer que estou só
com meses de vida.
– Tens uma saúde de ferro.
– Eu sei Boston, o médico já disse que eu devia de ter morrido de muita coisa. É Deus a proteger-
me.
Nem se dava ao trabalho de comentar, se não morreu, é porque ainda tinha muito para viver.
– Estou farto desta fila. Acordamos às sete para quê? É onze e ainda nem entramos. – Phill
reclama.

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Sete Nomes

– Melhor assim.
Não, quanto menos sabia sobre a sua dívida, mais o seu coração acelerava e o ataque subia a
garganta. O que tanto cobravam às pessoas? A roupa do corpo?
A atenção é voltada para a porta de entrada, uma mulher era arrastada para fora do banco. Gritava
que tinha fome e não conseguia pagar.
– Lamento MiLady, mas a sua casa vai ser vendida sexta. – o banqueiro comenta ao acenar.
Phill aponta o dedo ao olhar para Rachel. Iam fazer-lhe o mesmo, atirá-lo para a lama da rua,
acenar e sorrir para a desgraça.
– Vamos embora, não quero entrar.
Revira os olhos e agarra bem o braço dele, que cobarde.
– És um pobre de rua como ela?
– Não, sou um devedor sem alma como ela. Boston, não terão dó de mim. – fala aflito – Serei
lançado ao rio, vais ficar viúva e os meus amigos órfãos de patrão!
– Queres uma estalada?
Nega ao respirar fundo, estava calmo.
– Anuncio que hoje não aceitamos mais pequenas contribuições. – um homem elegante anuncia
à fila – Só sábado. Tenham um bom dia.
As reclamações aparecem, vieram de longe para resolver a vida difícil. Em menos de um minuto,
os queixosos abandonavam a fila encostada à parede e iam cuidar de outros assuntos pendentes.
Phill também queria ir, mas Rachel arrastava-o para o interior do banco quase vazio. Chegava de
prendas, certamente já não sabiam onde arrumar o que já tinham.
Chegando ao balcão com o homem de costas a rir para outro, toca à campainha com força, cheia
de pressa, irritante demais. O homem faz uma careta ao virar-se e coloca a mão sobre a dela, só
para o parar de ensurdecer.
– MiLady… – coça o tímpano – Em que posso ajudar?
– Quero saber como está a dívida de Phill… – vira o rosto.
– Phillipe de Orange.
– É para já. – sorri ao entrar pela porta atrás.
O olhar dela arrepiava-lhe a alma. Confusa, disse que nunca usou o nome do pai para resolver os
problemas. O que ouviu? Orange, seu antepassado glorioso de restauração da monarquia
parlamentar em Londres.
– Sim Boston, para as dívidas eu uso esse nome. Caso me apareçam com cartas ou guardas, eu
digo que sou Phill Smith.
– Pensei que não gostavas da tua árvore genológica.
– E não gosto. Mas não posso passar fome.
Assente com algumas dúvidas, ainda ia descobrir que ele se passava por príncipe em algum lado.
– Lorde Orange… – o homem sai da outra sala – Por favor, siga para aquela mesa. – aponta para
a outra porta.
O pugilista ajeita bem a túnica passada e com o lenço bem lavado no pescoço. Respira fundo,
quando o assunto envolvia a mesa, é porque o buraco não era pequeno.
– Vamos. – dá o braço a Rachel.
– Nervoso?
– Não.
– Mentiroso, estás a tremer com a mão.
Baixa ligeiramente o rosto e tose.
– Tique.
Sorri, se fosse só tique não estava a soar.

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Sete Nomes

– Phillipe de Orange. – o banqueiro faz sinal para o lacaio sair e fechar a porta – Não te vejo desde
que me pediste dez mil libras.
Magro e velho, devia de comer pouco para gastar muito pouco. Cabelo branco a condizer com o
bigode grande sobre o lábio, o olhar negro devorava a mulher misteriosa que o analisava com
cuidado. Casou duas vezes, a aliança mais apertada foi trocada por uma mais larga, aquela que
tirava quando as amantes entravam pela porta dos fundos. Dois filhos em regime militar, as
condecorações estavam bem escondidas por detrás de um vaso, orgulho e vergonha, talvez um
deles tenha morrido noutro país. Do segundo casamento tinha uma filha, preparava-lhe a boda, o
papel assinado e carimbado confirmava a união milionária. Cigarro francês há mais de uma hora
a queimar no cinzeiro, o jornal ditou o dia azedo.
– Como está, Sir? – Phill senta na cadeira.
– Quem é a cara bonita?
Um pequeno demónio perdido na terra. O pugilista faz sinal para se sentar ao lado.
– Uma amiga.
– Todas são amigas no quarto. – pega na caneta e molha a ponta bicuda na tinta – O que queres
saber?
– Como está o Box Dead?
Pelo olhar longo e o riso sinistro, essa pergunta tinha uma simples resposta.
– A tua amiga correu com o meu enviado.
– Evy não gosta de estranhos.
– Evy… – levanta o rosto – De que casa?
– Moose. – Rachel responde com algum receio.
Desde que as mulheres que inventadas existiam que havia um certo medo de criar mais
problemas.
– Não conheço. É de que cidade inglesa?
– Cidade do Cabo.
– África do sul? Vem de longe. – sorri ao entrelaçar as mãos sobre a barriga – Escolheu logo esse
devedor, MiLady?
– Acho que nenhum dos seus filhos está disposto a casar comigo, não depois do massacre que
passaram em Macau.
O banqueiro olha para trás, para as condecorações recebidas depois dos cadáveres chegarem a
Londres. Poucos conheciam o verdadeiro destino dos gêmeos, não foram só os portugueses a
reclamar o abuso inglês nas colónias da Índia, os holandeses também se deram ao trabalho de
estragar a joia da coroa.
– Quem lhe disse isso, MiLady Moose?
– É Evy, quem te contou isso? – Phill arregala os olhos ao virar a cabeça.
– O padeiro da Picadilly Circus. Comentou muito sobre si quando nos sentamos à mesa para
comer o saboroso scone. Já para não falar do chá com natas, tudo produção indiana. – Rachel
sorri.
O pugilista repara no saco de papel no lixo, aquele homem comprava todas as manhãs o croissant
e caminhava para o banco, onde trabalha o dia inteiro. De noite, voltava lá a passar para levar
para casa o mesmo que pediu cedo. Afinal de contas, tudo se sabia se se pensasse bem ao olhar.
– Verdade. Ele comentou a sua assiduidade.
– Charles devia de fechar a boca de vez em quando. – fica sério e desconfiado – Como o meu
nome foi solicitado?
– Dissemos que íamos ao banco e ele referiu a sua eminencia, como era generoso e bom marido
da segunda esposa, vistos que a primeira morreu de cólera.

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Sete Nomes

Sem palavras, Phill não sabia como ela chegava a essas conclusões todas, mas acreditava no seu
dote para decifrar a vida alheia.
– Uma pena. Inventarão muitas curas, mas esqueceram as piores. – carimba a folha que retira da
máquina de escrever – Quer saber da sua dívida, Lorde Orange?
– Se me fizer o favor. – faz um gesto com a mão.
O banqueiro pega nas folhas amontoadas do lado esquerdo e, ao passar o dedo indicador pela
língua, lê as novidades que sempre significavam sorte para o banco. Os lábios tentam disfarçar o
sorriso satisfeito que surgia. Porquê? A desgraça de um proprietário significava sempre lucro a
dobrar.
– É com um enorme pesar que anuncio que… – retira uma folha – Phillipe Albert Aaron Cristian
William Orlean Regina Habsburg Stathouder, de Orange e Nassau…
Phill estava de boca aberta, no seu registo apenas estava Phill Smith, nascido de Elizabeth
Volpenno.
– Nem eu sabia que tinha mais de três nomes. – murmura para o lado.
– É primo da rainha Antoniette? – o banqueiro pergunta.
– Boa pergunta. Deve ser minha prima, tia… Avó… Sei lá eu.
– Regina… É parente da nossa rainha? – a expressão fica medonha.
– Olhe, quem é que lhe disse esse nome gigante?
– O seu pai, alteza William Stathouder da Áustria. Aliás, vossa alteza é proprietária do Box Dead.
Levanta subitamente, deram-lhe um mês para pagar a dívida ou leiloavam a casa que herdou após
a morte do mestre. Não lhe devia ter feito aquilo, negava ser o boneco do príncipe mimado que
estava por um fio de pertencer à Áustria.
– Esse homem não devia ter inventado coisas. Não sou filho dele! Se está tão desesperado para
ter um herdeiro, é bom que arranje outra pessoa! Nasci num beco, sou filho de uma empregada
com um patrão qualquer!
– Sir, deu o nome Phillipe de Orange. Só existe uma casa holandesa de Orange, só existe uma
única família. Seu pai apresentou o seu registo e não duvidei que era o senhor.
– Se ele é holandês, o que faz na Áustria? – fica confuso.
– Os Stathouder uniram a casa com os Habsburg, casamentos por conveniência. O seu pai não
casou com Mary da Áustria?
– Eu sei lá… Existem tantas mulheres com esse nome que eu fico confuso.
E como ele ia saber se nunca andou numa escola? Só teve tempo para aprender o necessário, o
resto aprendeu com os bêbedos que iam ao Box.
– Mesmo assim, é um engano. Não sou filho dele. Procure bem nos registos, eu não existo, nasci
por obra o espírito santo?
– Sua mãe era uma italiana, Isabella Benso, condessa de Cavour.
– Errado, ela chamava-se Elizabeth Volpenno.
– Cantora de ópera lírica, convidada a Viena no ano de mil oitocentos e cinquenta e nove.
– Sabe que mais… Eu resolvo isto com o meu pai. Ele inventou uma história danada para
convencer as pessoas que sou filho dele. A minha mãe não é italiana por completo, ela foi muito
nova para Viena e mais tarde para cá. Esqueça, morri agora mesmo! – caminha para a saída –
Passar bem. – sai.
O banqueiro fica confuso, acabou de dizer que não era filho do tal príncipe e agora, ia acertar
contas com o pai, ou seja, o tal William. Repara que a mulher levanta.
– Ele anda a beber, MiLady?
– Assim como o senhor. – sorri ao sair.

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Sete Nomes

Mas que mulher mais petulante. De certeza que ninguém a educou, onde já se viu apontar assim
o dedo? Bate a folha na mesa, se fosse sua filha, tirava o cinto das calças e batia-lhe, só para
aprender a respeitar os outros.
Como se a sua maldição não bastasse, ainda tinha que aturar as mentiras do pai que jamais deveria
ter chegado ali. Como se atrevia a fazer uma família de sonho? Como se atreveu a inventar uma
família para a mãe que nasceu pobre e morreu pobre? Caminha com tanto furor que as crianças
de rua nem se atreviam a cruzar no caminho para tentarem a sorte. As pessoas desviavam-se com
aquele olhar que matava, comentavam tal falta de educação e falta de senso. Para onde ia com as
mãos fechadas ao limite? Ia cometer a maior loucura que alguma vez fez. Ver o Box nas mãos de
outro homem já era motivo para perder a cabeça, mas vê-lo nas mãos daquele pai que nem o era…
Faltava gritar para ser preso por assustar as pessoas na rua mais chique de Londres.
– Phill, espera.
– Boston, é hoje que aquele príncipe vai voltar para as saias da mãe!
– E tu és guilhotinado! Pensa, está nas mãos dele. Melhor assim, seria pior se fosse leiloado.
Vira-se e aponta o dedo ao respirar fundo.
– Herdei o Box com vinte anos, ele não tinha o direito de me fazer isto. Não basta ter matado a
minha mãe e abandonado, como se atreve a comprar a minha casa! Se tens direito a vingar o teu
nome, deixa-me fazer justiça também!
– A questão é diferente. – fala mais baixo ao aproximar-se – São homens que trabalharam para o
meu pai, eles não eram grandes nobres como o teu pai que é um príncipe. Pior, é um Stathouder,
da casa de Orange. Se morre, declaras guerra a Londres e envolves a Áustria.
– Eu sou filho bastardo, nasci por acidente, não sou nem de perto da realeza. Olha para as minhas
mãos. – abre-as – Parti maior parte dos ossos, esfolei-as até ao limite, ganhei calos terríveis. Que
nobre sou eu? Que sangue azul circula nas minhas veias? Só quero a minha vida de volta.
– Vais ter, deixa-o partir de novo para o país dele.
– Não vai Boston… Soube que a Prússia venceu o império Austríaco na guerra. Ele quer-me,
como forma de salvar a sua reputação e casa, que case com a filha do rei inimigo, para fazerem
um acordo de paz. É por isso que veio cá, sou o único filho que teve, o único com idade certa para
casar. Inventou uma linhagem para a minha mãe para não ser filho de uma mulher que nasceu na
rua. Não quero ser o fantoche dele, não quero nem saber do que precisam. Só quero o Box, Yves,
Abie e tu, as lutas programadas às sextas, as dívidas por pagar e uma boa noite de sono na cama
que eu paguei.
A maldição da corte parecia uma enorme mão que o sufocava. Phill estava desesperado, o olhar
sem brilho quase largava as lágrimas de que não nasceu para aquilo. Ser filho bastardo nunca foi
um problema, viveria nas sombras, não tinha que se preocupar com o sangue porque os príncipes
nunca reclamam quem nasce fora da corte. Agora, o pesadelo distante estava cada vez mais a
enterrá-lo na areia. Queria fugir da sua própria linhagem desfeita, mas quanto mais fugia, mais a
enorme mão o agarrava e puxava para dentro da arena que o engolia. E assim se perdia o brio.
– O que queres fazer? Não o podes matar.
– Quero ter uma conversa de verdade, homem para homem. Explicar que não posso ser o que ele
quer, que não quero nada da nobreza e que mereço, pelo menos, esquecimento. Já disse, não troco
os meus pesadelos por sonhos manipulados.
E Rachel não ia estragar a sua invisibilidade forçada, também não se imaginava ao lado de um
príncipe, não calhava bem no momento em que limpava o sangue que a manchou.
– Ele está no palácio de Windsor. Não vais entrar.
– Basta uma carruagem, um fato dos domingos e um mega nome que não me diz nada. Achas que
o tal William não vai receber o filho primogénito? Até a rainha vai perdoar a minha dívida.
– Então vou para o Box pensar no próximo…

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Sete Nomes

– Não.
– Queres que vá contigo? Estás louco?! Não te esqueças de algo pendente.
– E não esqueço. Como achas que vais encontrar Backer James?
O olhar fica vidrado, esquecia-se que eram semelhantes no olhar o mundo.
– Viste o meu passar de mão pelo nome. – conclui.
– O lençol é fino demais quando a tua nudez é revelada. – sorri.
Olha em volta e dá um pequeno murro no braço dele ao esboçar um enorme sorriso, safado
apanhado. Se era para ir a Windsor, tinha que garantir que estava apresentável para a corte mais
rigorosa da Europa. E ainda diziam que a corte de François XIV tinha sido terrível.

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Sete Nomes

Capítulo 14
Não era fácil entrar pelos portões do palácio. Só os nobres que lá viviam, os amigos da rainha, a
realeza convidada, os comerciantes escolhidos a dedo e certos homens do terceiro estado é que
entravam. Os restantes, ficavam esbarrado na entrada, a sonhar com o dia em que veriam o
lendário palácio londrino.
A carruagem elegante chegou pela hora do almoço, o cocheiro disse ao porteiro que tinha em sua
posse o filho primogénito do príncipe William da Áustria. Com ele, a dama de companhia. Isso
suou um pouco estranho, os homens não tinham damas. Então Phill disse que era sua amante e,
com o piscar de olhos, conseguiu a permissão para entrar, depois de vinte minutos de espera.
Naquele dia, rainha Victoria estava sentada no jardim a ver o jogo de críquete entre o filho e os
restantes nobres. Velha, vestida de negro e com um olhar forte de que ainda estava pronta para
ver a próxima nação nascer. Já era considerada a mulher mais forte da sua linhagem, sem
desvalorizar Elizabeth I que durou quase um século. A seu lado, o príncipe convidado que decidiu
fazer acordo bilaterais na maré negativa que a europa vivia. Depois das vagas revolucionárias e
da paz que Inglaterra conseguiu, os Impérios davam sinais de querer ruir. Como se não bastasse
a defronta prussiana, que esqueceu o aliado na guerra Napoleónica, o Império Austro-húngaro era
defrontado pelas nações pequenas que eram obrigadas a render-se a uma só coroa. Polónia e
Bélgica estavam instáveis, Itália reunificava-se rapidamente e o que parecia o futuro, significava
um enorme passo para a escuridão, um tiro dado na calada da noite que a qualquer momento,
atingiria um continente inteiro.
William só tinha uma única esperança que parecia estar longe do seu alcance. O sogro não queria
saber de que casa ele vinha, ou arranjava uma solução e dava uso ao filho bastardo, ou voltava
exilado para o reino de onde não devia ter saído. Ser quem era não chegava para agradar um rei
desesperado.
– Mais chá, Majestade?
– Fez a mesma pergunta há sete minutos atrás. O que o desespera neste dia de sol?
– A queda de um império tão grande como o seu. Já sabe da reunião em Viena, o congresso?
– Sim, alguém irá representar-me. Não me preocupo com o que acontece na europa, Irlanda já me
tira o descanso.
– O seu, o nosso é os Checos, Húngaros… Está tudo um caos.
– O segredo para uma boa guerra é nunca a deixar para o dia seguinte. Verá, Grã-Bretanha
conseguirá o que quer.
– Vossa Majestade teve sorte de ser abençoada por filhos e filhas. A mim, só nasceu infantas. No
último parto, morreu o futuro do império.
– Talvez a sua esposa não tenha sido uma boa escolha.
Que obrigação teve na época? Casar. Só mais tarde voltou a casar com outra mulher, vistos que
a primeira não lhe deu um único filho. Nem na segunda teve sorte. Então casou com a terceira e
última filha do rei. Sorte abençoada ou azar da vida, três raparigas e o rapaz morreu no parto,
levando consigo o ventre esperançoso. Fora do casamento tinha uma bela filha na Espanha e um
filho ali, que negava o seu destino.
– Alteza.
Vira o rosto para o mordomo. Levanta e faz uma vénia à rainha antes de seguir o homem.
Luxo… Ainda achava que a cozinha era o único espaço no Box com delicadeza. Phill estava
perdido no enorme corredor digno de um rei. Tantas portas por abrir, tantas janelas viradas para
o jardim… Tantos candelabros de cristal, tantas cadeiras almofadas… Perdido na cor da parede,

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Sete Nomes

quadros famosos com rostos eternos… Enormes vasos chineses, plantas de outras terras, tapetes
de dar inveja… Lâmpadas que iluminavam o luxo…
Senta tonto na cadeira, não aguentava mais olhar para o teto e ver a pintura dourada.
– Começo a ficar mal-habituado. – comenta ao desapertar um pouco o lenço.
Rachel não estava admirada com a exuberância do lugar, os pais já tinham ido ali uma vez. Já
esteve no palácio irlandês aos nove anos, já viu o Louvre antes de embarcar para Boston. O que
todos tinham era luxo a mais para o enorme lugar vazio. Nem sabia o que seria pior, aquele palácio
ou o de Buckingham.
– Levanta que pode aparecer a rainha.
– E eu explico que nunca estive a seus pés. – sorri.
Revira os olhos, agora que descobriu a obrigação, estava feliz com a condição. Olha-se ao
espelho, o vestido azul nem foi uma má escolha. A gola tapava bem a garganta e as marcas das
cicatrizes, tal como as mangas e as luvas. Na cabeça, um chapéu floral como a etiqueta mandava.
Nos pés, sapatos com algum salto. Parecia um anjo na terra, se por debaixo da saia não habitasse
o diabo.
– Ele ainda vai demorar? – ajeita o cabelo.
– Não sei. Deve estar com alguma amante, a fazer mais um bastardo para depois usar como trunfo.
– Farias o mesmo no lugar dele. – olha-o.
– Boston… Tive uma educação popular, não cortês.
– Como o rei Arthur, cresceu por entre o povo e depois virou rei. Será que chegas a isso?
– Queres ser a minha Gwen?
Vira o rosto para aquele sorriso atrevido.
– Não. Contenta-te com o que já tens.
– Estou muito feliz e satisfeito. É pena ter-te conhecido na pior fase da tua vida. Talvez… Há
cinco anos atrás fosses um doce.
– Há cinco anos atrás, o meu tutor teria feito uma crueldade ao matar-te.
– Porquê?
– Porque nenhum homem é de confiança debaixo de um teto.
Assente ao pensar sobre o assunto, os maiores traidores viviam por debaixo do mesmo teto que
a rainha. E ela nem desconfiava, tudo era possível desde que vivessem nas sombras do anonimato.
Os passos acelerados ecoam pelo corredor, Phill vira o rosto para o intitulado pai. Que pressa,
nem se dava ao trabalho de contemplar a obra prima que o homem fez. Que mau feitio, passava
pela mulher e ignorava a sua presença.
– Phillipe. – William Para em frente à cadeira – Isso são modos de sentar?
Dá de ombros ao esticar as pernas, na sua casa fazia o que queria. Ali, porque teria de ter modos?
– Minha mãe ensinou assim. Minha avó disse que devia de estar confortável em qualquer lugar.
O meu mestre disse para não ter modos ao pé dos pobres. Estou bem cómodo assim.
– Todo aberto para um nobre ficar escandalizado… – começa a recuar as pernas dele – É bom
que tenhas alguma etiqueta aqui, não estás naquele buraco que nem devia de ter o nome de casa!
Phill ajeita a túnica e levanta ao apertar o casaco negro, que homem mais irritante.
– Melhor? – pergunta com alguma arrogância.
– Não tinhas nada melhor? Esse casaco está gasto, o tecido é péssimo… – William sente o algodão
mal lavado e engomado – Horrível, que a rainha não te veja.
– Desculpa paizinho, nunca enviou roupa para mim. Queria que estivesse igual a si? Com esse
uniforme branco de dar voltas à barriga.
– Isto é um traje real, digno de um sangue azul.
O pugilista via um homem vestido de branco, com botões dourados, uma faixa vermelha desde
o ombro direito até ao quadril. Luvas para não sentir o pó, botas negras até ao joelho. Cabelo bem

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Sete Nomes

penteado para trás, rosto aparado com mais pormenor. Fedia a perfume francês, a postura reta
demais devia de dar terríveis dores de costas. E, a irritante minúcia, ao pescoço usava o colar da
casa Stathouder e uma medalha de ouro presa no peito, no lado esquerdo.
E ele, o bastardo vindo do submundo, estava vestido de negro, com o fato gasto por não ter outro,
com a túnica lavada à pressa e os sapatos sujos da lama dos becos. Não fedia a perfume, a barba
foi feita pela mulher que se deitava na cama e luvas… Nunca usou ou usaria. Se não estava
apresentável para um príncipe, estava perfeito para um operário pobre que ficava com os olhos
deslumbrados com tal exuberância. Enfim, nunca se estava perfeito demais para as ocasiões mais
dramáticas.
– Porque trouxeste a mulher a dias? – nem desvia o olhar.
– A Boston é sempre a minha convidada. Está apresentável para a velha monarca? – aponta.
William tenta resistir, mas vira o rosto para aquela que ignorou por causa da última vez que se
cruzaram. Onde estava o lado mais pobre dela? Onde estava a falta de modos? Bem arranjada,
perfumada e maquilhada. Vestido azul, símbolo de pureza e respeito para com os outros. Com
chapéu sobre o cabelo meio trançado, estava dentro da etiqueta rigorosa em que os detalhes eram
essências. Luvas de renda fina, custaram mais que a bolsa por entre os dedos. Gola aplumada até
ao pescoço, ainda era virgem. Tinha que admitir que era uma bela mulher, misteriosa, calada nos
momentos serenos e com voz quando a envolviam. Invisível e sem receio disso, não dirigiu a
palavra, não estava feito o filho, a desrespeitar o orgulho inglês. Existia brio no olhar, nobreza
plena.
– Infelizmente, ela está melhor apresentável que tu. E serena, sem escandalizar este corredor!
– Por outras palavras, vais comê-la mais tarde. É bonita, mas não é para a tua cama.
– Isso são modos de falar?! Não basta a tua falta de educação como ainda me falas assim?! Phillipe
Albert Aaron…
– Não, o nome todo outra vez não porque fiquei branco só de o ouvir. Nem vim cá para fazer
cerimónia. Vim para falar, homem para homem, bastardo para pai incógnito.
Ganhou coragem para discutir um pouco sobre a vida futura. William coloca uma mão atrás das
costas e com a direita, faz sinal para seguir para a porta ao lado. O pugilista ainda olha para Rachel
antes de seguir o mordomo.
O olhar negro deslumbra-a bem. Boston, belo nome para uma mulher jovem e com idade para
casamento. Quantas já conheceu assim, belas e misteriosas? Tão poucas… Assente ao sorrir, um
dia talvez ela entrasse no seu quarto e provasse o seu valor.
Rachel não retribui o sorriso. Limitava-se a ler aquela expressão que virava intima. Violador,
abusador… Qualquer um, aquele olhar não indicava outra coisa. Quando o rosto passa pela porta
que se fecha, senta na cadeira e respira fundo, ser mulher ali era um risco enorme. O respeito
quase não existia, bastava não usar anel para passar por amante. O príncipe não conseguiria muito,
onde estava, existia um homem capaz de matar para a proteger. Mesmo sem ele, muitos tentaram
e nenhum conseguiu.
Até a sala ao lado era algo só de quem usava coroa na cabeça. Madeira escura que encaixava com
a maior sincronia com os tecidos claros e delicados. Três enormes janelas para a claridade entrar,
sofás encostados às paredes com papel floral dourado, acessórios a ouro, prata e madeira bem
polida e envernizada. Uma mesa ao fundo com uma jarra de flores acabadas de serem trocadas.
Pó? Phill passa o dedo pela cómoda mais próxima, só na sua casa é que a praga se acumulava.
– O teu castelo é assim ou é pior? – vira o rosto.
– Qual deles? – derrama o brandy no copo de cristal.
– Ambos.
William sorri com a pergunta curiosa.

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Sete Nomes

– Em Orange… Holanda… A casa Stathouder é uma pérola naquele país. Representamos a força,
a união, a bravura… Somos os mais respeitados, aqueles que livraram Inglaterra de um terrível
absolutismo, derrotamos James II. Começou com William III e acabou com George IV. Estás a
ver a nossa importância na Europa? O quanto custou fazer frente ao rei espanhol para preservar
Holanda? O quanto Inglaterra é nossa aliada?
– Não, só vejo a ganância e arrogância.
– Ainda não sabes bem o peso do teu nome. – pousa o copo na mesa e senta – Um dia vais ser o
próximo príncipe de Orange, tal como eu sou, como os teus tios são, os teus antepassados foram…
– Bastardos não são nada. Nascemos sem pai, vivemos nas sombras da coroa, morremos sem
nome. Não serei mais que isso. – senta no sofá à frente dele.
William suspira, ele cresceu influenciado pela família da mãe. Supostamente, odeia-o sem ou
com motivos.
– O que queres, Phillipe? Estou surpreso com a tua visita.
– Ponto um e o mais delicado deles todos. Porque raio comprou o Box Dead? Nem gosta de boxe,
chama aquilo de “casebre hediondo onde os pobres morrem”.
– Soube que “aquilo” ia ser vendido por causa das dívidas. Que desgosto, fazes imensas dívidas
impossíveis de pagar. A tua mãe não te ensinou nada sobre o assunto?
– Deixa-me ver… – coloca a mão no queixo – Ela teria ensinado se não tivesse sido morta aos
dezanove anos por… Claro, pelo meu pai. Se não aprendi nada, a culpa é sua!
– Nem a tua avó ensinou? – retira as luvas.
– Quase vendeu a sua cruz latina de prata para pagar a comida que comia. Morreu a pensar que
estava bem entregue a um homem que me educou. Se faço o que faço, é porque preciso.
– Qual o homem que precisa de dever ao banco, à corte, aos nobres, aos burgueses… Deves a
metade de Londres.
Isso até tinha fundamento, não havia necessidade nenhuma de ficar com essa fama de devedor.
Aprendeu a fazer, nunca mais parou.
– Seja como for, eu compro-lhe o Box. Quanto quer? Cinco mil libras? Dez mil? Diga o preço.
– Tu não tens dinheiro nem para oferecer um ramo bonito à rapariga lá fora. A tua conta está a
zero, o banco só tinha aquilo como recurso. Fica feliz por eu ter comprado, o que é meu, é teu.
Pensa sobre o assunto, quando a esmola cai demais, o santo desconfia.
– Em troca, quer que assuma o meu papel como seu filho, parta para Viena e case com a filha do
rei prussiano. Está fora de questão, sou pugilista, não tenho modos, a nobreza dá-me alergia e
mudanças matam-me.
– Como sabes disso? É ultraconfidencial.
– Que mais moveria o príncipe vaidoso da Áustria até às terras da rainha Victoria? – abre os
braços – Só um casamento como tábua de salvação.
Não era burro, parecia ser mais esperto do que aparentava. Descobriu isso só com uma simples
visita ao Box. Ninguém em Inglaterra sabia desse plano, a rainha pensava estar a receber um bom
diplomata que vinha com missão reforçar os laços. Pega no copo, não eram tal pai tal filho,
William não chegava tão facilmente às coisas. Alguém o modificou com o tempo.
– Já sei a tua resposta.
– Ótimo. Ponto dois, quero que pare de inventar coisas sobre a minha mãe. Ela não era italiana
por completo, muito menos condessa de Nassau.
– E quem disse que inventei isso? – sorri – Isabella nasceu em Itália, Palermo. Fugiu da casa do
pai para se dedicar à música em Milão, foi assim que chegou a Viena como cantora lírica aos
dezasseis.
– Não, o nome dela é Elizabeth Volpenno, a minha avó não ia mentir-me sobre isso.

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Sete Nomes

– Donna não era tua avó de verdade, Phillipe, era parteira. Isabella é Elizabeth em inglês. Mudou
o último nome para o pai não ficar a saber que a filha, além de fugir, é mãe solteira. Sabes o
problema e a vergonha que é para uma família ter uma mulher assim? Filho de pai incógnito?
A palidez percorria o rosto de Phill, é como se tivesse levado um enorme murro na barriga, um
braço sufocou-o e agora, atiravam-no em queda livre para o chão. Filho de uma condessa fugida
de casa para fazer o que gostava. Filho de um príncipe que a matou. O olhar vidrado preocupava
William, parecia que ia morrer ali mesmo, sobre o sofá.
– Phillipe… – aproxima o tronco e estica a mão – Estás bem?
Não, a mente já não sabia quem era, é como se ontem fosse um nada e agora, era nobre por
completo. O choque tremendo até o fazia perder os sentidos, que nome ia assinar na próxima vez?
– Bebe um pouco. – estica o copo – Com o tempo aceitas quem és.
O pugilista reage ao brandy, bebe quase até se afogar. Mancha a túnica branca, nunca teve tanta
sede.
– Pelos vistos, quem te mentiu a vida toda foi a tua mãe e a parteira. Isabella era uma bela mulher,
mas muito independente no momento de tomar as decisões. Apaixonei-me naquela semana em
Viena, mas tinha casamento marcado e… O que mais importava era o papel assinado e anel no
dedo. Paixões dessas não trazem paz aos reinos. Foi só uma noite, apenas uma e nunca mais a vi.
– Por isso a matou? – pergunta ofegante.
– Pensei que remediava o assunto, Shopia desconfiava de um filho bastardo que destruiria a
Áustria. – roda o anel do dedo – Matei-a como forma de libertação, por tudo o que me fez. Se o
meu sogro fosse lá, tu não terias vida, o suposto era estares morto. Sou cruel em te tirar a mãe,
mas querias que outro o fizesse?
– Queria ser esquecido, queria não crescer com raiva de ti. Preferia nunca ter recebido aquela
caixa cheia de ouro, saber a verdade, de quem sou filho, de quem eu descendo. E agora? Quer que
seja seu boneco? Sua marioneta para salvar o seu reino?
– És o meu único filho, a tua irmã está na Espanha, nem sonha de quem é filha.
– Além de mim, da má experiência que teve, deu-se ao trabalho de envolver com outra mulher?
É um canalha de todo o tamanho!
Suspira e cruza a perna.
– Casamos por obrigação, procriamos por necessidade. Sempre nos apaixonamos por outras
mulheres que nos dão filhos saudáveis e prontos a governar a qualquer momento. Essa é a nossa
maldição, infelizes, a fazer a vontade aos nossos pais, pelo nosso reino, em nome da paz.
– E quer que lhe faça a vontade? Ser mais um infeliz sem escolha?! – levanta – Tudo o que eu
desejo é pagar as minhas dívidas, continuar a ser pugilista e andar por entre as ruas pobres de
Londres sem ter um enorme peso nos ombros. Não pedi para ser seu filho, não pedi para ter este
desgosto. Finja que morri, finja que o seu sogro me matou. – os olhos ficam em lágrimas – Sou
Phill Smith, filha de uma mulher que trabalhava dia e noite e chamava-me de pequeno prince.
Minha avó é Donna, criou-me. Devo até os dentes que tenho na boca, luto todas as noites, espio
quem vou desafiar e deito todas as noites na cama que comprei e durmo descansado da vida. Vá
para casa, daqui não consegue nada.
Maior parte das pessoas desejavam ter a oportunidade de pertencer a um príncipe, nem que fosse
bastardo, só para puder herdar algo após a morte. Qualquer pobre desejava fazer feliz o pai rico,
nem que fosse para sair da miséria que os assombrava. Aquele, que tinha essa sorte, da noite para
o dia ser o mais importante da europa, apenas desejava estar morto, longe dele, longe do sangue
azul, da maldição que o assombrava dia após dia. Era feliz na sua triste vida, a dever até o que
bebia.
Levanta ao vê-lo ir para a porta.
– Phill.

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Sete Nomes

A cabeça vira-se.
– Isabella disse que… Se tivesse um filho meu, jamais diria as suas origens por ter vergonha do
que os nobres faziam aos pobres. Acho que ela te ocultou para crescerem sem essa ambição,
apenas focares nos teus verdadeiros sonhos. Não quero levar-te para Viena… Quero conhecer-te.
A manga limpa o rosto molhado, estava confuso por completo.
– Não entendi bem.
– Também tenho sentimentos Phillipe e, da mesma maneira que me obrigaram, eu não te quero
obrigar. Todos os impérios têm de cair para algo voltar a ser construído. Há muito que o meu
sogro abusa do poder e eu, aceito o massacre. Está na hora de deixar aquele reino seguir outro
rumo, chega de acordos de paz, chega de abafar o que acontece. Nós estamos falidos, o que me
resta é a casa de Orange, nada mais.
– Continuo confuso. – mete as mãos aos bolsos.
– Tens o lado independente da Isabella, longe de tudo o que é da realeza. Há muito que vivo para
servir e nunca fui servido de algo que valha apena. Tenho um filho, sou viúvo e a minha imagem
na corte está a ficar denegrida. Quero… Quero conhecer-te. Quero saber o que fazes, o que gostas,
o que desejas… Chega de contratos.
Por outras palavras, o príncipe estava farto de ter um título. Phill respira fundo, cresceu a ganhar
ódio aquele homem e, agora do nada, esse mesmo ódio queria ser trocado por amor. Proposta
envenenada, ia aproximar-se para depois o obrigar a ir embora. Mas… Não ganhava nada em
fazê-lo, bastava ser um animal na corte para ser expulso. Nunca teve um pai e mal conhecia esse
significado.
– O que tenho que fazer?
– O Box é teu. Podemos passar tempo juntos, podes vir aqui jogar cartas, golfe, críquete… Andar
a cavalo… Conversar, fazer perguntas… Podes usar o meu dinheiro… Está há vontade.
Parte boa, dinheiro fácil. Parte má, comer com a rainha.
– O que serei para si?
– Filho, é claro.
– E para a monarca?
– Parente. E meu filho.
– Chama-me de Phill e a Boston de Boston. Ela também pode vir?
– Se não der problemas…
– Ótimo. Posso passar os fim-de-semanas cá, com o Yves. Quero um bom quarto e… Vista para
o jardim. Comida boa, de preferência, carne longe do Twenty Two. Ah! Terá de me ver a lutar no
Box, não tem piada eu passar por nobre e o senhor não ir ao casebre.
Sorri ao assentir, combinado.
– Trago a roupa para lavar, assim Abie tem descanso. E… Estou a esquecer-me de algo… – estala
os dedos – Carruagem própria com direito a cocheiro, está na hora de ser rico e colocar aqueles
devedores todos com os olhos em bico.
– Mais alguma coisa?
Nega, a lista devia de estar completa.
– Já te posso abraçar?
Phill ajeita o casaco negro e respira fundo, ia dar tréguas à sua raiva. Aproximando-se, abraça o
pai incógnito que parecia querer morrer longe do país onde nasceu. Agora o pugilista sente o que
Yves tanto descreve quando o abraça, aquele calor paternal, aquele carinho todo de um simples
gesto inocente. Nunca teve um pai, tinha que aprender a ter um. Pai rico, nem sempre a sorte batia
com tanta força à porta.

103
Sete Nomes

Capítulo 15
Tréguas com o monarca, aceitar as verdades, quem era e porque nasceu. Enquanto Phill falava
com o pai, Rachel andou misteriosamente pelos corredores do palácio. Teve problemas em certos
andares, estranhos sem título não podiam passear. Foi ao entrar por uma porta que a sua procura
deu início a várias perguntas. Backer James. Viu-o de relance a passar pelo jardim, em direção à
outra porta do palácio. Bata? Não tinha nenhuma, mas rapidamente entendeu o que o tutor quis
dizer. Cientista. Encontrou sobre uma secretária um livro sobre a ciência e as invenções. De lá,
Backer desenvolvia a tentativa de cria um enorme telescópio. Então encaixou-se na mente o que
Jason tanto salientou sobre as lentes. Só ainda não sabia como as usar devidamente, a menos que
estragasse a pesquisa dele. Backer não tinha mais esse nome, Rachel só chegou por intuição ao
nome do assassino, por causa de ouvir em criança o pai comentar que o seu sócio estava a pensar
em construir algo grande e com futuro.
Continua a ler o documento sobre as tentativas falhadas de encontrar a graduação certa nas lentes.
O tutor investiu na educação dela, pagou-lhe as aulas todas, desde de matemática e história, letras
e direito. Uma mulher ignorante jamais chegaria a algum lado. Vira a página, o dinheiro que
roubou certamente pagava as tentativas falhadas de Backer, pagava o material usado, a preparação
dos eventos para arranjar financiadores. Ao contrário de Chester, que tinha uma boa vida às custas
de quem morria, aquele homem parecia mais inseguro, bastava observar a letra tremida para
entender que ele receava algo.
– Sabias que o meu tio avô é conhecido como taciturno?
O olhar vira-se para o lençol que continuava a dividir. Phill estava insuportável por causa das
tréguas que deu a si mesmo. Passou o dia inteiro a falar do pai, da família, do castelo, da comida,
do convite, do… Do que ninguém queria saber. Estava irreconhecível, Abie comentou isso.
Rachel achava o mesmo, conheceu aquele pugilista com uma enorme raiva no coração por ser
filho bastardo de um príncipe que matou a mãe. Agora, não passava de um pequeno menino
fascinado com o novo mundo que começava do zero. O dinheiro corrompe qualquer coração.
– Já não o vais matar. – volta a ler o seu livro.
– Rachel, eu entendi o lado dele. Ser sangue azul é pior do que se pensa. Talvez tenha exagerado
muito ao pensar mal dele, não conhecia a verdade.
– E eras feliz na mentira. William vai enganar-te, quando deres conta, estarás em Viena com um
anel no dedo.
– Estás com inveja de eu ter um pai vivo e tu não?
O som do livro ser fechado com força ecoa pelo quarto. Phill vira o rosto para a sombra que a
vela fazia.
– Não voltes a comentar isso. Depois da merda feita, não venhas chorar ao meu ombro e dizer
que ele te enganou.
– O meu pai não vai fazer isso. Eu acredito que… Daqui a nada seremos grandes amigos. É um
novo começo Rachel, é uma página virada. Ele pagou-me as dívidas, deu-me o Box de volta e
isso é o que um pai de verdade faz.
Iludido, o pugilista estava tão iludido que nem conseguia distinguir a verdade da mentira. A
monarquia fazia sempre os seus milagres para acabar com as pedras do sapato.
– Faz o que quiseres, só não me incomodes com essa vida. – deita e ajeita a almofada – Não quero
saber o que fazes no palácio, nem quantas amantes vais ter ou com quem vais falar.
– Ah… – Phill afasta o lençol e olha-a – Estás com receio de ser trocada?
– Não, por mim, até podias trazer para aqui uma prostituta. Queres uma? Eu conheço uma doce
menina que te pode fazer feliz. Apenas fica na tua vida e deixa a minha.

104
Sete Nomes

– Estás sempre azeda. Tenho que perguntar à Abie o que deita na comida.
– Vai dormir! – pede ao apagar a vela.
– Preciso de uma aula de etiqueta, amanhã vou conhecer a rainha.
Não queria saber, Rachel só queria fechar os olhos e pensar sobre a utilidade das lentes, estudar
melhor aquele livro escrito à mão e saber como o ia apanhar e matar.
– Rachel… – senta na cama e pousa a mão sobre a perna dela – Que bicho te mordeu?
Ultimamente estás muito estranha.
– Chama-se vida difícil. Não deves saber o que é isso, prince Stathouder.
– Já soube antes de mudar de vida. Mereço finalmente pertencer à elite. Vá lá, dá-me uma aula de
como comer à mesa.
– Vai morrer longe de mim! Tu próprio odeias cortar com a “faquinha”, usar o “garfinho”, comer
com a “colherzinha”… Come com as mãos!
A mão levanta e o suspiro sai, o próximo homem devia de dar com ela em louca ou a ansiedade
é que a deixava assim, azeda. Bem que notou no olhar dela quando voltou para a carruagem e a
viu com um livro na mão. Chegou a Backer. Estava irritada pela demora dele. Não dirigiu a
palavra, nem perguntou se ia matar o pai ou perdoá-lo. Quando começou a contar as novidades
no Box, ela subiu as escadas e bateu a porta com força, não o queria ouvir.
– Nunca pensei que o meu título te irritasse tanto, duquesa.
Vira a cabeça para aquele olhar provocador.
– A minha família rejeitou esse título, não queríamos ser primos do duque que é primo da rainha.
Os Clarel são só bons comerciantes e negociantes.
– Eu sabia que pertencias à nobreza do mais alto nível. – estala os dedos – Eu também sou primo
da rainha, talvez sejamos parentes… – olha para o teto ao falar lentamente.
– Nem morta eu seria tua prima. Devo ser prima do décimo grau, o meu tio nunca contou quem é
que foi neto de George III ou sobrinho de George IV. Esquece, não tenho título e nem quero
pertencer a esta elite cheia de regras.
– Preferes ser uma americana que, ao mínimo discurso irritante, faz boum! Pistola para cá, tiros
para lá e mortes por todo o lado.
– Sempre soubemos resolver os problemas! Não somos como tu ou esta sociedade. A esta hora,
se o meu pai fosse um príncipe e tivesse matado a minha mãe, eu já o teria morto mal me
procurasse.
– Esse é o teu problema, o teu maior defeito Rachel. Pensas que a morte é solução. Não existe
para ti uma conversa civilizada à procura de uma solução. Por esse motivo que tu estás louca. –
levanta da cama.
– O que me chamaste? – levanta o tronco.
– Louca, crazy! O teu relógio não trabalha há mais de treze anos e tu acordas todas as noites para
ver as horas! Já pensaste em ser internada numa ala psiquiátrica? Fazia-te bem.
Com os olhos em lágrima, começa a atirar as botas que estavam no chão contra ele. Grita, nunca
alguém a ofendeu tanto, nunca lhe fizeram tal coisa. O tutor sabia disso, do relógio que parou e
deixou de dar horas. Sabia da dor dela, de ficar presa naquele oito. A dor passaria assim que a
alma descansasse.
Phill repara no choro dela, o quão violento era. Mais palavras? Mel depois do martelo ter feito
estragos? Limita-se a sair do quarto, o vaso partiu.
Os braços agarram-se às pernas, sente os pontos nas costas a rasgar a pele por causa da curvatura.
Dor… O sangue mancha o vestido branco, a boca abria-se à medida que sentia a coluna a abrir
com violência o corte. Às vezes, nada mais a confortava que essa dor, o motivo de estar viva,
solitária e longe de todos os que eram próximos. Fez o maior erro da sua vida ao ficar ali a dormir,
matava o ministro numa esquina, despistava o detetive noutra e pronto, Valentina continuaria a

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Sete Nomes

dormir na estalagem. As lágrimas pingam para o lençol da cama, o caminho mais fácil foi o mais
fatal.

Garrafas de vinho espalhadas pelo corredor, alguém andou a beber até cair. Phill começa a
apanhar antes que tropeçasse numa delas e fizesse barulho. Então repara em Yves a dormir sobre
o degrau das escadas. Suspira, aquele rapaz caminho perdia a alma. E o cabelo ruivo que estava
por tingir? Teria problemas por ter um irlandês ali.
– Yves… – abana o aprendiz – Acorda preguiça inglesa!
– Boss… – fala sonolento – Por onde andou?
– Assaltei um banco.
– Assaltou? – abre os olhos.
– Não, discuti com a Boston e fui até ao rio. Estiveste a beber?
Assente ao abrir a boca para o sono chegar mais depressa.
– Não podes beber, não tens idade. – agarra no braço dele e passa por cima do ombro.
– Todos dizem que sirvo para limpar chaminés. Acha-me muito magro e baixo?
– Não, apenas cresceste muito lentamente. – caminha para o quarto dele – Abie deixou-te beber?
Nega ao fazer ar com a mão, estava enjoado.
– Então porque bebeste?
– Porque a MiLady levou uma garrafa para o quarto e fiquei com vontade de beber.
Rachel bebeu… Parecia que não aprendeu nada com a bebedeira. Abre a porta do quarto com
muito cuidado e a luz mostra Abie a dormir na cama estreita.
– Amanhã ficas de castigo. – deita o aprendiz na cama e arranca as botas.
– Não.
– Sim. Se vomitas, vais limpar, ela não é tua empregada. – sussurra.
– É sua.
Tapa a boca dele ao ver o corpo de Abie mover-se. Faz sinal para ficar calado, não queria acordar
a única pessoa da casa que se levantava às seis da manhã.
– Castigo. Vais mudar a areia da arena. Não quero um único grão lá, ouviste bem?
Assente ainda com a boca tapada.
– Good boy. – tapa-o antes de caminhar para a porta.
– Good night boss.
Phill faz um sinal com a mão, também lhe desejava boa noite.
Suspira ao fechar a porta e olhar para as escadas no segundo andar. Talvez ela tivesse razão,
William estava a tentar comprar o filho para depois o levar para longe. Nunca quis saber dele,
nunca mandou uma carta a perguntar se precisava de ajuda. Disse a si mesmo que nada pagaria a
morte da mãe, o ouro era a maior maldição alguma vez enviada. Mimado de um momento para o
outro… Que péssimo hábito, o seu talento era fazer dívidas. Kayo, o mestre que fez dele um
homem, descreveu a nobreza como uma enorme caixa cheia de copos de cristal. Para os
convidados, estavam lavados e limpos. Para os de sempre, a gordura e o pó limitavam a
transparência. Eles não deixavam a verdade sair do castelo, não, mentiam as vezes necessárias
para garantir que a sua cabeça não ficava a prémio.
Sobe os degraus, a mãe fugiu à nobreza por achá-los cruéis, a família da Rachel rejeitou o título
por o achar fútil. E ele? O bastardo que ainda ontem pedia anonimato pleno? Abre a porta e dá
conta que ela dormia na cama errada. Garrafa sobre a mesinha. Sangue no colchão e no vestido,
os pontos abriram. Virada para a janela, adormeceu depois de muito chorar.

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Sete Nomes

Passa a mão pelo cabelo ao pousar a boina na mesa. Aquela mulher dava-lhe voltas à cabeça, o
maior pesadelo alguma vez ali deitado.
Retira as botas e com jeitinho, tenta pegar no corpo dela. Não se move ao vê-la agarrada ao
relógio. Não era louca, estava traumatizada com o que presenciou. Sete homens mataram-lhe o
pai mesmo à sua frente, presa nos braços de Chester, a olhar para o violento crime. Como ia
crescer feliz no seu trauma? Como ia entender o significado da conversa civilizada se foi obrigada
a agir para se defender?
Deita ao lado e beija-lhe a cabeça, pesadelo não, pequeno anjo caído sobre a sua cama. Mima o
rosto ainda molhado, devia ouvi-la mais vezes, só para que não se sentisse sozinha ao ponto de
chorar e beber. Precisava de ajuda e não estava a ajudar, apenas dificultava a sua missão suicida.
Cobre o corpo engrunhado e esfrega com leveza o braço esquerdo, podia discutir e berrar, mas
gostava dela, nunca amou assim tanto uma mulher.
– Rachel, eu sei que estás a dormir e a ouvir ao mesmo tempo, deves ter uma audição felina. –
murmura – Há algumas coisas que eu te queria dizer… Uma é que tenho medo, sou um cobarde.
Sempre tive medo dos combates, chegava a vomitar na casa de banho antes de descer para a arena.
Fiz-me homem muito rápido, é como se ainda ouvisse a minha avó a gritar… Phill, keep calm
and take easy. You are just a boy, don’t make your dream be your nightmare. Tinha razão, cresci
a correr e fiz dos sonhos pesadelos intermináveis.
O olhar dela abre-se para a janela.
– Não estou feliz em saber que vou ter um pai rico, vivi a minha vida toda a contar tostões. Não
tenho essa ambição, quero apenas ser dono do Box, continuar a lutar nos combates combinados e
viver até morrer. Tenho até medo de ver a rainha, vou urinar nas calças e rezar para que não seja
preso. Mas… Tive pena do meu pai, odeio-o, só quero que ele veja o erro de me ter deixado e ter
matado a minha mãe. Kayo dizia que às vezes as verdades deviam de chocar… Quero chocá-lo.
O olhar sentia as lágrimas escorrerem para a almofada.
– Outra coisa é que… Não gosto de gritar contigo, fico mal ao pensar que sou um péssimo
ajudante. Eu gosto de ti, atrevo a dizer amor… Uma palavra difícil no momento em que perdi
tantas mulheres. Perdi-as porque queria perdê-las. Eram irritantes, com problemas dramáticos de
vida. Magaritta engravidou do tio e deixou a criança na roda. Os pais souberam do caso dela e
colocaram-na na rua. Tive pena, trouxe-a para debaixo do meu teto e pensei que se lhe desse amor,
talvez visse um sorriso no rosto. Tinham-me alertado que a iam matar e eu não quis saber, se era
esse o destino dela, que morresse.
Rachel tenta não se mover, apenas queria ouvir.
– Charlote ia casar, mas tinha medo da noite de núpcias. Disse que isso poderia ser evitado se ela
conversasse com o marido e explicasse o medo. Não ajudou em nada, Londres não tem
moralidade, conheci mulheres que são violadas após o casamento, logo na primeira noite, só por
rejeitarem. Com pena, eu fiz amor com ela e mostrei que não tinha que ter medo. Apaixonou-se
por mim, o seu maior erro. Não devia tê-la trazido para aqui, esqueci que o médico faz sempre
uma análise antes do casamento. Não sangrou na primeira noite, o marido bateu-lhe muito e ela
fugiu de casa. Disse que não podia ficar aqui, ia ser morto por tal audácia. Enforcou-se a olhar
para o Tamisa e mais uma vez, não quis saber.
Uma enorme tristeza invadia o corpo de Rachel, é como se sentisse a dor dele.
– Mynna, aluna de pintura do Academy Art´s. O pai dela ia lutar comigo para pagar-lhe os estudos.
Ao segui-lo, conheci aquela loura de olhos azuis. Pintou-me, não sei porquê, mas assim que entrei
no quarto, ela sorriu e perguntou se eu era o novo manequim. Acreditei que a podia amar, nada
nos impedia de ficar juntos. Numa noite… – limpa as lágrimas – O irmão dela entrou no quarto
onde estávamos e tentou matar-me, ela não podia viver com um homem antes do casamento,
mesmo que o pai aceitasse, ele não, era mais conservador. Disparou e Mynna colocou-se à frente,

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morreu nos meus braços, tocou nos meus lábios e pintou-os com o sangue quente. Ainda me
lembro… – fecha os olhos – You was my best drawn. Smile. Não devia merecer-te.
Muda, sem palavras para confortar aquele coração partido e sem sorte no que tocava ao amor.
Tentou ajudar, tentou ser o sonho delas, mesmo que a morte tenha chegado primeiro. Últimos
suspiros dados, só para o agradecer os dias de sol que passaram pelas nuvens.
– Chegas tu a Londres e o meu medo foi perder-te logo na primeira semana. Eu vi-te a
desembarcar nas docas, vi a tua mala cheia de palavras negras que pediam paz. Vi o teu olhar
exausto sobre uma cidade a qual não parecias surpresa. Tive coragem de falar contigo no beco,
parecia o melhor momento para me aliar a ti. Não estava à espera do beijo, daquela tarde tão bem
passada ao teu lado, conhecer a tua história toda de uma só vez e ficar preso à tua alma. Contei-
te logo o meu segredo, confiei em ti logo assim que te vi. Ainda confio, és… Um pilar na minha
vida, aquela que ainda me faz sorri, chorar, pensar, gritar… Acordar cedo…
Um sorriso escapa dos lábios.
– Eu amo-te. – acarinha a cabeça dela – Estou completamente apaixonado por ti. Mesmo azeda,
misteriosa, arrogante, fria… Mesmo com um trauma, uma vingança e sete nomes tatuados que te
tiram o sossego. Grita comigo, grita bem alto até ouvir. Não me importo. Só não vás embora,
deixa-me feliz só por te ver viva todas as manhãs, aqui, debaixo deste casebre. – levanta o tronco
e repara nos olhos fechados.
Suspira, não ouviu nada e talvez fosse melhor assim.
– É… Ainda é cedo para saberes tudo. – levanta da cama.
– Cry of a banshee… Fly for other way, sleep on my window and cry on my bed… Don´t forget
your voice tells me everything, just let me heard.
O rosto vira-se para o corpo dela.
– Revenge make us be most strong, but always failed. We are warrior, fight on the street, life
without love… Just died when found true house… Or nothing changes us.
– Only the hearts breaks sometimes. Cry on my shoulder, black sparrow. Remember, the sun
always born. If I will dead soon, don’t forget your voice tells me everything, just let me heard. –
Phill conclui.
O corpo dela vira-se.
– Acho que já és um homem crescido para chorar ao meu ouvido.
Phill ri ao colocar as mãos atrás da nuca.
– Às vezes costumo ser um choramingas.
Ela faz um som de ficar pensativa, todos os homens choram ao pé das almofadas a qual confiam
os segredos.
– Achas que há problema em dormir na tua cama? A minha tem algo debaixo do colchão e dá-me
cabo das costas.
– Temos que ver o que é… – despe o casaco e puxa a túnica para cima – Os lenções têm sangue,
o que aconteceu?
– É vinho.
– Esse vinho deve ser português para ter essa cor.
Dá de ombros ao se aconchega nos cobertores. O corpo do pugilista deita ao lado e o frio é
afastado.
– Melhor Rachel? – puxa-a para o peito.
– Não sei do que falas.
– Bebeste, choraste, rompeste os pontos… És um hurricane.
Respira fundo ao tocar nos pelos pretos no peito dele. Só agora dava conta que eram poucos.
– Odeio quando me gritam as verdades na cara. Eu sei delas, sei que os outros sabem… Só dói
ouvi-las. Já te disse que não sou assim tão forte, basta fazer alguma coisa mal e morro.

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– Esse é o meu maior medo, entrar no quarto e invés de ver uma cama, ver um caixão contigo lá
dentro.
– Não posso errar.
Nega, tinha que ter cuidado ao dar passos pesados sobre o vidro.
– Amanhã vais conhecer a rainha?
– Sim. Vou parecer um animal na mesa.
Ri, nem queria imaginá-lo sentado ao pé da monarca, a comer de boca aberta, com as mãos e sem
o pano sobre as pernas. Seria a primeira e última vez, caso conseguisse acabar a refeição.
– De manhã eu ensino-te.
– Mesmo? O fato novo chega por volta das oito, o cocheiro às nove. Dez palácio… Passeio no
jardim com os filhos dela, netos… Lordes… Vai parecer uma procissão. E tu? Podias ir.
– Não, amanhã irei ao covil da Backer.
– Tem cuidado.
– Só quero espionar um pouco antes de pensar em algo.
Assente ao meter a mão por entre o vestido dela e descer a coluna. Sente a carne que abriu, lá se
foram os pontos.
– Tu queres ver se viro cirurgião.
Sorri ao levantar o rosto e beijá-lo nos lábios secos. A mão imediatamente sobe para a cabeça
dela. Não existia nada melhor que uma reconciliação após a tempestade. Sol de pouca dura ou
não, o que importava é que estavam juntos, quer pelo sentimento ou ausência dele.

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Capítulo 16
Lincoln´s inn Fields, mesmo em frente ao jardim, acima do metropolitano que passava por
debaixo de Londres, o milagre do comboio. No meio de casas com três andares e vista para a
multidão habitual dos nobres que passeavam. Backer não podia escolher melhor lugar para o seu
laboratório. Os vizinhos não se atreveriam a perguntar o que fazia, podia arranjar o material sem
correr o risco de ser preso por contrabando. Não teria espiões, olhos nos telhados, mãos irrequietas
e roubos sem propósito.
Rachel não sabia como o laboratório conseguia estar ali, devia de ser estreito, maior em
comprimento que em largura. No sótão, claraboia para testar o telescópio. Só isso explicava a
morada escrita no livro, ou talvez não fosse ali.
Suspira ao olhar para a rua movimentada. Nove e meia, àquela hora Phill estaria a chegar ao
palácio de Windsor. Teve dificuldades em aprender a usar bem os talhares, quais é que eram para
a entrada, refeição, sobremesa… Porque não podiam usar os mesmos? Porquê tanta
descriminação? Como os copos, água, vinho e sumo, cada um com a sua ordem. Pano nas pernas,
bem aberto. Limpar os cantos da boca e regra número um da etiqueta, nunca comer de boca aberta.
Phill cuspiu a sopa toda quando começou a comer de boca fechada, estava quente e a língua
queimou. Rachel e Yves desataram a rir, não ia longe assim. Abie não gostou, tinha que voltar a
lavar a toalha.
O pugilista já sabia mais ou menos o que devia de fazer. Vénia sempre que alguém aparecia,
pegar nas mãos das damas e beijar sobre a pele, nunca nos dedos. Falar na terceira pessoa, andar
com a direita à frente e a esquerda atrás das costas. Sentar ereto e evitar arrotar. Nunca falar por
cima ou gritar por alguém. Mentir sobre quem era e o que fazia, jamais revelar as verdades, dizer
sempre que estava comprometido para evitar contratos forçados e olhar para baixo quando a
rainha estivesse à sua frente.
Tanta regra… Ainda teve que voltar a fazer a barba, lavou bem o corpo, cozeu os pontos dela,
chegou perfume francês, limpou os ouvidos, escovou bem o cabelo e calçou luvas. Yves nem o
reconheceu, vestiu-se que nem o pai, um Orange por completo.
Antes de ir, deu um beijo em Rachel e prometeu roubar um rubi para ela. Mas não o faria, a
menos que quisesse morrer.
A brisa percorre o banco de ferro, o olhar focava a porta de Backer. Viveria sozinho, não existia
registos relativos a algum casamento. Levantava às seis e meia e deitava à meia noite. Frequentava
o palácio, mas não pertencia a qualquer câmara no parlamento. Solitário demais para um coração
de gelo.
Neutra, estava vestida de negro como se fosse uma viúva sentada a apreciar o que a rodeava.
Também não dava muito das vistas, nem sabia quando iria bater à porta e perguntar se tinha uns
minutos.
Levanta, quanto mais adiava a visita, mais as horas passavam e não cumpria o que queria. Ajeita
a manga folhada de renda e respira fundo ao subir os degraus diretos à porta. Bate três vezes,
bastariam para alertar que alguém queria entrar.
O que se ouvia no exterior não ajudava nada a ouvir o trinque a mover-se. Mas sentiu o simples
tic… E pronto, ia ser recebida.
A madeira range ao ser puxada. O coração de Rachel tenta não sair pela boca ao rever o rosto.
Backer James, o terceiro homem da sua lista, aquele que deu a pistola presa na algibeira e colocou-
a na mão de Logan. Depois do tiro dado, olhou para a menina nos braços de Chester, chocada
com a morte que presenciou. And she? What we will do? O olhar de Logan era simples demais,

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matar. A pistola levantou, mas Backer baixou-a. No! Chester também ergueu a mão. I know where
she going.
E ali estava ela, a sobrevivente do acerto de contas, pronta a acabar o que eles lhe provocaram.
O cientista tenta reconhecer o rosto jovem, puxa os óculos até à ponta do nariz e admira-a.
– Já vos vi em algum lugar…
Backer estava mudado, mais velho. De facto, aquele homem era o mais velho dos sete. Alto,
magro e com cabelos brancos, a barba parecia pincelada pelo pincel, onde o cinza lutava com o
claro. Continuava a usar cores claras na roupa, um azul para o colete, um bege para as calças.
Rabugento de manhã e consciente ao final da tarde. Rugas profundas no rosto, pagava pelos
pecados, caso tenha feito muitos.
– Nunca o vi, Sir. – Rachel comenta com algum desgosto na voz.
– Já vos vi, só não me lembro onde e quando… – ajeita os óculos – Em que posso ajudar, jovem?
É raro uma mulher bater à porta.
– Estou interessada no seu projeto para construção de um megatelescópio.
– As mulheres não gostam da ciência, acham-na aborrecida. Vá brincar para outro quarto. –
começa a fechar a porta.
O pé fica entalado na madeira, travava aquele simples gesto rude de bater com o nariz na porta.
– Estive na Expedição universal no palácio de Cristal, em mil oitocentos e cinquenta e um. Vi a
sua tentativa falhada de aperfeiçoar o que Galileu fez.
O olhar espreita para fora, impossível ter visto isso, só se tivesse quarenta e três anos, se na altura
tivesse dez anos. Não, o rosto era jovem demais, teria por volta dos vinte anos, nem os cabelos
brancos apareciam na nuca.
– Não acredito, sois muito nova.
– Tinha oito anos.
– Impossível. – abre um pouco a porta – Não tendes cara de ter quarenta e um anos. Quereis
enganar-me?
– Garanto que lá estive. Até posso provar. Faça alguma pergunta.
Encosta-se ao aro da porta e a mão vai para a anca. Respira fundo e olha para a rua.
– Que número escrevi no quadro?
– Pi igual ao raio ao quadrado vezes G.
Fica um pouco pensativo, deve ter escrito isso.
– E quem era o meu ajudante?
– Sir Josephe. Manco e gordo, até tirou algo do nariz e limpou à toalha de mesa, vermelha para
dar sorte. Ele tropeçou no tapete e caiu sobre a enorme faixa que dizia New Age. Berrou-lhe e
ameaçou despedir. O seu telescópio improvisado caiu no chão e as lentes partiram, a multidão
assustou-se com o barulho. Meu pai agarrou-me na mão e obrigou a correr. A última coisa que vi
foi o senhor olhar para o teto e chorar.
Esse dia trágico parecia não ter fim. Começou mal, acabou mal. O cientista foi proibido de voltar
a testar a sua ideia, muitos nobres e burgueses cortaram o financiamento em forma de castigo.
Backer acabou como contabilista de um jovem empresário que expandia o comércio das Índias,
dava uso à rota do ouro vindo de África e prometia criar uma forte aliança entre Londres e Boston.
A ambição saiu-lhe caro.
– Qual o seu nome, MiLady?
– Evangellyne Worthwhile.
– A duquesa irlandesa? Nunca tive tanta sorte. – sai da frente da porta e faz um gesto para entrar.
– Conhece-me?
– Sim. Seu marido esteve na guerra de Waterloo… – bate a porta – Seu título foi roubado…
Espere lá…

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Rachel repara no rosto dele, dava conta de algum erro.


– Evangellyne não tinha oito anos nessa época, casou e mudou-se para a Irlanda com a mãe. É
bom que me diga o verdadeiro nome, ou expulso-a!
Ela suspira, as mulheres londrinas eram uma maldição, todos as conheciam, todas faziam algo
absurdo. Ser invisível tornava-se difícil.
– Valentina Daylux.
– Como sei que não está a mentir?
– Basta ir à estalagem e perguntar por quem é que arrebentou com o quarto.
Fica fixo a olhar aquele olhar. Mentia, dizia a verdade… Faz um som de acreditar, não parecia
querer ser outra mulher.
– Ainda a acho muito jovem para a idade que tem. É casada? – caminha para uma porta.
– Sou… Meu marido está em Viena.
– E filhos?
Que inquérito para entrar pelo corredor cheio de portas fechadas. Como saberia ler a sua vida se
esta se escondia da verdade?
– Tenho cinco.
Backer espera-a ao pé da porta, também não tinha corpo de mãe que tinha filhos. Elegante
demais… As mulheres faziam milagres para não envelhecerem ou engordarem.
– Por aqui.
Passa pela porta e repara no enorme espaço com um teto de vidro. Laboratório… Uma mesa para
alquimia, um enorme quadro na parede com umas escadas para fazer os cálculos. Chão em
madeira, não era limpo. Uma cama ao pé da parede da porta, dormia ali. Um forno que aquecia a
areia cheia de quartzo para criar o vidro e ir mais longe. No centro, preso com correntes, de vista
para o dia nublado, estava o telescópio inacabado por falta de dinheiro, graduação certa e dias de
céu limpo. O enorme tubo de metal era delgado ao se aproximar no chão e largo à medida que
escalava as alturas para ver as estrelas.
Rachel toca no orifício para onde o olho espreitava. Bem que o tal livro, que afinal era um diário,
relatou que seria a maior invenção daquele século.
– O que a leva a se interessar por isto?
Nada a fazia ficar presa àquele mundo cheio de teorias e muitas noites por dormir. Apenas foi
para descobrir se ia ser fácil matar quem estava perdido de si mesmo.
– Estou a pensar em abrir uma academia para os cientistas mais dotados. Lembrei-me de si.
– Estranho, nem a rainha me quer ajudar. Ontem estive no palácio e a Majestade rejeitou ouvir-
me, disse estar ocupada com o banho de sol. Perdi o meu diário e agora estou sem alternativa.
– Porquê? – vira-se.
– Anotei lá tudo, os cálculos, os dias… Tudo. Sem aquilo, não sei como começar de novo.
– Poderei ajudar, tive aulas na universidade de Oxford.
– O que estudou? – fica desconfiado.
– Geometria, física, química e matemática. É o bastante para o ajudar?
Coça a barba, as mulheres não estudavam lá após a etiqueta falar que elas deviam de estar prontas
para casar.
– Quero ver o seu diploma.
– Amanhã.
– Depois das quatro da tarde, tenho umas reuniões. Seu marido autoriza?
– Está fora.
– E seu pai?
Morto, nem conseguia dar uma opinião formal sobre o assunto.
– Diz que sou independente no momento em que não vivo mais sobre o seu teto.

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Sete Nomes

– Bem, sendo assim, apareça para começarmos a trabalhar.


Assente com um enorme sorriso no rosto, seria fácil enganar aquele cientista. Diploma? Será eu
Phill tinha arte até nisso? Faz um gesto ligeiro com a cabeça, agora a vida do pugilista estava
agitada.

Debtor. Foi assim que Victoria o chamou ao o ver ao pé do príncipe. Phillipe Orange? Son of
prince William Stathouder? No… He is Phillipe Debtor. It’s a mistake. O pugilista até ficou
branco só de imaginar a guilhotina a passar pelo pescoço. Não teve culpa de os apostadores de
póquer serem nobres da corte dela, ou que um dos filhos se disfarçou de burguês para jogar no
Box. Às vezes acontecia perder, outras ganhava e nunca mais voltava a vê-los.
– Deviam de ter visto o gnomo gordo a entrar pela porta. O meu pai até apertou a minha mão para
parar de rir, não conseguia evitar.
– Quanto ela mede? – Abie pergunta ao abanar a mão contra o rosto.
– Bem… – Phill levanta da cadeira – Yves fica pelo meu queixo, tu ficas pelo meu pescoço, ela
fica pelo meu peito. Um metro e cinquenta e dois. Meu deus, como somos governados por uma
minorca? Ainda reclamam de Napoleão.
O riso ecoa pela cozinha quente com um intenso aroma a sardinha assada.
– Tive que quase colocar-me de joelhos para lhe beijar a mão. “Seu filho, Sir Orange, deve muito
à minha corte. Sabe o que fazemos aos devedores?” Meu pai, com uma voz grossa ergueu o rosto
e olhou-me de esguelha “Não vos preocupais, Phillipe nasceu num slum. A partir de agora, só vai
fazer aliados invés de dívidas”. Acreditem, quando saiu pela porta, parti-me a rir. Eu, aliados? Ri
tanto que fiquei com o rosto vermelho.
Eles também estavam corados de tanto rir, nunca ouviram tantas piadas num só dia. Rachel não
se ria assim tanto, limitava-se a beber o vinho e aquecer os pés frio ao pé da lareira.
– A Boston ensinou a comer. Certo, aprendi. Quando me colocaram caracóis no prato, olhei para
o meu pai. Se fosse só eu e ele, comia com as mãos. Mas numa enorme mesa com trinta pessoas…
Tentei usar o garfo para comer aquilo. Só me lembro de ver uma mulher aos gritos porque tinha
um caracol no cabelo. Bem, o meu pai fez um olhar de que fiz merda. Dei de ombros, ninguém
ensinou a comer aquilo. Nem sabia que se comia, pensei que só os pobres é que comiam insetos.
A realeza deve estar mal nas contas.
O riso era tanto que Yves até cai da cadeira
– A rainha não disse nada? – Rachel pergunta com um sorriso.
– “Oh my god, this boy is so rebel.” Murmurou isso com um sorrisinho no rosto. Aposto que lhe
alegrei o dia cinzento.
– Que sorte a guilhotina não ser invocada.
– Depois passei pelo jardim com quatro raparigas jovens em cada o braço. Disseram o nome, mas
não me lembro de nenhuma. “Diga Sir, alguma moça preenche o seu coração?” Boa pergunta,
tinha a resposta “Acreditam que estou comprometido com uma mulher que tem nome de cidade?”
“Qual nome?” “Boston.” Desataram a rir e pensaram que eu amava a cidade. Ninguém me leva a
sério.
– Isso nem é nome de mulher. – Yves comenta antes de saciar a sede.
– Não, mas eu amo a nossa Boston. Acho que nenhuma cara pintada com cabelos falsos e vestido
estranhos passam esta… – olha para Rachel – Cruel, fria, amarga, solitária, terrível… Boston.
As sobrancelhas levantam, nunca teve tantos elogios num só dia.
– Ironia?

113
Sete Nomes

– Não. Boston, ias ver como elas são irritantes. “My hair… My eyes… Do you like my lips? Do
you want feel my skin? Why the Sir doesn’t marry with me? Your father is very interesting.” Ia
desmaiar por causa dos perfumes que me sufocavam.
– Não tarda a teres amantes. Uma por cada dia da semana.
– Só lá estou ao fim-de-semana. Estás com ciúmes? – coloca as mãos sobre os braços da cadeira.
Não, o olhar estava indiferente. Se queria casar com alguma delas, que casasse. Se queria ter
amantes, que tivesse. Logo que não a expulsasse dali e que a ajudasse, o resto, não era da sua
conta. Pousa o copo no parapeito da lareira e aproxima o rosto ao dele. Nariz com nariz, e assim
se acertavam as contas.
– Se virares um príncipe mimado como o teu pai, o problema não é meu.
– Perguntei se tinhas ciúmes, não o que achavas.
– Não, nem um pouco. Não me importava de beijar o príncipe William mesmo à tua frente.
Há coisas que caem mal no estômago, mesmo antes de as ingerir. Ela não sentia amor ou parecia
querer compromisso. Pronto, noites juntos sem valor, negócios e prazer em diferentes patamares,
longe daquele que a sociedade exigia.
– Podes ir ter com ele e fazer isso. – recua o corpo.
– É uma boa ideia. Aquele olhar devorou o meu corpo naquela manhã. Deve ser mais homem que
tu.
– Como me podes comparar a um homem de quarenta anos?! Eu conheci-te primeiro! Dou-te um
teto, poucas despesas e é assim que pagas? Na cama do meu pai?! Ele vai usar-te e deitar fora,
matar-te se tiveres um filho e abandoná-lo algures neste país!
– Aposto que paga bem por uma manhã no quarto. – pega no copo.
– Vai lá agora, não percas tempo! – fecha as mãos ao limite.
Yves e Abie levantam ao ver aquilo. Quando o patrão fechava as mãos dessa maneira, é porque
algo ia acontecer. Rachel repara na agitação por detrás do corpo enfurecido. Previam o pior, o
olhar não mentia o receio que sentiam. Bater? Phill ia voltar a alçar a mão? Respira fundo ao
levantar da cadeira e atirar o vinho à chama da lareira. Não estava com medo, também não se
importava de o enfrentar.
– Anda, avança. – pede ao partir o copo no parapeito da lareira.
– Sabes que conseguia-te agarrar pelo pescoço antes mesmo de me cravares o vidro no peito. Sou
rápido.
– Atacas pela direita, agarras quem for burro e lento. Mas a mim… – mostra o vidro pontiagudo
que estava lascado – Conheço os teus passos de dança.
– Não tenho a certeza disso.
– Podem resolver isso na arena, sem que exista sangue aqui. – Yves fala com receio.
– Não, nem sequer precisam disso! – Abie salienta – Que adultos!
A chama iluminava os rostos sombrios. Uma matança difícil de enterrar, uma vingança simples
que nem estava na lista. Quem dava o primeiro passo? Ele. Ela. Nenhum dos dois. Rachel decide
avançar, encara aquele olhar ferido pela traição que nem aconteceu.
– Qual é o teu medo, Phill?
– Não tenho medo.
– Não queres que vire tua mãe? Olhar-me ao lado do teu pai, de braço dado a passear… Ouvir os
meus suspiros noutro quarto…
A mão forte agarra no pescoço dela e os restantes avançam e pedem para ter prudência. O olhar
de Rachel via o demônio que Phill era, capaz de esmagar a traqueia dela só com aquela mão.
Porquê? Porque invocou o nome do pai invés do dele. Porque deu-lhe um motivo para odiar o
amor que sentia. Homens de verdade não aceitam traições dessas.
– E agora Phill, tens ciúmes de mim? – murmura com um sorriso.

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Sete Nomes

O pugilista acordava da fúria que despertou. Ciúmes… Provocou-o para ver se sentia ciúmes.
Recua a mão do pescoço quente e repara no tremer violento que percorria o braço. Os olhos
enchem-se de lágrimas, não gostava de ser violento para nenhuma pessoa, muito menos magoá-
la.
– Não quero o teu pai para nada… – deita o vidro ao chão – Até senti nojo daquele olhar. Se
sentisse ciúmes, tinha feito isto, manifestado. Não sinto Phill, tu és livre para fazeres da tua vida
o enredo que quiseres. – caminha para a porta.
Abie dá-lhe água antes que desmaia-se no chão. Yves puxa uma cadeira a ajuda-o a sentar. O que
aconteceu ali? O corpo ainda tremia as mãos, o medo apagava da memória os curtos segundos em
que passou dos limites. Mal se lembrava do rosto dela… Mal se lembrava do que disse.
– Beba. – dá o copo.
– Boss, esta mulher é louca. – Yves comenta ao ajoelhar e olhar por debaixo do rosto baixo.
– Eu agarrei o pescoço dela.
– Sim, porque a MiLady provocou.
– Devemos de ter cuidado, eu vi logo que ela não era de confiança. – Abie cruza os braços – Ouvi
na praça que a mulher foragida matou dois homens e ainda explodiu com o quarto. Porque
vivemos com ela? Quer matar-nos boss?
Bebe com pressa a água do cano enferrujado. Phill sabia que ela não era assim tão perigosa como
parecia, era só fogo de vista. Claro que a sua autonomia não permitia ter medo das coisas, se
precisava de enfrentar, enfrentava sem receio de levar. Pousa o copo na mão do aprendiz e encosta
a cabeça às costas da cadeira.
– Boston não vos vai fazer mal. Juro pela minha vida que ela não vos toca, ou mato-a.
– É melhor dormir com o facão debaixo da almofada. – Yves bebe o resto da água.
– A última vez que fizeste isso, cortaste a mão.
O aprendiz assente ao coçar o cabelo ruivo, dormir com uma lâmina não era fácil.
– Então trancamos a porta. – Abie sugere – Assim durmo descansada.
– Mas eu não… – Phill levanta – Confiem em mim, Boston não vos quer fazer mal nenhum. O
seu alvo está fora do Box, aqui nós somos aliados.
– Até quando? Quem mata na taberna, mata aqui.
Pousa as mãos sobre o parapeito da lareira. Sentia uma enorme confiança, estava capaz de deixar-
lhe qualquer coisa nas mãos e viajar para longe, sabia que Rachel jamais roubaria ou venderia.
Não, confiava a sua casa a uma pessoa que mal conhecia. Umas noites juntos e uma vingança
conjunta não dava essa liberdade toda. Talvez Abie e Yves tivessem razão, é debaixo do mesmo
teto que os grandes traidores viviam.
Como ia arranjar um diploma de Oxford? Remexe as gavetas do pugilista, talvez ele tenha
ganhado algo nas suas lutas suicidas. Cartas sem data ou remetente, papeis de dívidas, convites
rasgados, ameaças guardadas com carinho… Livros infantis, filosofia sem interesse, pautas à
procura do piano, poemas sem rima. Abre outra gaveta, roupa lavada e passada a ferro, sabão rosa
para dar aroma ao tecido. A cama não permite abrir a última gaveta, o que esconderia ali? Nada,
talvez fosse só a cama a estorvar.
O rosto vira-se ao sentir movimento, Phill subia as escadas.
– Merda. – despe o vestido de dormir e procura o robe.
Apostava que ele não ia ficar contente por a ver a mexer nas suas coisas. Aperta os cordéis e
corre para a porta…
Dá de caras com o pugilista, ainda pálido por causa do que passou.
– Onde vais?
– À casa de banho. – Rachel caminha pelo corredor.
– Temos que falar. – segue-a – Um assunto bem sério e delicado.

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Sete Nomes

O que seria? Pega na vasilha com água e deita-a na bacia de porcelana.


– Fala.
– Yves e Abie alertaram-me para algo… Incomodativo. Eu sei que te dei abrigo por causa do que
aconteceu, fiz todas as tuas exigências e até dei o meu rim para te acolher aqui com amor.
A mão Para de refrescar o pescoço. Sentia na voz dele a mudança súbita de sentimento. Ia
expulsá-la. Coloca as mãos na água e lava bem, tinha que pensar no que fazer.
– Estás a revelar-te… De maneiras muito diferentes. Às vezes choras, noutras partes a casa. Nunca
discuti tanto com uma mulher e receio perder a cabeça.
Assente ao limpar a pele molhada, que despedida mais triste.
– Boa noite. – passa pela porta.
– Rachel… – agarra no braço dela – Tu estás a deixar-me louco. Eles estão aterrorizados com o
que possas fazer, a tua fama de assassinar chega até este lado da cidade.
– Dois homens morreram de causas naturais, não tive nada haver com isso.
– Ambos sabemos que os mataste! Bogges não tarda a chegar aqui e ele não é muito piedoso na
hora de acertar contas. Não posso ser o teu porto seguro no momento em disparas contra mim!
Retira o braço e bate a toalha no peito dele.
– Que sorte, vi uma estalagem que pode acolher-me. Fica descansado, sai-o pela porta que entrei.
– É isso mesmo que queres? Seguir em frente sem mim?
Abre os braços ao entrar na casa de banho.
– Estás a expulsar-me de casa, sou o bicho papão dos teus filhos pequeninos. Yves é homem para
bater, mas receia uma mulher que não quer matar ninguém aqui.
– Já viste o que fizeste lá em baixo? Perdi a cabeça. – bate a toalha no chão.
– Então vou-me embora! Estou cansada de ver que tu dás um enorme valor àqueles dois!
– São como meus filhos sim! Livrei-os da rua! Dei casa, comida, cama para dormirem! Estão lá
quando preciso e ajudam a construir este lugar.
– Só pedi um quarto, tu quiseste dar mais que isso. Agora, eu é que não quero ficar aqui.
O pugilista nem volta a travar o andar dela. Independente, americana que perdia a paciência com
as pequenas coisas. Ia e não voltava.
– Rachel…
Não valia apena, ela já fazia a mala que levou. Ninguém a acolhia e a deixava no anonimato.
Queriam sempre mais, envolviam-se, choravam, declaravam e expulsavam. Veste a roupa que um
dia colocou de lado, procurou refúgio na casa errada, Londres castigava quem procurava dormir
sem acordar com um trauma.
– Rachel!
Aperta o casaco e pega na mala, acabou a vida dependente de alguém.
– Tu és teimosa! – segue-a.
– Esquece o meu nome e volta à tua vida! Não te incomodo mais.
– Ambos sabemos que vou atrás de ti. Eu amo-te! Amo!
Para no último degrau, tentava entender o homem que a colocava na rua e ao mesmo tempo,
pedia para ficar.
– Às vezes, devemos odiar invés de amar, só para prevenir situações assim. – segue caminho.
Phill baixa-se e limpa as lágrimas que chegam aos olhos. Estremece o corpo ao ouvir a porta a
bater com força. E daquela vez, perdeu-a por medo ou por ser medricas?
– Boss… – Yves grita a correr – O que aconteceu?
Olha para a porta que revelava a arena. Tanto o aprendiz como a empregada perguntavam o que
tinha acontecido, ouviram o estrondo que percorreu o Box inteiro.
– Ela foi-se. – fala ao tentar não chorar.
– Porquê?

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Sete Nomes

– Não pediram para partir?


– Só queríamos que falasse com ela, não pedimos para ir embora. – Abie fala com alguma pena.
Apenas falar… Levanta e vai para o quarto, batendo a porta com força. E chora, contra a madeira
pintada chora a dolorosa partida dela. O que fez? O amor também doía na hora do adeus.
O aprendiz senta ao fundo das escadas e repousa a cabeça no ombro de Abie.
– E agora?
Nem ela sabia, suspeitava que Phill não ia considerá-los amigos outra vez, não depois daquilo.
Inimigo por perto, armadilha travada. Longe… Só Deus sabia o que aquela mulher poderia fazer.

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Capítulo 17
A agitação do hotel dava-lhe náuseas. Café na chaleira que ecoava pela sala, bolos coloridos a
andar nas bandejas que tinham destino. Natas no ar, marshmallow para os mais gulosos ao pé da
janela, cigarette na boca dos franceses que navegaram até à terra da rainha. Jornais de ontem a
tapar os olhos curiosos, conversas do futuro incerto. Alguém no palco afinava o clarinete, quem
o queria ouvir às oito da manhã? Damas abanavam os leques contra o rosto pintado, pareciam vir
do pós-morte, procuravam maridos ricos dispostos a dar o que a vida não permitia. Penúria, quem
morreu ao pé do vaso com uma planta vinda da Índia? Ninguém, mas usar perfume ao pé dos
outros era outro luxo. Lá vai o americano com a sua copine, francesa pelo sotaque falsificado. No
bar, alguém queria pagar a conta do mês ao lançar as garrafas ao ar e fazer um coquetel, só para
desafiar aqueles que dormiram sobre a madeira polida cheia de copos vazios.
Erro, sete da manhã e o hotel Mountain Secret já parecia a rua mais movimentada de Paris. Ali,
existiam mais franceses que ingleses. Napoleão caiu, França já cantava vitoriosamente a republica
que vivia. Agora, podiam viajar, os navios a vapor facilitavam a travessia. Novos ricos às custas
da industrialização, não estariam de passagem por Londres, só regressavam à cidade dos grandes
reis quando fizessem negócios com os velhos londrinos.
Às nove da noite, a tarefa de encontrar um quarto tornava-se difícil. Os postos de iluminação da
rua queimaram o óleo sobre a cabeça dela, ensurdeceram com a chama que afastava as trevas
onde os baldios e os pedintes estendiam a mão. Mentiu, não viu hotel nenhum onde pudesse
dormir. Apenas partiu, como se o casamento tivesse corrido mal e agora pagava pela desonra.
Sem alternativa, Rachel andou até encontrar aquele arraial infernal numa rua a qual esqueceu o
nome. Pediu quarto, o homem com um chapéu vermelho na cabeça deu a chave. Pagamento?
Pagava no final, quando fosse embora. Sentiu-se em casa, é como se tivesse desembarcado e
pisasse New York. O sonho durou pouco quando entrou no quarto bem arranjado e cheio de
vizinhos pouco civilizados. Não pregou olho, alguém levou prostitutas e a festa não acabou nem
às duas da manhã.
– Mais uísque, mademoiselle?
Levanta o rosto para o bartman com um lenço aplumado no pescoço. Tinha cara de francesa?
– Pourquoi?
– Parce que mademoiselle ne mon dire le cocktail.
– Je ne nécessité. Je suis angle, ne française.
O homem faz um som de ter pensado o contrário.
– Disseram o seu nome e pensei que vinha de Paris.
É, Rachel inventou outro nome. Fantine Jean-François. Teve imensa sorte, ninguém conhecia a
tal, ninguém pediu documentos e parecia que ninguém queria saber dela. Então chegou à
conclusão que muitos dos hóspedes eram ilegais.
– Quer café? – coloca o braço no balcão – Aposto que é americana.
– Texas. New Orleans.
– Boa terra. Armas não?
Dá de ombros, nunca lá esteve.
– Tem cara que nunca bebeu um café português.
– Qual é a diferença? – Rachel pergunta.
– Os grãos. – aproxima o tronco – Não conte a ninguém, mas o rei Carlos tem bom olho para essa
indústria. – sorri.
– Portugal encontra a Índia e Inglaterra fica dona da terra. Não sei o que é pior.
– Regina sempre teve grandes petulâncias.

118
Sete Nomes

Rachel vira-se da cadeira redonda e encara o italiano sentado numa mesa. Toscana, pousou ao pé
do copo o vinho de Chianti. Baixo e com um bigode engraçado sobre o lábio. Lia o jornal com os
óculos improvisados. Cabelo negro e olhos azuis, casado com uma burguesa abastada que lhe
pagava as viagens de negócios. E o sotaque? Pior mesmo eram os franceses.
– Vem de longe, Sir.
– Sì¸ Firenze. – dobra o jornal e retira os óculos – Tu hai nome?
Levanta da cadeira, agora estava interessada no italiano que sabia falsificar. Como chegou a isso?
Os selos sobre a mesa, na carta com lacra. A rainha não lhe assinou aquilo.
– Café. – faz sinal para o empregado ao sentar em frente ao estrangeiro – O nome é importante?
– Depende da ocasião. Não conseguiu dormir, cierto?
– Olhos pesados de muita coisa. Teve sorte com a rainha.
O italiano sorri e o bigode parece alegrar a sala barrulhenta.
– Digamos que tive sorte.
– Sabe falsificar qualquer coisa? – cruza a perna.
O homem aproxima o rosto.
– Signoria, negócios desses é aparte.
– Pago por algo.
– O que deseja a sua alma? – encaracola as pontas do bigode.
– Quero um diploma de Oxford. Fiz matemática, física, química, filosofia e geometria. Ano? Mil
oitocentos e sessenta e três. Nome? Valentina Albert Geoger Gregory. Professor? William Sky
Smith Thomas. Carimbo de lá e invente uma boa assinatura que pareça credível. Escreva umas
palavras bonitas, veja algo semelhante e copie. Capisci?
Assente ao fazer um gesto com os dedos, quanto pagava?
– Mais do que ganhas na tua cidade. Negócio fechado? – estende a mão.
Levanta a taça com vinho, estava fechadíssimo.
– O seu café, MiLady. – o homem pousa a chávena na mesa.
– Barton, traz as bolachas que a minha copine está com fome. – o americano reclama.
– Fome? Ela tem é um bom peito para ser apalpado. – um homem com charuto na mão fala ao pé
da janela.
A mulher fecha melhor o robe rosa e olha para o amante com algum receio.
– Se quer uma, arranje lá em Cannes.
– Cannes? Não vou para esses lados. A república dá-me náuseas.
– Será o futuro da europa. – o italiano comenta sorridente.
– Que desgraça! – uma mulher com o leque aberto comenta sem receio – Só espero que o meu
czar viva para prevenir isso.
– Olha uma russa… – o homem de charuto tose um pouco o fumo – Como vai Moscovo?
Ela aperta bem o casaco de pêlo e ergue a cabeça.
– Frrio.
– Carregou no “r”. Só os franceses é que têm essa mania estrupida. – goza ao rir.
– Fique a saber que, tecnicamente falando, nós os italianos também temos palavras com “r” e
carregamos nessa vogal de vez em quando. – defende a pátria dividia em condados.
– Os italianos são bons é para festas. Aquele vinho… – o americano sonha.
– E a paella. – a mulher fala.
– Isso é espanhol. – todos falam em sincronia.
Ela suspira ao passar a abanar o leque.
– E a senhora, não tem opinião?

119
Sete Nomes

Rachel olha para eles, com cara de que estava calada demais para uma manhã agitada. O que
queriam que falasse? Politica não era o seu forte, cultura também não, arte só se fosse
renascentista, música ainda estava a descobrir.
– A minha opinião é muda, tal como qualquer mulher londrina.
– Aqui, quem entra, é livre de falar. Eu posso mandar a velha e gorda e feia Victoria lamber o cu
do Abu qualquer coisa, imperador da Índia. Quanto apostam que ela vendeu o barril para ser
imperatriz de lá? – o homem com charuto comenta.
Umas cabeças assentem, outras ficam tímidas nos pensamentos.
– Londres nunca será glorioso como na época de Elizabeth. Ainda veremos este reino cair, tal
como França caiu, Áustria cairá, Rússia também, Itália já se afunda!
– E qual será o país que se vai safar?
Sopra para o ar o fumo intoxicante.
– América. Tem tudo para nos dar um pontapé no cu.
– É verdade. – o americano trinca uma bolacha – A nossa indústria prospera melhor que a
londrina. Caminho vemos carroças sem cavalos.
– Ou aviões, o sonho de voar não tem limites. – quem limpa o clarinete senta numa cadeira.
Afinal, o hotel era cultural, não só os franceses andavam por ali.
– Concordo convosco, senhores. – Rachel coloca as mãos sobre a mesa – Mas América importa
os produtos que Inglaterra, Holanda, Espanha, França, Portugal e Áustria fornecem. Sem estes
países, nós, americanos livres desde que enfrentamos a coroa de George III, não somos nada. O
que pode acontecer é serem dependentes de nós, por temos mais dinheiro.
Mudos, esqueciam-se que as industrias não viviam de ar e vento. Para existir, é preciso ir arranjar
os materiais certos. Sem os reinos europeus, América jamais conseguiria chegar ao auge.
– Queria continuar esta conversa, mas sinto-me aborrecida demais. – olha para o italiano – Tem
até às quatro. Ou não pago nada após essa hora.
O homem assente.
– Pardon. – levanta e caminha para a saída.
– Ela é bonita e boa. – pega no charuto – E inteligente.
Ainda bem que existia liberdade, ou aquela opinião só passaria de um pensamento.
Sobe as escadas sem pressa, não tinha com que se preocupar. Teria que decorar os cálculos que
Backer fez no diário, só assim fingia ser física. Que loucura, só aprendeu gestão e mal-entendia o
significado das letras nas contas. Ainda ia a tempo de aprender algo, nem que fosse para apanhar
a vítima.
Repara na porta encostada do quarto. Empregada? Não, ela avisou que colocaria um lembrete na
porta para indicar que estava a arrumar. Encosta-se à parede com um papel colorido, espreita pelas
dobradiças. Quem era o intruso? Bogges, Phill tinha razão, o detetive não desistia assim tão
facilmente.
Arregala os olhos ao vê-lo pegar na mala. Não arrumou os documentos verdadeiros, não teve
tempo para isso quando chegou.
– Rachel… Elena Linford Clarel. Tu não és Valentina Daylux.
A porta bate e Bogges vira para a mulher misteriosa. Mostra o passaporte, não podia mentir sobre
quem era.
– Já sei quem é, MiLady Clarel.
– É mesmo? – caminha para a mala – Já deu conta que não tem carimbo?
O detetive confirma a página sem carimbo. Se fosse verdadeiro, devia de estar registado pelo
consulado inglês na América.
– O verdadeiro? – bate o livrete na cama.

120
Sete Nomes

Rachel vai à mala e pega noutro passaporte, o último que decidiu carimbar caso aquele dia
chegasse.
– Belo laço na cabeça. Foi o seu filho? – dá o passaporte.
– Andreo mal sabe andar, quanto mais dar nós. – abre.
Carimbado, no dia em que embarcou no porto de New York e chegou a Londres. Olha-a, para
quê que queria dois passaportes? Qual era o verdadeiro?
– Supondo que este é o verdadeiro, para quê o outro, MiLady?
– Faz muitas perguntas para quem foi parar ao hospital.
– Por sua causa. Vim para a deter.
– Sobre que acusação?
– Tentativa de homicídio.
Desata a rir, fecha a mala após arrumar o passaporte e ajeita a almofada com a pistola.
– Provas? – senta na cama
O detetive tira do bolso um pequeno caderno de couro e procura a página cheia de pecados.
– “Valentina Daylux. Sete de fevereiro de mil oitocentos e oitenta e quatro. Fugiu com a
documentação. Explodiu com o quarto rendado, pondo em perigo os hóspedes…”
– Que nesse dia não estavam.
– “Mandou um cidadão para o hospital. Usou pólvora ilegal para incendiar o engelho
explosivo…”
– Que mentira.
– “Segundo o código penal… – vira a página – Qualquer cidadão ilegal que entre no solo inglês,
e apresente suspeitas de perturbar a conduta alheia, deve ser imediatamente preso e interrogado.”
É bom que tenha um advogado.
Também tinha uma solução muito óbvia. Boum… Como Phil disse. Ainda bem que os
americanos cresciam a usar armas.
– Tem como provar isso?
– Tenho. – arruma o caderno de notas – Claro que tenho.
– Prove.
Bogges ajeita o casaco negro e tenta arranjar provas. Não tinha, não tinha mesmo nenhuma. Foi
o único a sobreviver à explosão, vistos que o ministro e a dona estavam no primeiro piso. Também
não conseguia ligar o nome dela aos homens mortos, Chester estava colocada na pasta Revenge e
os outros nem estavam.
– Detetive, volte quando tiver provas de algo, porque sei dos meus direitos e deveres. – levanta e
vai para a porta – Passar bem.
– Espere… Ainda quero entender o motivo que a levou a fugir.
– Tive receio de ser presa.
– Sobre que acusação?
– De estar há demasiado tempo aqui, em Londres. Vai prender-me por isso?
Não seria mau pensado, havia limites para quem não se registava. Vistos que não existia mais
argumentos a seu favor, pega na cartola e caminha para a porta.
– Tenha cuidado, MiLady Daylux. Nunca se sabe quando eu posso estar a ver o que trama nesta
cidade.
– Certamente também o andarei a vigiar, a si e ao seu filho Andreo. Sete meses? De quê que
morreu a mãe?
– Assassinada.
– É pena quando um homem bebe muito e bate. Como o seu filho vai encarar o pai um dia?

121
Sete Nomes

O olhar dele estava no limite da sua paz. Durante meses e meses tentou desviar essa noite trágica
para outra maré que não a sua praia. Ninguém sabia que assassinou a própria mulher, nem o padre
sabia disso.
– Como sabe isso? – pergunta quase com os olhos em lágrimas.
Rachel aproxima a boca ao ouvido dele, o único que não estaria mouco.
– Tatuou o nome dela no pulso, a fim de diminuir a dor. Bebe muito à noite, só para apagar o que
fez. Enterrou-a perto de uma roseira, só para lhe dar algo. Colocou a faca lavada atrás da cruz da
campa. Acha que não sei construir os cenários?
Os olhos estavam cobertos de lágrimas, a respiração já puxava os soluços.
– Matou-a em frente à janela que todos os dias olha para ver o posto de correio. Ela colocou a
mão na janela, gritou o nome do filho três vezes, as mesmas facadas que levou nas costas. Depois
do mal feito, chorou até de madrugada, livrou-se do tapete colorido e deitou-a ao rio. Deram o
alerta quando já estava no trabalho. Arranjou testemunhas bem pagas e livrou-se do crime. – recua
o corpo.
As lágrimas descem o rosto. Entra no quarto e senta na cama a chorar, tentava livrar-se dessa
noite terrível, tentava viver normalmente sem esse peso na consciência. Rachel entra e fecha a
porta, como era fácil virar o feitiço contra o feiticeiro.
– Só não sei o porquê de a matar.
Bogges nem sabia como ela sabia disso.
– Eva ia fugir com Andreo… – fala ao acalmar o choro – Prometeu que ele não era meu filho. Fui
sempre o seu amante, estávamos à espera do divorcio, mas o tribunal demorava muito. Não tinha
dinheiro para pagar a casa de sonho que construímos, quanto mais trabalhava, mais as despesas
aumentavam. Eva estava desesperada, após o parto mudou muito, dizia o filho não era meu e que
ia mudar-se para casa do marido novamente. Bebi… – os soluços voltam – Não a queria matar.
– Atirou ao rio para se livrar do corpo.
– Não. Eva queria ver o mar. Adorava água. Pensei que assim ela ficava em paz. Andreo só tinha
um mês de vida… Arrependo-me todos os dias, todas as horas e segundos. Ela faz-me muita falta.
– volta a chorar.
Homens violentos que bebiam e matavam. Rachel conheceu alguns no café onde frequentava.
Todos os dias alguém era morto por ter matado a esposa. Quem tinha sorte, mudava de nome e
cidade, ou arranjava fortes motivos para o assassinato. Como por exemplo, traição. Um homem
americano podia matar a mulher que o traiu com outro e engravidou. Ou que fugiu. Ou que se
divorciou. O que não podiam era matar as esposas sem esses motivos.
– Quando acabar, limpe o rosto e saia, que quero ver se durmo algo. – caminha para a janela.
– Como sabia disto, Valentina? – retira um tecido do bolso.
– Andei por aí… Segui os seus passos, ouvi a sua ama… Digamos que sou esperta. Se me deixar
em paz, prometo que não abro a boca.
– Ninguém acreditaria em si.
Vira o rosto, quem disse que não iam acreditar?
– Vá por mim, basta um bom olhar para fazer um bom negócio.
– Preciso de encontrar o assassino de Chester, ou passarei fome este mês. – arruma o tecido.
– Apanhe um fiador dele, acuse-o e pronto.
– Se fosse fácil, já teria feito isso. Chester tinha uma longa lista de vítimas, devedores, velhos
ódios… Pensei que aquele passaporte era o verdadeiro, estava lá escrito Clarel, um dos devedores
da lista de Chester.
Devedor… Então era assim que tratavam o homem que mudou muitas vidas graças ao sonho de
ir mais longe nos negócios. Devedor, mataram-no por nada dever aos seus empregados, criaram

122
Sete Nomes

ódio de um homem que todos os meses pousava na mesa o salário, dava os dias santos, os
domingos, os dias de doença… Nunca exigiu mais que profissionalismo.
– Esse… Está morto. – fala com uma voz quase inaudível.
– Como sabe?
– Tenho o nome da filha dele no passaporte. Garantiram que estava morto, enterrado e esquecido.
– Não entendo o porquê de dois documentos se usa só um.
Vira-se para o detetive.
– Se me roubarem, levam o falso e não o verdadeiro.
– E se roubarem o verdadeiro?
– Uso o falso para não ter problemas. Esclarecido, detective?
Fazia sentido, valia mais por vezes usar o falso que o verdadeiro. Ou não era nenhuma delas. O
mais certo é nunca descobrir a sua verdadeira identidade, os fugitivos mudavam de nome as vezes
necessárias para se esconderem. Não a podia incomodar mais, não no momento em que estava
em suas mãos. O que acontecia caso as pessoas soubessem da verdade? Bogges morreria, além
de fintar a justiça, culpou outra pessoa inocente.
– Temos acordo sobre o silêncio?
Rachel abre um pouco a cortina e espreita para a rua. Silêncio, queria melhor acordo que aquele?
Bogges assente ao caminhar para a porta, não a viu ali, não o viu. A porta fecha lentamente e ela
suspira de alívio. E se tivesse sido ao contrário? E se Rachel fosse o verdadeiro nome de
Valentina? A verdade era essa, porém, quanto mais invisível, melhor se podia movimenta em
Londres.
Abre a mala e pega no passaporte, tinha que o esconder em algum lugar. Abre uma gaveta, retira-
a da mesinha de cabeceira, repara se o fundo é ligeiramente mais fundo e pousa lá o passaporte,
volta a colocar a gaveta e senta na cama. Tinha Bogges na mão, mas não tinha a cidade toda. Até
que ponto teria de fugir de si mesma?

Dentro da banheira, ainda com a roupa do dia anterior, ainda calçado com as botas… Água fria,
talvez gelada por ter lá estado desde as duas da manhã. O aprendiz nem se atreveu a passar pelo
primeiro degrau das escadas, só Abie é que subia e descia para ver se o patrão estava vivo. Estava,
roxo, mas estava.
Alguém bateu à porta e a primeira pessoa que veio à cabeça deles foi Boston, voltou para o tirar
de lá. O sorriso saiu do rosto ao darem de caras com o pai dele, o intitulado príncipe William.
Não dirigiu a palavra à escrava, apenas perguntou ao rapaz ruivo onde estava o filho. Lá apontou
para as escadas, aquelas que foram corridas pelos sapatos da realeza.
O grito grave percorreu o Box, só não partiu o cristal por ser grave e não agudo. Grave… A
situação era tão grave que William mandou chamar o médico. Deitou o filho na cama, tirou-lhe a
roupa molhada e depois esperou pelo especialista de Windsor. Vivo ou morto? O homem garantiu
que estava só em choque, ou nem isso.
Sentado em frente à lareira, Phill perdia o olhar na chama quente. Bebeu dois chás e o próximo
que chegasse voaria para a parede. Mal olhou para os dois hóspedes da casa, ainda tentava
entender quem chamou o pai e o porquê de o tirarem da água fria. Pneumonia… Precisou de
refrescar a mágoa, rejeitou o álcool como solução. Não queria ficar doente, apenas encarava a
realidade de outra maneira. Vira o rosto para Abie, lavava a louça enquanto William estava no
quarto a procura de roupa lavada.
Sim, nu, ao pé de empregada que considerava filha, enrolado numa manta qualquer que não foi
lavada. A vida fazia sentido, a expulsão não.
123
Sete Nomes

– Onde está Yves? – pergunta quase em sussurro.


– A tingir o cabelo, tem medo que a rainha cá venha.
Não, ela jamais se daria ao trabalho de ir ver o filho bastardo do príncipe.
– Como está, boss? – limpa as mãos ao avental.
– Zangado. Fizeram-me expulsar a Boston. Sabem que perdi imensas mulheres, não a queria
perder neste momento difícil!
– Talvez tenhamos falado de maneira errada…
– Abie. Claro que não a conhecem, não sabem o seu segredo. Mas alguma vez vos coloquei em
perigo? Alguma vez coloquei um assassino desses debaixo deste teto?
Baixa o rosto, não, nem mesmo os amigos mais próximos que se afastaram passaram ali noites.
No fundo, só deixaram o patrão com um enorme buraco no coração.
– Desculpe. Só tínhamos medo.
Phill respira fundo, eram duas crianças ainda, mesmo que a idade dissesse outra coisa. Faz sinal
para ir para o quarto, não a queria ali daquela maneira.
– Fica bem?
– Acho que o meu pai não quer perder o filho bastardo. Alguma coisa eu grito.
Assentindo, caminha para a porta.
Estica a mão para o copo de vidro e bebe o vinho num só gole. Onde andava Rachel? Algures na
cidade cada vez mais intransitável. Algures num quarto pago. Algures numa cama que ele não lhe
deu. Passa a mão pelo cabelo e encara o fogo. Nunca sofreu tanto por uma mulher. Sentia-se fraco,
é como se as energias tivessem sido sugadas pela porta que bateu na noite anterior.
– Onde andas? – murmura.
Esperava que não existissem notícias trágicas do tipo… Morreu a mulher misteriosa de Boston.
O coração não ia aguentar, iria fazer luto por parte da sua vida. Nem comia, nem dormia, nem
lutava. Chega. Acabou o “não quero saber.” Já tinha idade para pensar no que queria para o futuro
e, queria-a no seu longo caminho para os cabelos brancos. Levanta, ia procurá-la, ia colocar-se de
joelhos e pedir desculpa. Humilhante? De vez em quando, valia mais ajoelhar até ao chão do que
continuar de queixo erguido. Antes cobarde que valente. Antes culpado e perdoado que inocente
choramingão.
– Vais a algum lado?
Suspira, senta na cadeira e estende as pernas. Valente. Esse sim era cobarde.
– Não pai.
– Não tens roupa nenhuma… – retira as luvas – A tua empregada não trabalha bem?
– Trabalha, a roupa é que demora a secar.
– Mandei ir comprar, não te quero dessa maneira. – coloca a mão na testa dele.
Phill revira os olhos, nunca lá esteve quando esteve doente, mas agora fazia de pai a cem por
cento.
– Tens frio?
– Não.
– Calor?
– Não.
– Fome? Sede? Queres comer? Queres que…
– Pai! Estou bem!
O príncipe dá conta que ele não era uma criança pequena que precisava de colo. Pelo contrário,
era um homem forte e bem nutrido para o ano difícil.
– Porque veio?
– Pensei que… Podíamos fazer algo.
– Depois de ontem, tem autorização para puxar a minha orelha.

124
Sete Nomes

William faz um som com a língua, que parvoíce.


– A rainha é severa, mas a idade ajuda a melhorar o humor. Apenas disse que és um rebelde por
domar. Não serves para príncipe.
Disso o pugilista sabia. Nem para príncipe, nem para nobre.
– O que quer fazer?
– Tenho xadrez na carruagem. O que me dizes?
– Não sei jogar. – levanta o rosto.
– Damas?
Nega.
– Gamão?
Faz uma careta ao negar.
– Dados?
– Póquer, o que me diz?
– Não sei jogar isso. Lá na Áustria pouco se podia jogar no castelo. No mínimo, xadrez e damas.
No máximo… Ler.
– A vida dos palácios é tão aborrecida que até me dá náuseas. – levanta e procura uma garrafa.
– Nascemos para casar e procriar. Tudo seria permitido se fossemos plebeus.
Mostra a língua em forma de protesto, nem oito, nem oitenta. Retira do armário a garrafa de
vinho francês e arranca a rolha para sentir o aroma.
– O que te atirou para aquela banheira, Phillipe?
Tinha que tocar no assunto que já ganhava crosta? Suspira ao largar a manta, fecha a porta e senta
na cadeira, servindo-se do vinho.
– Alguma vez amou uma mulher de verdade? Sem ser as amantes.
William arrasta uma cadeira para perto da dele. Pega no copo oferecido e sente o aroma antes de
encarar o fogo.
– Amei uma mulher quando visitei a Índia. Chamava-se Heindiambi. Dois meses lá, no pleno
paraíso… Mataram-na quando invadiram a aldeia para raptar-me. Estava grávida e jurei para mim
mesmo que seria a última mulher que eu cortejava. E foi.
Outra… Phill arregala os olhos ao beber, ainda bem que não saía ao pai, fazer filhos em qualquer
lado para garantir a regência.
– Nós nunca ficamos com quem amamos. É essa a nossa maldição.
– Não existe um único príncipe que case por amor?
Dá de ombro em mexer o copo.
– Há… A rainha pediu em casamento o falecido marido, o rei George III amou a mulher até ao
fim, Napoleão casou com a mulher que amava… Na minha corte isso é difícil de acontecer. Casei
sempre obrigado, sem escolha ou motivos para contestar. Lembra-te, antes a paz forçada… – bebe
e fecha os olhos com força – Que guerra desnecessária. – bate o copo no parapeito – Porquê a
pergunta? Quem amas?
– Aquela que estava comigo no castelo.
O príncipe faz um som de agora entender o motivo suicida dele. Ela partiu.
– Talvez não te ame.
– Ama, só não gosta de o dizer. Não sei o que fazer sem ela, estou de rasto. – pousa o copo.
Coloca a mão na perna dele, acarinha a pele com pelos e encara aquele olhar cheio de lágrimas.
O orgulho de ter um filho era esse, falar, dar conselhos, animar a alma desesperada que estava
sem forma de encontrar uma porta.
– Phillipe… Nós somos como… O carvão. Alimentamos as máquinas a vapor, os comboios…
Somos essenciais. Um dia, alguém nos vai colocar de lado e só vai dar valor quando deixarmos

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Sete Nomes

de existir. Se te ama de verdade, volta, todas voltam no momento em que não têm casa, comida e
dinheiro.
– É uma americana que cresceu sem pais, aprendeu a ser independente. Ela é que tinha dinheiro,
pagou até a renda do meu quarto só para ficar.
Exemplo errado, estava habituado a mulheres dependentes.
– Então… Espera pelo momento certo.
Vira o rosto para o pai, a testa enrugada queria expressar algo.
– As minhas irmãs alguma vez falaram consigo? Alguma vez precisaram de conselhos?
Retira a mão da perna dele e olha para o fogo.
– Pai… Não está a ajudar.
– Só tive meninas na tenra idade da vida, que nunca precisei de ir ao quarto ler uma história para
adormecer. As amas têm essa função. Se soubesse como ajudar, eu ajudava com as palavras.
– Já pensou em falar algo vindo do coração? Quando Yves está no aperto da vida, eu sento na
cama, abraço-o e digo “Pensa no pior cenário, porque o melhor já estás a viver.”
William assente ao pensar sobre o conselho, não tinha tanta criatividade.
– Lidas melhor com os sentimentos que eu.
– Porque talvez tenha crescido no slum.
Sorri, os castelos eram bons para criar corações de gelo.
– Pensa no pior cenário… – estica as pernas – Ainda vais viver o melhor.
Phill ri ao dar um ligeiro empurrão ao ombro do pai, não tinha piada copiar a sua frase. Repousa
a cabeça sobre o corpo dele, procurava sentir o carinho que deixou de ter. Mesmo sendo homem,
mesmo que a idade não permita… William acarinha o cabelo dele, obrigando-o a fechar os olhos.
– Obrigado pai. – murmura.
O príncipe sorri e continua acarinhar. Nunca da vida, após o que viveu, se sentiu tão feliz ao pé
daquele filho bastardo. Errou ao pensar que a morte seria a solução para o seu sossego. Não,
apenas a vida traz a felicidade,

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Sete Nomes

Capítulo 18
Quatro e meia, a porta de Backer abriu, os olhos analisaram o dito diploma e só depois é que a
mão fez sinal para entrar. Professor William Sky Smith Thomas… Conhecia-o bem, treinou com
ele os graus da graduação necessária para as lentes ficarem perfeitas. Pena que morreu há cerca
de dez anos, vítima de um atropelamento violento com uma diligência. Se aquela aluna foi a dele,
então tinha que confiar na sua mente brilhante para construir o telescópio de sonho.
– Dormiu bem, MiLady?
Rachel pousa a bolsa numa cadeira e desaperta o chapéu largo da cabeça. Não dormiu, o hotel
infernal não deixava que os dias tivessem fim.
– Claro, os meus filhos têm uma boa ama.
– Ainda é estranho para mim saber que vós tendes filhos ou quarenta anos… – acende uma vela
ao pé do quadro negro – A sua aparência e elegância espanta-me.
Maior parte das mulheres londrinas tinha um peso acima por causa das gravidezes. Quando vinha
um, segui-a mais sete longos anos assim, sempre a dar ao mundo os herdeiros. Envelheciam só
por causa do cansaço. Enterravam os mais fracos, alimentavam os fortes e continuavam a dar vida
por necessidade. Rachel não tinha cara de sequer ser uma mulher casada.
– Somos belas no momento em que nos cuidamos bem. – puxa as mangas do vestido para cima.
Backer sorri ao abanar o palito incandescente, puro segredo da beleza eterna.
– Muito bem… – ajeita os óculos – A MiLady sabe acabar esta longa conta? Estou com
dificuldades em calcular hoje. Tive uma longa discussão e preciso de uma boa mente.
O olhar perdesse no enorme quadro de cré. A conta… Com letras, com raízes quadradas, com
números ao quadrado… Não estava no diário que tentou decorar ao máximo, não estava em lado
algum. Arranjou diploma para passar por inteligente, porém, a mente mal-entendia o que era para
fazer.
– Espero que não esteja assustada. – dá manivela e o gramofone começa a tocar – É simples.
Respirando fundo, pega no giz, sobe as escadas até cima e encara o problema grave. Uma letra
ao quadrado, a dividir por raiz de Pi, vezes a força G mais Gold ao cubo. Simples? Devia estar
bêbedo. Para ele era simples, para ela… Um pesadelo. O som do giz a riscar a louça ecoa, é como
se o gramofone não estivesse a tocar a sinfonia.
Backer retira os óculos, coloca um braço debaixo do outro e trinca a ponta de metal do que
pegava. A mão dela abria caminho pelo quadro negro, traçava uma rota no meio da escuridão. O
braço esticava-se ao máximo, parecia um enorme pescoço da girafa. Rápida a calcular, rápida a
colocar em linha a rebelde conta. Onde ia parar aquela inteligência?
A agulha sai de cima do disco de vinil e o giz parte-se após vinte minutos a rabiscar. Rachel
repara no que fez inconscientemente. Sentia o corpo transpirado, o cabelo perto do rosto estava
molhado. Levanta o rosto para o enorme quadro, fez aquilo? Recua… Parecia um enorme
desenho, só que com contas. Olha para a mão branca, estava sem palavras.
Uma mão é pousada no ombro e o corpo estremece.
– Correto. – murmura ao ouvido.
O olhar encara aquele rosto pacifico. Correto, apenas isso? Fez a maldita conta sem ter tido uma
única aula sobre o assunto.
– Tem a certeza?
– Valentina… – suspira ao colocar os óculos – Diria que os pequenos génios habitam onde menos
esperamos.

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Sete Nomes

Ainda estava estranha, começou a inventar no calculo, nunca fez aquilo. Depois… Lembrou-se
do que tinha lido no diário, aqueles números todos que não lhe dizia nada. Só não fechou os olhos
porque a mente não quis. Fez sem estar realmente ali, só usou a memória motora.
– Vamos ver as novas lentes que chegaram. – anuncia ao voltar a colocar a agulha sobre o vinil.
– Sim… – limpa a mão ao vestido – É esse o problema, certo?
Não só, Backer não conseguiu arranjar o resto do material necessário. Mais uma vez, adiava a
sua invenção às custas da falta de financiamento. Pousa a caixa de madeira sobre a mesa e abre-
a para retirar de dentro do pano de algodão as ditas lentes côncavas e convexas.
Rachel reconhece-as, as suas eram iguais.
– Paguei dez libra por cada. – levanta para a luz da vela – Sabes onde as usar?
– No telescópio.
– Certo. Estas são as lentes primárias. A secundária é aquela que está no circulo maior, a que tem
mais graduação. Estas aumentam em dobro o que aquela já aumenta.
– Como como os monóculos.
– Sim, sim… – pousa as lentes – Só que em grande escala, o dobro. – abre os braços – Temos que
ir mais longe, ir mais longe do que estas nuvens cinzentas. Não há limites, devemos querer sempre
mais de nós mesmos. Galileu dizia isso, se o homem não quer sonhar, ao menos nós tentemos.
Não tendes curiosidade de ver as estrelas? Saber o que elas são?
Rachel olha para o telhado de vidro. Estrelas… No mar viu-as bem perto da linha do horizonte,
é como se elas tivessem descido o céu e decidido dançar sobre a serena água. Era difícil em Boston
vê-las, estar na rua a certas horas significava esperar pela morte. Olha para Backer a contemplar
o sonho. Quem diria que ele ajudou a matar o pai? Ninguém, aquele conquistador apenas parecia
só se dedicar ao céu de cristal.
– Trabalhou para Cristian Clarel?
O rosto baixa para a frente, a pergunta parecia ter parado o gramofone. É então que o olhar de
gelo se vira para a curiosa. Pergunta errada no momento de glória.
– Ele está vivo.
Não… O impostor que levou o título, os documentos e deu como morta a família estava vivo, ali
em Londres, a viver às custas de quem morreu em frente à filha e piorava o comercio que devia
de ser motivo de união.
– Porquê a pergunta?
– Soube que foi contabilista dele. – tenta disfarçar o nervosismo.
Assente ao fechar a caixa.
– A esposa dele morreu no parto e a filha desapareceu. O coitado voltou desemparado… – vai
para o armário – Finalmente casou com uma mulher decente e vive o que merece.
– Não foi assassinado? A notícia saiu no jornal americano.
As lentes telintam quando as portas são fechadas com força. O que ela sabia sobre isso? Nenhum
jornal escreveu uma linha que seja sobre o assunto, a menos… Vira o rosto e encara-a como se
visse um fantasma.
– Rachel, és tu? – pergunta quase em sussurro.
Nega com um ar de ofendida.
– Quem é a Rachel?
– Só podes ser ela, aquela que deixamos no orfanato. Mataste Chester e agora vens matar-me! –
grita.
– Eu não sou a Rachel. – tenta ser elegante.
– Tu vais vingar a morte do teu pai! Aquele canalha devia-nos, ele disse que realizaria os nossos
sonhos e depois fechou a mina de ouro! Acabou com o comércio naquela semana, tinha um lucro

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Sete Nomes

acima da média e deitou tudo a perder por tua causa, uma menina mimada que enchia os olhos do
pai!
– Não sei do que está a falar…
– Por tua causa que os navios comprados foram vendidos, a casa de Boston ia ser leiloada,
voltariam para Londres e viveriam ao pé do vosso primo como Duques! Quem devia de ter sido
morto eras tu, não ele. A tua mãe mereceu aquela dor, a mesma que nós sentimos quando
recebemos a carta de despedimento.
Rachel mantem-se serena, a hora dele ser morto ainda não tinha chegado. Se se queria confessar,
que dissesse os pecados. Chester disse quase o mesmo acerca do seu pai, Cristian ia desistir de
tudo por causa da filha e da mulher, o negócio negro do maldito ouro ganho às custas dos escravos.
Não existia orgulho nisso, apenas nojo.
– Tu vais morrer com o teu segredo… – Backer pega na pistola – A tua família vai estar finalmente
enterrada… – aponta a culatra contra ela – Os Clarel nem deviam de ter nome.
Calma, nem um olhar tremido, nem lábios secos por causa do stress. Nada, os olhos encaravam
os dele, tentava convencer que não era a rapariga que sobreviveu aos horrores do orfanato. Quieta,
nem um pingo de rancor perto daquela vingança fútil.
A mão do cientista treme, a mente começava a dar conta do erro. Valentina Daylux, filha de
Flaust Londel, burguês de Manchester. Casada com Jonathan Daylux, quatro filhos e um bebé de
colo ainda. Estudou em Oxford, dedicou-se à matemática antes mesmo de casar por obrigação.
Baixa a pistola e encosta-se à mesa, o que fez? Acusou-a de ser quem não era.
– Desculpe MiLady, começo a ficar demente e digo parvoíces.
As mãos frias dela pegam na pistola e depois, abraça o cientista confuso de si mesmo. Claro que
Rachel não queria fazer aquele gesto, mas se parecesse quem era, colocava-se em risco.
– É para ver as estrelas ou o submundo?
Backer recua o corpo dela e olha para o rosto sorridente. Que erro inadmissível. Aquela doce
criatura não era Rachel, jamais a filha de Cristian se daria ao trabalho de abraçar quem odiava.
– Volta amanhã, preciso de descansar.
– Claro… – procura a bolsa.
– Por volta das seis, quanto mais cedo, melhor.
– Cá estarei. – coloca o chapéu.
– Mais uma vez… Lamento esta confusão, são coisas do meu passado e não me orgulho delas.
– Todos temos um passado, quer difícil, quer fácil de digerir. Passar bem. Sir.
Faz um pequeno gesto com a cabeça e Rachel caminha para a porta. Quando bate a madeira no
aro, o cientista corre para a cómoda e pega na garrafa de vinho, quando o trauma chegava à mente,
nada poderia salvar a alma. Abre a rolha e bebe até sentir o líquido escorrer pelo queixo, aquele
pesadelo perseguia-o aos anos. Logan disse que nenhum Clarel de Boston sobreviveu para fazer
vingança, não tinha que se preocupar. Devia de acredita nele, Rachel estava morta e os mortos
nunca regressam para acertar contas.
Que vontade de o matar, que vontade de enterrar uma bala na cabeça dele e depois pendurá-lo no
teto de vidro. Admitiu tudo sem ter que o ameaçar, não encontrou remorsos nenhuns naquele
olhar, apenas a mesma raiva que se lembrava de ver no dia em que o pai morrer. Vira de rua,
Rachel controlou-se ao máximo para parecer Valentina Daylux. Agora mais do que nunca tinha
que seguir com a sua vingança, aqueles homens não tinham alma, só queriam saber do dinheiro e
mais nada importava.
Desacelera o passo ao ver Phill com um saco de pano na mão. Não o esperava por aqueles lados,
a menos que a padaria ficasse perto dali. Finta a roupa elegante, alguém chegou ao Box.
O pugilista não rasga um sorriso no rosto, existia felicidade por a ver, mas ao mesmo tempo…
Estava triste.

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Sete Nomes

– Belo fato.
– Belo rosto enjoado. Backer irritou-te?
– Não estive com ele.
– Então o giz é de onde?
Baixa o rosto para o vestido pincelado de branco.
– Não é da tua conta. O teu pai gosta de broa? É pouco nobre para esse gosto tão plebeu.
Phill sorri, detalhista mesmo ao ponto de dar conta que o fato não foi comprado com o seu
dinheiro.
– Tu saíste e ele é o novo hóspede da casa.
– Preenches rapidamente o quarto. Paga mais que eu na renda?
– O dobro. E não tem tantas regras.
Faz um som de nem estar interessada.
– Calaste Bogges, não foi?
– Contou-te os pecados?
– Não, comentou bêbedo que Valentina Daylux é inocente. Sempre olhar de águia que ataca por
debaixo.
Contra o queixo, que provocação sem propósito.
– Enche a boca com a broa e vê se desapareces. – segue caminho.
– O teu hotel é mesmo bom… Até tens uma opinião azeda e refinada.
Para e encara mais de perto aquele rosto lavado e aparado.
– Liberdade de expressão e conforto aliado à invisibilidade. Londres há muito que fede ao rigor.
Phill aproxima mais o rosto.
– We are the pride of kingdom. Do you know? Happy queen, society happy too.
Não era o que os americanos pensavam. Só deviam de agradar as famílias, o resto, os políticos
lambe botas, deviam de ser desprezados como se fossem vermes.
– Odeio Londres.
– Odeio Boston.
– Passar bem, Phillipe. – segue caminho.
– Passar bem, MiLady Boston.
Pelo menos não a chamou pelo verdadeiro nome, já não era mau.
– Só uma coisa… Esqueceste o teu robe na minha casa de banho.
– Fica com ele para limpares as lágrimas. – grita ao virar de rua.
Lágrimas… Não, Phill usava-o para sentir o aroma ainda lá presente. Volta a andar, a coisa boa
das mulheres é que sempre eram marcantes no que faziam. O perfume dela marcou o colchão e o
robe, claro que a amargura do humor marcou pela negativa. Valeu apena ir comprar pão, pelo
menos viu que a independente mulher estava viva. Por quanto tempo? Os limites testados apenas
estavam a começar.

Jantar no quarto do pai no palácio, com direito a vista para o jardim e comida confortante. A
rainha nem o viu a entrar, melhor assim. Yves também quis ir, mas o cabelo ficou horrivelmente
tingido e, segundo o mestre, os irlandeses ainda eram vistos como inimigos. Lá se contentou com
a moeda de ouro dada pelo príncipe, só para não chorar e privar o filho de ir.
Talheres de prata e pratos de porcelana… O Box também tinha aquele requinte. Só faltava os
animais do costume. Retira o pano de cima do pão e saboreia-o ao passar a manteiga sobre o
vapor.
– Que delicia.
130
Sete Nomes

– Queres mais camarão? – William pergunta ao limpar os cantos da boca.


– Não… – trinca o pão e come de boca aberta.
É então que repara no olhar do pai, que falta de educação. Fecha a boca e engole com
dificuldades, a nobreza era como engolir pregos a toda a hora.
– Este vem perto da costa norueguesa. É muito bom.
– Já dei conta… – fecha a boca.
Falar de boca cheia também era má educação.
– É como educar uma criança ainda pequena. – William sorri.
– A diferença é que tenho vinte e cinco e… – limpa a boca à manga e depois suspira, não devia
ter feito aquilo – É difícil.
– Cresci com isto então é estranho não ter modos.
– Experimente. Pegue nesse frango com as mãos e suje as beiças.
– Estás louco!
– Vá lá paizinho, só estamos aqui nós dois. Vai dizer-me que não se cansou dos garfos? – pergunta
com um certo suspense.
O príncipe repara que era um apelo à pobreza simples. Não havia problema algum em sentir a
comida nas mãos, a humanidade cresceu sem modos antes de se domesticar. Retira as luvas
brancas, sente um certo receio em pegar na coxa ainda quente e com gordura. Os dedos sentem o
molho quase líquido que foi deitado sobre o frango, o rosto fica estranho com o calor nas pontas
dos dedos. Retira para o prato com camarão, e olha para o filho.
– Agora, faça como os cães sarnentos e morda com força a carne! – dramatiza.
Com força… William passa a língua pelos lábios, pega na coxa e eleva à boca. A gordura escorre
pela mão, desce os pulsos sem permissão. Os dentes trincam a carne e um som sai. Phill sorri ao
ver o pai a arrancar a carne com força.
– Não é bom comer com as mãos?
Assente, ao mastigar.
– Fale com a boca cheia, vai ver que o ar apimenta a comida.
– Está bom. – trinca novamente.
– Bem-vindo ao mundo do Phill, animais é uma vocação. – abana o copo de vinho e bebe.
– É como se a carne tivesse outro sabor… – os beiços estavam cheios de gordura – Adoro.
– Vê, ser plebeu tem coisas boas. Comida com a mão, arrotos sem licença, boca reca, boca limpa
na manga. E assim vivemos até aos cem sem morrer de aborrecimento.
Confirma ao pegar no copo e beber o vinho sem limpar a boca. Ser rico não tinha graça, até
perdiam o sabor da comida. Pega noutro pedaço, lambe os dedos e depois volta a comer.
Domesticado a selvagem, o príncipe estava irreconhecível.
– Abram alas para a vossa Majestade. – alguém anuncia ao abrir a porta.
Não havia tempo para se limpar, William e Phill levantam-se à entrada da rainha, ficam alinhados
ao pé da mesa e fazem uma vénia à monarca. O príncipe tinha vontade de cerrar os dentes, estava
tão gordurento que poderia ser passado por um vagabundo.
– Prince William de Orange, lamento informá-lo que a carta do vosso sogro chegou. King
Francisco deseja que dê notícias acerca da sua viagem não autorizada ao meu reino. Alguma
objeção, Lorde Orange? – repousa as mãos sobre a barriga.
O príncipe levanta o rosto e deixa a monarca escandalizada.
– Não, Majestade. – coloca as mãos atrás das costas.
– Estais horrível, repugnante e sem modos perto de mim. Até seu filho bastardo apresenta modos
mais apropriados. O que lhe aconteceu, Lorde Orange? Perdeu o rigor da sua casa?
– Uma experiência nova, Majestade.
A rainha olha para a mesa com comida. Jantavam sozinhos, sem convidarem a sua presença?

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Sete Nomes

– Explique este jantar sem a minha autorização. – pede aborrecida.


– Eu explico. – Phill puxa a mão à frente e rapidamente recua ao ver o olhar severo – Então, o
meu paizinho… – coloca o braço no ombro dele – Comeu com as mãos, como os seus sete cães
no estábulo. Aquela gordura toda nos beiços, a descer os pulsos…
Victoria olha para o príncipe com alguma repulsa.
– Olhe… – pega na mão de William – Isto não são modos.
– Phillipe… – sussurra.
– Parece que nasceu num slum. Se fosse a si, metia-o no estábulo a comer os restos do seu jantar
magnifico. Hoje comeu caracóis? Isso não é comida dos pobres? Quer dizer, já os vi a comer
baratas cozidas nas latas de leite em pó…
– Chega. – a rainha fala com ar de poucos amigos – O que querendes? Ser expulso do meu palácio
ou ser guilhotinado por falar dessa maneira comigo?
– Apenas afirmo que enquanto o povo passa fome, vós e os vossos nobres comem o que pagamos
em impostos. Nada contra, só acho que exagera na sua exuberância.
– Guardas…
– Clemência… – William ajoelha-se aos pés dela e levanta o rosto – É o meu único filho. Vos
peço clemência, também sois mãe e avó.
– E viúva. – Phill relembra.
– Phillipe! De joelhos perante a tua rainha! – William pede.
Ajoelhar perante o gnomo gordo com um olhar de perfurar a alma? Cruza os braços, nem pensar.
– A sua rebeldia espanta-me. Lembrais-me as demais rebeliões que lidei para segurança do meu
reino. É bom que o seu pai faça um milagre sobre vós, ou serei obrigada a fazer algo dececionante.
A casa de Orange perdeu o brio. Estou desiludida, prince William. – recua.
– Meu filho vai aprender a se comportar, só nos conhece há uns dias, não tive tempo de o ensinar
os verdadeiros valores da nossa casa. Respeito e orgulho, salve a rainha. – desce a cabeça até ao
chão.
Phill fica aborrecido com aquele olhar aborrecido. Pronto, rainha maldisposta e cabeça a rolar
em Windsor. Quanto mais se aproximava da monarquia, mais se desiludia.
– Retirem a comida da mesa do Lorde Orange, ninguém come sem me convidar. – a rainha pede
aos guardas – Entendestes?
– Então vim para o castelo passar fome? Pai, quero ficar na minha pobreza.
– Pedirdes a mim e decido.
– Mas consigo tenho que comer com os garfos e isso faz-me confusão.
– Nasceu a andar e a falar, Sir Phillipe? Se não tem modos, eu mesmo o educo.
– Duvido.
– Desafiais a minha boa fé? Governo este reino desde os dezoito, dominei dezena de homens que
se oponham a mim. Não duvide do que sou capaz de fazer, Inglaterra é tão forte quanto a sua
corte, e nem um único dia desrespeitamos o rigor do nosso traje. É bom que comece e a se
enquadrar nas minha regras, na minha casa, na minha pátria, ou serei obrigada a prendê-lo por
desobediência e falta de respeito.
Fica calado, agora ouviu o sermão de alguém que usava a coroa invés das calças.
– Prince William, tem um mês para o seu filho bastardo enquadrar-se na minha corte, caso
contrário, escreverei uma carta ao vosso rei e reclamarei por falta de modos. Não me obrigue a
proibir a sua entrada em Windsor, assim como o seu filho.
– Juro por Deus, Majestade.
Quando nada sobra na mesa, Victoria caminha para a porta sem olhar para trás. Aborrecida, nunca
se aborreceu tanto com dois hóspedes. William olha para Phill, o olhar zangado, o respirar
violento a ecoar…

132
Sete Nomes

– Talvez…
– Estás louco?! – levanta do chão – Victoria não tem pudor, manda matar-te sem medo de criar
uma guerra entre reinos!
– Eu não a suporto. Aquele olhar frio dá-me cabo dos nervos.
– Começa a suportar, porque não vou manchar o nome dos Orange.
– Não venho mais cá, estou farto. – pega no casaco.
– Onde vais, Phillipe?
– Vou-me embora, para a minha vida sem dores de cabeça desse tipo. A rainha tem razão, não
sirvo para príncipe e essa é a verdade, estou cansado do rigor.
– Vais desistir de tudo agora que começaste?
Caminha para a porta.
– Nunca pedi para entrar neste pesadelo. Dê-me um tempo pai… – agarra no puxador – Deixe-
me pensar bem sobre o assunto. Vai ter notícias minhas em breve.
– Phill…
– Deixe a poeira abaixar. – sai e bate a porta.
Poeira… Queria mais salientar tempestade. William senta na cadeira e suspira, pensou que podia
domar o filho, mas ele mesmo não se domava da vida que viveu. Cresceu por entre aqueles que
insultavam a coroa, cuspiam para a rua o nome da rainha e mal a podiam ver à frente. Limpa as
mãos à toalha de mesa e sente as lágrimas nos olhos, porque foi atrás do bastardo?

133
Sete Nomes

Capítulo 19
Uma manhã inteira com Backer e o dia pareceu ficar silver. O cientista levou-a à exaustão,
obrigou-a a seguir as instruções para montar a linha de visão perfeita, apertou imensos parafusos,
esteve pendurada no telhado de vidro a polir a enorme lente que esperava ver céu. Ao meio dia,
conseguiu sair dizendo que ia alimentar os filhos. Trabalhar com ele foi arriscado, teve para várias
pegar no martelo e batê-lo na cabeça até o sangue pingar o chão de madeira. Controlou-se, só no
momento certo é que se vingava.
Coloca a cabeça sobre as mãos, entrou na igreja à procura de tranquilidade, Londres estava um
caos por causa da linha de metro que ia ser construída. Pelo menos ali não estava barulho. Rezou
à alma dos pais e prometeu que os vingaria da melhor maneira possível.
Vira a cabeça ao som de um sentar brusco. Volta a olhar para a frente, e a sua pedra do sapato
estava ali. Phill, vestido de fato negro. Nem era domingo para ir rezar. E desde de quando era
preciso um dia específico para isso?
Triste, distante, ausente. Zangou-se com o pai. O que fez? Rachel olha de esguelha, pouco
conseguia ler dele. Talvez o príncipe não goste de viver no Box como os pobres. Ou algo mais
aconteceu.
– Sir… – o murmúrio ecoa pela igreja, o padre aproximava-se do fiel – Como está a sua esposa e
os seus dez filhos?
– Vossa clemência, salvou o meu filho varão. – beija as mãos do homem – Nem sei como vos
pagar.
Rachel sorri, dez filhos… Como os milagres eram generosos demais.
– Reze, reze para que ele viva. – o padre pede ao caminhar para o altar.
O olhar curioso encontra o outro olhar. Pergunta muda, o que fazia ali? Dá de ombros, escondia-
se da cidade. Phill sorri e assente, fazia o mesmo. Rapidamente o sorriso dá lugar um olhar triste.
– O mar de rosas virou um mar de espinhos? – murmura.
– Antes fosse. – Phill coloca as mãos sobre as costas do banco – Não gosto da nobreza.
Os pobres gostavam de ser nobres, mas aquele, só gostava de não o ser.
– Victoria cortou-te quase a cabeça?
– Ameaçou. Não consigo estar calado perante a derradeira injustiça que presencio todos os dias.
Mesas cheias de comida, desperdício de alimentos… Deitam pouco ao prato e mandam fora o
resto. E o povo come o que calha para sobreviver. A rainha não gostou de ouvir isso.
Rachel sorri e encosta-se ao banco.
– Devias de saber que os ricos só gostam de bajuladores, não de consciência.
– Prefiro consciência, ao menos sei o que o povo precisa.
A vantagem de crescer nos becos é que nunca se cansavam de ver o submundo, o lado mais
desumano da vida, aqueles que dormiam em caixas de fruta e bebiam o que os caleiros levavam
até ao chão. Nasciam sobre a lama e sobreviviam a comer o impensável. Sociedade de ferro que
se partia como o vidro. Todos os dias morriam, todos os dias nasciam. E os reis não queriam saber
se o império ia para o lado mais cruel da vida. Glória e industrialização, o resto era um pormenor.
– E tu? Aquele hotel não te dá sossego?
Dá de ombros, mais uma noite sem dormir, a ouvir a festa dos rés do chão, o bailarico que durou
até as três da manhã. O relógio moveu-se a noite inteira, aqueles malditos ponteiros não deixaram
pregar olho. Levantou, vestiu algo e passou água pelo rosto. Pediu um café forte porque a dor de
cabeça seria uma maldição.
– Fico bem lá.
– A cama do Box está vazia.

134
Sete Nomes

– Yves ocupa-a. Ou Abie.


– Eles mal me falam, pensam que estou muito zangado e que os vou expulsar.
– Seria melhor, assim cresciam.
– Cresceste desde que te expulsei?
Calada, nem tinha propósito a comparação. Era mais bem-comportada que muitas pessoas. Entre
olham-se, o que deu errado no começo? O medo e a cobardia. Não iam mais longe que isso se
continuassem a colocar à frente da vida os problemas que viviam forçadamente.
– Tenho que… Almoçar. – Rachel levanta.
– Não sentes a minha falta? – estica a mão para agarrar o que não alcança.
Algo a fez desejar não ter acordado no hotel. Queria acordar noutra cama, noutros braços. A
solidão era a sua constante e quebrar isso parecia uma ofensa.
– Ficas bem sem mim.
– Não sei porque achas isso.
– Porque antes de mim, já estavas sozinho. Pensa… Nunca estiveste naquele beco à minha espera.
Pedia o impossível. Levanta e toca a mão dela. Simples gesto que a faz levantar o olhar para o
rosto pacifico. Aproximam os lábios e beijam-se. Os Homens aprenderam a viver em comunhão,
dependiam dos outros, dependiam delas para serem felizes. Quanto mais fugiam, mais desejavam
ficar onde tudo começou. Phill queria ficar com Rachel, mesmo que isso significasse que a ia
perder a qualquer momento.
Recua o rosto, não se podia apegar assim tanto a um homem que diria adeus após a vingança.
– Ice heart, nothing we fell, nothing we want. Just… Let me go.
Phill larga a mão dela e faz gesto com a cabeça para ir embora, não a obrigava a nada, foi assim
desde o primeiro dia.
– Se precisares de mim, sabes onde me encontrar.
– Tentarei não precisar. – caminha para a saída.
Claro que tentaria, independente como era, nem precisava de uma casa construída, construía uma
com as próprias mãos. Esse é o problema de viver com alguém que tem quartos onde não podia
entrar. Uma casa dentro da própria casa, nem todos os baús têm chaves a qual abrir.
Sarau em pleno dia, alguém abriu a sala de dança do hotel, pagou aos músicos para tocar e agora
faziam outro bailarico. Ainda se atreviam a dizer que os burgueses com “b” pequeno não tinham
dinheiro. Bolos coloridos nas bandejas, champanhe para a mesa cheia de uma densa nuvem de
fumo vindo do cigarette. Tragam mais… Ainda era pouco. Tanto os convidados como os
empregados estavam bem arranjados. Quem fez anos? Ninguém, como o hotel era livre, não
precisavam de motivos para fazer uma festa. Ou precisavam? Não no momento em que alguém
pagava a absurda conta.
Almoço perdido, já seria hora do lanche. Rachel não estava bem vestida, o negro ali significava
tristeza. Também como ia adivinhar que os hóspedes levavam a cidade à falência. Até as lâmpadas
a queimar a eletricidade estavam acesas, num dia claro e cheio de luz.
Procura uma mesa ou uma cadeira, ao menos divertia-se um pouco às custas dos outros. Dança…
O tutor ensinou isso, ou seria pés de chumbo.
– Pardon mademoiselle.
Desvia-se do empregado que tenta passar pelos casais que dançavam sem parar.
Perto da parede ouvia os furtivos risos das mulheres em robe que faziam um homem ri. Alguém
cantava o hino da sua pátria, o champanhe deixava os bêbedos piores do que já estavam. Tropeça
e cai no chão, parecia estar numa feira típica do Texas, aquelas assustadoras em que o circo
apresentava aberrações.
– Quietos, está tudo preso! – alguém dá um tiro no ar.

135
Sete Nomes

As pessoas começam a gritar, largam os violinos, deixam cair copos no chão… Rachel gatinha
para debaixo da mesa e fica atenta às sombras da toalha. Quem seria? As vozes revindicavam os
direitos dos imigrantes, o problema é quando se tratavam de ilegais. Ouvia-se as mortes
involuntárias, um policia lia o decreto lei sobre a imigração ilegal e documentação falsa. Sem dó
ou piedade, seriam presos e apresentados ao supremo tribunal inglês para ouvirem a sentença.
Nada garantia que ficariam em solo londrino e dependia muito do crime cometido.
Após uns minutos com algum receio, Rachel deixa de ouvir barulho. Seria seguro sair e pegar na
mala que trouxe, fugir dali antes que também fosse presa? Espreita pela toalha, corpos no chão,
como a alegria deu lugar ao terror.
– Fantine.
Vira o rosto para o outro lado e repara no homem que estava sempre no balcão do bar. Faz sinal
para correr até aquela porta oculta, uma rota de fuga.
Levanta com cuidado, ouviriam os cacos se fosse desastrada. Passa por cima de um corpo, levanta
o vestido para não o manchar e correr pelo salão para a tal porta. Ao passar, o homem fecha-a e
pega na lamparina a óleo para iluminar o corredor.
– O que aconteceu? – fala baixo.
– Alguém nos denunciou. Este hotel é ilegal, tal como os hóspedes. – guia-a – Peguei a sua mala
no quarto, pode sair pelos fundos.
– Pegou a mala, mas não o meu verdadeiro passaporte. Tenho que ir ao meu quarto.
– É arriscado, estão a confiscar tudo.
– Por favor, não sou ilegal como os outros.
O homem suspira e assente, não a podiam condenar também.
Hotéis ilegais eram fechados, leiloados e comprados para negócio. As pessoas eram presas ou
forçada a cumprir trabalhos forçados. Os ilegais, ou pagavam a sua liberdade ou eram
reencaminhados de volta a casa. Londres devia de ser um exemplo a seguir, combater a corrupção
era um passo importante para a saúde da coroa.
A sorte é que aquele hotel tinha algumas passagens secretas. Espreita para o corredor, um policia
entrou num quarto. Rachel corre para a sua porta, abre-a e vai direta à mesinha de cabeceira, não
ia a lado algum sem o passaporte.
– Hei! Quieta.
Péssima altura para pedir algo. Trinca o livrete, agarra no candeeiro a óleo e bate na cabeça do
homem que entra desprevenido. Rouba-lhe a pistola, mas rapidamente a usa ao ver outra a entrar.
– Fantine…
Sai do quarto e vê que está encurralada no corredor. Retira o passaporte dos dentes e aceita a
derrota.
– Coloque as mãos atrás da cabeça e atire essa pistola para os nossos pés. – o inspetor pede.
– E se não o fizer?
Aprontam as caçadeiras. Começava a concordar com Phill, talvez as armas não fossem uma
solução para os problemas.
– Não sou ilegal. Tenho passaporte carimbado.
– Passaporte falso.
– Porque haveria de fazer isso? Sou americana e tenho direitos…
O homem do bar vira-a, os guardas disparam e o corpo serve como escudo para a proteger.
– Vai. – fala com o sangue a chegar à boca.
Rachel recua rapidamente, mas parecia parada no tempo. Repara na mão dele, uma bomba.
– Vai Fantine! – pede ao ficar de joelho e atirar a bomba para trás.
Os homens desatam a correr para as escadas, ela aproxima-se da porta e nos curtos segundos,
encara aquele olhar humano.

136
Sete Nomes

– O meu nome é Rachel. – fala.


– George. Belo nome MiLady.
A porta fecha e a bomba explode. É mandada escada abaixo por causa do impacto, cai sobre a
mala e sente a madeira a ranger. Grita de dores, mas levanta e corre pelo corredor iluminado, o
hotel ia abaixo. Corre o quanto podia, ele deixou aquela rota de fuga para sobreviver. Porquê?
Porquê que um homem se condena às custas de uma estranha? Vê a porta que dava ao beco, a
madeira a cair apresentava um enorme perigo. Passa pela viga, sai pela porta e recua ao olhar para
o enorme hotel que caía. Não foi só uma bomba que ele usou, os restantes empregados fizeram o
favor de não deixar aquele local livre para as mãos da rainha. Liberdade ou morte. Preferiram a
morte.
Sente a chuva a cair, limpava-lhe o pó e as teias de aranha. Cai de joelhos, ainda tentava entender
o que acabou de acontecer, aqueles poucos minutos de felicidade manchados pelo sangue.
Aprendeu, ainda existia pessoas capazes de darem a própria vida para salvar outras. Os
americanos não conheciam isso, preferiam cuidar da deles invés de serem heróis.
E agora? Londres não a queria em lugar algum.

Abre a porta que foi batida pelo menos uma vez. Aperta o robe e tenta entender a convidada
encharcada e com os olhos molhados, ou seria choro? Coça a cabeça e suspira, saindo da frente
para a deixar entrar. Não, não esperava Rachel ali, não no momento em que disse para si mesmo
que aquela mulher era coisa do passado. Passado de… Uma hora trás. Foi o tempo de despir, dar
um banho e comer sopa. Deus não devia de gostar mesmo dele ao ponto de o torturar assim.
– A cama está mudada e a banheira ficou limpa. Tens roupa e depois dou-te comida.
Ela não perguntou nada, já conhecia bem a casa. Subia as escadas numa mudez de dar náuseas.
– Voltou, simplesmente voltou… – comenta ao ir para a cozinha – As mulheres não se entendem,
elas são tão complexas como a matemática. Disse que não ia voltar e aqui está outra vez para me
enlouquecer…
Abre a porta e senta na mesa outra vez.
– Quem era boss? – Yves enterra o pão duro na sopa.
– Boston.
– Voltou? – Abie limpa a boca.
– Deve estar perdida. Que se encontre e vá novamente, desta vez não serei benevolente. Não quer
nada de mim, então também não fica. Yves aprende, as mulheres que dão prejuízo devem ser
afastadas antes que aumentem as nossas dívidas.
Assente ao beber a sopa pela tigela.
– E agora?
– Não sei Abie… – trinca o pão – O Box está há muito tempo fechado, sinto falta dos combates.
Com ela aqui não posso lutar.
– Porquê boss? – limpa os beiços à manga.
– Porque se alguém a reconhece, eu tenho problemas.
– Então tranque-a no porão.
Olha para o aprendiz, de vez em quando ainda dizia algumas coisas com sentido. Mas o porão
tinha carvão e era bem capaz de pegar fogo ao Box e mandar abaixo. Mulheres loucas, nem presas
deviam de estar.
– Depois penso em algo.
Assentem, ele é que era o patrão.

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Sete Nomes

Água quente… Os canos só deitavam fria. Claro, a empregada não subiu as escadas e levou o
pote cheio de água para a banheira. Que generosidade dizer que a banheira estava limpa, porque
a crueldade da água fria devia de servir. Entra, lá faz o sacrifício de passar o corpo por água. Não
aguenta, sai e veste o robe, péssima ideia.
– Boston…
Suspira, lá vinha ele dizer se estava bem, se precisava de algo… Só queria água quente e roupa
lavada para depois sentar numa cadeira e pensar sobre o assunto.
– Ficas já avisada que mudei. Ao mínimo deslize e vais porta fora, ouviste? Não sou o teu amante
e o Box não é um hotel.
Rachel ouve de braços cruzados.
– Depois, vais começar a trabalhar de dia, porque não fazer nada é difícil.
– Não sai-o daqui. E tenho dinheiro para pagar.
– Não sais? Já me provocas…
– Phill. – coloca as mãos no ombro dele – Aconteceu algo terrível no hotel onde estava e cheguei
à conclusão que aqui é o único local onde estou segura. Pago mais pela renda.
Algo terrível? Confirma o corpo dela e depois abraça com força, não sabia que correu perigo.
– O que aconteceu? Bateram-te? Estás bem? – toca-lhe o rosto – Queres algo?
– Não. – recua-o – Tenho fome.
– Desce que Abie fez uma boa sopa. Fica à vontade, minha casa, tua casa. – sorri.
Fica desconfiada, ainda há pouco deu o ultimato sobre ficar. Afinal não mudou assim tanto.
A novidade estava na mesa, a mais bela obra de arte era contemplada pelos analfabetos que
comiam pão. Perguntavam, sem perguntar, o que fazia ali? Porque comia a sopa que tinha que
sobrar para a noite? Na última vez saiu dizendo que não voltava e voltou sem avisar. Rachel nunca
se sentiu tão vigiada como estava a ser.
Phill abana ambos, assim paravam de irritar a hóspede.
– O que aconteceu ao hotel, Boston?
– Só falo quando as crianças forem para o quarto.
– Crianças? Boss, coloque-lhe rédeas. – Yves exige.
Nega ao fazer um gesto com a cabeça.
– Vão.
Iam? Tanto Abie como Yves batem o pano na mesa, estavam revoltados com a mudança súbita
de apreço. Olham de lado para Rachel, começavam a ganhar raiva dela. A porta bate com tanta
força que é capaz do Box ter-se partido ao meio. O pugilista respira fundo, eles não entendiam o
momento difícil.
– Já podes falar.
– Prefiro não falar. – come a sopa.
– Mandei-os sair para nada?!
– Ao menos não ficam a olhar para mim.
Limpa a boca ao pano e encosta-se às costas da cadeira. Sem palavras, que astúcia.
– Fizeste algo?
Nega meia magoada com o que viu.
– Invadiram o hotel e levaram todos os imigrantes ilegais. Mataram quem tentou resistir.
Que tragédia, Phill nunca pensou viver para ver isso acontecer. O último massacre foi no tempo
de George III, os franceses foram expulsos quase a tiro de Londres.
– Como escapaste?
– O bartman ajudou-me, usou o próprio corpo como escudo quando dispararam contra mim. – as
lágrimas chegam aos olhos – Salvou-me para escapar. Mandaram o hotel abaixo para que não
fosse para as mãos da rainha, defenderam a liberdade até ao fim.

138
Sete Nomes

Era um pouco tocante ouvir, até o pugilista sentia as lágrimas nos olhos. Deitar abaixo a própria
casa para defenderem a liberdade, a honra… Não acreditava que os londrinos estavam a chegar a
esse ponto, o desespero, o medo de deixarem de serem filhos da coroa só por causa da realeza.
– Não entendo porque ele fez aquilo. Não entendo como um homem dá a própria vida para salvar
a minha que não vale nada. – as lágrimas escorrem
Levanta e agarra-a, havia coisas que deviam de não ser presenciadas. O choro sai sem hesitar, a
mente traumatizada não era capaz de entender o sacrifício, aquele olhar da cara de George, o
único pedido para ir embora, usar o próprio corpo para a defender… Era demais para aquela
manhã que começou cedo. É como se ainda visse o terror no salão, as pessoas todas a fugir para
sobreviver. Silenciaram a liberdade de expressão, tiraram-lhes a voz da pior maneira possível.
– Fica o tempo que precisares, não te irei pressionar com nada, nem te vou exigir nada. Fala se
quiseres, faz o que te apetecer Rachel.
Assente ao agarrar com força aquele tronco, precisava de emparo.
– Eu entendo o teu sofrimento. A minha avó contou o que Londres passou na época do bloqueio
continental. É chocante ver inocentes morrerem sem culpa. – acarinha o braço dela – Também
vou ficar por cá, zanguei-me com o meu pai e quero distanciar-me um pouco do mundo lá de fora.
Bem que deu conta que algo aconteceu com o laço paternal.
– Cada vez mais nos isolamos. Como o silêncio é tão bom de ouvir.
O olhar mira o fogo mesmo ao lado, como ele tinha razão. Se fechasse os olhos, ouviria a chuva
a bater nas telhas do Box, aquela doce melodia que limpava o que a força bruta fez. Voz… Todos
perdem a voz no momento em que procuram a liberdade. Mudos ficaram os funcionários do
Mountain Secret. Os seis andares resumiam-se a um, levavam para a tumba os segredos daqueles
que procuraram um local longe do rigor. Montanha secreta, e assim ficaria homenageado quem
partiu.

139
Sete Nomes

Capítulo 20
Nada mais saiu do jornal, nada mais que aquela tragédia que matou vinte e sete pessoas. O hotel
ilegal chocou Londres na manhã seguinte, o número de presos não compensava quem perdeu a
vida. Não entendiam, diziam, espalhavam de boca em boca que se tratava de um golpe baixo para
afetar a rainha. Quem explodiu com o hotel? Os burgueses quase sem esse estatuto, o operário
que queria sabotar os ricos, os nobres que tinham medo de serem ultrapassados pela alta
burguesia. Ninguém escreveu uma única página a contar a verdade. “Illegal without voice.”,
“Other attack the queen Victoria.”, “What really happened in the Hotel Mountain Secret?”
Os dias cinzentos pareciam não ter fim, choveu, alguém leu na igreja o dilúvio que se aproximava.
Deus castigava o Homem… Deus castigava a velha rainha dos mares… Os ouvintes do sermão
lá estavam na missa do domingo a chorar ou um parente ou um amigo. O reino quase fez luto,
quase, porque ninguém o decretou. Tragédia para o povo, dia igual aos outros para a nobreza que
sentava na cadeira e comia o que nunca iria faltar.
Arfa para o vidro e faz um símbolo. Encosta a cabeça ao caixilho e de lá, segue a rua molhada.
O céu deu tréguas após se esvair em água. A semana passou a correr, alguém lhe colocou carvão
e a máquina a vapor passou rapidamente as manhãs e as tardes. Backer tinha o dia de apresentação
do telescópio, estava confiante de que daquela vez a rainha lhe daria uma berma para continuar a
pesquisa. Rachel esteve lá contrariada, passava os dias triste, comia em silêncio, debruçava-se no
diário e rabiscava os cálculos que ia usar no dia seguinte. Ouviu cansativamente o que o cientista
disse, tentou disfarçar a amargura e inventou algumas coisas sobre a vida. Quanto mais trabalhava
com ele, mais o entendia acerca da escolha que fez de matar o pai. Mas, nem o passado trágico
justifica a morte injusta.
Cruza os braços e olha para o céu a nascer. As nuvens pareciam pinceladas de um brilho amarelo
e quente do sol, como se Da Vinci andasse por lá a desenhar os raios divinos para chamar Deus.
Phill nem a chateou ou reclamou do silêncio. Treinava Yves, fazia alguns combates à porta
fechada para não perder o hábito e também permanecia calado, sentado em frente à lareira, a ouvir
Abie a lavar a louça ou a polir a porcelana. A vida dele também não estava bem, queria decidir
em qual das vidas viver. Ser rico e longe da pobreza que o assombrou ou ser pobre e continuar
com a sua lista de dívidas por pagar? Nenhum deles vivia o que os anos permitiam. Estavam
limitados a dois mundos que parecem paralelos apesar de não serem.
Vira o rosto para a porta que se abre. Estar na casa de banho não significava conforto algum, mas
a janela do quarto tinha uma cama mesmo ao lado e não dava para olhar Londres. Phill. Volta a
olhar pelo vidro o beco vazio e o céu que se abria às oito e meia da manhã. Ouve o botão das
calças abrir e a tampa da sanita abrir. Nem se incomoda com o som da urina a sair, privacidade
no segundo andar não tinha lá muito significado.
Aperto aliviado e puxa o fio de metal que manda a água descer até à sanita e levar a urina pelo
cano abaixo. Londres tinha esgotos apesar de ser limitados ao consumo. Os ricos possuíam o
famoso trono com um buraco e água. Os pobres ainda usavam o penico que era despejado na
porta, que mandar água pela janela já se assemelhava ao medieval. Ainda bem que as apostas
ganhas permitiram a instalação da canalização, ou o pugilista teria que ir ao beco de trás aliviar.
Passa as mãos pela água e encara aquele olhar distante focado nas ideias mudas.
– Abie perguntou se queres os vestidos passados? – pergunta ao limpar as mãos à toalha.
– Se não queimar, pode passar. – quase murmura.
– Não costuma queimar. – encosta-se à banheira – Yves foi comprar pão e ovos, pedi bacon para
teres um pequeno-almoço americano.
– Porquê?

140
Sete Nomes

Respira fundo e dá de ombros.


– Lembrei-me que deve ser cansativo beber chá e comer scones a manhã toda.
Um pouco, Rachel até perdeu o hábito de levantar e ver na mesa carne. América tinha costumes
que ninguém entendia.
– Hoje há noite é apresentação do telescópio?
– A rainha permitiu que fosse apresentado lá o projeto pioneiro. Ontem vimos no pouco céu limpo
as estrelas e funcionou na perfeição.
– E a lentes que tens debaixo da cama?
Vira o rosto, afinal não dormia como pensava.
– Não as vou usar, são exatamente iguais àquelas que trabalhei. Backer terá o seu fim brevemente.
– Não te apegues tanto ou acabas por ter pena. – desencosta da banheira.
– Não terei dó de nenhum homem que matou o meu pai. Nenhum.
Quem era ele para dizer o contrário? Caminha para a saída, sozinha estava melhor que
acompanhada.
– Phill! – a voz ecoa pelas escadas.
Sai pela porta e repara na empregada que subia as escadas.
– Temos problemas… – ofega.
Vira o rosto para o mover de Rachel, que tipo de problemas?
Alguém denunciou, alguém abriu a boca para dizer que no Box viviam ilegais. Forçaram a
entrada no santuário do boxe, guardas e policias do estado faziam as buscas com intuito de dizimar
aquela minoria que causava problemas. Não bastou o hotel? Não aprenderam nada com as perdas
humanas? Nada. Abrem as portas todas, os porões onde os sacos de farinha estavam armazenados.
Atiravam cadeiras ao chão, arrastavam mesas com violência…
Phill passa pela porta das escadas e repara no pobre Yves encostado à parede.
– Larguem-me! – Abie grita ao ser agarra por um homem e levada contra a parede.
Outro se preparava para agarrar Rachel, mas o pugilista coloca-se em frente, iam longe demais.
– Quero falar com o responsável por esta busca absurda. – fala quase em voz alta.
O homem ergue a mão para o Major. A barulheira Para quando o homem retira da cabeça a
cartola negra e desce os degraus lentamente… Um a um, não havia assim tanta pressa. Um a um…
Só dezasseis degraus rápidos de descer.
– Trabalha para a rainha… – Rachel murmura – Tem o símbolo no pescoço.
– E o brasão no punho da camisa.
Para em frente ao casal, repara na destruição aparente e depois olha para o teto. Velho, cinquenta
e nove anos e um bigode completamente branco. Cabelo grisalho panteado para trás, a tocar o
pescoço aplumado. Olhos azuis atentos ao que os rodeava, luvas negras, símbolo de nobreza.
Algumas rugas discriminadas e um ar petulante de que ia prender qualquer um que estava no
caminho, com ou sem provas.
– Belo lugar… – baixa o olhar – Sir Phill. Ou melhor falando, Lorde Orange.
Dá um passo em frente.
– Ainda não fomos devidamente apresentados.
– De facto sou rude… – lá curva o tronco – Duque Walter Maydhos Clarel, inspetor real de vossa
Majestade.
Um Clarel… Olha para Rachel, que surpresa não? Ela tenta disfarçar um pouco essa informação.
Sim, o seu primo, aquele que a família se afastava porque seria parente da rainha e de algo que a
envolvia. Assente ao olhar para a frente, como o mundo era pequeno.
– O que o tal intitulado Duque Clarel quer daqui? – cruza os braços.

141
Sete Nomes

– Viemos recolher os imigrantes ilegais que… Segundo uma carta muito bem escrita, tem um
irlandês e uma escrava negra… – olha para Abie a mexer-se – Consta que é negra e isso se
confirma. – volta a virar o rosto – Por isso, Sir, é bom que não resista a uma ordem real.
Não podia inventar que a empregada nasceu com a peste, ela não tinha culpa de ser negra e ainda
considerada escrava. Mas o Yves… Aquela aterrorizada cara contra a madeira da parede, com os
olhos em lágrimas, o pão no chão e os ovos partidos… Estala os ossos da mão, de vez em quando
devia de fazer de pai.
– Não bastou a tragédia do hotel? Agora vem aqui levar estas pessoas com documentos,
nacionalidade inglesa e trabalho, além de residência fixa? O que a rainha tem contra a mim? Não
gosta de ouvir as verdades?
A mão de Rachel toca de leve a mão dele. Não reparou, claro que não deu conta para onde o
inspetor real estava vidrado a olhar.
Walter retira as luvas, não acreditava no que via com os próprios olhos.
– Little Achel…
Não se viam desde que o navio partiu de Londres, há cerca de treze anos atrás. Irmão do avô,
primo de Cristian, o único parente ainda vivo dos Clarel. Angellyne pediu ajuda a ele para
procurar a filha perdida, pediu um investimento absurdo para saber do paradeiro dela. E o primo
ajudou, porque amava aquela menina curiosa que dizia os nomes todos dos reis. Ergue a mão e
um leve gesto obriga os guardas e o polícia sair.
– E estes ilegais, Lorde? – um pergunta.
Não obtém resposta, limitasse a ir embora porque não era obrigado a ter explicações. Abie é
largada no chão, Yves cai de joelhos ao ser largado pelas mãos brutas. Quando o silêncio chega
e o Box consegue ouvir os cavalos a relinchar, o duque movesse e agarra a prima. Rachel não
hesita em apertar bem o tronco dele, um ombro amigo tão perto de si.
– Achel, minha Achel… Por onde andastes tu?
Perdida, sempre andou por caminhos desconhecidos à procura de um porto seguro.
Phill abre os braços para abraçar os seus dois jovens assustados. Depois olha para Rachel com os
olhos em lágrimas, apostava que o tempo para eles deve ter sido uma enorme pedra do sapato.
– Primo, o que faz aqui? – recua e limpa os olhos.
– Alguém denunciou o Box Dead. Não pensei que estavas aqui… Não tenho notícias tuas desde…
– Que fui deixada no orfanato. A minha mãe morreu e eu não queria parecer uma órfã
desemparada à procura de casa.
– Desde quando família é sinónimo de vergonha? Nunca me preocupei tanto contigo como me
preocupei. Por Deus, estás viva, reconheci-te pelos olhos, são iguais aos de Angellyne. – toca o
rosto.
– Mudou muito primo.
Sorri ao assentir.
– A velhice também chega aos afortunados. O que se pode beber neste… Local?
– Para si, água da chuva e vai com sorte. – Phill comenta.
– Que rude.
– O senhor entra aqui, aterroriza os meus dois hóspedes e depois ainda se acha no direito de beber
algo? Vá ver se chove lá fora. – caminha para a cozinha.
Rachel suspira ao revirar os olhos, que homem mais casmurro.
– Venha tio, chá ainda sei fazer. – pega na mão dele.
– Boston, nem penses! – trava a porta.
– Eu também pago a despesa. Achas que o pão foi comprado com o teu dinheiro? És príncipe,
mas não ganhas um ordenado para pagar. Leva as crianças para o quarto, conta uma história de
embalar e deixa-me falar com o meu primo. Ou vais querer prosseguir com a busca?

142
Sete Nomes

Levanta o dedo, odiava ameaças no momento em que estava debaixo do mesmo teto onde se
sentia livre. Ia, só porque Yves e Abie precisavam de um ombro amigo. E ia, porque não
aguentava aquele ar inglês do inspetor. Sai da frente da porta, que mandona. Rachel sorri, e assim
se domina um homem com ar de rude.
– Entre… – abre a porta – Chá de limão?
– Como manda a sugestão. – ri ao sentar na poltrona em frente à mesa.
Indo ao pote com água quente, mete a bacia pequena de barro e enche-a até quase transbordar.
Vira a xícara de porcelana, deita a água que deixava o vapor tocar o ar e depois procura o limão
de ontem.
– Há quanto tempo cá estás?
– Perdi a conta. Cheguei no final de janeiro… – pega no limão e na faca – Já estamos quase no
fim de fevereiro.
– Algumas semanas. Belo lugar para um pugilista.
– Achei o mesmo.
– É teu futuro noivo?
Caminha para a mesa e pousa a xícara com a colher de prata. Arrasta o pote de açúcar e abre a
lata de bolachas.
– Não primo. Phill e eu somos só bons colegas de quarto.
O duque mexe o chá e sorri para aquela cara de que mentia um pouco.
– Sabes o que a sociedade diz… Mulher solteira só vive na casa do pai. Viver junta com um
homem é pecado quase mortal. Meretriz.
– Vim do outro lado do mar, lá as opiniões valem pouco no momento em que somos felizes. –
senta na poltrona em frente.
– América tem uma cultura bastarda. Nós colonizamos, domamos e depois… Largamos para
crescerem. Crescem erradamente e isso trará consequências futuras. – pousa a colher ao lado do
pire.
Nada se podia fazer para mudar a mentalidade de quase um milhão de pessoas. Faziam as próprias
leis no momento em que cresciam a odiar uma minoria, aplicavam qualquer conduta violenta e
forçada. Não podiam ser ingleses com mais de mil regras, não, não evoluíam ao pararem no tempo
para pensar. Mas também não tinham capacidade de pensar quando se atiravam de cabeça para o
abismo.
– Tens de visitar a Stayci, está tão crescida aquela menina. – pega numa bolacha.
– Mal me lembro dela.
– Rachel, quando tu partiste, ela tinha sete anos. Sempre no quarto, lembraste de lhe ler as
histórias? Chegava sempre ao pé de ti e dizia… “Achel, Achel, quero história.” E tu lias porque
já sabias ler.
Sorri, bons tempos de infância, doces dias na companhia da prima mais nova que gostava de
imaginar o que lhe contavam. Loura… Com caracóis magníficos que desciam a nuca sempre com
um longo laço vermelho. Até disso se esqueceu.
– Está esposada?
– Quase. Um conde anda a rondá-la. Já lhe avisei, “Stayci, tu só casas se ele te der o que eu quero.”
“O quê meu pai?”, “Amor, minha querida, nada mais.”
– Ambos sabemos que ninguém se casa por amor.
– Rachel… A tua mãe era uma mulher falida. Trabalhava no campo para pagar o tratamento da
mãe que morreu de febre. Cristian só a conheceu porque ficou preso naquela estrada para Linford,
ou hoje estaria casado com uma burguesa.
– Eu conheço a história. Sempre foi vista como plebeia, mulher do campo…

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Sete Nomes

– Os nobres fechavam a boca quando ela chegava aplumada, sabia receber, sabia responder e
perante a rainha, ajoelhava-se e beijava a mão com orgulho. Brio e educação. Não é preciso nascer
rico para ter isso.
Apesar da linhagem ser próxima da realeza, a mãe de Rachel nasceu numa pequena aldeia de
Linford. O pai morreu nas minas e a mãe dedicava-se ao campo para cuidar da única filha que
Deus deu por sorte, porque mal se casou e perdeu o marido. Conseguiu chegar à mais alta
burguesia por casamento e ultrapassou os nobres quando soube que era prima da rainha. Nunca
foi bem vista, o casamento nunca foi bem aceite na sociedade que evitava estar junto dela. Mas a
casa Clarel aceitou de bom grado a órfã simpática que mostrava ser uma verdadeira dama. Nascer
numa aldeia era só um pequeno pormenor no momento em que se tem brio no olhar. Rachel
sempre admirou a força da mãe e como ela sentia pena dos escravos de África ao ponto de pedir
basta ao marido. Ouro negro não paga a felicidade. Quando decidiu parar, alguém o travou de
outra forma cruel.
– Por enquanto eu quero ficar um pouco longe da nobreza.
– Não vieste cá à toa, pois não?
Brinca com o pote de bolachas. Nega, não estava ali à toa.
– Cristian Clarel está vivo noutra pessoa. Quero caçá-lo.
Assunto delicado para o duque que conhecia bem o problema. Afasta a xícara e entrelaça os
dedos sobre a mesa.
– Rachel, não tentes nada contra Logan. Quase perdia a Gwenny e a Stayci por causa dele. Nada
o trava, nem a rainha pode saber sobre o assunto.
– Como permite que ele passe por seu primo? Como permite que passe pelo meu falecido pai?
– É um homem poderoso, ficou com a tua fortuna, companhia, contratos… Explora agora o Brasil,
o México, a Colômbia… Cresce. Quanto maior é o polvo, mais difícil fica a pesca.
– Vou ao limite primo.
– É uma loucura. Tens que aproveitar a vida, sobreviveste. O legado em Boston não ficou perdido
graças ao teu advogado, mas aqui em Londres, o que te pertencia não te pertence. Espera que a
morte o leve.
Levanta com violência e caminha para a lareira. Não, não aceitava perder assim a batalha que
queria travar. Olha para o primo, a preocupação dele não deixava que avançasse, não queria perder
também a última Clarel do lado de Cristian. Podia pedir qualquer coisa, menos que parasse.
– Tem razão, vou focar só a minha vida. – cruza os braços.
– Melhor assim Rachel. Logan quando souber que estás viva, vai andar atrás de ti. És a herdeira
legítima, aquela que presenciou o crime violento e que sabe quem foram os ajudantes. Se
continuares no anonimato, ele não te encontra.
– E estou. Cá sou Valentina Daylux. Rachel Clarel não existe em registo algum, nem na doca de
onde desembarquei. Chester morreu, Backer não sabe da minha existência.
– Como sabes isso, Achel?
Dá de ombros ao encara o fogo. Talvez tenha matado Chester. Talvez esteja a matar Backer. Ou
apenas sabia.
– Li nos jornais. Alguém matou-o.
– E Backer James?
– Vai apresentar o telescópio à rainha. É notícia de rua, as pessoas comentam.
Walter pensa um pouco sobre o assunto. Desconfiado, acreditava que aquela prima não
conseguiria ficar quieta por muito tempo. Também não lhe ia dar motivos para encontrar ainda
mais furor no meio da tempestade.
– Bem, já estou atrasado para o jogo de cricket. – levanta da cadeira.
– E a busca?

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Sete Nomes

– Não quero que o teu colega de quarto fique mais rude do que já está. Vou… Fingir que vasculhei
tudo, mas só encontrei um homem, dois sacos de trigo e uma cozinha elegante.
Rachel sorri, ótima escolha.
– Espero a tua visita lá em minha casa. – agarra as mãos dela – Uma pequena e tardia reunião de
família.
– Fica feito o convite primo, mas não garanto quando.
– Bem, sabes o caminho, certo?
Assente, era difícil não encontrar a mansão no meio dos campos rodeados de floresta.
– Ainda bem que estás viva. – abraça-a – Ainda bem.
– Obrigado por este mimo. – fecha os olhos.
– Sempre que precisares, sempre que estiveres desesperada, não tenhas receio algum… – recua o
corpo – Somos família e sabes o que isso tem de bom? Estamos nos bons e maus momentos.
Já devia ter pedido ajuda a ele no dia em que regressou a casa e encontrou a mãe morta. Não o
fez, a vergonha assombrou-a, o medo de não voltar a ser aceite percorreu a mente que ainda
aprendia a crescer. Agora, na terra da verdadeira identidade, talvez esse pormenor fosse colocado
de lado. Nem sempre os estranhos podiam ajudar no momento em que existia um parente a esticar
a mão. E dessa mão, os dedos apertavam com força para não cair no abismo.

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Sete Nomes

Capítulo 21
O trono estava instalado no lado de fora, as poltronas douradas estavam ao lado para que os
príncipes e os infantes pudessem ver o acontecimento do ano. Atrás da família real, os nobres que
viviam no palácio estivam os pescoços para ver o que estava tapado por um lençol enorme.
Convidados de honra, é bom que nenhuma pessoa pense que a rainha irá financiar sozinha um
projeto. É para isso que serve os bajuladores, pagavam também as contas gordas e magras.
No lado direito, adjacente à plateia, os guardas e o príncipe William permaneciam em pé. Aquela
terrível noite foi quase fatal para o herdeiro da Áustria, Victoria estava com ele tão entalado na
garganta que até evitava jantar na sua presença. O príncipe apenas apontava o dedo ao filho que
não dava notícias. A amizade entre os dois iria ser reforçada no jogo de golfe, a rainha adorava
grandes adversários.
Vira o rosto para a mulher que se colocou a seu lado. A elegante e exuberante Boston. William
estava admirado, escolheu a melhor roupa, prendeu bem o cabelo e colocou um pequeno acessório
perto da testa. Luvas de renda e olhar atento ao que ainda não foi revelado. Bela mulher… Dava
para amante, noiva, mãe de três filhos e aprendiz da realeza. Dava até para rainha de um reino
que precisasse. Mas, segundo Phill, a mente independentista não permitia certos luxos. Então o
que aquela mulher poderia ser, deixava de ser e passava a encarnar a mulher do futuro, aquela que
não precisa de casar para ser algo. Abana a cabeça, nem queria pensar nisso, que tragédia seria, a
humanidade não faria mais sentido.
– Quer alguma coisa, prince? – Rachel fala para o lado.
– Admiro o seu vestido de seda azul negro. Meu filho deu-lho?
Rasga um sorriso ao virar o rosto.
– Phill não tem dinheiro nem para comprar um grão de milho. Não preciso de um homem para ter
roupa elegante.
Tose para a mão e volta a colocá-la atrás das costas. Independente, o que não entendeu ainda?
– Como ele está?
– Passou o dia a tentar adormecer as duas crianças que choraram quase metade do Tamisa. – vira
o rosto – Não sei até quando os vai aturar.
– Se a MiLady tivesse a seu encargo algo, acho que sentiria esse dever de apoiar ou cuidar.
– Ainda bem que a meu encargo só tenho a minha vida, porque não tenho paciência para aturar
pessoas que não sabem lutar por algo. Acredite que sou perita a cuidar de mim.
– Não duvido um minuto que seja.
– Ainda bem, evita que me aborreça com esta conversa. Se quer saber do seu filho, mexa essas
pernas e vá ao Box.
– Phillipe não quer falar comigo. A rainha não gostou nada do que ele fez.
Sem rédeas, os cavalos ficavam difíceis de controlar no momento que isso faltava.
– Fez merda?
– Deu um sermão que a deixou irritadíssima. Ainda nem aceita a minha presença na mesa de
jantar.
– Melhor assim, evita comer com uma mulher estranha, controladora, com gostos vindos de outro
mundo e um olhar devorador. Ela assustava-me em criança, evitava cá vir por causa daquele rosto.
– Cresceu no palácio de Windsor?
Vira o rosto, que curioso.
– Também não lhe perguntei se nasceu aqui, então fique mudo que estou ocupada a marcar
presença.
– Podia ao menos ser mais simpática.

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Sete Nomes

– Podia, e o que ganhava com isso? Um homem cheio de perguntas, com vontade de me beijar e
levar para o quarto oferecido, acordar de manhã e perguntar se tinha lugar no seu reino. Resposta?
Não, amantes não passam disso. Primeiro, não sou sua amante, nem do seu filho, nem de qualquer
homem, tenho outras coisas com que me preocupar. Segundo, não lhe devo satisfações sobre a
minha vida, nem quero saber da sua, já basta os meus problemas para ficar sem dormir. Feche a
boca, endireite as costas e permaneça assim até eu ir embora, que não me apetece gritar à rainha
que me tentou agarrar à força.
O olhar estava vidrado, os lábios nem sequer estavam descolados para respirar. Nunca, mas nunca
uma mulher lhe falou assim, ditou as regras do jogo, leu a vontade visível no olhar e corrigiu a
deselegância. Independente… Não tinha medo de dizer na cara o que ia na mente, estava a
marimbar-se para o que os outros pensavam ou queriam pensar. Endireita as costas e olha em
frente, nem conseguia formular uma única pergunta que fosse.
Rachel sorri e vira o rosto para o projeto pioneiro. Curto e grosso. Aquele príncipe entendeu à
primeira o pedido.
A rainha abana o leque contra o rosto aborrecido. Não boceja porque estava muita gente, ou
abriria a boca para alertar que estava com sono. Quase meia noite, os archotes não passavam da
linha da frente, ao longe só se via a clareira sedosa e o céu negro com as nuvens a passar em frente
à lua do quarto crescente.
Backer sai detrás do telescópio, ajeita bem o casaco negro e coloca a mão esquerda atrás das
costas. Olha para Valentina e assente sem dar nas vistas, estava tudo em ordem, o guindaste que
segurava o telescópio não rangia e o vento estava ausente para fazer estragos.
– Boa noite, meus caros convidados, Majestade e família real. – faz uma vénia – Marquei esta
data especial porque segundo Galileu Galileia, é neste dia que poderemos ver Marte quase
alinhado com Vénus. Como deveis saber, são planetas do nosso sistema solar…
Lá começa o longo discurso explicativo. Para quê que servia o leque? Para ser aberto e esconder
as bocas que se abriam. Nada mais, porque a noite estava fria demais para terem calor. Até os
guardas disfarçavam essa enorme vontade de abrir a boca até os dentes serem bem vistos.
A rainha parecia cativada com o que ouvia, interessada em ser mais culta do que já era.
– Está na vossa memória o meu fracasso de mil oitocentos e cinquenta e um, na exposição no
palácio de Cristal. Pois bem, com ajuda da Lady Valentina Daylux e alguns amigos, consegui
arregaçar as mangas ao meu projeto de sonho e construir o maior telescópio alguma vez visto
neste século. – puxa o lençol.
Os vários olhares se arregalam para aquilo, há murmúrios a percorrer as costas da família real,
elogios, perguntas, indicações… Murmuravam de tudo, nunca tinham visto um monóculo gigante
direcionado para o céu. Victoria sentia o rebuliço atrás de si, mas limitava-se a ver os rostos dos
netos cativados com tal obra. Faz um gesto para continuar a falar.
Backer sorri ao ver que levou àqueles incultos o futuro.
– Este telescópio foi fundamentado pelos esboços de Leonard Da Vinci e Galileu. Tenho na mente
que estes homens são do nosso passado distante, mas tinham projetos colossais para este século
de revolução. Se um dia Edison foi capaz de pegar num fio de arame e fazer uma lâmpada, então
porque não seria capaz de ver o céu estrelado com mais pormenor? A ciência, meus senhores e
senhoras, é o que nos faz sonhar mais e mais, queremos sempre satisfazer as necessidades dos
outros e a nossa. É com enorme orgulho que batizo este telescópio de Victoria, em homenagem à
nossa Majestade… – estica a mão para a monarca – E o enorme sucesso que isto representa.
Palmas, ouvia-se as palmas dos nobres e da família real que estava contentíssima com tal discurso
triunfante. Tinham vontade de financiar qualquer homem que fosse capaz de criar algo magnifico.
Não se pediam mais pirâmides, mas se tivesse que ser, Londres teria uma só para ultrapassar os
americanos.

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Sete Nomes

O cientista curva-se, esperou anos e anos para ser reconhecido por eles.
– Vossa Majestade, dais-me a honra se ser a primeira a olhar Marte?
Que desafio desafiante para uma mulher ainda forte. Pousa o leque nos braços do trono e levanta
para ser a primeira rainha do mundo a ver esse planeta. Sentando no banquinho com almofada,
Victoria baixa o rosto para espreitar pelo buraco que a permitiria ter o mundo nas mãos.
Backer olha para Valentina e sorri, estava tudo a correr tão bem que nem sabia como a agradecer.
Rachel coloca as mãos atrás das costas, quem disse que a noite seria nítida demais?
– Sir James, não vejo nada.
– Esperai que vou ajustar melhor ângulo do foco. – fica um pouco receoso.
A rainha levanta o bosto e mira o que o cientista estava a fazer. Não via nada? Backer suspeitava
que a idade limitava a sua visão de águia, é claro que o telescópio estava perfeitamente nítido.
Espreita por debaixo do cano e vê os números que colocou para não errar na graduação.
Exatamente perfeito, como deixou na noite anterior. Sorri ao fingir mexer, estava a ficar nervoso
demais.
– Volte a usar os seus maravilhosos olhos para ver Marte. – volta a pedir.
Victoria volta a baixar o busto majestoso para olhar. Onde estava o planeta? Estava tudo tão
desfocado que nem conseguiria ver o seu dedo no outro lado do telescópio. Retira o olho do tubo,
olha para cientista e tenta acreditar que algo estava mal.
– Dizei-me que o vosso telescópio está mal polido lá à frente, porque não acho graça alguma esta
brincadeira.
– Claro Majestade, está polidíssimo. Com a vossa licença, eu mesmo irei espreitar para certificar
que está bem calibrado.
A rainha estica a mão para que a dama de companhia ajudasse a levantar. O cientista senta no
banco, retira os óculos e espreita. É então que dá conta que Deus lhe abriu uma enorme cova por
debaixo dos pés. As lentes, aquelas lentes que ontem revelaram o planeta, estavam tão desfocadas
que não se via nada mais que cores baralhadas numa turbulência medonha. Fez a rainha e os
nobres de parvos, convocou aquele dia para quê? Para ser visto como um fracassado? Para voltar
a ser humilhado perante os nobres mais poderosos de Londres? Passa a mão pela cabeça e olha
para a rainha que seria esperta demais para acreditar numa desculpa.
– Sir James, retire esse enorme monte de entolho do meu jardim. Leve consigo o seu sonho
humilhante e não se atreva a cruzar os portões deste palácio. Nunca fui tão humilhada em todos
estes anos de vida. A ciência vinda de burgueses não passa disso, fracasso.
Baixa o rosto, aceita a derrota pela segunda vez. Tinha vontade de chorar, mas não se atrevia a
esse pequeno luxo.
– Uma noite fria como hoje, convocar este evento… – Victoria comenta ao caminhar para o
palácio – Se um dos meus netos morrer, a culpa será vossa Sir James. O seu título de cientista
será retirado, tal como os seus privilégios. Antes de me fazer ficar aqui sentada, a olhar para
isso… Pensasse em apresentar algo digno do meu nome. É bom retire o meu nome desse… – olha
para trás – Nem nome se encontra para o fracasso. Guardas, levem este homem aos portões e
retirem isso daqui, estou aborrecida.
A multidão retirava-se, seguiam em procissão atrás da rainha que caminhava em direção ao lar
na companhia dos filhos e netos. Riam, riram quando ouviram que nada se via. Riram. A pior
parte foi essa, o riso. Os insultos aceitam-se, mas os risos… Backer limpa os olhos, repara que os
mordomos e os guardas reais começavam a mover o guindaste. Valentina aproximava-se, tal como
o homem que não se moveu atrás da monarca.
– O que aconteceu, Sir? Ontem funcionou perfeitamente bem. – Rachel comenta.
– Ainda tento entender o que aconteceu aqui.

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Sete Nomes

– Sir, fico desde já agradecido por ter-me feito ver este… – William olha para o telescópio –
Majestoso engelho. Acredito que a falha seja pequena e que provará à rainha que está errada.
– Quem é o Lorde? – coloca os óculos.
– Príncipe William de Orange, genro do rei Francisco de Habsburgo.
– Um Stathouder. Humilhante demais para mim. – lamenta ao levantar do banco.
– Não se sinta assim. O último cientista que juntou a família real em Viena apresentou a caneta
que não precisava de ser molhada na tinta. Pena que esta não escreveu nada e o meu sogo cortou-
lhe a cabeça por o ter feito de idiota. – fica distante – Ele é idiota de qualquer maneira.
Rachel vira o rosto, será que não conseguia dizer nada confortante? Não via que o momento era
difícil?
– Pense no melhor, porque o pior já está a viver.
Bate com a mão na testa, que desgraça.
– Sir… – coloca a mão no ombro – Falhamos nesta vez, mas o que importa é que vimos Marte e
Vénus ontem. Nem sabe o regá-lo que isso é.
– Obrigado por ter cá estado Valentina, é pena que até a si a tenha desiludido.
Abraça-o, só para fingir estar cheia de pena.
– Vou ver se metem bem isto na carruagem… Ou nada restará.
Assente ao recuar um pouco. Repara que bate contra o peito de William. Como era alto e cheiroso
aquele príncipe. Tal pai, tal filho, a maldição de ambos serem homens sedutores.
– Desculpe.
– Sem problema, MiLady. – William sorri.
Rachel vira o rosto e dá conta de algo no olhar cintilante. Claro, claro que queria beijá-la pelo
menos uma vez na vida.
– Se fizer uma coisa, deixa de me olhar com desejo?
– Depende do que fizer.
Retira o chapeuzinho perto da testa e coloca-se em bicos de pés para beijar o príncipe. Agarra na
cabeça dele, tenta tirar-lhe o fôlego para não voltar a ouvir o suspiro contido. William nem
conseguia mover as mãos para agarrar a cintura, agora entendia o coração partido do filho.
Descola os lábios e caminha para a carruagem. Sem fôlego, o príncipe abana a mão contra o
rosto.
– Aviso já que o seu filho beija melhor.
Nem conseguia pensar sobre o assunto.
– Isso é porque ainda não esteve em meus aposentos.
Para, um beijo e nada mais, mas os homens pensam que é através do sexo que provam o valor.
– Um homem que beija mal… – vira-se – Não tem valor na cama. Para agradar, é bom que agrade
antes de tirar a roupa, porque não me sujeito a desconforto algum nos seus aposentos. E sim, Phill
beija melhor e sabe muito bem como agradar uma mulher, algo que as suas amantes ignoraram
para ficarem ricas.
– Não. – fica ofendido – Nem a mãe de Phillipe dizia o contrário.
– Já se perguntou qual foi a mulher que viveu para o voltar a beijar? Acredito que preferiram
morrer que ter a língua quase entalada na garganta. Este assunto que não saia daqui, Phill não
merece traição nenhuma de ambas as partes.
– Tem receio de lhe partir o coração?
– Não, tenho receio de lhe partir a cara. Não estive cá, não o beijei. Passar bem, prince.
Beijava assim tão mal? Tenta sentir o hálito, talvez isso é que a tenha incomodado. Coloca as
mãos atrás das costas, o filho não podia ser assim tão bom, ainda era jovem para conhecer aquele
mundo cheio de jogos de sedução. Não… Não acreditava nela. Ou acreditava? Coça a cabeça, a
última esposa comentou que na primeira noite de núpcias tinha ficado magoada durante o acto

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Sete Nomes

sexual. William sempre acreditou que o mal dela era ser fraca demais. Suspira ao fechar os olhos,
Isabella também comentou que nunca se tinha sentido tão repugnada ao pé de um homem. Onde
é que errava? O que tinha que fazer para as deixar nas nuvens? Bem, aquela não vale apena, mas
ainda ia provar a ela que sabia beijar, nem para isso pagasse a uma empregada no castelo para o
treinar.

O vinho descia a goela como se fosse água. Quarto copo cheio, a garrafa ainda nem estava a
meio. Pelo caminho inteiro, pensou nas lentes, como elas se desfocaram assim, da noite para o
dia. Enche o copo, coloca os lábios e manda abaixo o que a mágoa saciava. A rainha nunca mais
o queria ver à frente, nem que tivesse encontrado cura para uma doença. Fê-la de parva, ainda se
atreveu a dar o seu nome ao telescópio… Onde estava com a cabeça quando o batizou antes de
experimentar? Sétimo copo e retira os óculos. O telescópio ainda estava no lado de fora, as
correntes estavam em cima do andaime que tinha um peso de ferro para ajudar a levantar a
invenção.
Vira o rosto para Valentina. Calada, nas sombras da vela que iluminava o vinho e o copo de
vidro.
– Vá para casa, não sou o cientista que procura para a sua academia. Diga aos seus filhos o meu
fracasso e espere encontrar risos.
Pousa a bolsa sobre a mesa empoeirada.
– Vá… – deita vinho no copo – Até o seu marido deverá saber que a sua esposa trabalhou com
um fracasso. Eu sou um fracasso… Loser! – grita bem alto.
– Sempre foste… Backer. – o tom de voz fica mais pesado.
O copo bate na mesa e o olhar cansado olha em frente para a parede.
– “Diga Sir Cristian, e se eu construísse o maior telescópio que haja memória?”, “Sir James, isso
seria um enorme avanço. Espero que consiga tal feito que orgulhe a nossa nação…”
Backer fecha os olhos. Quando fez essa sugestão, Cristian estava sentado na mansão de Boston,
a assinar o mais recente contrato para exportar açúcar da Madeira para Londres. No colo, Rachel
lia o que o pai queria fazer. Vestido amarelo e laço na cabeça cheia de cabelos negros pincelados
de castanho. O olhar... Aquele olhar focado nas letras quase ilegíveis, no português traduzido para
o inglês. Dez anos e sem prestar atenção, decorou o mais antigo sonho dele.
– Rachel.
– Tinhas razão na semana anterior, eu sobrevivi. Quando Chester pensou que morreria lá… Foi
quando me deu hipóteses de sobreviver. Cresci para te reaver.
Nem se atrevia a colocar os óculos para olhar novamente o rosto. Devia a ter matado no dia em
que suspeitou de algo errado em Valentina. De burro, não o fez.
– O que esperas?
– Não sabes como te tramei, pois não?
Vira-se e respira fundo, por Deus, ela atreveu-se a humilhá-lo em frente à rainha.
– Troquei as lentes… – caminha em volta do andaime – Quando deitaste na cama para descansar.
– Não o devias ter feito…
– Ser humilhado é pouco. Eu vivi no medo estes anos todos, a reviver uma morte inocente na
mente… Tinha dez anos, apenas dez quando me obrigaram a ver aquele tiro entrar pelo peito. O
que tinham em mente quando o fizeram? Não pensaram na órfã?
– O teu pai alimentava os nossos sonhos, mas não permitia financiamentos. Estava farto de
trabalhar para ele, farto.

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Sete Nomes

– Estava há espera que Victoria te matasse, tinha essa esperança. Mas, aquela velha não gosta
nada de usar a guilhotina. Como é estar perante as pessoas e ser gozado? – aproxima-se – Como
é ir para casa e dar conta que se está sozinho?
– Tu não devias ter feito aquilo! – grita – Não te fiz mal nenhum, nenhum de nós te matou ou
violou. Devias de dar graças por Chester ter pena de ti, Logan odiava-te de morte! Estragaste um
sonho antigo, fizeste algo desumano!
– Desumano foi deixar-me estes anos todos a viver algo de que não tenho culpa! Isto foi pouco,
eu devia ter-te matado logo no primeiro dia em que entrei por aquela porta. Fracassado, o teu
diário bem que revelava isso.
Backer não acreditava no que ouvia, ela roubou-lhe o diário? Teve esse atrevimento? Leu os seus
segredos, a sua vida, os seus projetos… A humilhação até aceitava, mas o roubo de privacidade
não. Estava na altura de enterrar mais uma Clarel.
– Lamento Rachel, mas há erros no passado que não se repetem.
– O que queres dizer…
Dá conta que as mãos dele agarram o pescoço. A cabeça do cientista é presa pela corrente em
forma de laço da forca. Aperta-a contra os andaimes, as mãos fortes iam esmagar a traqueia como
se fosse uma galinha.
– És fraca Rachel, fraca demais para qualquer coisa! Posso não ter óculos, mas vejo perfeitamente
bem o teu rosto. Nojo, tanto a tua mãe como tu sempre foram os maiores motivos daquela
crueldade! Se não tivesses nascido, só Angellyne é que tinha morrido. Nasceste, tinhas que
nascer…
As mãos dela tentam livrar-se dos braços, sentia o ar a faltar. Olha para a obra do destino, aquela
corrente prendia a ponta do telescópio, aquela que permitia olhar. O contrapeso ainda estava sobre
o andaime. Se o fizesse cair, Backer não tinha hipóteses.
– Que pena que tenho de ti. – fala quase sem voz – Devia ter feito pior, aleijado a rainha quando
olhasse pelo telescópio, só para garantir que perdias a cabeça.
Backer grita ao apertar mais. Rachel bate com o calcanhar no pedaço de madeira que ajudava a
manter o andaime alinhado. A força aliada ao desequilíbrio…
O cientista ouve um som, repara que a estrutura de madeira caía para trás. O peso parte o chão,
puxa a corrente que…
– Não devias ter sobrevivido.
A corrente estica, o corpo de Backer é puxado para cima e o laço justo ao pescoço dita a forca.
Rachel tose e olha para o corpo que se mexia nas alturas. Não se conseguia libertar, é como se
alguém tivesse apertado bem o elo na ponta contra o outro elo da corrente, o laço da forca, a
sentença dele.
Depois de uns segundos, o corpo não se mexia, as mãos caem para baixo e o olhar fica virado
para o quadro. Seiscentos e sessenta e seis. Foi esse o resultado da conta que fez de manhã. Achou
estranho, raramente dava assim um número tão cheio de significado. Ignorou, o sol brilhou o dia
todo e acreditou em si invés dos sinais prévios de sua morte. Morreu, porque quis morrer.
Rachel levanta do chão e recua para ver o corpo. Morto. Coloca as mãos sobre a mesa e suspira
de alívio, pensou que era ela que ia morrer ali. Olha para a garrafa de vinho, vinha mesmo a
calhar. Bebe um pouco antes de desprender o cabelo da nuca e pegar na bolsa.
– Já está pai, mais um rosto. – encosta a cabeça à porta – Perdoa-me Deus, eu sei que peco. Não
suporto esta dor, esta culpa que carrego. Não o leves em paz, quem mata merece o inferno. Sei
do meu destino… Só deixa que viva para riscar estes nomes todos na alma. Um dia, conseguirei
dormir sem acordar.
Abre a porta com a mão tremule e sai antes que alguém entrasse. Próximo passo… Encontrar
outro nome.

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Sete Nomes

Capítulo 22
Existia dias em que devia de acordar virado para outro lado da cama. Alguém arrancou o lençol
do quarto e apanhou Rachel com a faca na mão, cabeça sobre o colchão e com os olhos inchados.
Como não deu conta que ela chegou? Bebeu, contou tantas piadas a Abie e Yves que acabou por
ficar bêbedo. Boceja e estica os braços, que pedrada forte na cabeça a dar sinais que ia vomitar
em breve.
Afasta o cobertor e coloca os pés sobre o chão, oito e oito, nem cedo nem tarde. Cheira o sovaco,
que pivete, não dava banho desde… A segunda passada. Ou seria terça? Desde que discutiu com
o pai.
– Hora de banho. – levanta.
Abie já estava acordada e apostava que já tinha água quente. Abre a porta muito lentamente, se
a acordava, ia aturar o inferno logo pela manhã. Sai e encosta a porta. Corre escada abaixo e só
para ao pé da porta da cozinha.
– Bom dia. Abibatu, meu amorzinho africano…
– Quando o boss me chama assim, é porque quer algo. – limpa as mãos ao avental.
– Quero água quente na banheira. O pote tem água, não tem?
Vira o rosto, o pote grande tinha.
– Vá preparar o sabão que já lá levo.
– Linda menina. – abraça-a e beija-lhe o rosto.
– Cheira mal… – tapa as narinas – Até eu dou mais banho que o senhor.
– Alguém que gosta de água fria. Não gosto, infelizmente. – pega num pedaço de pão – O Yves?
– Saiu, disse que tem uma namorada.
Engasga-se. Bate no peito e cospe para o chão o que quase o sufocou. Olha para ela, só podia ser
uma piada.
– Abie, quase me mataste.
– É verdade. Yves passou a noite toda a olhar aquele recorte e a suspirar. Disse até que no dia
seguinte ia ter com a rapariga dos seus sonhos.
– Ele não pode se tornar homem já, ainda nem tem barba.
– Nós temos dezanove anos, somos adultos.
– São no dia em que estiverem casados, com boas pessoas e um teto. Até lá, eu sou vosso tutor.
Pai até! Tenho que ter uma boa conversa, homem… – estala os ossos da mão – Para criança.
A empregada suspira ao revirar os olhos, Phill não queria era ficar sozinho no Box, porque
enquanto os tinha, dava valor só àquelas responsabilidades.
– Leva a água e quando chegar, manda esperar no quarto.
– No seu?
– Não! – bate a porta – No dele.
Uma namorada… Ele queria era perder a virgindade. É por isso que andava tão alegre, arranjou
uma mulher para o seu capricho. Cavalo assanhado… Alguém tinha que lhe colocar uma rédea
antes que andasse a fazer filhos por Londres, é que Phill não tinha nem quartos nem dinheiro para
os alimentar.
Abre a porta da casa de banho e retira a túnica quase negra. Olha-se ao espelho, até a barba tinha
que voltar a aparar.
– É Phill, tu és um belo homem, mais belo de Londres. Deste conta que esse peitoral é bom? –
olha para o tronco – Ninguém o tem, nem o Hector que te dá quase uma sova. – coloca a mão na
parede e sorri – Conta espelho, quem é o homem mais belo do mundo? – pensa um pouco – Eu,
nasci para a beleza em todos os ângulos.

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Sete Nomes

– A falar com o espelho outra vez, boss? – Abie entra com o balde de água quente na mão.
Nega ao se voltar para a janela. Ele? Não, talvez o espelho tenha falado sozinho.
– Pronto, falta só mais dois baldes. – limpa a testa suada.
– Despacha-te.
– Quer subir quase a correr com um balde que pesa metade do que pesa?
– Eu peso noventa e dois. Metade é… Quarenta e seis quilos.
– Peso quarenta e seis, faça a conta. – pede ao sair.
Vinte e três quilos. O balde não pesava isso, só transportava dois litros e meio. Nem sabia quanto
é que isso pesava, nunca pegou num para experimentar. Abre a gaveta da cómoda das toalhas e
pega no sabão com bolor.
– Yves devia é ter ido compra sabão. – faz uma careta.
Tinha que dar, antes lavado com aquilo do que só com água. Abre a torneira para a água fria
entrar em contacto com a água a escaldar. Assobia ao retirar as peúgas que tinham de ser lavadas.
Faltava comprar um gramofone para alegrar aquela casa, parecia um cemitério de manhã à noite.
– Desvie-se boss.
Phill sai para o lado e Abie despeja o balde.
– Só mais um. Veja se a água não fica fria.
Coloca a mão na banheira, começava a ficar boa.
– Depois traz roupa lavada.
– Não tem.
– Como não? – olha para a porta.
– O senhor disse que deixasse estar. Então ontem não a coloquei no estendal na cozinha.
– Sugeres que fique sem roupa?
Dá de ombros, ele é que dava as ordens lá em casa.
– Traz um fato dos domingos.
– E como amanhã vai à missa?
– Compro outro.
– Com que dinheiro?
Bate com a mão na testa, sem dinheiro, sem roupa e só faltava comida para completar o dia.
Despe as calças, baixa os calções e entra na água. Fecha a torneira, o próximo balde chegava.
Fecha os olhos ao colocar os braços nos cantos da banheira. Não havia nada como um bom banho
relaxante para começar o dia.
Sente um som e quando abre os olhos, quase salta da banheira ao ver a alma penada com uma
faca na mão.
– Rachel, não estás com essas ideias brutais, pois não?
– Tentei acordar-te ontem, mas dormias feito uma pedra.
– Bebi demais.
– Riscas o nome ou não? – estica a faca.
Pega, claro que riscava, prometeu ajudar e, naquilo ajudava.
– Entra, está boa.
Rachel estica o vestido de dormir para cima e desaperta a trança. A empregada entra na casa de
banho e deixa o balde com água a escaldar cair no chão. As costas dela… As cicatrizes… As
tatuagens na espinha dorsal…
– Abie, vai para baixo. – Phill pede quase ao levantar.
Não se movia, o olhar mirava apenas aquilo. Rachel vira-se e encara o rosto assustado. Más
recordações, foi marcada a ferro em Cabo, prenderam-na contra a mesa e marcaram a nádega, o
ombro e as costas. Depois, espetaram-na contra o chão e arrastaram para o navio negreiro, onde
seria vendida como se fosse mercadoria. Se Rachel tinha um trauma, Abie também tinha um.

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Sete Nomes

– Abie, vai para o quarto, deixa aí o balde. – levanta da banheira.


Baixa o rosto ao encostar a porta, tinha vontade de chorar.
– Rachel, garanto-te que ela não vai fazer perguntas. Se fosse Yves, teríamos problemas, ele faria
quinhentas perguntas…
– Guarda a faca. – tapa o corpo com o vestido.
– Não lhe vais dar sermão? Ou bater, pois não? – agarra-lhe o braço.
Olha-o nos olhos, William não conseguia ter aquele charme natural que Phill tinha. Só de o olhar
Rachel sentia vontade de o beijar. Quando olhava para o príncipe, não sentia isso.
– Também sou sentimental e sei quando alguém tem uma história difícil.
Larga-a, ia dar um voto de confiança a ela, só esperava não estar enganado no que fazia.
A vida nunca foi perfeita, desde que nasceu que presenciou uma terra ser domada por brancos
racistas que viam os negros como escravos. Por mais abolições que fossem feitas contra a
escravatura, no meio do nada, no continente divido pelos europeus, as leis não se aplicavam.
Abibatu não gostava de recordar os anos terríveis que passou às custas dos antigos patrões. O
navio negreiro ainda lhe dava pesadelos, os dias que passou no mercado até ser vendida era tortura
para a mente. Só Phill a livrou da miséria e isso não tinha preço. Trabalhava cedo, fazia tudo para
agradecer o patrão que, por vezes, considerava pai. Pai, porque nunca teve um, pai porque dava
carinho e cuidava nos dias de aperto. Também o via como seu dono, comprou e agora obedecia.
Não pensava muito nisso porque tinha a total liberdade. Mas receava voltar às trevas africanas.
Limpa as lágrimas e volta agarrar as pernas. Levanta a vista quando alguém entra no quarto.
– Dizem que pernoitar atrás da porta dá azar… – Rachel senta ao lado – Merdas que contam,
nunca morri por causa disso.
A empregada não estava à espera que ela descesse até ali. Esperava Phill, como sempre.
– Doeu muito quando tatuei estes nomes nas costas. Jack, o homem que vendia tinta chinesa, disse
que era louca para querer tatuar estes nomes todos. Perguntou se era família… Disse que eram
pessoas da minha lista negra. Podia simplesmente decorar, mas sabes uma coisa? Enquanto os ver
ao espelho, lembro-me que se parar, aumento a minha dor.
Abie limpa o rosto molhado, não sabia daquilo.
– Passei sete horas na loja, sem roupa alguma deitada na mesa. Tinha dezoito anos e uma
determinação de ferro. Mandei tatuar mesmo rente à espinha, um risco enorme de infecionar, uma
agulha e um pequeno martelo que abria a pele… Chorei quase em silêncio a morder um tecido.
Doía mais os nomes que a própria tatuagem. Quando terminou, colocou um lençol sobre as costas
e mandou-me ficar lá deitada, se me movesse sentiria dores.
– Quando levantaste?
Sorri ao recordar o momento.
– Acreditas que passei lá a noite toda sem comer? A vela derreteu ao meu lado, a loja abriria por
volta das nove. Tive medo que alguém fosse assaltar e eu fosse morta. Vesti quando olhei ao
espelho e li detrás para a frente aqueles sete nomes. Sete. Jason não gostou da ideia de passar a
noite fora, nessa época tinha aprendido a beber, então chegava a casa de madrugada, bêbeda por
completo. Estava feliz… Feliz por querer fazer uma vingança que nunca pensei que me ia custar
muito.
Abie dá-lhe a mão em forma de apoio, às vezes falar sobre certas coisas na nossa vida abre feridas
incuráveis.
– A minha tutora gritou quando entrou no quarto e viu as minhas costas… – as lágrimas chegam
aos olhos – “Rachel, o que te fizeram?!” – sorri – “Nada, eu é que fiz. Assim não perco os nomes”.
Não me bateu, ela nunca me bateu. Mas li naquele olhar que vontade não faltava. Jason também
não gostou da ideia, só aceitou quando chegou à conclusão que não tinha alma que se salvasse.
Sabes… Demónio, o padre bem que me benzia, mas não adiantava.

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Sete Nomes

– Porquê?
– No último casamento que fui, tinha… Dezanove anos… – pensa um pouco – É. Um convidado
tentou abusar de mim enquanto comia bolo. Sabes, aproximou a cabeça, começou a beijar o
pescoço. Quando se sentou no meu colo com as pernas abertas, peguei no garfo e cravei-o na
traqueia. Manchei o vestido, o sofá, o tapete, o vestido da noiva... – sorri – A pior parte é que ele
era o noivo e de bêbedo, ia violar-me. Nunca mais fui convidada para evento algum.
Não conseguia imaginar bem o momento, nunca esteve num casamento.
– Abie… Eu sei que vos trato como crianças, mas é porque às vezes preciso que não ouçam as
coisas. Quando digo “crianças no quarto” é tipo um código para dizer que não podem ouvir. Não
sou um livro aberto, nem vos quero fazer mal, não pertencem aos meus pesadelos. Só quero que
me olhem com outros olhos, não como amante de Phill ou aquela que vive de borla.
– Como quer que a olhemos?
– Como mais uma pessoa vinda de fora que precisa de um teto para se esconder e ser livre. Não
é assim que tu e Yves vêm o Box?
Era, o único paraíso onde podiam dormir em paz, sem correr o risco de morrer do que seja que
fosse. Ali, estavam protegidos da sociedade retrograda, dos pedintes, dos nobres, dos burgueses,
os padres corruptos, dos operários que roubavam os mesmos para comer.
– Desculpa Boston, sentimos ciúmes de ti porque Phill começa a dar-te mais atenção. Estamos
habituados ao contrário.
– A mim? Grande erro. Phill só pensa em vocês, quer pagar os salários, falar, cuidar, dar mimo,
conselhos… Eu é que… Ele gosta dos dois ao ponto de vos considerar filhos.
– Sente ciúmes?
Faz um som com a língua e brinca com o cabelo. Claro que não…
– Um pouco. Nunca namorei antes e não sei como é. Quer dizer… Em Boston os rapazes
convidam para dançar e falam muito. Depois têm encontros durante a semana e quando têm a
certeza, pedem a mão. Nunca me fizeram isso porque tinha ar de rebelde, negava muito ir a bailes
e a festas por causa de me sentir desintegrada da sociedade. Phill é o único homem a qual tenho
esta intimidade toda. Amo-o, mas… Os meus objetivos de vida privam qualquer coisa entre nós.
– Já pensou… E depois disso tudo? Ele não está muito virado para o boxe, já o vi a encher a casa
até rebentar, lutar quase meses a fio. Agora, não quer focar nisso porque quer pensar noutras
coisas. A sua vida também o preocupa.
– Mas não devia. Quando cheguei a Londres só tinha uma coisa na cabeça. Matar, matar… Agora
tenho várias coisas… Foi um erro eu ter-me envolvido com ele. Quanto mais te aperfeiçoas a
alguém, sofres muito quando partes. Se morro, ele fica desemparado.
Passa o braço por detrás das costas dela e abraça-a. Amiga, então esse era o valor da amizade,
sentar e falar o que pesava na alma. Tanto Rachel como Abie estavam a descobrir esse valor tão
ausente nas suas vidas. Nem tudo era mau na vida solitária, as coisas boas estavam lá em certos
momentos difíceis.
– Não comentes nada a Yves.
– Não, muitas coisas que sei não lhe conto.
– Rachel. Boston é outro nome código.
– Também já sabia, tenho ouvidos, sabes?
Sorri ao assentir, mais cedo ou mais tarde ia descobrir.
– O teu patrão espera-me. – levanta do chão e pega no vestido.
– Diga-lhe que vou por a roupa a secar.
– Era melhor ele fazer isso mesmo, porque hoje tiras folga. Tens moedas na minha bolsa, vai
passear e comprar algo.
– Não é justo…

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Sete Nomes

– Abie, eu pago os vossos salários no momento em que o vosso boss é incapaz. Que homem mais
problemático… – sai do quarto.
Uma nova patroa. As coisas iam de mal a pior, agora também a tinha que obedecer. Mandou ir
passear, pois bem, ia, também merecia um dia de folga. Levanta do chão e sorri, como por vezes
falar resolvia os problemas.

Mandar Abie passear não é propriamente uma boa ideia. Quem ia cozinhar? Lavar? Varrer? Coze
o corte, estava contrariado por completo. Podia pagar-lhes os salários, mas não era a sua patroa,
nem podia dar ordens dessas no momento em que faziam falta. Suspira com violência, nunca
ficou dependente de uma mulher e não gostava nada da ideia. Homens não dependem das
mulheres, elas é que dependem deles para tudo. Revira os olhos, não tinha uma profissão digna
para pagar as contas, o ramo das fotografias deu para o torto no momento em que perdeu a camara
escura.
Limpa o sangue que escorria pelas costas dela. Se tocasse a água, tinham que trocar tudo
novamente e isso ia demorar imenso.
– Como morreu? – coloca o tecido sobre o ferimento.
Rachel retira da boca a rolha e limpa os olhos com o braço.
– Suicídio.
– Queres que pensem isso? Ou ele fez colocou mesmo fim à vida?
– Ambas.
Sem palavras. Pousa a agulha na caixa de lata e enrola a linha usada.
– A cicatriz de Chester curou na perfeição, mesmo que a tenhas aberto naquela noite. Se não
fizeres esforço, daqui a sete dias tiras a linha e pronto… Esperas por outro nome.
Assente ao beber o uísque, só no fim da sua lista é que tinha a liberdade de fazer o quer que fosse.
– Vou lavar-me… – pega no sabão – Podes sair ou ficar.
– Beijei o teu pai.
O sabão cai para dentro da água. Beijou? A respiração acelera, tentava entender os motivos que
a levaram a isso. Beijou… Sai da banheira e pega na toalha. Beijou. Porquê? Pensou que naquela
vez que lhe apertou o pescoço, tivesse sido provocado de propósito, jamais seria capaz de ir ter
com o pai e fazer o que disse. Bate a toalha no chão e fecha os punhos, doía tanto ouvir aquilo
que… Perdeu a vontade de dar banho.
– Calma… – Rachel relaxa na água – O teu pai beija tão mal que não haverá próxima.
– Haveria se tivesse beijado bem?
Não, William não tinha nada que ela precisasse.
– Beijei-o para o parar de me olhar com aquele ar sedutor. Salientei que não existe nada entre nós.
Phill, tu és mais homem que o teu pai, tens algo que me fascina, o teu olhar deixa-me segura. Ele
não, só usa e deita fora como qualquer nobre.
– Mas beijaste-o! – salienta ao virar-se – Tiveste a coragem de fazer isso!
Levanta da banheira e sai. Não devia ter contado, certos segredos não passavam disso, segredos.
– Se um dia encontrares uma mulher que te peça um beijo com o olhar, vais sentir o que senti.
Ser mulher neste século é horrível, não temos voz, não temos valor. Fiz aquilo para ver se parava
de pedir, ou um dia destes ele faria à força.
– Se o fizesse, eu partia-lhe os dentes todos.
– Mentiras… – caminha para a janela – Dizes que vais, que fazes… Nada, mudas de opinião
rapidamente no momento em que te apresentam dinheiro.
– Duvidas que defenderia a tua honra?
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Sete Nomes

Não, fecha os olhos ao engolir o choro. Não duvidava que aquele homem seria capaz de cometer
uma loucura por uma mulher. Isso o distinguia do pai, a força e a determinação de fazer justiça.
– Não te devia ter contado. – murmura.
Phill senta à beira da banheira. O que ia fazer? Passa a mão pelo cabelo, gostar de alguém era
pior que levar um murro no queixo e sentir os dentes todos a vibrar.
– Foi só um beijo?
– Nunca passaria mais que isso.
Suspira e olha-a, um beijo não era traição no momento em que não passava disso. Também não
tinham nada, nem eram amantes, nem namorados, nem marido ou mulher. Colegas de quarto, que
partilhavam o mesmo teto e discutiam por tudo e por nada. Terem feito amor só lhes roubou a
privacidade, mas deixou intacto a vida de solteiro, cheia de tormentos e perguntas sem respostas.
– Ainda queres dar banho?
Vira o rosto e limpa os olhos, a voz não parecia mais um oceano agitado.
– Vais bater-lhe?
– Não… – entra na banheira – Um beijo apenas. Quando for mais que isso, talvez perca a cabeça.
– Não faria amor com um homem que beija mal. Beijas melhor.
Que confortante, tinha vontade de saltar ao ar de alegria só por causa de saber que sabia fazer
algo simples. Pega no sabão e esfrega os braços, aquilo ia custar a engolir. Rachel entra na
banheira e passa a perna por cima da dele.
– Somos colegas de quarto, certo?
Assente, pelos vistos eram.
– Ainda bem. – puxa-se para a ponta – Se fosse algo mais a ti não teria dado um beijo.
– Podemos mudar de assunto? Perdi a vontade de comer. – passa o sabão pela cabeça.
Sorri com malícia. Ciúmes, ele sofria dessa doença danosa.
– Não sei do que queres falar.
– Fala… – pega na malga e enche com água – A tua renda atrasada.
Chapinha a água contra o rosto dele.
– Precisas de dinheiro!
– Claro, não vivo de ar e vento. Yves depois vai comprar algo para comermos, isso se ele voltar
para casa.
– Não volta?
Limpa o rosto com sabão à toalha que tateia para apanhar do chão. Ardia, como aquilo ardia nos
olhos.
– Tem uma prostituta e quer perder a virgindade com ela. Passei pelo mesmo na idade dele, mas
tinha rédeas.
– Quando perdi a minha… Foi estranho. Uma cigana tinha contado um ritual ancestral dela, tipo,
na noite antes do casamento, usam lenços brancos para ver se sangram. Fiz o mesmo, doeu,
sangrei e depois… Contei aos meus tutores.
Fica a olhar para ela, contou? Se fossem os verdadeiros pais, não teria coragem de contar, maior
parte é deserdada no momento em que não são castas.
– És louca.
– Chamaram um médico que confirmou isso quando meteu os dedos… Confirmou. Então foi a
única maneira de fugir aos casamentos.
– Tinhas que idade?
– Dezoito… – fica distante.
Com aquela idade, vinte e três anos certos, dá conta que quando teve dezoito anos, fez muita
coisa que não devia ter feito. Determinação de ferro, anos de bebedeira sem limites, conversas
perversas, saber passado de estranho para estranho. Ficava dias e dias sobre um balcão da taberna

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Sete Nomes

e falava com os demais homens, os mais violentos que vinham de São Francisco ou do Texas e
contavam as maiores crueldades do mundo. Baixa-se até a água atingir o queixo, que pecado
terreno, alma penada que teria consequências futuras.
– Esquece o que te contei.
– Agora tens vergonha? – relaxa.
– Qual é a diferença de uma mulher virgem e uma não virgem?
– Nesta sociedade… São as primeiras a casar, aquelas que representam nobreza, confiança e puro
brio. Na tua, deve ser outra coisa.
– É o mesmo.
– Então tem vergonha. Olha só… Dormiste com um homem antes de casar. Esquece, não terás
alguém capaz de te colocar um anel no dedo.
Mostra o dedo do meio e sorri, não precisava de um para ser feliz.
– E tu? Quando foi?
Phill respira fundo e olha para a porta encostada.
– Vinte. Magaritta foi a primeira mulher com que dormi. Depois o meu mestre contou umas coisas
intimas… Coisas que não devem ser contadas e… Sempre tive medo de virar pai.
– Não queres filhos?
– Quando se é pugilista, vivesse no local onde se luta, com dívidas, amantes de mês a mês e
pessoas capaz de te matar… Não se pensa em família. Perdi esse sonho e contínuo a distanciá-lo,
a vida não está fácil. E tu?
Nem sabia, a sua preocupação nunca foi essa. Desde nova que sempre quis aprender o necessário
para vingar os pais, só isso. Quando a tutora perguntava se podia arranjar-lhe um pretendente, a
resposta era sempre a mesma. Primeiro, as mortes vingadas e só depois pensava sobre o assunto.
Já lá iam treze anos e o depois parecia uma eternidade.
– Não sei. Um dia.
– Quando foi a última vez que tivestes os dias vermelhos?
Fica desconfortável com a pergunta, isso não se falava com um homem.
– Porquê? Não sou como a Abie que precisa de saber algo sobre isso.
– Quando? – insiste.
Suspira e olha para o lado.
– Semana passada, um dia antes de encontrar Backer.
– Não estás a mentir?
– Não tenho motivos para isso.
Phill fica um pouco desconfiado.
– Não estás grávida.
– E se estivesse?
– Teríamos que casar. Não quero que o meu filho tenha escrito nos registos “Pai incógnito”.
Casar? Rachel ri, que pesadelo que viveriam juntos. Não tinham nada para dar certo, nem
trabalhavam, nem tinham vidas de sonho, nem conseguiam estabilizar o que estava ausente. A
criança nasceria na pura pobreza, com pais a discutir e dois hóspedes instáveis.
– É melhor isso não acontecer.
– Concordo.
Entre olham-se… Aguentariam estar juntos sem pensarem no outro plano mais íntimo? Não
estavam juntos na cama há mais de duas semanas, um grande recorde. Se continuassem a focar
os problemas, não pensavam sobre o assunto.
– Vou… Vou… – Phill levanta – Tu sabes.
Assente, ia embora antes que a puxa-se para beijar.
– Queres pequeno-almoço americano? – pega na toalha.

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Sete Nomes

– Tens bacon?
– Tenho. Não sei é usar a frigideira. Como se usa aquilo?
– Não sei, nunca cozinhei.
Que desgraça, iam morrer ambos à fome. O pugilista coça a cabeça.
– Bacon com pão e vais com sorte.
Que remédio, antes aquilo que ficar de estômago vazio a manhã toda. Quando a porta se fecha,
mergulha o rosto na água e sustem a respiração, em apenas horas contou a duas pessoas o que
nunca uma mulher poderia contar. Remorsos… Devia de ter, os livros abertos são os primeiros a
serem queimados na fogueira. Talvez esquecessem o assunto assim que algo acontecesse. E se
não acontecesse?

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Sete Nomes

Capítulo 23
Gramofone… A casa precisava de uma com urgência. O silêncio estava a ensurdecer muitos
ouvidos atentos. Caminho, até os de fora sabiam o que acontecia ali dentro. Dá à manivela, coloca
a agulha sobre o disco negro e o som sai. Phill olha para os demais e faz um som de ser magnifico
o que ouvia.
– Como pagaste isso? – Rachel pergunta.
Começa a arrumar a caixa grande. Bem… Ele não pagou tudo, deu um pouco ao dono da loja
que garantiu que aquele gramofone era o melhor do reino. Levou fiado, teria que lá passar para
pagar o resto depois. Quando? Depois. No mês que vêm, porque aquele estava magro demais para
certos luxos. Dá de ombros, segredos. Rachel suspira com violência, uma dívida, acabou de se
livrar das outras e não hesitou em fazer uma. Ficar longe do vício não devia de ser fácil.
– Gosto. – Yves comenta sorridente.
– Lá fora, agora. – aponta para a porta da cozinha.
– Boss…
– Não pedi, exigi.
O aprendiz coça a cabeça com força e dá passos pesados para fora. Phill faz sinal para elas
permanecerem ali, a conversa ia ser pesada demais.
– Pobre Yves, não queria estar na pele dele. – Rachel senta na cadeira.
Nem Abie, conhecia bem os sermões pesados do patrão. Podia aceitar muita coisas, mas nem
tudo era aceite no momento em que entravam no limite.
O pugilista agarra na parte detrás do pescoço do aprendiz e aperta com força ao arrastá-lo até ao
quarto. Yves grunhe de dor, odiava ser agarrado assim. Pior seria o ouvido, esse custava mais.
Dentro do quarto, atira-o contra a cama e tranca a porta, hora de ser pai mau e zangado com o
filho rebelde.
– Quem é ela?
Ela? O aprendiz coça o vermelhidão que fazia sair uma expressão medonha do rosto.
– Não sei quem é ela, boss.
Senta na cama e estala os ossos da mão. O olhar de Yves fica vidrado, só fazia aquilo quando
estava preste a bater no adversário. Phill levanta a mão…
– Floweren. – fecha os olhos.
– A filha do talhante do Twenty Two?
Assente com receio de apanhar. Baixa a mão, podia ser qualquer mulher daquele reino, pais,
mundo… Qualquer uma que não fosse a filha do homem que vendia carne falsificada.
– Ela tem quinze anos!
– Eu sei, boss.
– Sabes?! – abre a mão e abana-a no ar – É bom que tenha sido só um beijo, porque tu vais apanhar
se tiver sido mais que isso!
Mostra um sorriso pouco convicto, foi mais que isso.
– Yves! – grita.
– Desculpe boss, disse que só quando fizesse anos e falta muito para junho. Juro que foi rápido
demais, o pai dela nem deu conta.
Dá-lhe uma estalada forte no rosto. O corpo fica contra a parede, os olhos enchem-se de lágrimas
e os soluços aparecem. Severo, o rosto de Phill estava tão frio e severo que o aprendiz tinha
vontade de levantar e correr para longe dali.

160
Sete Nomes

– Não acredito que fizeste isso. Ela é mais nova que tu Yves, o pai dela é um ladrão de merda que
engana metade do reino. Pedi para esperares, não há pressa nenhuma nisso! Queres ser homem?
Queres ter responsabilidades a dobrar?! Não te chega as tarefas que te dou!
O choro sai, o rosto vermelho mostrava raiva, ódio de estar sempre a depender daquele homem
para viver.
– Odeio-o! – grita-lhe – Só pensa em si, só pensa em si!
Phill levanta e agarra-o pela camisa, atirando-o ao chão com violência.
– Grita lá isso novamente! Grita! – pede com crueldade.
Não grita, limitasse a chorar como se fosse uma criança pequena.
– Odeias o homem que te tirou daquela enorme anilha de esgoto, onde tu dormias! Passavas fome,
erguias a mão negra para pedir comida a quem tinha nojo de ti! Odeias o homem que te lavou o
corpo magro, frágil! Que te deu comida, um quarto para viver sem teres que pagar! Dei-te uma
profissão, dou-te roupa, dinheiro, apoio… Preferias a rua! Preferias ser arrastado para um orfanato
e trabalhar nas chaminés. Ou numa fábrica para ficares sem dedos! Grita que me odeias! Sê
homem!
Yves mal conseguia respirar. Verdades, verdades puras que não havia maneira de contrariar.
Nada, devia àquele homem tudo o que tinha, até o nome.
– Vai ter com a tua mãe se ainda estiver viva e pede casa. Tens noção do que fizeste? Tens noção
disso?!
Nega ao revelar o rosto vermelho.
– Acabaste de engravidar a filha mais nova daquele ladrão. E o pior é que vais ter que aceitar o
erro.
– Não a engravidei… – fala por entre os soluços – Foi rápido demais, ela só levantou o vestido e
eu experimentei a sensação, aquele sentimento que se tem…
– Só há uma maneira de evitar que esse sentimento arruíne a nossa vida. Primeiro é falar com
quem sabe e depois, arranjar uma mulher que não seja filha de um homem que nos vais partir a
cara. Dessa eu não te perdoo. – recua.
– Não lhe fiz mal. Juro por Deus que não lhe fiz mal. – soluça – Ela gostou, gritou o meu nome,
agarrou o meu cabelo… Isso é bom.
Phill passa a mão pela cabeça, adolescentes inconsequentes que pensavam que tudo era bom.
– Quando foi isso? – coloca a mão na parede.
– Há duas semanas atrás. Hoje repetimos ao pé das caixas de carne quando o pai dela saiu. Rápido,
não demoramos nada.
Rápido foi a mão que lhe deu outra estalada forte no rosto. É nesse momento que Rachel invade
o quarto com outra chave mestra e impede que o aprendiz fosse morto sobre o chão.
– Chega. – pede ao afastar o pesado pugilista.
– Vou matar esse animal antes que me dê problemas!
– Não podes fazer nada agora! Chega. Aceita o que está feito.
– Aceito?! Acabou de engravidar a filha mais nova do Tech. Sabes o que ele fez a um dos genros
que bateu na filha após o casamento? Matou-o e vendeu para consumo!
– Mesmo assim, se o matares será pior. Phillipe, chega, por favor chega.
Ainda levanta a mão para lhe bater, mas com Rachel à frente… Sai do quarto sem controlo algum,
aquele dia piorou. Ela coloca a mão nos aros da porta e suspira de alívio, que tragédia, ainda bem
que Abie tinha outras chaves mestras. Olha para Yves a chorar no chão, com sangue no lábio e
no nariz. Ao lado, a empregada agarrava-o como se fosse o irmão mais novo a precisar de consolo.
– Isto passa-lhe.
– O que fizeste foi muito feio, Yves. – Abie comenta ao mimá-lo.
– Odeio-o, quero fugir daqui. – fala por entre os soluços.

161
Sete Nomes

– E vais para a rua? Acredita que aqui estás melhor.


– Não. Estou farto de levar dele… – sai de cima do colo da empregada – Não quero mais isto,
está na hora de ter uma vida própria.
– Com que dinheiro? És uma criança Yves!
– Chega! – levanta – Chega! – grita-lhe no rosto – Eu não sou uma criança! Não sou.
Rachel coloca as mãos no rosto dele e tenta ler aquele olhar ferido. O pai não morreu como ele
tanto dizia, o pai batia-lhe muito. Negou ir para a tropa e em troca, levava. Agora, confundia as
épocas, via na pele de Phill o homem que lhe deu vida e depois, massacrou, criando-lhe um
trauma. Aprendia a lutar para deixar de ter medo, mas vivia nas sombras desse sentimento. Fugiu
de Dublin para Londres para mudar de vida e não voltar a viver os dias de terror.
Retira as mãos do rosto dele e o aprendiz sai porta fora sem nada nos bolsos.
– Yves! Volta Yves! Não vás… – Abie sai do quarto a correr.
Traumas, o Box Dead estava cheio de pessoas que viviam os seus pesadelos todos os dias. Senta
sobre a cama, desperdiçava a vida à toa, eles viveram verdadeiros momentos de terror, não tinham
para onde fugir. Rachel teve uma escapatória, mas preferiu pegar na dor para viver a sua vida.
Erro fatal. Olha para a porta, os olhos cheios de lágrimas mal conseguiam disseminar o momento.
Quem ali não tinha uma sombra a qual fugir? Ninguém.

O Box Dead não ouvia o alegre gramofone a tocar, nem os talhares na cozinha ou os degraus do
segundo piso. Silêncio. Tal como os mortos do hotel. Nem uma vela acesa, nem o ar quente da
lareira queimar carvão e lenha. O dia foi assim, sem vozes a percorrer o local sagrado do boxe. O
pugilista não estava, a empregada desapareceu e Yves… Esse não voltaria tão brevemente. Rachel
também pensou em ir espairecer a mente, mas depois lembrou-se que os seus problemas tinham
outro nome. Se fosse, estava a aceitar que a casa que acabou de arder também era sua. Comeu
algo, não sabia cozinhar e não tinha vestidos para ir jantar fora. Lá sentou sobre a cama e fintou
o relógio durante… Horas e horas, sem problema algum. Dele, conseguiu focar o que estava para
lá da parede. Descobriu que na casa ao lado a empregada dormiu com o patrão e, a mulher
expulsou-a ao agarrá-la pelos cabelos. Ainda gritou que os bastardos não teriam nome.
Descobriu… Que uma diligencia real parou naquela rua, mas o príncipe William não teve
coragem de colocar os pés de fora para bater à porta.
Depois disso, sons comuns numa cidade movimentada, nobres com calma, operários com pressa,
burgueses a meio gás. Alguns pombos pousaram no telhado, alguns rufias também passaram por
lá para os caçar. Cães atrás das cadelas, ganindo de fome e de cio. Gatos que subiram as janelas
baixas e depois, com vertigens, miaram até os donos do lado irem lá com as vassouras.
Londres ainda tinha o som do metropolitano a passar por debaixo da cidade. Inaudível para os
comuns, audível para quem esteve ali o dia todo. Sorri, maravilhoso, Boston não tinha aqueles
sons majestosos. Nem o comboio andava no submundo incógnito. Que saudades de casa. Regras
fúteis, de resto, ela gostava.
Pega no relógio e pousa-o na mesinha de cabeceira, hora de dormir. Ajeita a almofada e deita. O
que iria sonhar? Se pudesse comandar a mente, sonharia com o dia em que finalmente estava livre
de sete nomes tatuados. Não podia arrancar a pele para ver outra nascer, tinha que carregar aqueles
homens até o final da sua vida.
Levanta ao ouvir uma porta a abrir. Quem seria? Passa a mão por debaixo da cama e pega na
pistola. Levanta, anda tão lentamente para o corredor que nem um gato conseguiria ouvir os pés
descalços. Diminui a respiração, caminha nas sombras que alguém esqueceu de afugentar.

162
Sete Nomes

Ouvia… Passos pesados, Phill não caminhava assim, nem quando estava zangado. Aponta a
culatra contra a silhueta que a visão capta.
Não pergunta, apenas sente o aroma que estava no ar. Baixa a pistola.
– Onde andaste? – abraça-o.
O pugilista fecha os olhos àquele mimo tão bom. Por onde andou? Por aí, nas ruas mais frias, nos
becos mais sujos e barulhentos. Pensou tanto, mas tanto que quase caiu no rio. Yves engravidou
uma rapariga que ainda não sabia se estava. Se não estivesse, teria que castigar severamente o
aprendiz que não parecia mais querer obedecer. Se estivesse… Tinha que lhes fazer um
casamento, arranjar uma casa e um salário. Ou deixava essa responsabilidade ao inconsequente
que queria ser homem.
– Abie já está na cama, encontrei-a a chorar ao pé da igreja.
Rachel nem deu conta dela entrar ou ser lá deixada. Recua e pega na mão dele, arrastando-o para
o quarto. Pega nos palitos coloridos e acende a vela para dissipar a noite.
– E Yves?
– Não sei. – senta na cama – Foi longe demais.
Pegando na bacia com água, ajoelha-se no chão e torce o pano para passar sobre as mãos
esfoladas.
– É só uma criança traumatizada. Não sabes que o pai dele está vivo?
– Sei Rachel, também sei que a mãe dele o abandonou à porta do regimento para crescer como
soldado. Yves passou dias sem comer, sem dormir. O pai batia-lhe até pingar sangue. Tentei dar-
lhe outra saída e acabei por errar.
Sorri ao limpar com meiguice a terra encrustada nas feridas.
– Não lhe devias ter batido. Errei muito nos meus anos loucos de adolescência, mas nunca algum
dos meus tutores bateu-me. Nem mesmo quando fazia algo absurdo.
– Sinto-me responsável por isto. Se lhe tivesse pagado uma prostituta, ele não teria ido por este
caminho.
Senta ao lado dele, se também tivesse feito isso, corria o risco de o viciar em algo terrível, além
de dar valor ao significado de vender o corpo para comer.
– E agora? O que vais fazer Phill?
Suspira ao deitar a cabeça sobre o regaço dela.
– O que tu farias?
Ri ao deitar para trás. O que faria?
– Colocava-o na rua, a viver com a rapariga. Saía sem nada, levava o que trouxe quando chegou.
– Que cruel.
– Um pouco. Conheci um homem que engravidou uma rapariga de dezasseis. Os pais dela
expulsaram-na de casa e o pai da criança casou com outra só para não assumir o erro. Ela
pedinchava à minha porta e sempre senti pena. Ao mesmo tempo, tinha inveja, se o meu mal fosse
esse, dormiria todos os dias sem ter que pensar nas coisas terríveis que passei.
O pugilista estava cansado de ouvir essa conversa. Até parece que foi a única a perder o pai
assassinado ou ter uma infância terrível. Ele também teve, Abie e Yves cresceram a evitar
traumas. Rachel não sabia o que era viver na rua, queixava-se de barriga cheia, aquela que
continua cheia.
– Vou mandar arrumar a sala de banho do piso debaixo. Cabe uma cama, um fogão, mesa e
banheira. Ao menos terá um teto para ficar.
– Vais passar a mão pela cabeça dele?
– Preferes que lhe bata novamente?
Nega, apenas queria dar-lhe uma lição.

163
Sete Nomes

– Se ela der sinais de estar grávida, vou fazer isso, não quero problemas com o Tech. Vão pagar
renda e comer com o dinheiro deles. Não posso fazer mais que isso.
– Só falta amanhã mudares de ideias e Yves não sofre nenhuma consequência, porque tu és
culpado.
– Mas eu sou culpado. – levanta o rosto – Rachel, culpo-me de adiar por muito tempo o que ele
tanto queria.
– Também adiei muito esta vingança e depois? Só agora é que me vingo.
– Não compares. Se ele tivesse matado um homem, eu bateria palmas. Vai ser pai, a vida dele
acabou de ficar manchada para sempre.
Revira os olhos, que coisa do outro mundo. A solução era simples, fez o filho? Então que
trabalhasse para o alimentar, não seriam os outros a fazer isso por ele.
– Tens fome?
– Não. – Rachel levanta o tronco – Já comi.
– Tu não sabes cozinhar.
– E? Sei cortar pão e presunto.
– Mas não sabes fazer batatas com ovos. – sorri.
Não, nem ovos sabia fazer. Tinha autonomia monetária, mas de resto, dependia de terceiros.
Assente, afinal tinha fome.
– Anda, vais lamber os dedos. – Phill pede ao levantar.
– Pois sim.
– Acredita… – retira a camisola suja – Sou perito na cozinha.
Nunca viu um homem a cozinhar, seria a primeira vez. Seduzida por aquele peito musculado
virado para o espelho, agarra-o por detrás e beija-lhe a pele. Começava apreciar o corpo
masculino, a sentir falta do seu aroma forte, calor quente e pele peluda. Quando se vive há
demasiado tempo com um homem, fica cada vez mais difícil não desejar a sua companhia na
cama. É como se fosse alimento.
Phill agarra nas mãos, puxa-a contra o espelho e encosta a cabeça à dela.
– O que queres?
– Nada.
– Eu sei quando uma mulher quer algo. Queres fazer amor?
– Não. Apenas senti-me… Tentada a tocar-te.
Entendia-a tão bem… Por vezes era difícil não querer tocar-lhe na pele macia e beijar sem parar.
Puxa-lhe o vestido de dormir e sobe as mãos pelo tronco quente e com algumas cicatrizes. Os
olhos de Rachel fecham, até daquilo gostava.
– Um dia destes marcamos algo. – recua as mãos.
O olhar abre e fica vidrado.
– Somos colegas de quarto, só isso.
– Colegas de quarto não têm desejos desses. – recua.
– Como sabes?
– Sei e pronto. Queres comer ou queres seduzir-me?
Comer, isso nem se preguntava. Cruza os braços e sai do quarto, acabou o momento ternurento.
Phill suspira, mulheres de ouro e seda… Matavam vários corações que desejavam ser donos de
tal tesouro. Nasciam puras, morriam com pecados e se assemelhavam a deusas. Mentes de
diamante, não se corrompiam até na hora de escolher um caminho. Sorri para a porta, para aquele
olhar que esperava o cozinheiro. Era impossível não haver amor, impossível o sentimento morrer
antes de tentar. Mas, as linhas pisadas podiam ser irreversíveis e existia um grande perigo de esse
amor virar ódio. Que ficassem entre as linhas, não morreriam dessa maneira.

164
Sete Nomes

Capítulo 24
Três dias, foi o tempo suficiente para Yves bater à porta e chorar nos braços do patrão. Sem casa,
com fome e com sinais de se meter em brigas, o aprendiz não teve escolhas na hora de seguir
caminho para um abrigo seguro. O pugilista ponderou muito antes de o aceitar novamente na casa
onde o viu crescer, afinal de contas, aquele era o próximo herdeiro do santuário fechado por falta
paciência. Abie adorou saber que o patrão ia deixá-lo ficar sobe uma condição… Teria que falar
com o talhante e marcar um jantar ali. Rachel nem deu opinião sobre o assunto, coração de
manteiga derretida.
Ao princípio, Tech limou a faca quando a conversa começou de uma forma bizarra. O aprendiz
engoliu com dificuldades, se fosse morto, ninguém o enterrava. Depois, quando anunciou que
cortejou a filha duas vezes… A faca foi cravada na mesa de madeira e ele ajoelhou-se no chão a
chorar. Floweren foi chamada e, na cara apavorada, confessou que tinha culpa. Tech aborreceu-
se, não esperava que a mais nova fosse ser obrigada a casar com o aprendiz do devedor. Mas ela
também era um enorme prejuízo em casa, não fazia nada, nem aprendia a ler ou a escrever. Antes
casada e longe que aumentar a despesa.
No dia seguinte, o jantar foi marcado para quinta. O Box foi limpo quase por completo, só para
o talhante e a esposa se sentirem bem. Abie e Yves trataram disso, Phill foi fazer uns business
numa loja para comprar carne de qualidade, além de vinho e outras iguarias. Ainda passou numa
joalharia para ver quanto custava um anel. Dez libras e oito pences? Até para casar ficava caro.
Rachel nem desceu, nem ajudou a limpar. Estava em dúvida se ia ao jantar que nada lhe dizia.
Não andava atrás do próximo nome, sentia-se doente. Febre baixa que encobria ao dizer que bebeu
ou deu banho. Estaria a ficar com alguma doença contagiosa? Não, o clima estava a dar-lhe
tonturas e febre, por aquela altura Boston preparava-se para a neve. Ali, só chuva.
Sete em ponto e a cozinha requintava cheirava a lavanda e limão. Cabrito assado, batatas cozidas
e sopa. A mesa colocada reluzia debaixo do candelabro de cristal a porcelana vinda da China.
Talheres de prata e panos de seda. Copos de vidro azul polidos ao milímetro. Debaixo da mesa,
um enorme tapete de pêlo branco, requinte. Phill teria que pagar a dobrar à empregada, ela fartou-
se de cozinhar, limpar e arrumar.
No quarto, o pugilista tentava colocar bem o laço. Que preguiça, desde quando receber ladrões
era motivo de exuberância? Olha para Rachel a olhar o vestido vermelho com folhos de renda
negra nas mangas e na saia volumosa. Não gostava? O estilista garantiu que era típico das
mulheres americanas, depois usavam um colar negro muito justo ao pescoço e um leque.
– Devia ter-te comprado o castanho.
Dá de ombros, era magnifico, lembrava-lhe aquele que a mãe usou na festa de boas vindas dos
vizinhos do lado.
– Eu gosto.
– Mas? – coloca as mãos nos ombros dela.
O rosto pálido e os olhos cansados. Coloca a mão sobre a testa dela, um pouco quente, mas não
muito alarmante.
– Não queres recebê-los a meu lado? Eu sei que não és a minha esposa nem futura… Mas
precisava de um pequeno apoio. Um rosto belo faz sempre a diferença na mesa.
– Não me sinto muito bem para isso.
– Juro não te cansar, basta dares-me o braço e beijar aqueles ladrões. De resto, eu falo e levo este
jantar ao fim. Vá lá Rachel, não me deixes sozinho agora.
E aquele olhar cintilante desesperado… Assente ao olhar para o vestido, que sacrifício.
– Obrigado. – abraça-a.

165
Sete Nomes

– Faço isto por mim, não te quero ouvir a falar sobre o que aconteceu.
– És um amor de pessoa, sabias disso? – caminha para a porta.
Faz um som de acreditar muito na conversa fiada. Vestir e descer… Yves ia ficar a dever.
A arena deu lugar a velas aromáticas e a pétalas de rosas. Que exagero, era o talhante que vendia
carne de cão e gato, merecia no mínimo entrar e levar logo na cara por enganar o povo. Claro que
Phill não queria problemas com ele, só para evitar ganhar mais um inimigo. Ajeita o laço do
vestido de Abie, até ela estava vestida para um baile da realeza.
– Gostou?
– Rosa… Tens cara de um azul claro. – comenta ao colocar o braço sobre os ombros dela.
– Olhe para Yves. Nervoso.
O aprendiz estava ao pé da porta, à espera da futura esposa forçada. Vestiu o fato dos domingos,
não existia dinheiro para outro.
– É bom que não perca o anel, estou a devê-lo.
Abie vira o rosto aborrecido com a novidade. Estava a dever? Não bastou o gramofone? Nega,
ele não aprendia mesmo.
– O que queres, não tenho dinheiro nem para comprar um ramo de flores à Boston.
– Ela vem?
– Vem. Aquele vestido vai-lhe ficar mesmo bem. Comprei o mais caro.
– A ela comprou. Com que dinheiro?
– Não quero que ela use coisas fiadas, merece o melhor que posso oferecer. Apenas custou
novecentos pences, o anel foi o dobro disso.
– É de prata, quer o quê?
– Que fique rico e pague as coisas na hora. Tenho fama de devedor.
– Porque deve e continua a dever.
Faz uma careta sobre o assunto. Devia… Um pouco, não devia mais que… Uma pequena enorme
conta. Um dia ia conseguir pagar tudo, um dia muito distante daquele ainda.
– Aposto que Tech vai trazer carne. Sabes o que tens a fazer? – mete as mãos aos bolsos.
– Ir lá trás e atirá-la aos cães baldios.
Assente, jamais comeria a carne daquele talhante. Desde que o viu a matar um gato e depois
vendê-lo como coelho… O estômago deu um enorme nó e a mente bloqueou a amizade. Ainda se
perguntava se comeu carne de cão ou gato alguma vez da vida, porque antes de descobrir a
verdade, era lá que comprava.
O bater à porta ecoa pelo Box. Ao pé da arena, Phill suspira e faz sinal para o aprendiz abrir a
porta. Yves volta a passar a mão pelo cabelo e depois, sorri ao puxar a porta para o futuro.
– Seja bem-vindo Sir Dayno e Meydi Tech. – faz uma vénia.
O casal entra lentamente. O talhante não era tão magro como a época difícil exigia. Na verdade,
Dayno tinha uma enorme barriga redonda, parecia andar de esperanças o ano todo. A mulher, um
palito pálido que parecia passar fome. Ainda tinha a touca de dormir, escondendo os caracóis
dourados. O vestido gasto revelava a falta de cuidado, dinheiro e paciência para tratar da lida
doméstica. Rugas no rosto, teria pouco mais que trinta anos, mas os anos dedicados à família
permitiu que as horas roubassem dela a beleza londrina. Ele… O rosto vermelho cheio de barba,
alto, com um fato negro caro, uma cartola que quase chegava ao próximo candelabro no cimo das
escadas. Braço dado porque parecia mal não o dar. Velho? Quarenta anos bem conservados a
cortar carne e a comer, nada mais.
Logo atrás, a filha mais nova do casal surge com imensa vergonha à luz das velas. Quinze anos,
mais baixa que Yves, não passava de um metro e cinquenta. Olhos azuis e cabelo dourado como
a mãe, que bênção. Um vestido branco que não tocava o chão e uma bolsa de mão esfarrapada.
Nos pés, os sapatos apertados tinham que dar para o momento, não engravidasse.

166
Sete Nomes

– Estás linda, Floweren. – Yves fala ao dar a mão.


O rosto fica corado.
Phill estava sem palavras, aquela rapariga foi cortejada pelo aprendiz? Nova demais, cara de anjo,
ainda uma criança e já com pressa de chegar ao mundo dos adultos. Abana levemente a cabeça, a
sociedade tinha que evoluir com urgência, ou caminho mal se nasce e já se casasse para sair de
casa.
– Tech… – caminha para as escadas e estende a mão – Welcome my home.
Casa… O talhante aperta a mão por apertar. Não via uma casa, via um… Beco… Um desenrasque
porque a vida não permitia muito.
– Espero não comer nas escadas. – resmunga.
– Achas que eu deixaria isso acontecer? Tech, sou um homem de posses. – pega na mão da mulher
– Bela como sempre, MiLady Tech. – beija a pele fria.
– Posses? Deixa-me rir… Deves mais que qualquer ladrão de Londres. Nem sei como ainda tens
isto. – desde as escadas.
O pugilista respira fundo, tinha que manter a paciência.
– Quem é a negra?
Vira-se.
– Abie, minha empregada.
Ela faz uma vénia e sorri. O talhante faz uma cara de desdém, não apreciava escravos vindos de
qualquer parte do mundo.
– Flow… Vai à carruagem buscar os dois quilos de carne que trouxe.
A rapariga larga a mão de Yves e corre porta fora para ir buscar a encomenda. Carne? Phill morde
o dedo, bem que esse palpite estava certo.
– Cabrito? – pergunta.
– Não, vitela e coelho. – olha em volta.
– Vai gostar. – Meydi comenta quase em sussurro.
Sorri, carne de gato e… O que seria a outra carne? Olha para Yves e arregala os olhos, com tantas
mulheres no mundo, tinha que ser logo aquela, da pior família londrina? Ele sorri meio
atrapalhado, aconteceu.
Os passos leves ecoam pela arena, os rostos viram-se para a outra convidada que se aproximava
para cumprir o favor pedido. Dayno retira a cartola e fica deslumbrado com a dama que por ali
vivia. Que elegância… Que modos de se apresentar… Que maravilhoso vestido vermelho que lhe
dava um ar requintado…
Rachel Para ao ver o homem gordo. Aquele é que era o talhante enganador? Mira-o bem e depois
a mulher que se aproximava. Tech batia-lhe muito, depois abafava o rosto da esposa e violava
forçadamente. Bêbedo, saía do talho e sentava numa taberna. Bebia tanto, mas tanto, que chegava
a casa e fazia isso. A esposa aceitava, sofria em silêncio, escondia as marcas da violência por
debaixo dos vestidos com mangas longas. Tiveram quatro filhas acidentalmente, e pelo rosto
pálido, estaria há espera de mais um.
Vira o rosto para Phill, estava cansada demais para ler a vida das pessoas.
– Boston… – dá-lhe a mão – Esta é a minha… Prometida, MiLady Hayda Boston.
O talhante baixa o tronco para beijar a mão dela. Rachel recua antes dos lábios tocarem a pele.
– Fique longe.
Phill sorri para afastar um pouco o nervosismo.
– À parte, meu amor. – puxa-a para a porta da cozinha – Rachel… – fala baixo – Por amor de
Deus, não faças nada que faça este homem ficar contrariado.
– Ele viola a mulher e abusou de algumas filhas. A mais nova não era virgem quando Yves a
cortejou.

167
Sete Nomes

Encosta-se à porta e pensa um pouco sobre o assunto delicado.


– Viste isso?
– A mulher bem que tenta esconder essa verdade, mas não consegue.
– Então ela pode estar gravida do pai e não do Yves?
– Não, Dayno abusou dela, mas não engravidou. Este homem devia de ser expulso daqui.
– Se fizer isso, denegrido ainda mais a minha imagem! Rachel, Tech é o mais influente talhante
de Londres, fornece carne até para a rainha. Este casamento é para mostrar a Yves que tem que
aceitar os erros, além de parar de parecer um devedor. Tens a certeza que ele não a engravidou ao
ponto de nascer ali um bastardo?
Assente, tinha a certeza absoluta que não fez isso, apenas fez algo cruel ao roubar-lhe a inocência.
– Pronto, então vamos esquecer que viste isso e continuar com o jantar.
– Meydi está de esperanças.
– Isso eu vi. Floweren não pareceu que esteja grávida, mas temos que esperar para ver. – pega na
mão dela – Vamos?
A vontade não era essa, tinha sono, o corpo queria estar deitado e cheio de cobertas capazes de
lhe dar um calor aconchegante. Nega e Phill assente ao abraçá-la.
– Eu sei que é difícil, mas se não fizer isto, nenhum de nós aprende uma lição.
– Que lição?
– Os nossos erros devem ser sempre aceites… – sai dos braços – Mesmo quando custa admiti-
los.
Uma indireta… Admitia os erros, jamais disse o contrário disso. Mas, naquele momento, a saúde
de Rachel não permitia que o sorriso forçado fosse bem-vindo.
A pobre da empregada já estava carregada de carne, os braços nem se conseguiriam mexer para
abrir uma porta. Dois quilos? Deve ter levado uns dez quilos, a carne de vaca até tocava o chão.
– Abie, leva isso para a salgadeira. – Phill pede ao sair pela porta da cozinha.
Para o beco, porque ninguém iria comer aquilo. Lá caminha para o corredor com a porta traseira,
como custava ser empregada ali.
– Vamos para a cozinha? Não quero que morram de fome. – faz sinal.
– Estava a ver que não convidavas para isso. – Dayno não hesita em acelerar o passo.
A dispensa não chegaria para encher a barriga do talhante, disso o pugilista tinha a certeza. Faz
sinal para Yves levar a rapariga para o lugar dela, a noite ia ser longa.
No início do jantar, a sopa servida não estava ao agrado do casal. Não falaram, as palavras foram
roubadas pela inveja. Uma cozinha requintada, nunca pensaram que aquele devedor tivesse
dinheiro suficiente para bancar tanto luxo. Talheres de prata… Copos de cristal… Louça da
China… Ainda Dayno pensou estar a casar a filha com um esfarrapado, o aprendiz estava a herdar
uma fortuna escondida. Rachel estava na ponta, mesmo ao lado de Phill que engolia com
dificuldades o olhar do talhante. O que queria da sua colega de quarto? O que queria dela? Limpa
a boca e faz sinal para Abie trocar de refeição, a sopa parecia uma enorme pedra afiada a descer
a goela.
Dá a mão a Rachel e ela não precisava de olhar para o lado para entender o gesto. Prometida,
frisou isso quando a recebeu com um simples entrelaçar de dedos. Sua… O talhante devia de
entender bem o recado.
– Diz-me Yves… – vira o rosto para o lado – O que queres da minha filha?
O aprendiz engasga-se com a água. O que queria já teve.
– Eu… Eu… – olha para o patrão.
– As melhores intenções do mundo, apesar do inferno estar cheio delas. – Phill comenta
sorridente.
– A pergunta não foi para ti, pois não, Smith?

168
Sete Nomes

Pega no pão e parte-o ao meio, se aquele talhante soubesse que estava perante o filho do príncipe
austríaco, engolia o mau humor e ainda cantava o hino italiano, vistos que a mãe descendia de lá.
Melhor nem saber, ou queria um casamento de sonho. A filha não, mas o pai quereria comer bem
às custas dela.
– Yves, diz. – Dayno insiste.
– Quero… Dar à sua filha uma casa, dinheiro e filhos.
Phill bate com a mão na testa, que estúpido, não era isso que se prometia a uma mulher.
– Floweren terá que ser uma boa esposa… – olha para a filha – Preguiçosa e com um grande
apetite, a tua dispensa não sacia este bicho. Fizeste um filho, agora casas com o pior rapaz de
Londres. Mais nenhum homem te vai querer depois do que fizeste.
A rapariga baixa o rosto envergonhado. Os olhos estavam quase em lágrimas, não era isso que
precisava ouvir, pelo contrário, um pai nunca fala mal da filha. Aquele queria tanto se livrar dela
que nem se importava que fosse dada a um rapaz inconsequente, sem casa e emprego fixo.
– Se levares, não passarei a mão na tua cabeça como fiz à tua irmã. Ela merecia, tu… É bem feita
que apanhes de manhã à noite, para aprenderes a obedecer. Nem te atrevas aparecer lá em casa e
pedir abrigo, acabaste de deixar de lá viver.
– Dayno. – Meydi fala baixo.
– É verdade. Quando a mãe não presta, as filhas são o que são.
– Rejeitaste-o… – Rachel fala ao focar o rosto de Floweren – Foste a única que o rejeitou.
O olhar da rapariga vira para a mulher na ponta. Do que estava a falar?
– Desculpe? – Dayno foca-a – Do que está a falar?
– Boston. – Phill murmura ao agarrar a mão dela.
– Casou as outras à força porque as engravidou! Os maridos descobriam as verdades e pediam o
divórcio. Calhou elas forçarem o aborto ou nasceriam crianças vítimas de um violador bêbedo e
sem piedade. Ela foi a única que resistiu estes anos todos e é por isso que a expulsa de casa, não
serve para ser seu brinquedo.
Tech bate o pano na mesa e olha para a esposa. Abriu a boca? Atreveu-se a contar aos outros o
que acontecia debaixo do seu teto? Meydi nega ao levantar as mãos, mas de nada serve no
momento em que leva uma estalada forte no rosto.
– Dayno! – Phill levanta – Nenhuma mulher sofre violência aqui, debaixo do meu teto. Queres
acertar contas? Acerta-as em tua casa, na minha não permito!
O olhar violento já pronunciava a tragédia do dia seguinte. Meydi seria espancada, se
sobrevivesse, aprenderia a nunca mais abrir a boca. E não abriu, Rachel não precisava de ouvir
da boca de terceiro o que acontecia em suas casas, bastava olhar para as evidências, para os
olhares, para as atitudes. Só isso.
– Quando se marca o casamento? – recompõe o casaco.
O pugilista senta e bebe para esquecer o que ouviu.
– Podemos marcar… No dia de Páscoa. – Yves sugere.
Péssimo dia, mas se era a vontade deles, nada podiam fazer.
– Quem paga?
– O pai da noiva. – Phill avisa.
– Neste caso, quem a engravidou. O rapaz paga e organiza, tem que provar que merece a minha
filha.
– Achas que tenho dinheiro para pagar um vestido de noiva, jantar, padre, cocheiro… Nem tenho
dinheiro para comprar agulhas de cozer.
– Educasses bem o teu aprendiz.
– Acho que ela também abriu as pernas. Parece-me até que ela concordou muito com o desejo do
meu aprendiz.

169
Sete Nomes

– Que a engravidou! – o tom aumenta.


– Que desgraça, será pior o pai violar a filha ou um rapaz estúpido ter relações sexuais com ela?!
– levanta e coloca as mãos na mesa – Tem quinze anos, com a idade dela eu lavava o chão onde
hoje posso dizer que é meu. Se a tua filha engravidou, foi graças a Yves e a si mesma, nem eu
nem tu temos culpa disso. Já faço um enorme favor em recebê-lo aqui, não torne este jantar mais
nojento do que já é.
O talhante limitasse a beber, encher o copo e beber ainda mais. Casa dele, regras dele. Porque na
sua o assunto teria sido bem resolvido. Phill senta e respira fundo, nunca da vida engoliu tantos
sapos para aguentar um simples jantar.
– Floweren e Yves vão viver na sala dos banhos, aqui no primeiro piso. A banheira já foi mudada
para outro lado, tal como o penico. Abie, ficas com o quarto só para ti.
A empregada estava tão terrificada que nem sabia se estava a ouvir.
– Não vão viver de graça, terão de pagar quarenta xelins para cá ficarem. Podem colocar lá um
fogão e uma mesa, até a comida vão ter que pagar. Yves, aumento o teu salário. Quanto a ela…
Terá que ajudar Abie que não é escrava de ninguém.
– Não sei fazer nada. – Floweren comenta.
– Aprendes. Casamento trato eu, infelizmente. Quando o filho nascer… Logo se vê o resto.
Entendido?
Silêncio, aceitação por completo.
– O anel, Yves?
O aprendiz retira do bolso a pequena caixinha de veludo. Levantando, ajoelha-se ao pé da
rapariga.
– Aceitas casar comigo, Floweren? – mostra o anel.
Que remédio tinha, não adiantava dizer não. Assente, estica a mão para no dedo ser colocado, o
peso do futuro forçado. Sorri apesar da enorme tristeza que sentia, ganhou uma responsabilidade
invés de anos de juventude.
– Daqui a uma semana mudaste para cá. – Phill pede.
– Fica já hoje. – Dayno comenta com a voz azeda.
– Hoje? Onde vai dormir? E roupa? Pensas que sou um hotel cheio de quartos vazios, não?
– Essa puta não entra mais lá em casa. Fica! – levanta, depois de limpar a boca e bate o pano na
mesa – Vamos que já está tarde.
Phill fecha as mãos ao limite, aquele homem era mesmo insuportável.
– Não ouviste Meydi! – agarra no cabelo dela e arrasta-a ao longo da cozinha.
Os gritos são abafados, a vergonha era tanta que tinha que aceitar o acto violento. Quando a porta
se encosta, o pontapé dado nas pernas ecoa pelo Box Dead, fazendo Phill arrepiar e Rachel odiar
ainda mais homens iguais àquele. Floweren é pior, chorava nos braços de Yves. Depois disso,
nada mais se ouve. Jantar negro, triste e chocante, jamais aquele dia deveria ter nascido.

170
Sete Nomes

Capítulo 25
A noite passou lentamente, a lua teve tempo de dar a volta ao mundo enquanto os londrinos
dormiam. Chuva, o céu não deu tréguas ao descarregar a sua raiva sobre os que viviam debaixo
de tetos de vidro. Nem os candeeiros de rua aguentaram estarem acessos, o vento entrou pelas
fissuras e apagou os pavios alimentados pelo gasóleo.
As gotas pingaram a noite toda para a arena do Box Dead. As pétalas murcharam, parece que a
morte lá passou enquanto dormiam. Na cama estreita, Yves não pregava olho só para garantir que
Floweren não caía ao chão, o colchão só dava para um. Abie lá adormeceu depois de rezar pela
alma de Meydi, tinha pena dela. No segundo piso, Rachel teve ligeiras alucinações por causa da
febre, obrigando Phill sair da sua cama e deitar na dela. Pregou olho assim que o corpo quente se
agarrou ao seu, sinal de que finalmente adormeceu.
O dia amanheceu cinzento, friorento e com novas obrigações. Já se ouvia a chaleira na brasa da
lareira, Abie era pontual. Lavou a louça, limpou o chão da cozinha e agora recolhia as pétalas
murchas. Esperava também ter um aumento, ou teria que se casar para ter um?
Os olhos estavam abertos, virados para o relógio parado sobre a mesinha. Oito. Não seria
certamente essa hora, talvez sete, talvez seis… Qualquer hora menos aquele número infinito.
Retira a mão debaixo do cobertor e pousa-a sobre a testa de Rachel. Sem febre, pelo menos isso.
Mima-a, que mulher de aço, teve coragem de dizer umas verdades na cara sem ter medo das
consequências. A raiva dele foi descarregada sobre Meydi, isso se continuasse viva. Dayno devia
de morrer de peste, ganhar a terrível tuberculose e vomitar sangue todas as manhãs. Um homem
como ele não devia de viver, apenas morrer. Que pai violava as filhas e depois casava-as para
abafar a situação? Monstro, Tech era um monstro.
– Boss…
Levanta o rosto para o murmúrio ao pé da porta. Abie, só ela podia ir ao segundo piso.
– Aconteceu algo? – fala muito baixo.
– Queria saber se Rachel está bem ou preciso chamar um médico.
– A febre baixou. Enche a banheira e prepara um bom pequeno-almoço.
– Está bem.
– Coloca as roupas dela a secar. E Yves? Já acordou?
– Nem dormiu, está com a vista pesada. O que faço? Floweren nem sabe varrer o chão.
Era o que faltava, ter uma preguiçosa debaixo do mesmo teto que só dava despesa.
– Ensina, pago-te o dobro para isso.
– Mas ela nega, diz que não quer.
– Então ameaça mandá-la para casa do pai, ou que lhe bates… Não sei, ela não pode ficar a dar
despesa!
– Vou tentar, boss. – encosta a porta outra vez.
Além de burro, Yves engravidou a pior mulher de Londres, que não sabia ler, nem escrever, nem
limpar, nem nada, só sabia abrir as pernas. Se isso desse dinheiro… O problema não é seu, só
quer as contas pagas.
– Rachel… – fala com ternura – Black Sparrow.
Os olhos abrem levemente para a voz que a chamava. Fraca, até aquele olhar dizia isso.
– A tua febre baixou. Abie vai encher a banheira para dares banho.
– Pareço doente?
– Não… Só estás com cara de que não queres aturar-me.
Sorri, esses dias também existiam no calendário dela.

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Sete Nomes

– Passaste a noite quase toda a chamar os teus pais. Só acalmaste quando deitei aqui e puxei-te
para o meu peito.
Nem tinha palavras, teve pesadelos, reviveu o que não queria reviver. Depois da tempestade, teve
o privilégio de relembrar uma tarde no jardim com os pais, ali, em Londres, na mansão que deveria
de estar fechada ou nas mãos de Logan. A saudade e o arrependimento era tanto que só Phill é
que ouviu a sua dor, prova de que a mente estava pior do que pensava.
– Desculpa.
– Eu gosto deste colchão, é mais fofo. – inventa.
– Já dei conta que sim. – olha para o relógio.
– Oito e meia Rachel, não pares no tempo.
Estica a mão e fecha as horas erradas. Mais meia… Isso não ajudava nem um pouco o tempo
suspenso nos anos que passavam.
– Toca a por a pé que… – afasta os cobertores e levanta – Tenho uma preguiçosa que precisa de
trabalhar.
– Eu?
– Vais-te casar com Yves? – espreguiça – No mínimo, casas com o mestre, não com o aprendiz.
– Nem com um nem com outro.
– Um dia ainda vamos discutir isso. – pega-a ao colo.
– Phill! – grita.
– A dama está doente e precisa de transporte… – abre a porta encostada com o pé – Ainda bem
que sou forte.
Ri.
– E bonito, não me achas bonito?
Nega, nem um pouco. Apenas… Era atraente.
– Não me mintas Rachel. – pousa-a no chão e levanta-lhe o vestido – Não gosto de mentiras a
meu respeito.
– Não minto. – cruza os braços para tapar os seios.
Virando-a, passa a mão pela cicatriz que ainda tinha os pontos. Estava a cicatrizar, algo positivo
e que avisava que o seu mal não vinha dali. Ainda faltava, aqueles homens tinham o privilégio de
ainda estarem vivos para mais um dia. Até quando? Rachel deu uma pausa na busca, mas não
tardava a iniciar a caça ao homem.
Beija-lhe o pescoço e abraça-a.
– Ainda te acho corajosa, fazes o que não sou capaz de fazer.
– Vingar?
Assente, jamais conseguiria matar o pai no momento em que se aproximou demais dele.
– Pedes-me para não te amar, mas não sinto outra coisa por ti. Mente de diamante… – sorri –
Todas as joias são inquebráveis se forem de qualidade.
Rachel sente um arrepio quente a subir o corpo, os pelos dos braços erriçam e a pele fica igual a
de uma galinha depenada. Amor, sentia o mesmo por ele. Longe… A vida dela ficou presa para
sempre em Boston, apenas a alma deambulava à procura de paz. Banshee. Iria encontrar o queria
se soubesse esperar mais um pouco.
– Eu gosto de ti Phill, amo-te como nunca amei um homem.
– Isso se tiveres tido algum antes de mim.
– Por isso que não sei o que é amar. Dizem sempre que o amor quando se parte, é como um
vidro… Doí e… Fica assim, despedaçado. Cresci rápido demais para saber o que é isso, fiquei
tão focada na vingança…
– Nos dezoito anos rebeldes.
Sorri, a juventude terrível de quedas violentas para o abismo.

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Sete Nomes

– Não me peças nada. Só isso.


Não pedia nada mais que a sua companhia ao lado da cama, mesmo que a cortina lá estivesse.
Suspira, tempo, não é preciso ir rápido demais nalgo que é incerto.
– Pronta para o banho? – recua.
Estava em dúvida, a água parecia fria, não sentia o vapor no ar.
– Não entro.
Phill passa a mão pela água. Fria.
– Abie! – grita até deitar o Box abaixo.
Ela não encheu a banheira com água quente, estava mais fria que o ar do outro lado da janela.
Coloca as mãos nas ancas e refila noutra língua, andava a pagar para não ter serviço de qualidade.
Rachel ri, ele estava enfurecido.
Partiu sete pratos, nove copos e só não partia os talheres porque eram feitos de prata, ou até isso
tinha um destino lamentável. O pugilista ficou pasmo com as mãos de manteiga dela, estava sem
louça para comer. Quando mandou colocar lenha na lareira, bem, deixou cair os paus rachados
sobre os potes pendurados, que viraram para o chão e despejaram a água a aquecer. Berrar? Phill
até saiu porta fora, só para não levar aquela desastrada à casa do pai e dizer para ficar com a
defeituosa que nem para empregada servia.
Entra pela porta e encosta-se ao aro. Yves decorava o pequeno espaço que serviria como casa
dentro de uma casa. Escolhia as cortinas velhas dentro da caixa de papel, amontoava os tapetes
coloridos rafeiros, arrastava a cama provisória para o melhor ângulo do quarto… Coça a cabeça,
o aprendiz virou um decorador de interiores invés de um futuro pugilista. Hobby, todos os homens
que pensavam criar um lar tinham um no momento em que entravam em pânico.
Tose e Yves vira-se para a porta. Estava enrolado em fitas coloridas do natal, até aquilo servia
de decoração.
– Boss.
– Yves. – cruza os braços.
– Eu pago isto… Tudo… – tropeça ao andar.
O estrondo faz o pugilista cerrar os dentes, não valia apena dizer que ele era homem.
– Eu ofereço. A tua… Futura esposa nasceu com uma doença chamada preguiça. Não tenho cura
para ela ainda.
– Floweren não tem culpa, não aprendeu.
– Ou não quis aprender? Estou definitivamente confuso.
Tenta desenvasilhar-se das fitas, mas desiste ao ficar preso.
– Preciso de um combate, quero comprar aquele fogão de ferro para cozinharmos aqui.
– Queres um combate hoje, tão em cima da hora?
– O boss consegue.
Arregala os olhos.
– Tomara eu ser Deus para fazer milagres.
– Preciso com urgência… – levanta, mas volta a cair – Estou sem dinheiro, gastei-o todo ao
comprar este lençol.
Olha para o colchão. Os lençóis na feira eram baratos se fossem feitos de algodão. Não gastava
as poupanças todas num, a menos que o tecido fosse outro.
– Não é seda, pois não?
Assente ao retirar as fitas e levantar do chão.
– O melhor para a minha Floweren.
Fica com a boca descaída, o rapaz estava apaixonado e ninguém o forçou a isso. Cego, queria dar
uma vida boa a uma mulher preguiçosa que ainda nem estava grávida. Mas isso não tardava,
apostava que a cama nova teria uma estreia memorável.

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Sete Nomes

– Sou mesmo burro! A Boston dorme em lençóis de algodão, eu durmo em lençóis de algodão,
Abie também. E tu, em seda. Acho que vou pedir ao meu pai uma cama em ouro, porque até o
meu aprendiz ultrapassou-me.
– Está com inveja? – coloca as mãos na cintura.
– De ti? Só tenho pena. Se fosse para engravidar uma mulher, engravidava uma princesa, valia
mais apena que uma rapariga preguiçosa, violada, rejeitada pela família, abandonada na minha
casa e com um… Desajeitado. Dizem que uma desgraça não vem só.
– Só o boss é que pode ter uma mulher boa para fazer amor!? Fiz a minha escolha e eu gosto
muito da Floweren. É uma mulher doce, linda e educada.
– Mulher? Meu deus, caminho as meninas de dez anos são consideradas mulheres. Yves! Ela é
uma criança ainda, se engravidar, vai sofrer mais que se a Boston engravidasse.
– Porquê?
– Ela nem tem seios visíveis.
– Mas tem dias vermelhos e o boss disse que quem tinha já era mulher.
– Está bem, pode até ter, mas tem altura suficiente? Maturidade? A barriga vai pesar-lhe, as ancas
vão alargar! E no parto pode nem sobreviver.
– Acho que não é mulher e nunca foi pai para saber isso. Então, fique calado.
Mostra a mão aberta, devia relembrar-lhe que ainda estava debaixo do seu teto? Nunca teve
filhos, mas a primeira namorada contou bem como era sofrer uma gravidez na adolescência
prematura. Parecia fácil, mas as raparigas mais novas eram as que morriam primeiro no parto, o
corpo não aguentava o esforço e a exaustão.
– Tenho mais idade que tu Yves, aprendi mais que tu, vi coisas que tu jamais verias. Se te digo as
coisas, é porque sei do que estou a falar. Digo-te já que preferia que ela não estivesse grávida, não
tens idade para ser pai, nem maturidade, nem dinheiro, nem casa, nem nada! Fazer amor não faz
de ti um homem, só quando te ver a fazer algo digno de um é que acredito que mereces o meu
respeito. Até lá, fazes o que mando, ou mudaste com ela para uma estalagem!
Baixa o rosto, perdeu a razão.
– Preparo-te um combate porque acho que o Box Dead está há muito tempo fechado. Se colocares
a Boston em risco, juro-te que te expulso daqui.
– Como a colocaria?
Segura na maçaneta da porta e olha-o.
– Reza para que nenhum homem conhecido dela apareça hoje, ou não terei dó.
– Prefere a ela que eu, o seu aprendiz, o seu braço direito e esquerdo.
– Cortei os dois e enterrei no dia em que me desiludistes e desiludes. Nem te reconheço. Ainda
bem que mudei o testamento. – bate a porta.
– Mudou?! – grita ao correr para a porta – Mudou?
Para ao baixar o rosto. Mudou, não deixava a sua casa a um inconsequente como ele. Perderia
aquilo tudo se o fizesse. Também não contava a quem deixava, isso seria só sabido quando
morresse. Segue caminho, Yves bate a porta com força e encosta-se à madeira. Nunca foi tão
castigado como estava a ser. Até o patrão o odiava, como se tivesse culpa de querer mudar de
vida. Não era ali que devia de viver, mas não tinha onde viver. Casa do patrão, regras dele e nem
uma palavras a dizer sobre o assunto.

O olhar castanho parecia estar mais interessado no peito nu do pugilista que nos feijões dentro
da bacia. Musculado, perfeito… Alto… Yves não era assim tão perfeito, nem bonito. Quando
aceitou o pedido sussurrado ao ouvido, pensou que seria um pequeno segredo que guardaria. O
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Sete Nomes

problema é que o burro do amigo abriu a boca e agora teria que casar forçadamente com ele. Deita
alguns feijões ao chão sem dar conta, nunca viu um homem tão belo como Phill. Como seria por
debaixo das calças? Que curiosidade, apostava que a faria gritar mais alto do que Yves conseguiu.
Suspira, homens daqueles não deixavam dúvidas algumas.
Alguém senta ao lado e sopra o chá quente de cidreira. Floweren não dá conta, estava muito
focada na anatomia do pugilista. Rachel sorri, dava tudo para saber o que uma rapariga de quinze
anos pensa. Nessa idade, a sua preocupação era ficar herdeira do nome que o pai lhe deixou,
recuperar a fortuna e provar que não morreu. Como ainda era menor, só Jason, o advogado, é que
ficou com o tudo, além de ser seu tutor. Mas, sempre pensou que as outras não tinham essas
preocupações, nasceram livres e morreriam livres se soubessem aproveitar a oportunidade.
Pousa o copo e sopra para o cabelo dourado que descia os ombros.
– Ele é velho demais para ti. – fala quase a soletrar.
A rapariga vira o rosto e encontra aquele olhar devorador. Yves avisou que a Boston não era de
confiança, então não podia contar-lhe nada.
– Não sei do que fala. – volta aos feijões.
– Sabes. Belo peitoral quente e macio… Acredita que vale apena. Mas crianças pequenas não
entram no quarto dele.
Fica magoada, não era assim tão pequena.
– Nunca se sabe.
– Está há vontade, Phill é solteiro. – pega no copo – Cheio de dívidas e mau humor quando o
assunto não o agrada. Fica pelo Yves.
– Não gosto dele. – faz quase uma birra ao falar.
– Não abrisses as pernas. – sopra e bebe o chá.
Vira o rosto para a mulher que parecia estar a rugar uma praga.
– Se vives aqui, é porque também abriste as pernas a alguém!
Arregala os olhos ao afastar o copo dos lábios. Língua afiada, aquela não se calava na hora de
atacar com as pedras. Nova e já parecia ter herdado o mau feitio do pai, dizer tudo na cara e o
resto, que se lixe. Pousa o copo e muito subtilmente, agarra no queixo dela e aperta o suficiente
para a assustar. Floweren não demora muito a ficar com os olhos em lágrimas.
– Vamos ver se chegamos a algum lado. Eu tenho o dobro da tua idade, tamanho e mentalidade.
Se abri as pernas ou não, não é da tua conta, vistos que sou adulta e faço da minha vida o que
quiser. Vens para cá por pena, queres fugir do teu pai. Tudo bem, concordo, mas nem te atrevas
a levantar-me a voz. Se fosse a ti, nem falava ou dava opinião na minha presença, meninas
mimadas não passam da esquina da minha rua, lá em Boston. Sabes onde é?
A cabeça nega, a rapariga estava aterrorizada.
– Ainda bem. É bom que aprendas a ler e a escrever, ou fica na ignorância sem afetar os outros.
Não quero ouvir aquele homem… – vira-lhe o rosto para a arena – A lamentar que dás despesa.
Ele está marcado, não é para ti. Entendeste bem?
Assente sem alternativa.
– É bom que na presença dele abaixes o olhar para o chão. E apenas digas “Sim, boss!”, nada
mais que isso. – vira o rosto novamente – Aprende a cozinhar, limpar e ganha dinheiro, ou vais
para a rua e acredita, consigo convencer qualquer um que és uma merda qualquer que pode ser
vendida na feira. Ser escrava é pior que ser mãe aos quinze, algo que tu ainda não és, porque nem
estás grávida. Fui clara ou tenho que falar noutra língua para entenderes?
As lágrimas desciam o rosto pálido, estava com receio, medo de a qualquer momento passar a
viver na rua.
– Vais levantar e dizer a Abie que queres aprender a lavar roupa, com um enorme sorriso no rosto.
Aliás, vais passar o dia aprender coisas. Na hora de comer, sentas ao lado de Yves e não abres a

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boca, nem olhas para os restantes. – larga o queixo dela e ajeita a gola do vestido arranjado –
Seremos grandes amigas se aprenderes a ser calada e cega. A tua língua de cobra não te livra dos
horrores que poderei fazer em ti. Posso ser pior que o teu pai.
– Duvido. – murmura.
Rachel aproxima a boca ao ouvido dela.
– Não duvides de uma mulher que vem do outro lado do oceano. Não penses que te livraste de
um pesadelo, podes começar a viver outro a qualquer momento. Agora… – recua a cabeça – Vai!
Levanta, deixa os feijões cair no chão e corre para a cozinha para chorar em algum canto. Rachel
volta a pegar no copo e sopra o vapor, que vidrinho. Não lhe ia fazer nada, só queria assustá-la ao
ponto de lhe abrir os olhos. Se continuasse preguiçosa, com todas as pessoas a passar-lhe a mão
na cabeça por terem pena, a rapariga não evoluía. Talvez assim vá longe.
– Aposto que a conversa não foi animadora. – Phill coloca os braços sobre a madeira que limitava
a arena.
– Acho que a partir de hoje ela aprenderá a lida doméstica.
Sorri ao piscar o olho, estava a dever-lhe uma.
– Lutas hoje?
– Não, só Yves. Daqui a pouco vou falar com uns tipos que lhe arranjam alguém fraco para lutar.
Estou a colocar o boxe em segundo plano.
– Estás indeciso ainda? – levanta e caminha lentamente.
Suspira ao pegar no copo e beber um pouco o chá. Ser príncipe… Ser pugilista… O tempo
passava e a sua decisão tornava-se ainda mais difícil. Nem sabia como voltar a encarar o pai.
– Vais ver ou dormir?
– É o teu aprendiz a lutar, preferia que fosses tu.
– E depois chegava partido ao quarto… Por enquanto não. Vem… – aproxima a cabeça – Vai
fazer-te bem.
Encosta a testa à dele e foca o olhar cintilante.
– Já pensaste se Logan aparece por cá?
– Parto a cara dele.
– Não é assim tão fácil.
Atira o copo para trás e passa o braço por entre o braço dela, puxando a cintura contra a madeira.
– Na minha casa, minhas regras.
Tentada, Rachel não conseguia evitar aqueles lábios que pediam um simples desejo. Fecha os
olhos e beija-o, todas as mulheres tinham as suas fraquezas.
Abie sai pela porta da cozinha e volta a entrar ao ver o patrão a ter um momento romântico. Pousa
sobre a mesa a bacia com roupa seca e coloca as mãos nas ancas, ia dar-lhe uns minutos de
privacidade. Suspira ao ver Floweren a limpar o nariz numa túnica passada e dobrada.
– Isso não é para os teus moncos. – berra ao afastar a rapariga.
– Não gosto deste lugar. – fala em soluços.
– Que pena. – mergulha o tecido sujo na bacia com água morna.
– Ninguém gosta de mim.
– Yves gosta.
– Só ele? E tu?
Não era paga para gostar dos hóspedes. Deixou de odiar Rachel depois de falarem, afinal a
misteriosa mulher era inofensiva. Ela… A desajeitada e mimada menina dos pais que a
expulsaram de casa… Devia de fazer um esforço para ser amada e não rejeitada.
– Vais lavar as escadas até ao degrau doze. Os restantes não laves.
– Não sei contar.
– Então… – vira-se – Varres este chão.

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Sete Nomes

– Não sei varrer.


– Queres que te obrigue ou vais obedecer? É que eu não sou como eles.
Pega na vassoura com gestas e mostra a língua ao ir para o outro canto da cozinha. Abie respira
fundo, que demónio.
– Porque não posso ir ao segundo piso?
– Porque o boss não deixa. – pega no sabão e coloca dentro do pote com água a escaldar.
– Esconde algo? – varre levemente.
Dá de ombros, escondia o que os outros não podiam saber.
– Não vais e ponto final.
– Já deste conta como ele é bonito? Quer dizer… – suspira – Dava tudo para ter um homem assim.
Arregala os olhos ao virar o rosto para o lado. Começava a apostar que Floweren seria uma boa
bisca, nem casada teria travão.
– Vais casar com Yves.
– Talvez mude de ideias e case com Phill.
Coloca as mãos nas ancas e fica com um rosto sério.
– Olha lá ó menina de colo! O boss só tem olhos para uma mulher e não és tu. Queres parar na
rua com um pontapé no cu?! É porque qualquer um desta casa faz isso e não precisa de motivos.
Vais casar com Yves e ponto final!
Enfurecida, bate a vassoura no chão e desata a chorar.
– Odeio-vos! – sai da cozinha a correr.
A empregada nem sentia pena, odiar não era o problema, ser preguiçosa e refilona era. Não ia
longe ali se continuasse assim.
A porta abre e Floweren abraça-se a Yves. Chora, é como se ainda não tivesse chorado naquela
semana.
– O que aconteceu? – levanta o rosto molhado.
– Eles não gostam de mim. – soluça.
– Sentem inveja, porque és mais bonita, doce e querida. Não fiques assim, os invejosos irão
esfolar-se quando casarmos. Vamos ser felizes, ouviste?
Assente ao voltar a abraçar. Sem alternativa, estava sozinha e não havia tempo para não gostar
dele.
– O nosso filho vai nascer e seremos ainda mais felizes. O boss que se lixe, ele e a sua amante. –
fala com desdém.
– Ela é má.
– Não vale nada, Boston deveria estar morta, tal como as outras namoradas dele. Talvez acorde
com a garganta cortada um dia destes.
Floweren levanta o rosto.
– Farias isso por mim?
– Claro minha Flor, por ti faço qualquer coisa.
Sorri, ao menos ele faria algo pela sua alma. Volta abraçar e Yves olha para a pistola dentro da
caixa. Estava com tanta raiva do patrão que se atrevia a cometer uma loucura. Não a ele, mas à
sua amante. Apostava que foi a ela que deixou o Box Dead, Abie não herdaria aquilo. Desde que
chegou que a vida de ambos se tornou um inferno. Em momentos difíceis, os ventos sopram
sempre em sentido contrário, para oeste, onde nada dorme.

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Sete Nomes

Capítulo 26
Abertura do Box Dead, os bêbados não esperam outra coisa. Estavam fartos de dormirem em
casa das mulheres e se arrastarem para os bares. Queriam adrenalina, queriam ver homens a lutar
por dinheiro, erguer os copos no ar e gritar “Kill him!”. Esperavam ver uma grande remodelação,
vistos que os boatos percorreram Londres inteira e diziam que o pugilista ganhou um grande
capital para restaurar o Box. A verdade é que a desilusão percorreu maior parte dos presentes,
nada mudou. Até nem se incomodaram muito, havia vinho, presunto e luta.
Filas para entrar e escolher lugar, filas para pedir um copo, filas para chegarem à mesa do
pugilista e apostar no favorito da noite. Phill anunciava que não ia lutar, mas o aprendiz chegava
com ferro e fogo. E o oponente escolhido? Golias, o minorca com nome de gigante. Pescador
bêbado de Liverpool que queria apostar o prémio da noite. Setecentos pences, dava para gerir
bem o dinheiro se fosse bem gastado. É claro que quem chegava apostava em libras e isso era
fabuloso.
Phill faz sinal para um amigo ficar na mesa das apostas, ia mudar para outro lado. Passa no
balcão, pega na garrafa de vinho e em dois copos. Cumprimenta os ladrões de sempre, sorri para
quem nem sonhou voltar a ver. Pisca o olho a Abie que, entende o sinal, hora de escrever os
nomes de quem ia lutar no quadro. Olha para baixo do alpendre e sorri, nunca se sentiu tão bem
com a casa cheia. Também se sentia mal, tinha vontade de ir dormir e pensar no problema com
nome.
Senta ao lado da convidada VIP e enche o copo com vinho. Ela então… Fez febre rente à noite
e desconfiava que estava a ficar doente de verdade. Não se importava de pagar-lhe um bom
médico, só receava que fosse uma doença sem cura. Rachel insistia que era do tempo, por aquela
altura passeava pelos jardins com neve.
– Fico cá, se precisares de algo, eu levo-te para o quarto.
Pega no copo e suspira, nem acreditava que estava a adoecer.
– Ainda acho que é o clima.
– Mesmo que seja, cuido de ti.
– Isso é exagerado.
– Boston… – coloca as mãos sobre a mesa e encara-a – Tens mais alguém aqui que te possa
ajudar? Estás sozinha e sem mim, continuarás sozinha.
Que remédio tinha? O tutor estava longe e, solitária não sobreviveria. Olha para a arena, como
era difícil ser órfão.
– Phill… – um homem velho chama ao estender a mão.
– Elays! – levanta e aperta a mão – Como estás, Sir?
– Feliz por ver que voltaste a abrir este santuário. Dizem que não lutas hoje, é verdade?
– É. Yves estava com muita pica hoje e decidi abrir.
– Mas tu é que és a estrela e… – aproxima a cabeça – Aqui para nós, Box Dead nunca teve um
lutador tão bom como tu. Iam todos apostar alto, mas é o teu aprendiz.
– Ele vai casar e quis dar-lhe a arena toda para lutar.
– É boa a rapariga?
– A filha mais nova do Tech.
O homem faz um som de ficar admirado.
– Floweren já vai casar? Com quinze anos? Bem que o Tech disse que as filhas eram só para casar
e nada mais.
– Viste-o hoje?
– Vi e gabou-se que ia ser pai de um menino. Meydi está de esperança.

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Sete Nomes

– Quem mais seria? – ri.


O velho também ri, o talhante não tinha amantes. Olhando ligeiramente para o lado do pugilista,
repara na mulher sentada. Faz sinal com a cabeça, quem era a novidade?
– Boston, minha gestora de contas. – apresenta.
Rachel vira o rosto e faz um leve sorriso, só para não parecer mal.
– Uma mulher? – sussurra ao aproximar a cabeça.
– Qual é o problema, Sir?
– Dizem que elas desviam o dinheiro todo. Criaturas indomáveis a qual não se deve confiar duas
coisas, o dinheiro e os negócios.
– A Boston, meu amigo, não me roubaria nem o cinto das calças. É uma mulher honrada. – fala
ao ouvido – Honra é honra, lembrasse?
Assente ao esbugalhar os olhos, entendia bem a palavra de honra. Phill prometeu ajudá-lo a
mandar o filho para a universidade estudar direito e ele foi. Faz sinal que ia para ao pé dos outros,
não queria incomodar.
O pugilista sorri ao voltar a sentar.
– Ele tem uma amante que adora roubar-lhe o relógio de bolso. – Rachel comenta.
– Depois volta para trás e pede-o de volta… – pega no copo – Ela sorri, devolve e volta para a
cama.
Sorri, juntos nada escapava.
– Elays ficou viúvo um ano após o casamento, a mulher deu à luz o único filho e morreu de febre.
Fez de tudo para cuidar do rapaz e concretizar os sonhos dele, mesmo que fossem absurdos. Até
aceitou algo que nenhum homem pode aceitar em Londres.
– O quê?
– O filho dele é virado. – faz um leve gesto com a mão – Gosta de… Homens. Se alguém sabe e
denuncia, o rapaz é capaz de ser morto.
Rachel nem sabia o que dizer, viu alguns nas tabernas de Boston, mas sempre pensou que eram
prostitutos, vistos que no submundo não existe género para vender o corpo. Saber que existia um
caso… Nem tinha palavras, a sociedade não aceitava essas pessoas, podiam ser mortos, exilados,
torturados, muitos casavam para disfarçar a real escolha. Bebe um pouco, caso delicado.
– Aceitou apenas?
– Ponderou muito o risco de o perder e já o apanhou com o cocheiro. Phabio não é mau rapaz, só
fez uma escolha que ninguém aceita. Por isso que estuda em Oxford, lá tudo o que acontece, é
escondido da coroa.
– Ainda existirá alguém que vai deixar essas pessoas viverem em paz.
– Quando Rachel? – olha para a arena – Disseram que a escravidão ia ser abolida e ela ainda
existe no mercado negro. Nada muda ou mudará, os tempos avançam, os reis sempre arranjam
maneiras de camuflar o problema, mas nunca realmente colocarão fim. Sempre irá existir pobres
e ricos, aqueles que morrem sem nada e outros com tudo. Se um dia existir equilíbrio, onde todos
são iguais e com os mesmos direitos, acredita… Não estarei vivo, mas veremos uma guerra
lamentável. Alguém será dizimado só para garantir que quem manda continue no topo e haja
sempre alguém a obedecer. Ou o mundo Para de girar.
Não podia existir equilíbrio, nem paz. A desordem dava ao mundo o desejado equilíbrio. Para
nascer, alguém tinha que morrer, para liderar, alguém tinha que se curvar. Os Homens com
liberdade e igualdade não sabem o que é lutar por algo. E quando lutam, massacram o próximo
sem se lembrarem que eles também têm uma vida. Rachel talvez tivesse que concordar com Phill,
por mais evoluções que o mundo sofresse, o que mudava era a palavra, mas o significado
continuava lá.

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Sete Nomes

O olhar mira quem acaba de entrar no Box Dead. Bebe, nem acreditava que William teve coragem
de colocar ali os pés. Phill repara na atitude e olha para trás. É então que enche as bochechas com
ar e olha para a frente. Assente, também o viu.
– E agora?
– É problema teu.
Quase bate palmas, ainda não acordou um único dia sem ter um problema a qual pensar.
Box Dead, quando a rainha ouviu que foi trocada por um casebre a qual o estado queria abrir um
restaurante, saiu porta fora e avisou que os dias do príncipe estavam contados. Victoria não
gostava nada de ser trocada por algo fútil, principalmente, trocar uma partida de xadrez pelo boxe
do filho bastardo. William não estava com cabeça de ouvir a monarca falar da conferência, nem
das cartas que o rei austríaco enviava. Nem sabia como ia encarar o sogro.
Vestiu as roupas do mordomo e cavalgou para ali. Que perigo, as ruas londrinas não eram seguras
à noite, nem de dia. Não quis saber, a sua vontade era rever o filho e nada mais. Passa por entre
os homens que bebiam e fumavam. Realmente o espaço era bem animado de noite.
– Com licença. – pede ao passar pela empregada.
– Vejam só quem anda por cá. – Abie coloca as mãos nas ancas.
– A negra da última vez… Onde anda o meu filho? – olha em volta.
– Por aí, escondido certamente. Notasse bem que é da realeza.
Olha-se, vestiu a roupa mais pobre que o mordomo tinha, nem penteou o cabelo.
– Está enganada.
– Olha… – coloca o pano no ombro – Se continuar a pedir licença e falar assim, todos saberão
que o príncipe anda por cá.
– Então como faço para não parecer da realeza?
Pega na bandeja.
– Não peça licença, dê encontrões brutos e fale sem maneiras. Fica a dica. – caminha para o
balcão.
Bruto… Sem maneiras… A última vez que ficou animal quase lhe cortaram a cabeça. Mas, no
meio dos pobres, talvez tivesse sorte. Ajeita o casaco negro e caminha novamente. Dá um
encontrão no homem que lhe passa de raspão.
– Hei! Qual a tua?! Queres levar no rosto?
William olha para trás.
– Desculpe Sir, não fui minha intenção bater-lhe…
– Bateu-me?! – bate o copo na mesa ao lado e arregaça as mangas.
– A violência não é caminho algum para resolver algo. Este acto violento foi sem qualquer
intenção…
O corpo até dá uma volta quando leva um murro no rosto e aterra noutra mesa. Abre a boca ao
quase gritar, que mão pesada.
– Olha lá esnobe de um raio! Não voltas a bater-me! – agarra-o pelos colarinhos.
William nem sabia se conseguia respirar.
– Ouviste ou tenho que te gritar ao ouvido?!
– Lewis larga-o. – Phill pede aborrecido.
– Este palhaço bateu-me!
– Seria pior se tivesse ido ao olho da tua esposa. Vá, larga-o que ele é pior que uma galinha
depenada.
O homem larga-o sobre a mesa e limpa a baba ao pé da boca. Só não cospe porque tinha respeito
pelo pugilista. Pega no copo e segue caminho.
– Que entrada triunfante. Rodada grátis para o segundo piso. – anuncia aos restantes que estavam
de alerta.

180
Sete Nomes

Erguem os copos no ar e gritam, que boa notícia.


– Pai… – agarra no braço dele e coloca-o por debaixo dos ombros, ajudando a levantar – Era
preciso isto?
– A tua empregada disse que parecia um príncipe… – fala atordoado – Eu sou um, mas não devia
de parecer.
– Abie disse para esmurrares alguém?
– Na verdade… Ela disse para esbarrar nas pessoas, não pedir licença.
Phill senta-o na mesa e puxa o copo para frente da vista. É então que William sorri para Rachel,
não pensava em mais ninguém a não ser ela. E o beijo? Muitos suspiro deu durante os dias que
passaram. Ela olha para a arena, péssima noite para sossegar a mente.
– Dar encontrões significa passar, embarrar levemente o ombro sem fazer a pessoa perder a
cabeça. O pai vem mesmo do outro mundo. – levanta-lhe o rosto.
– As pessoas é que são brutas. Como sobreviveste a isto?
Revira os olhos, quando se nasce um, é-se como um.
– Não é grave, na verdade, com esse murro, eu ficava no lugar e dava-lhe outro de lhe arrancar
um dente.
– És mais forte.
– Não, sou mais homem que tu. – senta ao lado – O que faz aqui?
– Vim ver-te, mas não pensei que ia encontrar a… – vira o rosto – MiLady Valentina.
O olhar mira-o de esguelha, onde queria chegar? Estava sem paciência para aturar as criancices
de um homem da corte que não vivia sem empregados.
– Phill já sabe, então não fales por códigos.
– Sabe? Contaste de nós?
– Foi um beijo, pai. Que não passe disso… – estala os dedos da mão – Ou o seu rosto ficará
irreconhecível.
Levanta as mãos em forma de paz, a mulher do filho não era sua.
– Só um beijo que ela não gostou. Prefere-te e ainda bem que fizeram as pazes. – sorri.
Sem alternativa, nem eles conseguiam livrar-se um do outro, o destino queria-os juntos e assim
estavam.
– Pobre Backer, aposto que está triste, Boston. – William coloca a mão sobre a dela.
– O que lhe aconteceu?
– Suicidou-se. A rainha não permitiu que isso fosse espalhado por Londres. Nem abriu
investigação, para ela, morreu porque quis morrer. Lamento.
Ri com os lábios cerrados, levanta a mão até à boca e tenta conter o riso. Pena? Rachel queria rir
do infeliz que nem para o jornal saiu. Bem que deu conta que nem Phill nem outra pessoa
comentou o que aconteceu. Teve mais sorte Chester de ser investigado que Backer, que nem de
morto teve direito a manchete no jornal. Melhor assim.
– Não tenha pena de quem morre assim. Tenha pena de quem é morto sem motivos.
– O cientista não tinha motivos para morrer. Acho que só correu mal, não precisava de terminar
com a vida.
– Pai, não toque nesse assunto. Já me viu, adeus. – acena com a mão.
– Phillipe, quero passar um tempo contigo.
– Depois de Victoria expulsar-me? No mínimo, devia odiar-me.
Nega ao pegar na mão do filho e acarinhar.
– Esquecemos isso e fazemos as pazes novamente. Sinto-me bem se te tiver por perto. És apenas
um rebelde, um dia serás um bom príncipe…
– Não quero.
– Ou pugilista. O que decidires está ótimo para mim.

181
Sete Nomes

Retira a mão da dele, nem uma coisa, nem outra, naquele momento nem sabia o que escolher
para comer. Estava tão focado nos outros problemas que nem os seus queria relembrar.
– O teu… Aprendiz, certo? – olha em volta.
– Está a preparar-se para lutar.
– Pensei que ias ser tu.
– Pensou errado. Yves tem que ganhar a vida, vai-se casar.
– Já? Arranjaste-lhe uma boa menina, aposto.
– Coloque menina. Engravidou uma rapariga de quinze anos e agora vai ver o que a vida custa.
O príncipe tem dificuldades em assimilar a informação.
– A tua mãe tinha dezasseis quando engravidou. Não foi a minha primeira mulher, antes dela, já
tinha estado com outra. Entendo bem a pressa dele.
– A mãe teve um parto difícil e passou duas semanas de cama por ter perdido muito sangue.
Imagine ela com quinze anos a ter um filho. Se sobreviver é uma sorte.
– Porque não ensinaste o rapaz a ter calma?
Olha-o quase escandalizado com o dedo apontado, até parecia que era pai do aprendiz.
– Fique a saber que berrei muito com ele!
– Filho, está na nossa natureza… Tu sabes…
– Fazer sexo? Diga com as palavras todas que nos slum, tudo é permitido.
Mas na monarquia não e, essa palavra nem existia, apenas era substituída por cortejar.
– Começamos cedo para um dia, cedo também, deixar de ter vontade. A vida é assim.
– Pai, quando nasceu a pensar que nasceria… Já tinha nascido sábio demais. Alguém já teve uma
longa conversa comigo acerca do assunto e acredite, sou mais informado que um médico.
Outra pessoa fez de pai invés dele, o incógnito. Era esse o preço a pagar pelo abandono, ouvir da
boca do próprio filho que outra pessoa o soube educar melhor. Olha para o copo, a vida dos nobres
era mesmo solitária e triste.
Rachel faz sinal para Phill reconfortar o príncipe, não podia ser tão cruel como ele foi há muitos
anos atrás. O pugilista quase suspira, que sacrifício.
– Essa pessoa não era o meu pai porque… Tu não podias estar presente. Olha só, és tu que está
aqui sentado, não a outra pessoa. Isso já faz de ti o meu verdadeiro e único pai.
Por outras palavras, o antigo mestre não estava ali sentado porque morreu bêbado, ou seria ele a
colocar aquele esnobe porta fora. William mostra um grande sorriso confortante ao filho, assim
já se sentia melhor, saber que ainda lhe fazia falta.
O sino toca, as pessoas olham para a arena, para quem entrava com o robe vestido e as mãos
enlaçadas. Gritam bem alto, mostram as apostas escritas no papel e batem na madeira da arena
para fazer barulho. Yves retira o capuz e abre os braços para receber a glória que antes, só
pertencia ao mestre. Atrás dele, Floweren sorri e saltava ao bater palmas.
Phill levanta e aproxima-se das grades de madeira. Ao levantar os braços, calam-se para ouvir o
verdadeiro deus daquele altar.
– Primeiro, é para beber que preciso pagar a conta do mês.
Desatam a rir, isso nem se pedia.
– Segundo… Yves finalmente conquistou o lugar dele nesta arena. Por isso te vou batizar perante
estas pessoas todas. Como vou me retirar por uns tempos, tu é que fazes as lutas e organizas os
eventos, sobre minha autorização, claro. Por isso… – levanta o copo – Como prenda de
casamento, te nomeio Yves, o Hurricane.
Batem palmas, o aprendiz faz vénias em forma de agradecimento. Olha para o mestre, para aquele
olhar de que não queria saber nem um pouco dele. Presente envenenado porque não tinha
alternativa, a vida ia ficar complicada e precisava de dinheiro. Passava-lhe a responsabilidade
porque, até então, só Phill é que escolhia quem ia lutar, Yves não percebia nada sobre o assunto.

182
Sete Nomes

– Por que o Spectrum não nos dá a honra de uma luta como forma de batizar?
Olham para Phill, que desafio delicioso.
Sorri, só para conter o que pensava sobre o assunto. Dava-lhe a porcaria da arena e ainda achava
pouco? Bebe e bate o copo na mesa, não devia ter desafiado.
– Phill, nem penses. – Rachel pede ao levantar.
– Ele quer… – retira os suspensórios e começa a tirar a túnica – Que azar, o aprendiz nunca vence
o mestre.
– Filho, ouve a tua amiga.
Atira o tecido para a arena e os gritos começam a chamar o nome do campeão, aceitava a rixa.
– Vais mesmo fazer isso?
– Não morrerei em vão. – caminha para as escadas.
Rachel sentia uma dor na barriga, um receio que nunca sentiu antes. Tremia, a mão desatava a
tremer, é como se tivesse medo que Yves o matasse. Desata a correr, quem vê isso não entende o
que se passa.
– Phill…
Ele vira-se e repara no olhar cheio de lágrimas dela.
– Não morras, preciso de ti.
Aproxima-se.
– Não precisas, nem vou morrer.
– Yves odeia-te, está morto para te matar. Se morres, não quero tatuar o nome dele para depois o
cortar.
– Porque farias isso? Rachel, tu não queres pertencer a isto, não somos nada, não nos prendemos.
– Posso nem querer o futuro, mas foste o único homem que me estendeu a mão e pediu para
confiar. Sem ti, já teria morrido. Eu gosto de ti e as pessoas a qual amo, eu vingo.
Beija-a, nunca a viu tão amedrontada com um desafio que seria rapidamente resolvido. Estava
frágil por causa da febre, só isso. Descola os lábios e deixa nas mãos dela o colar de ouro que
usava ao pescoço.
– Se viver, é bom que mo devolvas, era da minha mãe.
Fecha bem a mão ao vê-lo descer as escadas e abrir os braços para o público. Repara no olhar de
Yves, aquele ódio todo que não segurava. Faz um gesto com a mão, passa os dedos pelo pescoço
e alerta o aprendiz que o matava se fizesse algo a Phill. O aprendiz sorri, sem medo algum do que
acontecesse. Mas devia, uma mulher com sangue nas mãos, não tem medo algum de cometer uma
loucura. Quem mata um, mata mais e se a alma for para o inferno, que se lixe, vale mais um nome
vingado que um ódio a crescer dentro do peito. Será que ia tatuar o nome de Yves nas costas?

183
Sete Nomes

Capítulo 27
Uma vez, Phill desafiou o mestre que mal se arrastava para uma luta, naquela arena. Kayo riu,
pousou a garrafa de vinho nos degraus da escada e disse Where is your mind, boy? O aprendiz
disse que não acreditava que o mestre ainda conseguia aguentar uma luta sem cair no chão e ouvir
o sino. Foi a primeira e última vez que Phill desafiou-o para algo, porque mesmo bêbado, ele
soube mostrar que a obra prima jamais passa o pintor.
Tentou ensinar isso a Yves, aqueles anos todos tentou alertá-lo que não valia apena pedir uma
luta ao vivo, porque nos treinos, o aprendiz saía sempre a perder. Treinou-o, conhecia os golpes
todos e mais alguns, sabia o que o distraía, onde errava, onde falhava. Se tivesse sido treinado por
outro, receava. Não sendo, é bom que Yves tenha amor à vida e peça perdão depois.
Enrola bem a mãos nas ligaduras, nem acreditava que fez daquele rapaz um homem e o que
recebia na cara era ingratidão. Não lhe devia ter dado a casa de banho da Abie, devia ter-lhe dado
o beco da rua para ver se ele deixava de erguer o queixo e dizer que tinha tudo sobre controlo.
Ainda ia a tempo de correr com os dois antes que fosse tarde demais.
– Tens a certeza disto?
– Está com medo? – roda o pescoço e estala os ossos.
– Medo? Só tenho medo das contas gordas, da carteira vazia e da realeza, de resto, vivo sem
medos.
Yves roda o pé direito, coloca o pedaço de cortiça nos dentes e pronto, ia dar uma coça nele.
O suspiro sai e Phill levanta a mão para alguém bater no sino. Quando se ouve o som, todos se
calam para ver o que ia acontecer. O mestre faz sinal para o aprendiz mover-se primeiro, foi ele
que pediu. Yves gritar ao correr e baixar o tronco para a cabeça ir direta ao tronco dele e bloqueá-
lo contra a madeira da arena. Bloqueado, Phill junta as mãos e bate nas costas com força. Empurra-
o para trás e o aprendiz cai no chão a queixar-se.
– Isto é desnecessário.
Levanta do chão e pede barulho para se sentir corajoso. O publico bate na madeira, batem os pés,
batem os copos, gritam por coragem e mudam as apostas. Volta a atacar, um murro direto ao
tronco e outro à anca esquerda. Phill agarra no pulso dele e roda-o para apertar o corpo contra a
madeira da arena. Estica o braço dele até o ouvir a gritar.
– Para com isto Yves, não te quero magoar.
Cospe o pedaço de cortiça.
– Quero que morra boss!
Usando o cotovelo, bate na barriga dele, esgueira-se pela direita, roda para o lado, ganha balanço
para erguer o pé e bater no rosto dele. Phill cai sobre a madeira e cospe o sangue que chega à
boca. Olha para o aprendiz, ele não podia usar as regras de rua no boxe.
– Pensa que sou fraco? Sempre pensou isso!
Ergue-se e limpa o sangue dos lábios ao braço, esse foi o seu problema, subestimar o demónio
que criava. Dá-lhe um murro que é travado, um de gancho e depois, bate com o pé na perna dele.
Yves cai com um joelho no chão, mas rapidamente levanta para esgueirar-se pela esquerda e dá
com o cotovelo nas costas. O grito de Phill ecoa, cai no chão de joelhos e queixar-se. As pessoas
nem acreditavam que o Spectrum estava a perder.
Coloca o braço em volta do pescoço dele e aperta com força. O pugilista bate para não morrer
assim, a olhar para o pai a chorar de medo. Respira o que consegue e levanta para cair para trás e
obrigar o corpo do aprendiz a bater na pedra com areia. Noventa quilos sobre oitenta, Yves ainda
é levantado antes de sentir as costas a colidir com violência. Os braços largam-no e rodando para
o lado, Phill levanta e coloca o pé sobre o peito do aprendiz.

184
Sete Nomes

– Quem pensas que és para achar que és superior a mim?! – grita-lhe.


– Um homem.
Retira o pé e recua, faz sinal para não darem o KO, aquele homem devia de continuar a lutar.
– Vamos, mostra que os tens no sítio.
Com dificuldades, o aprendiz levanta e apoia-se na madeira para pedir água. Isso podia pedir.
– Bate-lhe, filho! – William pede.
Vira o rosto e faz sinal para não ficar com receio, estava tudo controlado. Virando-se, desvia-se
da faca por instinto, mas não vai a tempo de travar novamente a mão que crava a lâmina no
abdómen. Phill ouve um grito, apoia a mão no ombro do aprendiz e olha-o nos olhos.
– Dei-te tudo Yves. – fala quase sem voz.
– Não deu o essencial, os meus desejos.
Sorri.
– Eu devia ter-te matado naquele quarto!
– Quem vai morrer és tu. – larga a faca.
Cambaleia até cair no chão.
– Chamem um médico! – Rachel grita ao entrar na arena.
William corre escada abaixo, invade a arena e ajoelha-se no chão, segurando a mão do filho com
força.
– Não vás Phillipe, preciso de ti.
– Leva-o para o quarto, eu trato do resto.
Abie também entra na arena, queria ajudar.
– O pai não tem força para mim. – Phill fala.
Rachel ajoelha-se no chão e arranca a faca que não foi ao fundo. O grito apavora ainda mais o
público que não sabia o que fazer.
– Alguém ajude a levá-lo! – pede desesperada.
Nem precisava de pedir muito, os colaboradores das apostas desciam as escadas e apressavam
em ajudar o amigo. Afinal não estava sozinho.
– Vou levá-lo para o palácio, tem lá um médico bom.
– Ainda é longe.
– Garanto que sou rápido.
Tinha que confiar, não podia cozê-lo porque não sabia que gravidade da hemorragia. Assente ao
colocar o tecido que alguém dá sobre o ferimento.
– Faça força sobre isto para ajudar a estancar. – olha para Phill – Ainda te aguentas?
– Boston… Sobrevivi a coisas piores.
– Ótimo. – levanta do chão – Levem-no. – arregaça as mangas.
– Não lhe faças nada… – a voz fica muda quando o grito sai por causa do corpo ser levantado.
Fazer-lhe mal? Rachel avisou, podia não saber lutar, mas não tinha medo algum de cumprir o
que disse.
– Boston! – Phill grita quase sem forças.
Uma mulher na arena, sinal de que as coisas iam sair mal para o lado dela. Yves anda de um lado
para o outro, nervoso porque acabou de perder a cabeça. Não devia ter dado ouvidos a Floweren,
ela não sabia nada acerca do que Phill lhe fez.
– Desafio-te.
Os sons de admirados ecoam pelo Box Dead, aquela mulher perdeu a cabeça ao desafiar o novo
pugilista.
– Não.
– Vamos, desafio-te da mesma maneira que tu desafiaste. Tens medo do quê?

185
Sete Nomes

– Tu mataste aqueles homens todos na estalagem! – aponta o dedo ao gritar – Se não queres o
mesmo destino, sai da arena.
– É, sai. – Floweren pede com autoridade.
Sair não era opção. Os loucos anos de juventude ainda estava nas veias dela, é como se tivesse
dezanove anos e pedisse a um bêbado para brincar com a faca. Atira-a aos pés dele, mesmo com
sangue, pede com o olhar a mesma coragem que teve para esfaquear o mestre que lhe deu uma
casa.
Yves nega ao passar as mãos enlaçadas pela cabeça, nem pensar.
– Vamos amor, ela merece, ela ameaçou-me, disse que me ia vender. Queres que tenha o nosso
filho na rua? Queres isso para ele? – Floweren envenena.
– Ela tem razão, é melhor obedecer. – Rachel insiste.
O aprendiz pega na faca e respira fundo, se morresse, o Box passava para ele definitivamente. E
rico, poderia finalmente concretizar o que queria.
– Tu é que pediste. – avança com a faca apontada.
Spectrum… Desliza para o lado, agarra no pulso e no braço com as duas mãos, embarra-o contra
a madeira, roda o braço para dentro, sente o grito, a mão abre e a faca ganha outros dedos. Yves
ajoelha-se, Rachel agarra com a mão esquerda o cabelo dele, puxa para trás e o pescoço fica à
mostra, mesma a tempo de a lâmina passar e cortar. Não sabia lutar, usou a fraqueza e a confusão
do aprendiz para o domar. Homens cegos não sabem o que fazem, focam o que não devem focar
e isso os destrói.
Floweren é agarrada por alguém para não entrar na arena, todos estavam chocados com o que
aconteceu.
– Sangue.
Bastou um homem pedir para os outros gritarem o mesmo. Sangue porque aquele ingrato fez um
golpe baixo. Matar o mestre, que aprendiz faz isso? Yves vê que perdeu a glória, a honra e o
nome. Cego, quis tanto o lugar de Phill que agora via o erro dessa ambição. Devia ter ficado pelo
pescador, por aquela hora teria ganho, levava o dinheiro e festejava na cozinha. Longe demais por
causa de uma mulher insignificante.
Rachel estava por um triz de lhe cortar a garganta. Não o fazia porque a sua vingança não o
envolvia. Se Phill morresse, talvez tatuasse mais um nome nas costas e caçasse aquela criança.
– Não preciso de muito para te domar! É bom que rezes para que Phill não morra.
– Desculpa Boston, desculpa. – pede ao desatar a chorar.
– Desaparece desta rua, deste lado do reino e se possível, do país. Leva a tua vagabunda e vai para
longe.
– Não tenho onde viver.
– Pensasses nisso quando desafiaste o teu mestre. – corta um pouco o peito dele.
Recua e Yves cai no chão a chorar, colocando as mãos sobre o sangue que sentia. Floweren
liberta-se, corre para o lado dele e pega na faca, apontando-a.
– Bruxa! Bruxa!
– Longe daqui! – volta avisar quando sai da arena.
O publico começa a atirar os copos contra eles, derramam o vinho, vaiam aqueles dois como se
fossem lixo. Nunca da vida o doce sonho de Yves tinha virado pesadelo. Não desejou aquilo, não
merecia isso.
– Eu fecho o Box, MiLady. – Elays fala ao se aproximar de Rachel.
– É melhor, vou para o palácio.
– Se ele precisar de algo, por favor, peça.
Coloca a mão no ombro dele, até tinha um pedido a fazer.
– Desapareça com Yves e Floweren. Leve-os para lá de Londres e os abandone algures.

186
Sete Nomes

Assente, depois daquilo, duvidava que o amigo voltava a dar abrigo. Rachel caminha para fora
do inferno que o Box estava a virar. Não bastava os seus problemas, como acabou por entrar
noutros. Assim não ia longe…

A rainha não aceitou que o filho bastardo fosse recebido no castelo para ser curado, aliás, pediu
para o moribundo morrer longe. William ajoelhou-se no chão, prometeu trinta por uma linha,
chorou aos pés da monarca e implorou pela vida do único filho que tinha e amava. Victoria não
era um coração de pedra, lá fez um gesto fútil que deu a permissão para entrar.
Quando Rachel chegou aos portões, os guardas proibiram a sua entrada. Não acreditavam que se
tratava da futura esposa do filho de William. Então, sem alternativa e com uma emergência nas
mãos, disse o verdadeiro nome e invocou o nome da rainha. Bem, a monarca nem teve tempo de
mudar de roupa para receber a cuja prima afastada. Primeiro, hesitou, não a conhecia de lado
algum. Depois de ver a medalha com o brasão de Windsor, pertencente à parte de George IV, deu
permissão para entrar e ser bem-recebida pelas pessoas. O palácio não teria descanso, quem
faltava aparecer?
A pobre Abie não entrou, ficou no lado de fora dos portões por ser uma ninguém. Rezava para
que o patrão não morresse, era o seu único parente. Todos pediam isso, até William estava
ajoelhado na capela e rezava para que os seus pecados não levassem aquele filho.
Ao pé da porta, Rachel aguardava a ordem do médico para entrar. Boa notícia, queria uma para
não ser obrigada a caçar outro homem. Os olhos estavam em lágrimas, pediu tanto a si mesma
para não o envolver na sua vingança que, outra vingança o acabou por levar. Yves devia ter
morrido, mas teve pena.
A porta abre e ela estremece. O médico faz sinal para entrar e sorri.
– Eyes, quanto lhe pago?
Rachel passa pela porta e nota que Phill estava vivo, branco e com uma enorme faixa branco no
abdómen.
– O seu pai paga, certamente.
– Aumenta então a conta, ricos não olham a gastos.
– Nem mal perde a graça. – comenta ao sair.
Phill suspira e estender a mão para ela se sentar. Também pensou que ia morrer, quando invocou
o nome dos santos todos, é porque a morte estava à porta. Teve sorte, Yves não tinha pontaria e
acertou ao lado. Ficaria assim por um bom tempo, pouco se não fizesse esforços.
– Diz-me que não o mataste.
– Devia, merecia. – senta na cama.
Phill desejava o contrário, um rapaz desesperado que ficou o dia todo irritado por saber que o
testamento foi mudado. No lugar dele, não teria feito o mesmo porque Kayo foi um pai. Mas se
estivesse na vida dele, sem saída para os problemas, teria feito o mesmo.
– Onde ele está?
– Longe, bem longe daqui. Elays levou-o para fora de Londres, a rapariga também foi.
– Levar os problemas para longe não resolve nada.
– Phill, ele ia matar-te. Nem assim deixas de passar a mão pela cabeça e dizer que está tudo bem?
– Não posso porque o eduquei desde que tinha uma tenra idade. Se virou o que virou, é porque
não o eduquei bem.
Faz sinal de que desistia, nem morto ele ia deixar de cuidar do aprendiz.
– Ias mesmo tatuar o nome dele para vingar-me?
– Não, foi conversa fiada. Achas mesmo que faria isso?
187
Sete Nomes

Nem duvidava, Rachel dava cada vez mais sinais de querer um futuro a seu lado.
– Talvez… Como não morreste… Vira conversa fiada.
Sorri ao apertar a mão dela, aquela era a mulher que conheceu.
A porta abre e Rachel levanta-se ao ver quem entrava. A rainha ainda acordada? Faz uma vénia.
Phill suspira, lá se foi o sossego.
– Vivo, vós sois feito de ferro.
– É o que parece.
– Phillipe… – William quase tropeça ao entrar – Estás vivo.
– Para mais um dia.
Abraça-o com cuidado e agradece a Deus por ter mantido aquele homem vivo.
– Vai ficar, prince William?
Levanta e ajeita o casaco.
– Se vossa Majestade permitir, vai sim.
Aborrecida, mais um hóspede a comer à sua custa. Olha para Rachel.
– E a MiLady Clarel? Para vós tenho o antigo quarto dos seus pais.
– Contentar-me-ei com o sofá.
– Não precisa disso, sua mãe gostava muito da cama.
– Logo se vê, Majestade.
Sendo assim, não insiste. Olha novamente e faz uma careta para o rebelde na cama, nem assim
tinha modos. Caminha para a saída e fecha a porta, agora ia mesmo dormir.
– Quem chamou o gnomo?
– Ela é dona do palácio. – William alerta.
– Mesmo assim, só de a ver, aumentei a minha dor. – pousa a mão sobre as ligaduras – Pareço
aquelas múmias do Egito.
– Falta o sarcófago. – Rachel senta na poltrona e cruza a perna.
Lá fica metade da perna à mostra, deixando aqueles dois homens tentados demais. Revira os
olhos e puxa o vestido para baixo, nem uma perna podiam ver.
– Vou buscar comida. – levanta ao se sentir desconfortável.
– Boston, deixa isso para o meu pai. Fica.
– Não. – sai e bate a porta com força.
Ficam quase com os cabelos em pé, que rabugenta.
– Viste a perna, não viste?
– Pai. – olha-o – Vi bem mais que isso.
– Que luxo. Queres que persiga aquele rapaz até ao inferno e o mate?
– Não, Yves que vá viver a vida dele para outro lugar. Passei muito a mão pela cabeça dele e isso
o mimou demais. Devia ter sido duro.
– Eu não te mimei e isso fez de ti um homem.
– Nunca lá esteve, lembrasse?
Faz um som de ter esquecido isso, nunca, mas mesmo nunca foi um pai.
– Ainda bem, ou serias mimado. Vá… Pensa no melhor que o pior já passou.
Ri, cerra os dentes e ri levemente, só isso é que sabia dizer porque não aprendeu mais nada.
Coloca a mão no ombro dele e assente.
– Obrigado pai, nunca andei tão rápido a cavalo desde que fugi dos guardas para não pagar a conta
da doca.
– Sou o melhor cavaleiro da casa Orange. Recebi alguns prémios na juventude.
– O único trofeu que recebi foi o Box Dead e olha, até isso começo a perder.
– Ainda é teu.
Nega com um enorme pesar.

188
Sete Nomes

– O Box era de dois, passou a ser de um. Não quero ser pugilista para sempre, acho que desde que
a Boston apareceu que dei conta que perdi muitos anos de vida a pensar na glória. Quero
finalmente ser feliz.
– Ao lado dela?
Olha para o lado e respira fundo.
– Quer ao lado dela, quer ao lado de outra mulher. Chega de murros, chega de sangrar. Já fui
grande, cada vez mais me enterro a pensar que sou feliz no que faço desde os catorze.
– Queres ser príncipe? Podes ser bastardo, mas na casa Orange és sempre bem-recebido.
– Quero paz, pai. Quero realizar outros sonhos. Agora entendo Yves, privava-o até de sonhar.
William nem sabia que conselho dar, cresceu a saber que não podia desejar algo ou pensar que
poderia ter o que tanto queria. Obrigação, desde de cedo que a sua vida se resumia ao dever real,
dever cortês e nada mais. Como era o quarto na linha de sucessão ao trono Holandês, foi obrigado
a casar para unir casas. Se o filho perguntasse qual foi o seu maior sonho na infância, diria que
seria ser cavaleiro, fazer isso uma vida, tratar de cavalos lusitanos e cavalgar por aí.
– Sabes, nunca é tarde para sonhar. Eu não vou a tempo, mas tu vais.
– Não sei. Isto ainda vai levar tempo a cicatrizar e… É difícil mudar de problemas.
– Coloca os problemas de lado, se não os podes vencer, ajunta-te a eles.
Estava admirado, passou algum santo iluminado pela cabeça e deu juízo ao príncipe.
– Pai, finalmente conselhos que se aproveitam.
– Demora um pouco… Mas basta não ser um Orange para a coisa bater certo.
Sorri, ainda bem que não se intitulava com essa casa. A porta abre e ambos viram a cabeça para
Rachel. Fica parada na entrada, e agora, viram o quê para a mirarem como se fosse um fantasma?
– Ok, estavam a ter uma conversa privada.
– Não… Na verdade, já estava de saída. – William levanta.
– Não vai ficar pai?
– Ela cuida de ti. – pisca o olho.
– Cuido? Deve pensar que sou enfermeira.
– Não te custa nada. Boa noite filho. – sai e fecha a porta.
Rachel olha para o enorme sorriso de Phill, grande ideia.
– Nem penses, ficarei por precaução.
– Estou cheio de dores. Se me deres um beijo aqui… – toca os lábios – Talvez passe a dor.
– Se te der uma estalada, isso também se revolve. – senta na poltrona.
– Azeda. Queres que peça açúcar?
– Não, quero que fiques bom depressa.
Coloca as mãos atrás da cabeça e faz uma expressão de não haver pressa nenhuma em ficar bom,
valia mais tirar umas boas férias ali, no palácio da gnomo Victoria.
– Podemos passar aqui um mês. Temos comida de borla, bebida à farta, empregados, cama boa…
O que me dizes, Rachel?
Um mês sem fazer nada, a deixar que os inimigos ganhem mais tempo para se esconder? Atira a
almofada contra o rosto dele, nem morta.
– Calma. – pede um pouco confuso.
– É bom que te recuperes, ou abandono-te aqui.
– Não farias isso, pois não?
Que nem duvidasse daquele olhar, jamais uma ameaçava ficava em branco. Phill engole com
dificuldades, não queria ganhar uma inimiga.
– Está bem, nada de férias. E uma semana?
Levanta, acabou o assunto.
– Não vás agora.

189
Sete Nomes

– Vou dormir.
– Disseste à gnomo que ias dormir no sofá. Dorme aqui, neste sofá.
Suspira ao olhar para trás. O suposto era ficar para sossegar a si mesma. Também não devia de
ficar, aquele homem acabou de aprender uma lição importante, até os filhos que se cria são
ingratos quando ganham asas. Volta à poltrona e senta, ficava, só porque não estava com cabeça
para voltar a Londres. Phill sorri e puxa mais os cobertores, assim dormia tranquilo.
– Queres dormir aqui? – faz sinal para o lugar vazio.
– Não abuses.
– Está bem. Boa noite, Rachel. – apaga o candeeiro.
– Boa noite. – reconfortasse.
Sorri na escuridão do quarto, vivo, esse foi a melhor notícia dada naquele dia. Ficaria até acordar
e dar conta que não tinha o relógio para lhe dizer as horas. Presa no tempo, isso não importava no
momento em que a mente se sentia bem naquele número infinito. Era a única forma do tempo não
passar e os anos serem memórias de ontem…

190
Sete Nomes

Capítulo 28
Aroma a chocolate, raro, nunca acordou a senti-lo. Abie não sabia fazer bolos de chocolate, nem
sabia como derreter os maravilhosos cubos que custavam metade de um salário de fábrica. Os
pobres não comiam, só os ricos e os burgueses da alta sociedade. As pastelarias conseguiam
ganhar lambões de vitrine, aquelas crianças de rua de colavam os rostos ao vidro e desejam
deliciar o paladar com aquela maravilha. Às vezes, elas lambiam mesmo a montra, na esperança
de sentir algo. Os comerciantes corriam com eles, vassoura na mão e ameaçam cortar-lhes os
dedos se voltassem a espantar a clientela.
Abre os olhos e sorri de leve. Depois recua o corpo até ao limite da cama quando repara que tem
cinco mulheres com cabelos aprontados e de espartilho vestido. Maquilhadas, devem ser mortas
vivas, os rostos brancos com pintas negras perto dos lábios davam pesadelos. Que exagero, eram
doces acompanhantes dos nobres, olhos azuis, pele macia e sorriso meigo. Perucas aplumadas,
cabelos de crianças órfãs. Abanavam o leque consoante riam para o intitulado príncipe Phillipe
de Orange.
O pugilista nem sabia se se sentia no céu ou no inferno. A rainha permitiu aquilo? As mulheres
não podiam andar com roupas intimas no quarto dos hóspedes, a menos que quisessem ganhar o
dia. Sorri e olha em volta, onde estava Rachel?
– Boston? – chama.
– Quer ir a Boston? – uma senta e começa a mimar a mão.
– Sabes, meu anjo, eu até te levava ao céu, se soubesse o caminho. Viste a Boston?
– Posso ser ela, se quiser. – outra enuncia.
– Qualquer uma podia ser aquela azeda mulher, se não fossem mais delicadas que a porcelana.
Alguém ajuda a levantar?
Que nem pedisse duas vezes, elas vão todas com a mão pegar no corpo musculado. Phill até fica
corado, céu, pela primeira vez da vida Deus deu-lhe o céu na terra. Tapa os calções com a
almofada, teve que tirar as calças quando foi cozido.
– Como estava a dizer… – anda devagar para o fato engomado sobre a cadeira – Quando entraram,
não encontraram uma mulher baixa, não imensamente baixa… Com cabelos castanhos quase
negros, comprido… Vestido castanho escuro… – pega nas calças – Rabugenta?
Negam ao entre olhar-se, quando entraram só estava ele e a cama.
– Pois, ela se foi. – cerra os dentes ao vestir-se – Anjos, ajuda.
Lá vão as meninas vestir o pugilista. Então era assim que os príncipes se vestiam, abriam os
braços e esperavam que as roupas aparecessem no corpo. A mordomia chegava tarde, mas algum
dia ela chegava.
– Quer o pequeno-almoço? – uma pergunta.
– Quero uma carruagem para Londres, preferência, Box Dead.
– E o seu pai? – outra questiona ao apertar as calças.
– Nem sei dele. Algum anjo sabe?
– Foi ao conselho da Majestade. Quer deixar recado?
– Quero. Digam… “Pai, ficava um mês se a minha colega de quarto ficasse. Como se encontra
rabugenta, e sem vontade de cuidar de mim, eu vou cuidar dela. Um abraço, Phillipe de Orange.”
Decoraram?
Assentem.
– “P.S. Este maldito fato é apertado, faça um maior. P.P.S Apareça quando quiser, com
chocolate.”
– Quer deixar algo mais?

191
Sete Nomes

Sorri, dinheiro não? Não estavam ali porque se lembraram de cuidar do pobre príncipe bastardo
que quase foi morto.
– Adorei conhecer-vos… – recua para a porta – A sério, conseguia fazer uma ménage à… Como
é em francês?
– Cinque. – uma relembra.
– Six, se contarem comigo. Mas, Boston espera-me. – abre a porta e sai.
Boston… Perguntavam-se quem seria essa mulher a qual aquele homem fazia questão de
procurar. Valeria assim tanto o ar? Coçam as cabeças com perucas, alguém tinha que pagar o
serviço, quer feito, quer não feito.
Acordou, deu conta que o relógio não estava lá à meia noite. Aproveitou que Phill dormia, saiu
sorrateiramente do palácio e levou a carruagem onde Abie dormia sobre os braços. Só sossegou
quando voltou a olhar as horas, oito, mesmo que fosse meia noite em ponto. Não importa, o seu
trauma alimentava-se daquilo. Seis da manhã, Abie acordou e começou a limpar a arena fedorenta,
cheia de vinho, saliva de quem cuspiu e sangue. Rachel pediu que primeiro de tudo, fosse ver
quanto ganharam, depois, fosse à feira vender os lençóis de seda. Que sorte, numa noite trágica
Phill conseguiu quatrocentas libras.
As contas não erravam, e ela não aprendeu muito sobre gestão. Muito dinheiro, renderia mais
quando vendesse as coisas do ingrato. Elays deixou um recado, Yves estaria algures a caminho
de Edimburgo, teve pena do jovem casal e pagou bilhete para lá. Burro, devia os ter abandonado.
Também deixou escrito que os velhos amigos de Phill deixaram uma pequena prenda em dinheiro,
por serem isso, amigos. Ainda bem, aquele dinheiro pagaria o uísque de há dois anos atrás. O que
sobrava, dava para pagar o gramofone, o anel e o salário da empregada.
Passa a manga pela testa, suava um pouco.
– Estás bem? – Abie pergunta.
Assente ao pegar no copo com chá, nada mais que uma ligeira febre passageira para começar o
dia.
– Gosto de a ver de calças, é raro.
– Na casa de Boston andava assim. Jason berrava comigo, se alguém aparecia, eu não estava bem-
apresentada. Sempre dizia que o conforto superava a etiqueta e, se queria andar de calças, andava.
– Sempre foi assim tão… Dona de si?
– Não gosto de depender de terceiros.
Sorri, que sortuda, porque ela não conseguia deixar de depender do dinheiro do patrão.
– O que faço com as coisas de Yves?
– Queima, ou dá aos órfãos do beco.
Uma tristeza enorme invade o rosto de Abie. Yves foi como um irmão, cresceram juntos naquele
quarto pequeno que partilhavam desde de sempre. Saber que não ia mais voltar… Deixava-a
assim, coração na mão e tristeza no peito.
– Não tenhas pena de um revoltado ingrato. Aposto que tu não farias isso.
– Não Rachel, eu considero Phill um pai. Devo-lhe a minha liberdade, jamais perderia a cabeça
como Yves perdeu. A culpa foi da Floweren, ela era má influência.
– Como qualquer mulher londrina que quer ficar rica depressa. Fica descansada, não duvido da
tua palavra.
Pelo menos um voto de confiança da parte dela, só esperava que o patrão achasse o mesmo.
– Boston!
O chamamento ecoa pelo Box e elas desatam a correr para fora da porta da cozinha. Phill, suado
e a cambalear quase escada abaixo. De pé, se a ordem foi para se manter deitado.
– O que raio estás aqui a fazer?!
– Rachel. – cai nos braços dela – Ó meu Deus, estás aqui.

192
Sete Nomes

– Onde deveria de estar?


– Não sei, longe de mim. – levanta a cabeça – Não me abandones.
Revira os olhos, uma criança deu asas, aquela estava longe de voar.
– Abie, chá. – pede.
– É para já.
– Levanta, vamos para a cozinha. – ajuda-o a andar.
– Acordei no meio de um pesadelo. Estavam cinco mulheres estranhas no quarto, em roupa íntima.
– Que bom.
– Não, porque tu não estavas lá. Pareciam que me iam devorar vivo, arrancar o meu fígado e
comê-lo cozido com arroz. Gritei por ti, mas não estavas.
– Tive que voltar para cá, alguém tinha que cuidar deste lugar. – senta-o na cadeira em frente à
lareira.
– De calças, que sensual. – sorri.
Coloca a mão sobre a testa dele, se estivesse com febre, até entendia. Como não estava, nem
queria tentar.
– Como chegaste cá?
– Carruagem. Dói-me o ferimento.
– Claro, estás de pé. Queres que isso abra? Eu não sei cozer.
– Chamas o Eyes, ele sabe onde moro.
Mas ela não sabia onde o encontrar. Olha para o leve negar de Abie, o patrão não gostava de ficar
longe de casa.
– Ganhaste quatrocentas libras. As contas vão ser pagas e o que sobrar, vai para Abie.
Os olhos arregalam, número redondinho e perfeito, não poderia ter desejado mais. Nem ganhou,
perdeu frente ao aprendiz. Invés de ser vaiado, eles carregam nos números das apostas. Afinal de
contas… Valia apena levar com uma faca.
– Boa gestora.
– Menos. – levanta – Vais ficar de cama, a menos que queiras que berre contigo até vomitares
sopa de batata e couve pelo nariz.
Faz uma cara de repugnado, tudo exceto isso.
– O chá, boss.
Pega no copo.
– Obrigado Abie. Sabem para onde foi Yves?
Entre olham, saber até sabiam, mas não queriam nada contar.
– Vá lá, não estou com rancor dele. Contem para me sossegar.
– Edimburgo, Elays deu-lhes dinheiro.
Escócia, longe de Londres, para começarem do zero a dura vida. Passa a mão pelo cabelo, duas
crianças ainda, não deviam de andar sozinhas assim, pelo mundo difícil de se governar. Floweren
nem sabia a lida doméstica. Viveriam do quê? Do boxe de Yves ou do talento para vender carvão?
Pousa o copo, perdeu a vontade de beber.
– Phill…
Faz sinal para nem começar com a lengalenga de que não era seu filho. É como se fosse, o que
não compreendia? Esteve sempre lá, nos dias de febre, no dia em que levou o primeiro murro e
caiu. Sempre, desde que envolveu o corpo magro em volta do casaco e caminhou para o Box,
prometendo dar-lhe uma casa e uma vida. Se errou, se o fez revoltar, é porque nem pai sabia ser.
E isso o magoava profundamente.
– Vais fazer luto?
– Rachel, por favor, não critiques os meus sentimentos e eu não critico os teus.
Assente, se queria que as coisas ficassem dessa maneira, fria e cruel, então não insistia.

193
Sete Nomes

– Abie, vou pagar as contas. Faz sopa para o almoço. – pega na caixa – E tu Phill, erraste com
um, mas a ela, tu educaste bem. Terias sido um mau tutor se tivesses feito tudo o que ele quis.
– Como os teus foram?
Respira fundo, tacada forte no rosto, apontava o dedo sem se lembrar que fez a vida negra a quem
cuidou dela. Caminha para a saída, não existiam palavras a favor ou contra.
Como quando chegou, triste e com medo de ser mais uma mercadoria nas mãos do novo patrão,
Abie senta aos pés dele e baixa o rosto. E agora? Perguntava mudamente. Antes eram três, agora
só se resumiam a dois. A casa perdeu um pilar e não sabia se ela continuaria de pé.
– Phill, sempre foste um pai para mim, quando cheguei não sabia ler nem escrever, limpava
porque foi a única coisa que aprendi. Tu ensinaste-me muita coisa e sempre foste um homem
muito aberto acerca dos assuntos. Devo-te a minha vida e… – levanta o rosto – Jamais farei o que
Yves fez. Não quero o Box Dead, apenas quero continuar a servi-lo e… Ser sua filha, mesmo que
seja negra. Desculpe se às vezes sou dura, mas sou a única mulher aqui e… Por vezes precisa
disso.
O pugilista limpa os olhos com lágrimas, faz sinal para ela levantar o tronco e o abraçar.
– Abibatu…
– Não o quero perder, como Yves o perdeu.
Rachel tinha razão, errou com um, mas com ela, não. Abie cresceu tão bem que nunca teve razão
de queixa. Aprendeu a ler e a escrever, coisa que Yves sempre rejeitou por pensar que não era
útil. Beija a cabeça dela e mima o rosto com lágrimas.
– Não vamos complicar o assunto difícil. Não te colocarei na rua, não mereces isso. Não te
comprei para seres minha empregada ou escrava, quis, gastei o meu dinheiro todo para ganhar
uma amiga, braço direito, companheira e filha. Nem tu, nem Yves foram uma maneira de encher
este espaço vazio, sempre vos quis porque sei que não posso ter filhos enquanto a minha vida for
isto, nada, problemas e dívidas. Mesmo que um dia tenha, não seriam colocados em segundo
plano, chegaram primeiro. Só estou… De rastos.
– Eu entendo.
– Esperava qualquer pessoa se revoltar contra mim, qualquer ladrão de Londres, menos Yves,
menos ele. A faca dói menos do que o ódio nos olhos dele, aquele… Sentimento de que não me
queria por perto. Nem sei o que fazer.
– Acho que sabe.
Suspira, sabia e não sabia.
– Perdemos Yves, mas ganhamos Rachel.
– Ela não vai ficar para sempre, só até resolver a sua complicada vida.
– Sabe o que descobri. – senta no colo – Que nunca teve um encontro com um homem, os rapazes
nunca a convidaram para dançar. Pensei… Talvez o patrão fizesse isso.
Sorri ao olhar para o fogo.
– Rachel e eu… Começou bem, vai terminar mal. Gostar é fácil, querer um futuro é difícil.
– Mas amam-se ou não?
Assente, isso ambos sentiam.
– Então, quando estiver recuperado, eu enfeito a arena e faz ali um baile. Quem sabe… Até podem
resolver a bem as coisas.
– Estás a ficar casamenteira.
– Não, só acho que empatam algo simples.
– Simples? Quando amares alguém, vais ver que o amor é igual a um jogo de xadrez, uma jogada
em falso e o inimigo invade o teu campo.

194
Sete Nomes

– Mas o boss sabe jogar. Se ela não gostasse de si, não teria desafiado Yves, ou cá ficado. Podem
nem querer ficar juntos, ela ter que voltar para a terra dela… Mas se não aproveitarem o momento,
quando irão aproveitar? Quando tiverem cabelos brancos?
Essa possibilidade ainda estava em cima da mesa, se em jovens não conseguiram algo, talvez em
velhos consigam. É muito tarde, mas vale mais tarde do que nunca.
– Boss! Comece a pensar no seu futuro e não no presente. O que vamos fazer ao Box?
– Estou a pensar em abrir uma loja. Vendíamos chocolate.
– Neste beco fedorento, ao pé do rio onde os esgotos desaguam? Pense noutro negócio.
Pedido difícil, o capital inglês ia de mal a pior.
– Taberna? O boxe não se faz só com um sócio.
– Arranje outro, fazemos um casting e fica quem tiver mais talento para aprender.
Não era mau pensado. Por vezes o teatro pedia pessoas que soubessem cantar. Nunca
experimentou a voz, mas se a mãe cantava bem, ele também. Pensou várias vezes colocar lá os
pés, porém, o que um pugilista faz no teatro? Nem para bailarino dava por causa do peso. Treinar
alguém para ser um lutador não era mau pensado, não perdia nada, só ganhava.
– Faz um grande letreiro para pendurar nas ruas. Escreve… – estica as mãos – “Procuro o próximo
deus do Box Dead.”
– Só isso?
– Em baixo… “Abertas inscrições para treinamento de jovens que queiram ser pugilistas. Só
quarenta xelins por aula.” Não treino de graça.
Ri, fiado não existia dentro daquela casa, fiado dos outros, porque quem colocava o salário na
mesa devia o quanto podia.
– Podes ajudar?
– Claro. Será que Rachel ajuda?
Enche as bochechas com ar. Já ouvia… Putos dentro do Box Dead? Estás a treinar mais crianças
para te matarem a seguir? Coça a cabeça, ela não queria entrar nos problemas, então estava
colocada de parte.
– Só nós. Combinado? – estica a mão para a empregada.
– Combinado.
– We have a deal. – sorri.
Abie ri, nunca viu o patrão a treinar alguém sem ser Yves. Que desafio, nem recuperado estava
e já pensava no amanhã. Pelos vistos, escolheu o boxe e não a realeza, sabia que sairia a perder
se colocasse o que sempre quis de parte. Ergue o copo com chá, só quem não vai à luta é que
morre.

As contas estavam pagas, só faltava resolver os restantes problemas que envolviam o Box Dead.
Quais? Phill e a sua teimosia em ficar de pé. Rachel não teve alternativa, pegou num mapa e
procurou o consultório do médico Eyes. Que sorte, nem era muito longe do Box. Bateu à porta
até alguém abrir, comentou com o homem velho que o teimoso sentia dores e recusava a ficar
deitado. Eyes suspirou, Phill não nasceu para ser morto. Lá cruzaram o coração de Londres, o
doutor com mala na mão e ela, mesmo atrás, com um passo acelerado num dia nublado. O destino
não espera quando dá as difíceis tacadas. Merle Thomas, o quarto homem da sua lista longa. Os
passos suspenderam-se lentamente, reconheceu o rosto debaixo do capuz de couro por causa da
cicatriz longa. Estava ali, vivia perto daquela rua. Eyes reclamou e Rachel teve voltar a andar.
O pugilista protestou quando ouviu sermão. Não ficava deitado, não iam colocá-lo dentro do
caixão. William também não demorou muito aparecer no Box, o recado dado foi bem explicito.
195
Sete Nomes

No meio de uma discussão, Phill gritou no cimo das escadas que era adulto e chegava de pessoas
a falar-lhe ao ouvido. Tanto o príncipe como o doutor tiveram que ir embora, só para não levar
aquele doente a um ataque. Pelo menos ficou o medicamento para as dores, o que já não era mau.
Chuva, Deus odiava mesmo Londres ao ponto de não dar um único dia de sol. As ruas agitadas
agitavam-se mais, corriam como sempre aqueles que tinham medo do que vinha lá de cima. Piorou
quando a forte chuvada bateu no telhado, fazendo as telhas vibrar e o som ecoar pelo Box. Abie
sentou-se ao pé da lareira e pegou num livro para ler, não havia nada para fazer. Já Phill…
Contrariado e cansado, lá se deitou na cama ao pé da janela. Aborrecido, se houvesse coisas a
fazer deitado, faria. Os desportos dessa modalidade só se resumiam a preguiça e sono. Claro que
o outro desporto não era convidado para a ocasião. Volta o rosto para Rachel, ela sim estava
estranha.
Vira-se para o lado, cerra os dentes ao sentir dor e foca a sombra no outro lado do lençol. Nem
lhe contou a ideia de génio. Ficaria rico em pouco tempo se continuasse a pensar no treinamento
dos jovens.
– O meu pai sussurrou algo ao ouvido?
Os olhos de Rachel esguelham-se para o lençol. William apenas sorriu, porque tinha na mente a
ameaça do filho. Se fosse esse o problema, conseguiria dormir todas as noites sem acordar. A
língua faz um som.
– Encontraste mais um.
– Merle Thomas. Andava a passear pelas ruas.
– Já o vais matar?
Levanta e afasta o que os dividia.
– Phill, antes de matar, eu tenho de ver se vale apena.
– Pensei que todos valiam apena.
– És mesmo insuportável quando estás doente. – caminha para o espelho.
– Sou pior quando tenho dívidas atrasadas.
Já não tinha, alguém fez questão de pagar. O dono do carregamento de uísque nem quis acreditar
que finalmente ia rever o pagamento. Insultou o pugilista até ao limite, nem o podia ver à frente.
Também jurou nunca mais lhe vender uma garrafa que fosse. Rachel nem comentou, ouviu, sorriu
e depois, fuck you too.
– O que ele fez? – Phill pergunta com curiosidade.
Nada, Thomas comprou a arma que deu a Backer. Pagou ao cocheiro para naquela manhã, passar
por aquela floresta. E depois, assistiu à morte do jovem empresário. Dele não sabia muito, só
quando entrasse em sua casa e ouvisse o que tinha para confessar. Nem precisava das palavras
dele, bastava o olhar atento.
– Ajudou a matar.
– Todos ajudaram.
Passa a mão pelo ombro, desce o vestido desportivo e olha-se no espelho. Não vira as costas para
ver a cicatriz ainda com linha, apenas mira-se para ter a certeza que ainda faltava aprender algo
para ir mais longe na sua vingança. Teve sorte, mas não continuaria a ter se pensasse que se safava
de tudo.
– Queres aprender defesa pessoal?
Vira o rosto para a cama. Há muito que andava à procura de alguém que fosse capaz de ensinar
algo sobre o assunto.
– Estás mal.
– Rachel, por ti faço um esforço. Ensino o básico do boxe, deve chegar para te defenderes.
Senta sobre a cama e deita-se sobre o braço dele. Phill agarra-se ao tronco nu e beija o ombro
macio.

196
Sete Nomes

– Tenho medo. Os mais pacíficos são os piores.


– Esse deve ser fácil.
– Não. Ouvi uma vez um rumor de que ele andou durante muitos anos em Itália aprender com os
contrabandistas. E se morrer nas mãos deste?
Esfrega com meiguice o braço dela.
– Eu enterro-te se te dá um certo conforto. Acredito que consegues vencê-lo, o pior não é Logan?
Isso era o pensava e queria pensar. Mas, os restantes, pouco sabia e isso era um tiro no escuro,
podia acertar ou falhar. Vira-se e encara o olhar meigo. Como queria ter a história do pugilista,
dívidas e uma casa sem futuro. As vinganças roubavam a alma e anos de vida.
– E se desistir?
– Não te permito. Quero que leves essa lista até ao fim, só para um dia acordares e olhares pela
janela e dizeres… “Matei-os, agora quero viver!” Por mais que custe, vai até ao fim.
– És mesmo cruel.
– Não queres que seja doce, pois não?
Quanta mais doçura, mais azar se avizinhava. Fecha os olhos ao se agarrar ao peito dele, sentia
frio e um enorme vazio a consumir o medo. Phill beija a cabeça dela e cobre o corpo com a manta.
– We never died when we fight for something. Just get up.
Assente, as alternativas eram escassas. Se começou, tinha que levar até ao fim, ficar pelo meio
era desonrar a memória dos pais. Sorri ao ouvir a chuva a bater no telhado, cama confortável e
melodia da manhã cinzenta. Não poderia pedir mais.

197
Sete Nomes

Capítulo 29
Como diriam os medievais, catorze sois passaram. Londres não se podia dar ao luxo de pensar
sobre o assunto. Primeiro, o tímido sol mal aparecia e segundo, ficava mal para o século industrial
relembrar os anos negro do século catorze. Porquê? Peste negra, aquela cidade sempre viveu sobre
quem foi enterrado por debaixo da terra. Aquela doença dizimou quase um reino inteiro, não fosse
a europa uma só. Desengane-se quem pensa que o pior já passou, se a peste não atacava, a febre,
a desnutrição, tuberculose e pneumonia, fazem questão de atacar e deitar sobre a cova mais
alguém. Bastava perguntar aos padres se não existiam registos relativos ao passado negro. Para
quê relembrar… O mundo avançava e nada se aprendia com o que passou.
Duas semanas, tempo suficiente para Eyes retirar os pontos do abdómen de Phill. Finalmente, a
clausura quase o matou de tédio. Rachel tirou muito antes dele, testou a sua capacidade ao se
agarrar a uma barra de ferro e exercitar o corpo. Dessa o pugilista não sabia, ela podia ser vidro
quando queria, mas quando não queria, era aço.
William andava cá e lá, Box e palácio. Continuava a rejeitar as cartas do sogro e receava perder
a cabeça em breve. A casa Orange já avisou que se queria que o filho bastardo tivesse um título,
seria bom que o treinasse para isso. Tarefa difícil, Phill só pensava no boxe, inscrições, dinheiro
e Boston. Não a cidade, a mulher irresistível que o príncipe não tirava da cabeça. Que mal fez a
Deus para a conhecer?
Para pagar a noite de hospedagem, e uma maneira de fazerem as pazes, Victoria pediu com muita
delicadeza ao seu hóspede austríaco que levasse ao castelo o seu rebelde inglês. William sugeriu
que não pedisse tal coisa, ele não teria modos alguns. A rainha manda, se pede, todos devem
obedecer. Lá se deslocou o príncipe novamente ao Box e falou com o filho. Tomar chá com a
gnomo? Deu uma risada tão alta que os pratos de porcelana tilintaram. Que piada logo pela manhã,
Phill não ia a lado algum.
Pensou ele em voz alta, porque William não era daqueles que passava a mão pela cabeça muitas
vezes. Vestiu o fato branco apertado, colocou a faixa vermelha no tronco, as medalhas no peito,
as luvas brancas na mão e calçou as botas negras até ao joelho. Escovou ainda o cabelo bem para
trás e aparou o rosto. Não ia? Tinha que ir, desde que ouviu que o Box podia dar lugar a um salão
de dança de ballet… O assunto mudou e Phill baixou a crista perante o pai, vivia às custas dele
em termos de residência.
Nove e oito, hora perfeita para um chá no jardim. O sol lá teve que fazer a vontade à Majestade
e apareceu muito timidamente por entre as nuvens. Frio, março mal começou e já trazia o frio da
primavera cinzenta. Os nobres não pareciam ter estação, as senhoras leque na mão, os senhores,
casacos finos.
A mesa redonda, aquela que Victoria mandou arranjar para o seu royal tea, com apenas seis
pessoas ilustres sentadas. Ela, o príncipe William de Orange, uma duquesa dos lados de
Manchester, um ministro da Camara dos Lordes, o conselheiro Sir John Conroy e por último, o
menos importante, Phillipe de Orange.
Como se bebia chá? Rachel disse algo sobre o assunto. Ela não acordou bem-humorada, disse
que ia sair para passear e só voltava quando se lembrasse de voltar. Por outras palavras, ia caçar
mais um homem. Andou duas semanas cheia de segredos, mandava cartas para Boston e recebia
a resposta três dias depois. Comprou mais uma pistola e roubou um livro na biblioteca que falava
sobre os tipos de contrabandistas que podia existir. Curioso existir um livro sobre o assunto.
Mesmo assim, sentou na mesa e ensinou o colega de quarto a beber chá.
– Como estais, Lady Katie? – William pergunta ao esticar a mão com a pinça para pegar num
scone.

198
Sete Nomes

– Muito bem, prince William. – abana o leque contra o rosto.


A duquesa teria pouco mais que quarenta anos. Teve quatro filhos, três meninas e um rapaz que
andava no regimento inglês. Viuvou antes dos trinta e ficou há frente da casa de Manchester, não
fosse ela a duquesa atribuída a essa cidade. Mirava o novato da mesa, como ele andava às voltas
com a xícara delicada.
– Chá para o Sir Orange. – Victoria pede.
– Qual de nós? – Phill pergunta ao levantar o olhar.
– Digo-vos que sois vós, o seu pai é chamado por outro nome. – fica aborrecida.
Mania do título, se tivesse nascido marcado com ele, escolhia ser rei, assim só dava ordens. Olha
para o mordomo com uma peruca branca e um fato a condizer. Mão esquerda atrás das costas,
direita com o bole de prata na mão. Nervoso com aquele olhar, o homem treme um pouco e o chá
cai fora da xícara.
– Desculpe. – pede ao tirar o pano do braço esquerdo.
– Sem problemas… – Phill começa a limpar com o seu pano – Se tivesse que andar assim vestido,
vertia não só o chá como a sopa, a água… – a mesa começa a tremer por causa da força dele para
limpar a mancha – Abie também verte muitas coisas e eu não me importo, são merdas que se
limpam facilmente. Se fosse sangue seria pior.
Escandalizados, nem conseguiam ter as mãos sobre a mesa. Os chás tremiam, os bolinhos
empenhados desciam a pirâmide de Khufu e desfaziam-se sobre o Nilo. Pronto, o canal do Suez
já estava aberto, por outras palavras, a mancha de chá secaria com o calor, nada mais a limpava.
Sorri e levanta o rosto para os olhares que procuravam não se irritarem com a falta de modos.
Phill tose para a mão e pousa o pano na mesa.
– Scone. – estica a mão e pega no pão inglês.
Victoria limitava-se a olhar o selvagem. Ainda sem modos, a casa Stathouder estava condenada
por completo se dependessem daquele herdeiro.
– O Sir Orange sente-se bem?
– Claro…– fecha a boca cheia de comida e assente.
– Ainda bem. O seu pai terá um longo caminho a percorrer para o educar, continuais selvagem.
Assente ao lamber os dedos com manteiga. É então que volta a reparar nos olhares alheios e
suspira.
– Olhem, manteiga lá em casa é raro. Posso aproveitar e comer o que a… Majestade oferece a
este morto de fome?
Direto e pronto, ditava as regras como se mandasse na mesa. Que sorte ninguém querer estar a
olhar para ele, queriam saber das novidades, não do rebelde príncipe bastardo. Phill agradece a
ignorância, assim fazia o que queria.
– Parece que a minoria húngara quer tomar Viena. Sabe algo sobre o assunto, prince William? –
o ministro pergunta.
– O império está preste a ter uma brusca queda. O povo está insatisfeito com a coroa. Não
demorará muito a que algo cruel surja. Meu sogro parece não querer saber da minoria ou da
maioria, segue o seu reinado.
– Como qualquer rei com um império. Acha que Inglaterra irá abdicar de alguma cidade africana?
Podem não ser colónias, mas são nossas há mesma. – Victoria opina ao limpar os cantos da boca.
– Portugal continuará a ser dono de parte do continente africano. Creio que o rei Carlos não abrirá
mão de nada.
O riso espanta o frio, a rainha não tinha medo do reizinho português. Que ele fosse esperto e
aceitasse as coisas como são, ou Inglaterra não teria dó.

199
Sete Nomes

– Prince William, o nosso aliado esquecesse dos acordos assinados e da ajuda que demos na época
napoleónica. Se der problemas, não vos preocupais que o parlamento inglês tem a cura para todos
os males. O que não se permite é que nos ajoelhemos perante aquela coroa insignificante.
– Não foram eles que começaram os descobrimentos pelo mar? – Phill pergunta – Ouvi de alguém
que eles tiveram o maior império do mundo, aquele que Inglaterra não conseguiu.
Certas coisas caíam mal logo pela manhã. Victoria esbugalha os olhos para o bastardo com uma
terrível opinião.
– Fique a saber que a minha bisa avó, rainha Elizabeth I, fez de Inglaterra um império mundial,
controlava os mares, os ventos, os montes… – levanta – Esta nação é mais gloriosa que qualquer
outra. Quando um império está mau, é a nós que decorrem. Comece a valorizar a pátria invés de
glorificar o que não vale apena.
Limpa a boca e pousa o pano sobre a mesa.
– Pensei que vós descendíeis de William de Orange, aquele tipo que livrou Londres do
absolutismo. Fiquei confuso.
Humilhar a rainha perante os outros mudos que queriam rir? Senta na cadeira e olha para William,
tinha que ter uma atitude digna de um aliado inglês.
– Phillipe, se não sabes nada sobre história, fecha a boca. Ajoelhai-vos perante a rainha e beijais
a sua mão.
Sorri, nem morto ou vivo. O olhar severo previa uma tragédia para o Box Dead. Suspira, o gnomo
ganhava sempre.
– Olhe, estou mal das costas para baixar… – curva-se e pega na mão da rainha – Mas serei o
mesmo cavalheiro do slum. – beija os dedos rechonchudos – Perdoai-me Majestade, sou burro,
ignorante, mal-educado, rebelde, pobre e sem modos. Tudo menos a guilhotina… – levanta o
rosto e sorri – Please.
Arranca a mão da dele, rude.
– A vossa sorte é eu estar habituada à sua imundice. – faz sinal para se sentar – O que vos falta é
uma boa e ríspida mulher para vos ensinar a ter modos.
– Tenho uma azeda mulher que ensina algo… – senta e coloca o pano nas pernas – Mas ela não
gosta nada da realeza.
– Lady Katie, a vossa filha ainda está disponível para esposar?
Phill cospe o chá para cima da mesa, casar? Os demais respiram fundo, aquele insolente já devia
de ter sido morto.
– Quereis que case a minha Jeanne com este… – a duquesa olha para o pugilista a limpar a boca
à manga do fato – Sem palavras que o defina?
– Seria um mau casamento, vistos que este ser nem devia se ter sentado na mesa. Onde estais com
a cabeça, Majestade? – Conroy fala ao puxar para si o chá infestado de saliva alheia.
– Sir, ainda não pedia a sua opinião. Maus casamentos não existem no momento em que alguém
dita as regras. Duquesa, a sua filha deverá esposar este homem o mais rápido possível, antes de a
casa Stathouder fique manchada. – Victoria fala com rispidez.
– Nem morto, ou quase. Eu não caso com essa tal mulher, não preciso. Se sou uma vergonha, faça
favor de me expulsar invés de me casar. Farei dividas de manhã há noite para receber o divórcio.
– Phill refila.
– Cortaria a sua cabeça! Insolente!
– Que seja, não pedi para ter pai rico. Por mim, nem colocava aqui os pés, a realeza dá-me sarna.
Os suspiros de escândalo aparecem.
– Aliás, este lenço no pescoço… – desaperta o nó, abre o casaco e um pouco a túnica passada –
Que horror, parece que vou morrer.
Alguém tapa os olhos da duquesa, ele não estava apresentável.

200
Sete Nomes

– Guardas, chamem o carrasco, este insolente perder hoje a cabeça. – Victoria levanta.
– Acabei de perder. – despe o casaco e a túnica, estava farto.
William bate com a cabeça na mesa, fim de estadia, era daquela que seria expulso do palácio, do
reino, da realeza, do país… Do mundo.
– Passar bem, Majestade… – caminha para a porta.
– Phillipe Albert Aaron Cristian William Orlean Regina Habsburg Stathouder, veste
imediatamente a túnica, senta nesta cadeira, fecha a boca… – William levanta e mostra a mão –
Pede perdão pela tua insolência e reza a Deus que a vossa Majestade não te mate. Humilhas-me
diariamente, pensas que vou estar sempre a aceitar as tuas coisas? Encaras a realidade e vives as
minhas regras se queres harmonia no nosso relacionamento, ou perderei a cabeça como nunca
perdi, e não falo da guilhotina.
Pai de verdade, que estava farto do filho ser um vagabundo que chegava a casa de madrugada,
bêbedo e com uma mania de dar desgosto à família. Phill também tinha resposta para isso.
– Deserde-me. – encara-o – Não pedi para ser seu filho, não pedi a ninguém para estar aqui a
humilhar quem quer se seja. Nasci ao pé dos pobres, podia ser bem-comportado, mas não quero.
Não gosto de irritar vossa Majestade, não gosto de parecer burro. Sei a porcaria da etiqueta toda!
– grita para salientar – Sei esta merda toda. – bate o casaco no chão – Mas quero que aprendam,
os pobres não podem agradar a realeza, nascemos livres, morreremos livres. Olhem para o meu
corpo… Olhem o que me tornei para não morrer à fome. – abre os braços – Não sabem o que é
passar fome ou passar os dias lavar chãos para receber um xelim. Enquanto me obrigarem a ser o
que não quero, continuarei a não ter modos. Não domem o cavalo selvagem, ele negará ter dono
até morrer.
E palavras para dar uma severa resposta a ele? Victoria tinha, estava tudo na pontinha da língua,
mas senta, bebe o seu chá como se não tivesse ouvido nada e pensa na festa de aniversário do
próximo neto. Phill faz um som de não valer apena continuar a arriscar o pescoço para ensinar o
que eles não queriam aprender.
– Claro, Boston bem que avisou. – veste o casaco.
– MiLady Clarel não me visitou mais.
– Deve gostar muito da corte como eu gosto.
– Diga-lhe que seu pai ainda não voltou da Índia. – Victoria pousa a xícara – Sua irmã Selena
deixou a carta por assinar.
Pai na Índia… Phill senta no lugar do pai chocado que caminha para o jardim. É então que o
pugilista encara a rainha, não era mau pensado estar ali para saber algo mais sobre o assunto.
– Que carta?
Victoria vira a cabeça, estava interessado no assunto. Faz sinal para os restantes levantarem,
acabou o chá. Limpa os lábios pintados de vermelho, entrelaça os dedos sobre a mesa e
acompanha o movimento dos empregados, com aquele olhar glorioso.
– Isso não é da sua conta, Sir.
– Acredite em mim, se é algo que envolve Rachel, envolve-me. Sou um túmulo se o segredo for
grande como o palácio.
Olha-o de esguelha, que atrevido.
– Diga à sua amiga que o negócio de trazer sal de Sidney não parece viável se continuar a usar
aquele velho barco.
– Qual?
– Sir!
– Majestade, ela tem muitos navios, tem que especificar.
Faz bico ao pensar no nome.
– Royal Sean. É tão antigo quanto a minha coroa.

201
Sete Nomes

– Não diria a sua idade que fica mal.


O olhar arregala, era mesmo insolente.
– Desculpe. Falou em sal… A carta para assinar?
– Quem vos disse que lhe darei tal documento confidencial?
– Se me der, conto-lhe um segredo que lhe vai salvar a vida.
Fica desconfiada, podia ser qualquer coisa inventada. Mas, aquele homem sem modos parecia
não contar mentiras, os pobres não ganhavam nada em mentir à coroa. Faz sinal para primeiro
ouvir o segredo e depois a carta. Phill aproxima a boca ao ouvido carregado de pequenos
diamantes e Victoria fica com os olhos bem abertos.

Mergulha a cabeça debaixo de água, sustem o ar até precisar de respirar. Que fracasso, não
encontrava Merle. Escondia-se, alguém deve ter dito que estava ali. Ou não conseguia encontrar
o rato. Jason alertou para o rumor ser verdadeiro, aquele homem foi contrabandista italiano antes
de trabalhar para Cristian. Como chegou ao jovem empresário? Sabia onde arranjar os melhores
homens para o negócio, sabia falar, ameaçar e colocar em ordem os mais espevitados. Cristian
não quis saber do passado, deu uma oportunidade ao homem que quase morreu à sua frente na
viagem ao Egito. O mal dele, ter um coração bondoso.
E agora? Primeiro tinha que o apanhar, mas para isso tinha que ter a sua localização. Percorreu a
rua inteira do médico Eyes e nada, é como se aquele homem não existisse. Perguntou, descreveu
e as respostas eram as mesmas, I never saw him before.
As bolhas de ar escapam pela boca, um dia perdido por completo, sem algum avanço. Jason
avisou que ia tentar encontrá-lo, apesar de não ser fácil no outro lado do oceano encontrar quem
quer que fosse.
– Rachel… Minha grande, charmosa, animada, querida…
Emerge os olhos à tona da água da banheira. Elogios a mais, Abie avisou que isso pedia algo.
– Aqui estás tu. – entra na casa de banho – Bem disposta?
Emerge o tronco, cruza a perna e mostra o dedo do meio, não por completo.
– Vais ficar. Adivinha o que consegui hoje?
– Irritar a rainha. Ela finalmente vai comprar a guilhotina para te decapitar. Boa, como é fácil
perder a cabeça na realeza.
– Vou com urgência comprar é açúcar, assim não vais longe. – senta na beira da banheira – O que
te vou dar, é tão valioso que mereço algo em troca.
– Dinheiro?
– Só tens isso para oferecer?
– Esperas que te dê o meu corpo?
– Espero algo mais que isso. Conheces… – vai ao bolso das calças – Selena Clarel?
Coloca os braços sobre a beira a banheira, levanta o rosto para o pugilista e lê no olhar dele a
valiosa informação. Uma Clarel que não é primogénita, filha de Logan com outra mulher. Isso
quer dizer que ele sempre teve filhos e ainda usava o nome do falecido patrão para conseguir a
riqueza. Bate na porcelana, que ódio tinha desse homem.
– Quem te contou?
– A minha nova best friend forever. Rainha Victoria. A esta hora, Tech está a ser preso por vender
carne falsificada à monarquia, eu ganhei uma carta e mais umas coisas sobre o desaparecido
Logan.
Levanta, pega na toalha e cruza os braços à frente dele.
– Desembucha.
202
Sete Nomes

– Querida Rachel, Logan está na Índia a tratar de uns assuntos pendentes. Diria que será o novo
dono do comércio das Índias Orientais. Vai comprar mais nove barcos a vapor, para juntar à sua
pequena frota de dez. E claro, tem um pequeno barco de estimação chamado Royal Sean.
Conheces?
Se não o conhecesse, é porque não era filha de Cristian. Esse navio deu a volta ao mundo, tinha
duzentos anos e muito o empresário fez para o conservar. Substituiu quase a madeira toda por
uma nova, só para aquele orgulho não parar de navegar. Rachel desde de pequena que aprendeu
a história sobre o navio, pertenceu a um grande corsário que o perdeu para um pirata em Porto
Rico. Em Turtuga, o pirata foi preso e o navio foi para um duque inglês que, passou aquela relíquia
para os filhos, chegando a vez de Cristian. A vez dela também chegaria se não fosse roubado.
Assente com uma enorme tristeza no rosto.
– Bem, ele carrega sal de Sidney para Londres. Tens sorte, ainda não assinou a carta da rainha. –
estende o papel envolvido num enorme pedaço de couro para resistir à brisa salgada do mar.
Uma carta… Pega no documento e lê-o.
– Victoria pensa que és a filha que ele finalmente encontrou, mas devido a umas desavenças
passadas, não se falam. Pedi para a gnomo não falar sobre o assunto a ele, que deixasse essa
desavença ser revolvida pelos dois. Ela prometeu que quando visse o tal… Que não perguntaria
por nada, vistos que o assunto é delicado. Afinal, a rainha não é assim tão má como pensava.
Não ouviu nada do que ele disse, apenas focava o acordo. Não tinha jeito para a escrita, dava
erros, pedia uma taxa que nenhuma doca permitia para o comércio. A rainha aceitava no momento
em que a coroa saía a ganhar, mas quem iria assinar, no outro lado do mundo, iria discordar
plenamente. Aí é que entrava a violência do arrogante Logan, forçaria a assinatura e em pouco
tempo, ficava dono de tudo.
– O que vais fazer?
Não responde ao caminhar para o quarto.
– Rachel… O que estás a pensar?
– Nada.
– Mentira. – encosta-se ao aro da porta – Se está fora, ainda não sabe de ti. Se matares esses
homens rapidamente, apanha-o de surpresa.
Abre a mala e coloca lá a carta. Se… Se… Se… Senta na cama, se fosse assim tão fácil, já teria
concluído a sua missão em um mês. Merle escapava-lhe por entre os dedos, ainda faltava Bronwen
Daniel e Donald Noah. Desses nem sabia onde estava, o que faziam… Só sabia o que fizeram.
– Não me ensines como os vou apanhar.
– Não te sugeri nada… – senta ao lado – Andaste a semana toda agitada, mal comeste, dormes e
acordas a meio da noite para olhar pela janela da casa de banho… Estou preocupado contigo.
– Não preciso disso. – levanta.
– Quanto mais achares que não precisas, mais revelas que necessitas. Rachel, eu nunca pensei
estar sentado ao pé da rainha e ter uma conversa civilizada com ela por tua causa. Quando
pronunciou o teu nome… Meu Deus, o meu coração disparou e não tive coragem de ir embora
sem saber algo para te ajudar. Não podes continuar a achar que consegues tudo sozinha.
– Tu queres sempre algo em troca…
– Não é verdade…
– Mal chegaste e deste o teu preço. Vivo aqui a bancar a despesa do mês.
– Não podes viver de graça, estou sem trabalho…
– Trabalha!
– É fácil falar, tu nunca da vida trabalhaste…
– Porque ninguém…
– Sempre foste rebelde, fria, amarga, dona de si mesma…

203
Sete Nomes

– Não quero a tua ajuda! – grita bem alto, até as lágrimas chegarem aos olhos.
Isso não se pede a um amigo que faz um sacrifício para ajudar. Mas pediu, pedia ainda com o
olhar para não se meter no seu assunto delicado. Phill assente magoado, estava a ir longe demais
na sua vida.
– Tens razão, desde que chegaste que a minha ruína começou. Estás por tua conta novamente. –
vai para o seu lado do quarto.
Fecha os olhos, não era bem isso que queria gritar.
– Phill, desculpa. – pede quase em sussurro.
– Desculpa? Fazes sempre o mesmo. Mas fui eu que te abri a porta! Fui eu que te dei um teto para
não dormires na rua! Claro, sou culpado de tudo, até de teres insónias. Rachel, agora entendo o
porquê de ninguém querer ser teu amigo, namorado ou o raio que parta. Tu és fria, não deixas
ninguém te estender a mão. Cheguei ao meu limite.
– Podias entender que estou a ficar cada vez mais perturbada mentalmente…
– E eu?! Que engulo tudo que fazes, os dias em que me mandas lixar e nos restantes pedes amor
indiretamente. Não preciso de depender do teu dinheiro… – arranca o lençol – Estou cansado do
quarto pequeno, estou cansado de pensar que nós podemos, mas não podemos. É bom que faças
a mala.
– Vais expulsar-me?
– Que indelicado que sou… – vai à porta e abre-a – Quero que vás e leves contigo a minha
preocupação, porque desta vez, foste longe demais.
Não ia, não tinha onde dormir e não se sujeitava mais a uma procura cansativa pela cidade. Nega.
– Está bem. Abie! – grita ao ir para o corredor – Abie!
– O que vais fazer?
– Vais para o primeiro piso. Dormes com ela no quarto que antes foi do Yves. Aproveita, a cama
dele ainda lá está.
– Não podes fazer isso!
– Posso, não queres ir embora, então vais dormir bem longe do meu olhar. Over.
A empregada entra pelo quarto, ouviu a discussão toda e estava preocupada.
– Eu vou, ela ao menos é mais amiga que tu. – pega na mala.
– Abie, leva as coisas da MiLady para o teu quarto. Ela não entra mais neste segundo andar.
– O que aconteceu? – pergunta confusa.
– Rachel adora berrar com as pessoas que a tentam ajudar. Então, como um homem estúpido que
sempre tenta ajudar quem não merece, finalmente abre os olhos e manda a sua arrogante colega
de quarto para o charco. Conseguiste.
Não fala ao sair pelo quarto, descer furtivamente os degraus das escadas e bater a porta do quarto
da empregada. Abie cruza os braços e finta o patrão. Perdeu a cabeça ou queria testar a bondade
dela? Phill faz um gesto para sair, estava sem paciência para sermões.
– Podia pelo menos ser mais meigo ao a expulsar.
– Claro. “Querida azeda Rachel, pega nas tuas merdas e muda-te para o andar debaixo que estou
farto de te aturar. Melhor, é por seres independente que não precisas de mim. Obrigado por tudo,
vai para o inferno com doçura.” Está bom para ti?
Revira os olhos ao sair, não se davam bem nem por nada. Invés de pensarem no que tinham a
ganhar juntos, preferiam gastar o precioso tempo a deitar tudo a perder. Depois ouviria o patrão
a chorar algures, dizendo que sentia falta de Yves. Mentira, ele choraria porque discutiu com
Rachel. Nem chá lhe faria. Abie olha para a sua porta do quarto, ganhou uma colega. As coisas
não podiam piorar mais.

204
Sete Nomes

Capítulo 30
Só conseguiu… Quatro novatos com dezasseis anos. Todos filhos de operários, esfomeados que
comeram o pão com presunto oferecido. O cartaz pedia jovens com talento para o boxe, não quatro
sardinhas magras que cairiam na rede do pescador. Phill coça a cabeça, Yves também foi magro
antes de ganhar musculatura. Além disso, melhor que nada.
Volta a ler os nomes deles. Estranhos, alguns nem conseguia pronunciar.
– Faremos assim. O baixo da ponta é o Chis, tu o Yuri, Flan e por último York.
– Não nos chamamos assim. – um reclama.
– Queridos, não escolhi chamar-se Phillipe, mas o reles do meu pai deu esse nome. Toca a aceitar.
– rasga o papel.
– Tu nem és o meu pai. – outro reclama.
– Nem queria, já tenho problemas que cheguem. Vou ditar as regras da casa. Ponto um e o mais
importante, aquela mulher ali não existe. – faz sinal para o alpendre atrás de si – Ela é uma
serpente cheia de veneno que não precisa de falar. Ponto dois, Abie é a minha empregada, quero
respeito com ela. Ponto três, vão chamar-me Mestre Phill, não quero abreviaturas. Entendido?
Assente sem muitas alternativas.
– Muito bem. Para começar, flexões sobre o chão.
– Como se faz?
– Então York, deitaste, esticas as pernas, ficas em pontas de pés, braços contra o chão e fazem
força para levantar o corpo. Para já, sete.
Coisa estranha, entre olhavam-se na ideia de entenderem o pedido. Um deles dá de ombros e faz
o pedido.
No cimo do alpendre, Rachel bebia o copo de vinho quase por obrigação. Porquê? Desde o dia
anterior que Phill a proibia de comer o quer que fosse. Teria que comprar se queria sobreviver.
Abie conseguia sempre desviar algo e garantiu que ela não passaria fome. Serviu-lhe vinho, algo
que o pugilista não se lembrou de reclamar.
Jovens para treinar… Péssima ideia. Não entendiam nada, nem sequer tinham corpo para o
desporto. Mas Phill, só para não se sentir inútil, seguia com a ideia louca. Levanta da cadeira,
aproxima das grades de madeira e abaixa-se.
– Sabes que eles estão doentes, não sabes?
O pugilista finge não ouvir.
– Os pais deles os condenaram na esperança de morrerem o mais rápido possível. Não têm
dinheiro para pagar muitas aulas e acredita, em sete dias estão mortos.
Continua a ignorar, não precisava dos olhos dela para saber do problema.
– E claro, vão apegar o mal a nós. A doença ataca primeiro os mais fracos, e depois os mais fortes.
– O queres Rachel? – vira-se.
– Que me treines invés deles. Posso ser a tua campeã.
– As mulheres não podem ser pugilistas, são fracas. Além disso, ninguém paga para ver uma coisa
reles morrer.
– Mas eu pago para ser treinada. Duas libras por cada golpe novo.
– Não.
– Tens medo de levar uma tareia?
– Sabes que te parto os ossos logo no primeiro murro?
– Testa.
Faz sinal para descer, ia provar que as mulheres não podiam ter aquela profissão.
– Boss, temos um novato. – Abie comenta ao aparecer.

205
Sete Nomes

– Quem?
– Elvis, vem de Boston e parece ser pugilista.
De Boston… Olha para Rachel, outro da sua terra.
– Elvis Portos, ele é meu amigo. – comenta feliz.
– Ótimo, dois diabos num lugar só. Abie, despacha o homem antes que nos dê despesa. – Phill
pede.
– Não, chama-o para ver se este burro mimado aprende algo sobre luta.
– Algo… – sai da arena – Quando tu sonhavas com a tua maldita vingança, eu já tinha o título de
Spectrum. Sou o melhor pugilista de Londres.
– Que perder contra o próprio aprendiz. Deixa-me rir.
Levanta a mão com o dedo apontado. Isso, isso foi um percalço. Ia vencer Yves, mas teve pena,
só isso.
– Abie, chama o homem.
– Sim boss.
Ia provar a ela que era o melhor, podia vir quem quer que fosse, que derrotaria no primeiro
assalto. Enrola as ligaduras na mão, levanta a vista para a porta que é aberta e admira o homem
com casaco e cartola negra. Elvis, que nome horrível para uma lenda. Rachel mostra logo um
enorme sorriso, salta para os braços do amigo e murmura algo fascinante ao ouvido. Phill fica
corado, cheio de ciúmes. Porque raio o abraçou? Dá um nó maldado e entra na arena, expulsando
quase a pontapé os rapazes.
Elvis beija o rosto de Rachel, a última vez que a viu, estava empolgada por pisar Londres e
procurar os seis homens. Não mudou nada desde que partiu.
– O que fazes por cá?
– Vim conhecer a minha futura esposa. Mas li um anuncio muito desafiante e quis vir ver. – despe
o casaco.
– Phill é um grande pugilista. – murmura ao aproximar a cabeça – Não lhe faças muitos estragos.
– Estás com pena dele? – arregaça as mangas.
– Não. É outra coisa.
Amor… Esboça um enorme sorriso e pega nas mãos dela, finalmente. Pensou que a vingança ia
consumir o coração dela por completo, mas ainda existia esperança.
– Primeiro um teste e depois falamos.
Abraça-o, estava mortinha para contar as novidades.
– Anda lá americano de um raio. – Phill fala ao esticar bem os braços – Vamos ver quem chega
primeiro ao KO.
– Vamos com calma. – entra na arena lentamente.
Elvis era um homem alto, com barba por fazer e cabelo negro que dava uma certa graça aos olhos
azuis. Trinta anos, mais experiente que Phill no ramo do boxe. Teve várias fraturas no rosto e nas
mãos, desde o maxilar deslocado até o dedo partido. Não fazia assaltos planeados, pelo contrário,
lutava a sério, enchia as arenas em Boston e abria os braços para a glória. Phill baixa os braços e
perder a vontade, o Box Dead era pequeno demais para uma lenda.
– Vai desistir?
– Nem me sujeito a perder a vida nas mãos de um pugilista de verdade. Sou amador.
O homem vira o rosto para Rachel, que desilusão.
– Esperava diversão.
– Americanos, qualquer coisa serve para uma festa. Olha, veste e sai, sou um cobarde.
– Eu sabia. – Rachel comenta.
– Então vem tu enfrentá-lo, se tens tomates que chegue.

206
Sete Nomes

– Não preciso. Eu sei porquê que estás com medo. Elvis tem cento e dois quilos, enche as arenas
da cidade e leva uma legião de fãs até às portas. Já vi um assalto render mais de duzentos mil
dólares.
Duzentos… Mil? Só quando ficou com a faca espetada no corpo é que rendeu quatrocentas libras.
Nega, não ia lutar, estava com medo.
– Nego-me. KO.
Elvis levanta as mãos, não insistia nem um pouco na sua demanda.
– Decisão sensata. – sai da arena – Ainda podemos beber algo, Rachel?
Coloca o manto nos ombros da lenda, claro. Phill segue com o olhar a subida deles para o bar do
alpendre. Ele levava-a pelo braço, aquele homem tinha a coragem de lhe arrancar um enorme
sorriso de felicidade. Dá um pontapé na areia, estava a morrer de ciúmes.
Vira uma garrafa para o copo e enche-o até ao cimo. Sabia que Elvis adorava vinho e copos
grandes cheios disso. Conheceu-o com dezoito, sempre foi fascinada por aquele homem, chegou
até pensar que era amor. Na noite em que se perdeu no caminho de regresso a casa, entrou num
bar a pensar que podia beber para se lembrar onde vivia. Erro, entrou na arena onde Elvis lutava.
Então viu-o, no seu esplendor, o homem mais belo de Boston e aquele que não tinha medo de
nada. O pugilista sorriu para a rapariga que estava muito perto da arena enorme. No assalto sete,
ganhou e atirou para a curiosa fascinada a sua toalha. Convidou para uns copos e rendeu-se ao
encanto natural de Rachel. Mas não podia ser seu marido, não queria uma mulher tão jovem em
sua casa. Em troca da amizade, ela confiou-lhe os seus segredos, vontades e maluqueiras.
Elvis sempre pensou que a vingança poderia ser passageira, tal como a rebeldia. Enganou-se
quando ela se despe no balnear e mostra a tatuagem dos sete nomes que fez nas costas. Primeiro,
coragem a mais para se despir perante um homem que não era seu marido. E depois, suspirou e
viu que o seu trauma era mais profundo do que parecia.
Mas ali, em frente à menina que já era mulher, acreditava que só a rebeldia continuava intacta,
porque a vingança já não estava a consumir-lhe o corpo jovem. Nem parecia traumatizada, estava
iluminada pelo olhar gracioso. Também, não se viam há um mês e já tirava as conclusões antes
do tempo.
– Phillipe de Orange, dizes tu.
– Filho do príncipe austríaco. Luta bem.
O pugilista olha para trás, no outro lado do alpendre, Phill bebia fixamente a olhar para eles.
Apostava que estava com uma enorme vontade de perguntar se não tinha aliança no dedo para
estar a seduzir uma jovem.
– Ele é intimidador.
– Está com ciúmes.
– Já fizeram amor. – vira o rosto.
– O que te leva a achar isso? – debruça-se no balcão.
– Eu sei muito bem quando um homem fica cheio de raiva quando vê a sua amante nos braços de
outro. Só a intimidade é que rouba o respeito.
Suspira, era sábio demais.
– Tinha que acontecer um dia.
– Então já és mulher. Como vai a tua caça ao homem?
– Péssima. Matei dois desde que cheguei. Ainda faltam quatro. Nem sei deles.
– Rachel… – passa a mão pelo rosto dela – Vai devagar. Lembraste quando quis matar aquele
oportunista rápido demais? Ele esfaqueou-me e sobrevivi às custas da minha vontade de viver.
Devagar que chegas lá. És tão nova ainda.
Os olhos fecham-se para o mimo, a pequena paixoneta ainda lá estava. Alguém tose com
violência e a mão do pugilista recua.

207
Sete Nomes

– Ciumento.
– Nós nem somos um casal. Aliás… – levanta a voz – Deixamo-nos de falar!
– Mas ainda vives aqui! – Phill grita.
Elvis ri, não eram um casal? Até discutiam como um.
– Preciso que me treines. – coloca as mãos sobre as dele – Phill não quer.
– Rachel…
– Eu sei que posso sair magoada, costelas partidas, braços desfeitos… Mas preciso. Saber disparar
não chega. Tenho tido sorte, mas ela não dura para sempre. Por favor, em nome da nossa amizade,
ajuda-me.
A menina de dezoito fez o mesmo pedido há uns anos atrás, e deu a mesma resposta que ia
continuar a dar. Não. Com o tempo Rachel deixou de tocar no assunto, talvez tivesse pensado
bem sobre os riscos. Pelo que via, não ia desistir até ter o que queria.
– Se Phill não te treina, eu muito menos. É um risco para nós, para ti será pior. Poderás perder
muitas coisas.
– Já perdi muito para continuar a ter medo de perder ainda mais. Elvis… – aproxima o rosto e
finta os olhos – Treina-me antes que morra nas mãos de alguém.
– Não morrerás nas minhas mãos. És muito especial para mim.
Beija-o, um desejo antigo que queria realizar. Os dedos fortes agarram no braço dela, puxa-a
contra o balcão e concentra-se no beijo. Phill levanta com violência, o banco cai para trás e as
mãos fecham-se ao limite.
Rachel fecha os olhos ao descolar os lábios, sempre foi a sua lenda e sempre seria. Elvis ainda
morde a boca dela, puxa delicadamente os carnudos lábios que pediam só mais um para acabar
com o que há muito começou.
– Treina-me. – volta a pedir.
– Teimosa. – beija só os lábios – Vou casar em breve.
– E? – sorri – Ainda vais a tempo de mudar de esposa.
– Continuas a ser muito nova para mim. Vejo-te como uma irmã.
– Irmãos não se beijam com tanto desejo. Admite que me amas como nunca amaste alguém.
– Quem te mandou despir à minha frente.
– Confio em ti até de olhos fechados. Torna-me tua esposa e juro esquecer esta vingança.
Volta a beijá-la, que paixão ardente ainda, nada ficou terminado em Boston. Phill sentia-se
derrotado por completo, pensou ter conseguido roubar-lhe o coração e afinal de contas, só foi uma
miragem no meio do deserto. Doía muito ver aquilo, apostava que não demorariam muito descer
as escadas e testarem a cama. Caminha para a porta do segundo andar, trancada para os outros
não entrarem. Perdeu Yves, perdeu Rachel e só faltava perder Abie. O pai tinha razão, era melhor
escolher o dever que a razão.
As cabeças recuam e Elvis suspira.
– Eu amo-te Rachel, mas não posso casar contigo. Podes ser minha amante, viver lá em casa. Mas
não passas disso.
– Porquê?
– Porque procuro uma mulher que não me possa dar filhos. Se engravidares, será a minha ruína.
– Pensei que querias ter filhos.
– Não. Mudar-me-ei para Los Angeles e vou aceitar a proposta, servirei um homem e ele fez-me
prometer que não teria descendentes. Pugilistas com filhos deixam de ter vontade de lutar. Escolhi
a minha vida.
Olha para o lado, tenta assimilar o assunto como se fosse urgente demais. Deitava fora o amor,
em troca de um emprego violento, sem descendência porque seria um estrovo. Então tinha mais

208
Sete Nomes

valor Phill que disse logo desde o inicio que não queria ter filhos porque a vida já estava estragada.
Era mais homem por colocar de lado a profissão e dedicar-se ao amor e um futuro sossegado.
Assente, levanta do balcão e bebe o vinho que azedou.
– Lamento. Se conseguisses provar que eras estéril, eu casava contigo já amanhã.
– Como saberei se Phill nunca acaba? Além disso, ter um filho é como partir um braço. Nem vale
apena tentar.
– Ainda darás uma grande mãe.
– Fiquei de coração partido. Sempre foste o meu grande amor, a minha paixão de adolescente.
Estúpida, homens gloriosos não valem nada.
– Não digas isso Rachel. – tenta agarrar o braço dela.
– Sai do Box Dead, aqui só existe um deus chamado Phillipe Stathouder, tem vinte e cinco anos,
uma empregada que considera filha e dividas acumuladas na gaveta. Ele dá-me amor, mesmo que
às vezes aceite e noutras, rejeite. É carinhoso, arriscou o seu pescoço à rainha para me ajudar,
abriu a porta para eu entrar e ainda permite que viva aqui. Pode ser tudo, chato, medricas,
devedor… Mas realmente, é ele que eu devo amar. Foste algo, hoje, és só pó.
– Só porque te rejeitei?
– Não Elvis, só porque me colocaste de lado por um futuro violento e sem dias com sol. Morrerás
a lutar sem aprender o que é amar. Quando deres o último suspiro, diz o meu nome e lembra-te,
estive há tua espera, mas tu nunca me quiseste. – desce as escadas.
Dura praga que ecoava na cabeça dele. Casaria por obrigação, com uma mulher que só lhe
garantia o estatuto de casado, estava pronta a qualquer hora para fazer amor e sorrir para os
restantes que lhe iam pagar para lutar. Isso não é vida, isso é morrer mais cedo que o previsto.
Elvis escolheu o sonho e não a paixão que não lhe enchia os bolsos. Ainda olha para trás, para a
mulher que amava e não podia sequer pensar em ter. Rachel tinha tudo o que era demasiado.

Phill dava banho na banheira de cima, Rachel na de baixo. O pugilista pensava nela, esfregava o
sabão e perguntava-se onde errou. Ela pensava nele, agarrava os joelhos e ecoava na mente o
nome que valia apena. E no meio, entre as duas portas separadas pelo andar, Abie procurava uma
forma de os unir. Ouviu o que Rachel gritou ao outro pugilista e não duvidava nem um pouco que
um pequeno empurrão os unia de vez. Mas ninguém pediu isso, pois não?
Ela não precisava de ordens, fazia o que queria e pronto. A casa já estava tão vazia, que não
queria comer ao pé de corações partidos. Estala os dedos e vai para a cozinha, já sabia o que fazer.
Por coincidência, ao fim de vinte minutos, ambos saem ao mesmo tempo sem saberem, pegam
nas toalhas e enrolam no corpo. Iam vestir, um ia descer para comer a sopa, outra ia direta para o
quarto dormir. Oito da noite, cedo demais para ambas as coisas.
Abrem a porta e ouvem o som do gramofone a tocar. Phill suspira, era o que faltava. Caminha
para as escadas e encontra Rachel enrolada na toalha. Rosto triste, talvez as coisas não tenham
corrido assim tão bem. Desistia da musica que tocava, já não tinha fome.
Rachel avança para a porta, mas também desiste, ia dormir antes que fosse tarde demais.
É então que o pugilista desce as escadas. Passa a porta e repara que o Box Dead estava enfeitado,
cheio de flores, velas aromáticas e o terrível gramofone a tocar. Alguém abriu a escotilha da arena,
a lua iluminava o chão com areia e pétalas. Vira o rosto para Abie, fazia sinal para convidar a
dama. Nega, não havia mais nada a falar. A empregada volta a insistir, só assim resolviam as
coisas.
– Queres dançar, Rachel?

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Sete Nomes

A mão que ia abrir a porta suspende-se no ar. Um pedido, um simples pedido que nunca ninguém
lhe fez. Vira o rosto para o braço esticado e os dedos a pedirem algo. Dançar… Caminha
lentamente, encara o rosto que tentava sorrir para esquecer o que aconteceu. Acabou a tempestade,
deixem os dias de sol entrar.
Aperta a mão e fica sem saber o que fazer. Phill sorri, guia-a com meiguice para a arena que
naquela noite, servia de palco de dança. Brilhantes, a areia brilhava à luz do luar. O ar aromático
lembrava os campos de , aquele que Rachel visitou uma única vez para saber as suas origens.
Dançar não se assemelhava ao boxe, mas Phill sabia bem a valsa palaciana, mesmo que nunca
tenha estado numa. Coloca a mão direita dela no ombro, segura na esquerda e a sua mão repousa
na cintura enrolada numa toalha. Olham-se. Encaram-se como se fossem um só. Noite quente, o
frio não entrava pela escotilha. Os primeiros passos surgem quando Mozart começa a tocar, um,
dois, três… Um, dois, três… Não era difícil, pois não?
Rachel sorri ao sentir o rosto corar.
– O que foi?
– Porque convidaste-me?
Vira-a lentamente, os dedos dele faziam os delicados rodar. Se tivesse vestido, ele rodopiava, as
saias ganhavam volume e transmitiam grandiosidade. Em toalha, apenas os pés se assemelhavam
às bailarinas. Elegante, a areia ressaltava e tornava aquela mulher uma princesa esquecida.
Retoma a mão ao ombro e sente a cintura ser puxada.
– Abie é que pediu. Eu só obedeci.
– Não querias dançar comigo?
– Desde que viraste um limão que perdi a vontade de muita coisa.
– Não me dás outra escolha.
Roda-a e agarra o corpo dela contra o seu. E balançam, quando os olhos não querem falar, que
os corações fizessem o favor.
– Gostas de Elvis?
– Pergunta passada.
– Vi no teu olhar o que não vejo quando estás comigo. Puro amor, o que ele tem que eu não tenho?
Não responde, deixa-se balançar apenas.
– Tem nome, tem glória e uma arena a encher. É o dobro mais pesado, musculado e bonito. Não
tem dívidas, nem um pai que é humilhado diariamente. Sou uma vergonha, isso fá-lo amar.
– Elvis não tem o que tu tens.
Vira-a e prende-a nos braços.
– O que eu tenho que ele não tem?
– Amor para dar.
Nega a sorrir.
– Tu não queres o meu amor.
– Elvis foi a minha paixão de adolescente, quis entregar-me a ele, mas não aceitou fazer amor
com uma criança que engravidaria e pediria pensão. Sempre fui fascinada por ele, sempre… E
sabes o que vi hoje? Que não passou de uma pequena paixoneta platónica.
– Não precisas de inventar.
– Eu não o amo. Pedi para sair daqui, porque o Box Dead só tem um deus.
Recua, péssima escolha ter descido para ir dançar.
– Phill.
– Não quero fazer as pazes contigo. Ambos sabemos como acaba. Beijamos, fazemos amor e
daqui a dois dias, tu ficas fria, distante e dizes que não queres nada de mim. Vai ter com Elvis,
não empatem o futuro. – sai da arena.
– Eu não casaria com um homem que me considera amante!

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Sete Nomes

– És uma amante para mim.


– Tu chamaste-me de esposa, tua mulher em frente a muitas pessoas. Defenderias a minha honra
como se fosse a tua vida. Eu o expulsei porque entendi que te amo de verdade.
– Mas pediste-o em casamento! – vira-se – Eu ouvi tudo. Disseste que deixarias a tua vingança
fútil se virasses esposa dele. Tu não tens trauma nenhum Rachel, apenas queres matar porque não
sabes o que fazer à tua vida. Vai ter com ele, deve partir para Boston entre hoje e amanhã. Vai,
não vale apena matares pessoas que não te vão dar os teus pais de volta. Não vais ganhar nada
com isto. Aproveita, tens um homem magnifico que te vai dar uma boa vida. Ensina aquele truque
e não vais engravidar. – caminha para a porta das escadas.
– Phillipe. – chama magoada.
– Sabes o que aprendi? Que quanto mais tu esperas uma coisa, mais ela não acontece. Elvis
ofereceu-te um futuro novo, uma alternativa. Vai! Aproveita!
– Eu não quero.
– Queres. Só achas que não. O teu relógio voltou a andar, ainda não deste conta?
A agulha do gramofone deixa de tocar. E a lua só não se esconde porque naquela noite, o céu
limpou por completo. O relógio voltou a andar… Corre para o quarto e abre a gaveta. Oito e meia
da noite, o tempo não estava parado. Phill o compôs quando saiu para comprar luvas, ele fez isso
para a livrar do trauma que a assombrava. Senta na cama, ir embora, partir para Boston… E a
vingança? Quanto mais se aproximava de Logan, mais dava conta que os primeiros a morrer
foram marionetas, os quatro últimos são as peças chave do crime. Não tinha força para os matar,
não tinha nada contra eles.
Aproxima o relógio ao ouvido e fecha os ouvidos ao ouvir o coração parado a trabalhar. Perdeu
anos de vida, perdeu tempo a procurar o que não traria de volta a felicidade. E agora? É no oeste
que nada dorme…

211
Sete Nomes

Capítulo 31
Partiu, cedo. Fez a mala, deixou o dinheiro sobre a mesa da cozinha. Não escreveu uma carta,
não deixou recado. Foi, como todos aqueles que Phill estava habituado a ver ir. Abie acordou sem
a colega de quarto, correu escada acima e perguntou ao patrão onde ela estava. O pugilista
respondeu que Rachel fez uma escolha valiosa e que voltou para casa. A empregada desatou a
chorar sobre a cama, estavam sozinhos por completo.
O sol brilhava, mas o dia cinzento afastava-o. Escotilha fechada, arena a ser destruída. Não valia
apena treinar o boxe, não tinha sócios, não tinha publico, não tinha vontade. Vestiu algo, pagou
carruagem para Windsor à procura do pai. Pediria desculpa de joelhos, aceitava a sua maldição e
virava príncipe da casa de Orange. Mas William não estava lá, Victoria disse ao amigo que o
hóspede partiu, levou o dinheiro e foi embora. Para onde? Não disse.
Humilhou-o tanto que foi tarde na sua decisão. Tarde em tudo.
Vedou a entrada do Box Dead, escreveu um letreiro enorme a dizer “Encerrado para sempre.” Só
não se enterrava na terra porque não queria morrer já. Vontade não faltava, infelizmente. No jornal
saiu um emprego, pediam pessoas para a fábrica de ferro. Abie convenceu o patrão a trabalhar lá,
as semanas passavam e o dinheiro estava em falta. Que remédio tinha, chorar pelos cantos ainda
não tornava ninguém rico. Passou no estágio de duas horas. Por outras palavras, o dono da fábrica
precisava de mão de obra, não queria saber se eram fortes ou fracos. Entrava às seis da manhã,
saía às nove da noite. Ganhava nove xelins, dava para o pão e umas batatas para a sopa aguada.
Abie também teve que ir trabalhar, lavava roupa na lavandaria publica e passava em casa para
depois dar os burgueses o pedido e ganhar dez cêntimos. Pouquíssimo, está habituada a moedas
mais valiosas.
Páscoa triste no Box Dead, sopa e trabalho, de vez em quando chegava lágrimas aos olhos,
saudades de quem não estava presente. No dia seguinte, a tose afetou Abie e com isso, a febre
chegou em força. Durante vinte dias, Phill se sentou ao lado dela, mimou, fez tripas coração para
pagar o médico para a curar… Mas a pobre menina de dezanove anos não resistiu à pneumonia
causada pelo frio. Morreu a desejar felicidade ao patrão.
O mundo desabou sobre a cabeça de Phill, vendeu metade das coisas da cozinha para dar a ela
um funeral digno, uma lápida a qual ter um nome e uma missa honrada. Chorou a noite toda sobre
o caixão, prometeu que não a ia deixar.
Debaixo da chuva violenta, Phill gritou em frente à igreja que mal fez a Deus para perder tudo,
quem amava e precisava. Podia ter levado qualquer coisa, menos os filhos. E Deus não lhe
respondeu, a vida era um jogo difícil, uns viviam, outros morriam… Dos revoltados nascia o
abandono.
Abril, a temperatura subiu e a chuva já dava tréguas.
A fila dos sem teto alastrava-se pela longa rua lamacenta. Dia sagrado para eles, os domingos
existiam para o padre sair para a rua dar a quem nada tinha um pedaço de pão. Quem nada tinha
ou que tudo teve e perdeu. Às vezes a realidade era dura de aceitar, ontem rico, hoje pobre e os
impérios ruíam sobre os oceanos o que não conseguiam sustentar. Deles só sobrava as lamúrias
de um passado descuidado e de um futuro incerto.
Lá, na longa fila, constava alguém que já não sabia se os dias seriam de sol ou chuva. A solidão
tornava o coração dele pesado, perdeu quem amava como filha, perdeu quem amava como filho.
Perder uma mulher já não era um problema no momento em que resumiu em tão poucas palavras
a sua ruína. Um passo em frente, mais um. Acena para o vizinho que não esperava ver por ali.
Segundo ele, a mulher fugiu com as poupanças e deixou-o na penúria. Que sorte, já levava nas
mãos o pão que o padre deu. E Phill, ainda por ali estava, na longa fila para o purgatório. Sem

212
Sete Nomes

dinheiro e sem vergonha, lá ia o pugilista, atrás dos pobres da sua rua, quarteirão, avenida…
Londres tinha tantos pobres que ainda custava a crer que certos homens eram magnatas e outros
esfarrapados. Pelos vistos, a industrialização não chegava a todos, uns mandavam, outros
obedeciam.
Mais um passo, a mulher da frente carregava ao colo um filho que, arregalava os olhos para o
pugilista. Phill vira o rosto, não se sentia intimidado por tal criatura. Mas o olhar insiste em
perseguir o estranho. E ele, de esguelha, sorri para não o aborrecer.
Atrás, um venho manco trazia no braço uma cesta. Não pediria para os filhos, pediria para os
cães baldios que alimentava no beco. Cuspia para o chão sempre que chegava dos pulmões os
escaros da tose violenta. Poucos invernos… Diria Eyes.
Em frente, um passo a cada três minutos. Até a caridade tinha as horas contadas.
– Sir.
Vira o rosto para o lado e dá de caras com um rapaz. Dezasseis anos, uma boina desgasta na
cabeça e um palito na boca para dar autoridade. Suspensórios remendados, camisa desbotada que
algum homem rico atirou pela janela. Não dava banho desde que o verão acabou, só comia quando
ameaçava os pequenos órfãos que estendiam as mãos para a esmola.
– Não passas à frente, vai para a fila. – Phill pede desconfiado.
Qual fila? Aquelas crianças não se sujeitavam ao que sabiam que não iam receber, por serem
isso, os abandonados. Preferiam as ruas, as mãos pedintes, os olhares carentes, os mais velozes a
roubar, os corridos à vassourada. Longas filas ao pé das portas dos fundos da igreja era mesmo
coisa dos adultos que não se governavam nem com muito, nem com pouco. Vergonha seria estar
ali parado durante sete horas só para conseguir uma côdea de pão. Ganhavam mais eles à
descarada que os restantes vagabundos de Londres.
Phill volta a olhar em frente e o rapaz dá-lhe um ligeiro murro no braço.
– Qual é a tua, boy? Queres que me passe e te dê um excerto de porrada? – encara com violência.
Indo ao bolso, cospe o palito da boca e sorri ao mostrar o recado.
– Para si. – o rapaz fala com um certo ânimo.
Um recado? Ninguém procurava aquele homem desde que o Box Dead foi encerrado e a
empregada morreu. Os amigos ainda o procuraram nas primeiras semanas, mas depois de ver um
homem desfeito em pedaços que não conseguia sobreviver, desistiram e partiram para as suas
vidas. Pega no papel amarelado e abre. Letra malfeita, escrita sobre o joelho e dado a um estranho
que, supostamente, não sabia ler.
– Quem mandou isto? – pergunta ao levantar o recado.
– Tenho cara de Deus para saber? Esnobes. – caminha lentamente para o outro lado da rua.
Whitehall, Banqueting House. Conhecia a rua, não sabia os propósitos. Olha em volta, procura
no meio da multidão uma boa resposta para aquela emboscada. Qualquer um podia querer matá-
lo, qualquer um podia naquela altura do campeonato querer cortar a cabeça dele e enterrá-la
algures na cidade. Porquê? Ser devedor era um motivo mais que suficiente para ter a vida nas
mãos de qualquer pessoa. Ia… Não ia… Dá voltas e voltas no mesmo lugar. Se fosse, o que
encontraria? A morte, a vida, respostas e perguntas. Mas se não fosse, nem perguntas nem
respostas teria a dar a quem quer que fosse.
Olha para a fila, não conseguiria muito se continuasse ali, em passo lento, à espera de comida. O
respirar ecoa quando dá um passo para o lado, os demais olhares oportunistas não demoram a
mover os cadáveres para a frente. Um desistiu, mas os restantes não abriam mão do seu lugar na
fila.
Mete o papel ao bolso e caminha para a rua. Às vezes só arriscando para chegar longe. Neste
caso, ficaria o dia inteiro a pensar no motivo que não o levou à tal rua. Medo… Phill só temia as
dívidas, algo de algumas semanas atrás, desde que viu a sua casa ruir. Agora, temia morrer de

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Sete Nomes

fome e de frio, solidão e ausência de palavras. Os sentimentos também mudam quando se está
preste a encontrar uma casa vazia, sem luz, sem comida e um frio de consumir a alma. Parecia
que não, mas a solidão conseguia corroer qualquer coisa, tal como o tempo que avança sem
esperar.
Nem precisava berrar, Londres estava sempre movimentada àquela hora. Àquelas e demais horas,
porque a cidade, desde que ganhou estatuto social às custas da industrialização, já sonhava ser
uma New York, ter uma Times Square ou uma Wall Street. Faltava o capital e a força de vontade,
os londrinos preferiam viver às custas dos grandes, invés de fazer algo por conta própria. Não
havia dinheiro nem para abrir uma loja de antiguidades, os burgueses faziam altos empréstimos
para depois ficarem com a casa do operário que sonhou demais. Seguidamente, mudava-se para
debaixo do teto de vidro com a família, porque perdeu a casa e o dinheiro investido.
Viver ali, ou em qualquer outro lugar europeu, resumia-se a fome e miséria. As coroas não
queriam saber disso e, a democracia apresentava-se como solução para o sofrimento. Para grandes
males, não existia grandes remédios. Só os ricos é que governariam o mundo, e os ditadores
chegariam para fazer a história tremer.
Para no meio da rua, olha para as casas ao lado, segue o movimento das pessoas… Diligência
parada, dama a ser beijada na mão… Um fumador ao pé do poste de iluminação, homens de
negócio a planear a queda de alguma empresa. Quem o queria? Phill procurava nas pessoas a sua
vida, uma explicação para estar ali. Mas… Desde que Abie morreu e a solidão invadiu o coração,
perdeu a capacidade de ler com o olhar, aquela que durante anos e anos Kayo ensinou para lutar.
Fecha os olhos, deixa apenas a audição captar algo. Onde estava a pessoa que o chamou? Anywere.
Nem ali ou em outro lugar, alguém na fila fez de propósito para passar mais um dia de fome.
É então que algo lhe chega aos dedos. Não precisava perguntar, apenas abre os olhos e encara a
criança lhe deixa um recado. Outro… Abre o bilhete e repara na demora do rapaz ir embora.
– Não tenho dinheiro. Vai. – faz sinal para desaparecer.
Dá de ombros, pessoas ricas tinham dinheiro e também não davam. Phill volta a ler o recado.
Duas ruas a seguir, pela tua direita. Olha em volta, quem mandou aquilo? Quem? Deus não seria,
devia estar com raiva do devedor que pediu um empréstimo ao padre e nunca mais o pagou.
Volta a andar, a pessoa que escrevia recados escolheu a dedo o pombo correio, não sabiam ler,
logo não ia trazer problemas. Não pediam muito pelo serviço, não levantavam suspeita e
entendiam à primeira. Seria William? O príncipe desapareceu por completo, nem mandava cartas
ao filho a dizer que sentia a sua falta. Phill estava preocupado com ele, pela primeira vez da vida.
Como único pai ainda vivo, era melhor aproveitar o que lhe restava do que odiar e depois
lamentar. Talvez o tal rei austríaco o tenha proibido de voltar a comunicar com a coroa de
Victoria, os bastardos não tinham lugar.
Se fosse William, Phill imploraria para ser levado para longe, Londres castigava-o e o sofrimento
não tinha fim. Aceitava a vida de nobre, fazia isso pelo pai, só para não viver sozinho no Box.
Vira de rua e encontra um grupo de homens a fumar e a sussurrar para duas damas de companhia.
Prostitutas. Faz um ligeiro baixar com a cabeça, só para cumprimentar os ocupados. Segue em
frente, não queria incomodar.
– Spectrum?
Os passos param e vira o rosto para trás. Ainda esse título perdido… Pouco lhe restava ganhar
com ele. Assente.
– Pega. – o homem retira do bolso um bilhete – Não li, não sei ler… Por isso, aproveite.
Mais um, e daquela vez, deu a um homem que ganhou o dia só com o serviço. Phill levanta a
boina e vira-se para retomar a jornada. Chapel Royal, pela rua St Jame´s.
– Isto já me irrita. – esmaga o recado.

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Sete Nomes

Se a pessoa tinha medo de dar as caras, nem se dava ao trabalho de brincar. Apostava que quando
chegasse ao destino seguinte, receberia outro recado. E depois… Percorria Londres inteira para
nada.
Phill só não corria porque não comeu o suficiente para isso, ou desatava a correr. A cabeça seguia
todas as pessoas que pareciam suspeitas, todas, não havia exceções. Acaba por se render à corrida,
a respiração acelerada começava a puxar pelos pulmões. Muito tempo parado, os pugilistas não
podiam perder peso ou parar de treinar. E corre… Naquele momento dependia disso para saber o
final da brincadeira. Uma dor ardente invade o peito, na boca, um sabor horrendo parecia ser
sangue.
As pessoas desviavam-se, outras levavam com os pesados encontrões. Get out of the way!
Alguém grita à passagem do corredor.
Quando Para, coloca a mão na parede de uma casa e quase tose o ardor insuportável que chegava
dos pulmões. Cerra os dentes, como deixar de treinar era doloroso. Antes corria dois quarteirões,
agora, metade de uma rua e quase perdia o ar e a vida.
– Sir Phill?
Vira o rosto para a mulher delicadamente vestida. Assente e, indo à bolsa, retira mais um papel
amarelo escrito. Desencosta da parede e com rudez, pega no recado.
– Quem lhe pagou para dar isto? – fala sem fôlego.
– Se eu soubesse… – abre a sombrinha – Nem sei o que está escrito. Deve ser importante, a pessoa
disse que o conhecia bem, até sabia que se ia encostar aí depois de correr. Passar bem, Sir.
Sem palavras, quem seria essa pessoa que o conhecia bem? Só Deus e quase com sorte. Abre o
recado. Berkeley street, a chave está atrás do barril. Abre e entra. Olha em frente, que estranho.
Agora sem correr, porque a rua era ali mesmo ao lado, caminha a pensar nas pessoas que passaram
pela sua vida ao ponto de o conhecerem bem. Yves. Esse conhecia-o muitíssimo bem. Talvez
tenha voltado e com receio de apanhar uma coça em frente à Abie, o tenha chamado ali. Quando
soubesse que perdeu a irmã, choraria no ombro dele. Phill não queria saber da revolta do aprendiz,
abriria os braços para o aceitar de volta. William não seria, não conhecia assim tão bem o filho.
Os restantes homens também não, nunca teve grandes amigos. E mulheres? Estavam mortas,
longe dali e esquecidas por causa das desilusões. Então… Só poderia ser o aprendiz.
Entra na dita rua e Para ao lado da porta, a única que lá havia. E o barril estava mesmo ao lado,
como o recado descreveu. Arreda um pouco e encontra a chave.
– Estranho.
Como pedido, destranca a porta e abre lentamente, deixando o som das dobradiças enferrujadas
quebrar o silêncio da casa. Espreita, escadas para o segundo andar.
– Hello…
A voz ecoa, mas não dá resposta. Entra, ia arriscar mesmo que as pernas tremessem. A ventania
bate a porta e o corpo ressalta com o estrondo. Benzesse e jura a si mesmo que era a última
aventura.
– Yves. – chama baixinho ao subir as escadas lentamente.
A madeira estaladiça denunciava-o. Se quisesse entrar secretamente não ia conseguir, qualquer
ladrão era apanhado de imediato.
– Yves, é o Phill, o teu mestre. – volta a falar – Se estás aí, diz algo.
Nada, talvez tenha perdido a língua. Ou Floweren o proibia de falar.
Último degrau, espreita para o corredor com quatro portas. E um silêncio de dar medo. Pior que
o cemitério há noite nos dias de vento.
– Yves. – caminha para a porta com muita luz.

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Sete Nomes

Perdia a coragem, estava capaz de correr escada abaixo e se esconder em algum lugar. Espreita
pela porta entre aberta e… Vê que não era o aprendiz, nem o pai, nem alguém que lhe queria fazer
a folha.
Delicada, os cabelos desciam as costas nuas enquanto o tronco tentava absorver os tímidos raios
de sol. O robe florido tapava a nádega, e os olhos fechados sentiam o calor vindo da janela. Phill
encosta a cabeça ao aro da porta. Rachel. Dessa não estava há espera, deixou de pensar nela,
deixou até de proferir o seu nome. Abie, três dias antes de morrer, disse que gostava de saber da
amiga. O pugilista respondeu que fez uma escolha, foi atrás do verdadeiro amor e nenhuma pessoa
podia condenar as escolhas do coração. A empregada ainda riu e disse que o destino era tão incerto
que até as melhores escolhas podiam errar.
O rosto vira-se para o intruso. Ele veio, como qualquer curioso que não aguenta o suspense. Sabia
que iria, Phill era previsível demais. Puxa as mangas do robe até ao ombro e vira-se, cruzando os
braços. Sendo assim, o pugilista empurra a porta para trás e faz quase o mesmo. Miravam-se, há
quanto tempo não se viam? Diriam… Desde que Elvis o tentou enfrentar.
– Perdeste peso depois da morte de Abie.
– Ficaste mais sedutora desde que foste embora com Elvis.
Dá passos ligeiros para algo que estava sobre a mesa. Tic-Tac… Levanta o relógio e vê as horas.
Oito da manhã, nem um minuto a mais nem a menos. Os ponteiros voltaram a parar, não queria
avançar com a vida no momento em que estava presa no passado.
– Elvis teve uma gloriosa morte.
Phill faz um pequeno som ao respirar quase com gozo. Já o matou.
– Não perdes tempo a eliminar quem te dá raiva.
– Eu? Não. O navio onde Elvis ia enfrentou uma tempestade difícil e afundou. Morreram duzentas
e trinta pessoas. Não lês os jornais?
Coça a cabeça, nem jornais, nem os boatos de rua. Pobre pugilista profissional, a futura lenda
americana. Nem lutou com ele por medo. Morrer no mar era vergonhoso, ser comida para peixe
era pior que carne para canhão, porque em terra sempre se é enterrado, no mar, quem faz o
funeral?
– Choraste muito?
– Phill, ainda passei a noite com ele depois de sair do Box Dead. Não vou mentir que fiz amor,
como também não vou mentir que o amava. Mas… Elvis perdeu o encanto na madrugada, é como
se o mais belo príncipe não passasse de um nojento sapo. Tive nojo dele, nojo de ter amado um
homem que sentia atração por mim, nada mais. Peguei na mala e parti para qualquer rua londrina,
não ia com ele a lado algum. Que sorte, a noiva morreu no mar antes de casar.
Não partiu… Escolheu ficar por pensar ser a coisa certa.
– Porque nunca foste ao Box?
– Eu sabia que estavas mal comigo, as coisas não estavam a ir bem. Amava-nos, mas ao mesmo
tempo, existia algo a separar-nos. Phill, quis perder a memória para não pensar em ti. De nada
serve esquecer um nome, é como se o tatuasses na mente. E repetes… Continuamente… Só
dormes de madrugada e sofres com os pecados no dia seguinte.
Maldição que durou pouco, Phill quis mesmo não se lembrar e não se lembrou, outras coisas
estavam à frente do amor mal resolvido.
– Sabes que Abie morreu. – quase murmura.
– Sei. E sei que sofres com isso. Também sofri quando vi o corpo dela na igreja. Só tu e Deus,
mais ninguém foi lá.
– As pessoas não enterram negros, preferem deitá-los ao rio. Era minha filha e devia-lhe isso.
Rachel viu o funeral de longe, o caixão caro, o vestido bordado e as rosas brancas que enfeitaram
a sepultura. Só Phill fez o luto, só ele é que foi atrás da charrete ilustre e chorou o caminho todo.

216
Sete Nomes

Ninguém o entendia, ninguém queria entender a devoção a uma empregada. Mas Rachel, como
foi amiga e esteve perto demais da jovem rapariga, entendia, também chorou sem dar as caras.
Nova demais para morrer sem ver algo que valha apena.
Fecha os olhos ao sentir as lágrimas a descer o rosto.
– Ela chamou por ti três dias antes, perguntou onde estavas. – Phill enche a vista com lágrimas –
Disse que estavas em casa, a viver o verdadeiro amor. Abie não acreditava nisso, insistia que ias
voltar porque me amavas. Lembraste o que fez para nós?
Assente, foi a última vez que a viu com vida, feliz por tentar unir duas pessoas que sentiam o
mesmo.
– Não voltaste. Ela morreu a pedir para ser feliz, para não desistir de nada que eu amasse
realmente. Rachel… Senti tanto a tua falta. Estou desemparado, não tenho dinheiro, não me
alimento bem, não treino, mal durmo. E tu, aqui tão perto, não ias dar-me apoio.
– Mandaste-me ir, pediste para não ficar. – chora.
– Ficavas.
– As coisas entre nós não estavam a ir bem. Somos completamente diferentes, com futuros
diferentes…
– Mas um amor comum. És teimosa quando queres, insistes no necessário. Não insististe em nós.
Foste sem olhar para trás. – limpa o rosto – O que fazes aqui? Porquê só agora? Remorso ou
humilhar-me ainda mais?
Demorou a dar as caras porque naquele curto espaço de tempo, reuniu o necessário para travar
os nomes que a assombravam.
– Preciso de ti.
Faz um som de não estar admirado, só quando precisava dele é que chamava.
– Não te quero ajudar.
– Ainda falta quatro nomes, só tu é que me podes ajudar.
– Rachel, eu estou destreinado. Olha para mim! – abre os braços – De noventa e três quilos, peso
quase setenta. Morrerei antes de tentar.
– Fizeste de Yves um pugilista, não quero ser um. Mas preciso que me treines, nem que seja só
para bater.
Nega, outra vez esse pedido louco que não tinha fundamento.
– Não…
– Não te estou a pedir porque acho divertido, engraçado, animador! – quase grita – Eu preciso, eu
necessito disso. Aguento bem os treinos, quer os pesados, quer os mais leves. Fiz tatuagens numa
zona dolorosa, aguentei os murros de Chester… Achas que não aguento os teus treinos?
Phill coloca as mãos nas ancas, anda em volta da banheira virada para a janela, pensa sobre o
assunto, respira fundo há procura de ideias para a travar. Vira o rosto ao passar perto do corpo
sedutor, a teimosia não tinha limites, é como se a cabeça dela fosse alimentada pelo carvão,
sempre a fervilhar de ideias loucas. Para na outra ponta da banheira.
– Tenho fome.
– Pão e presunto na cozinha. Vinho na pipa. Não sei cozinhar.
– Perfeito. Preciso de um banho e aparar esta barba.
Rachel até achava graça a enorme barbicha que enchia o queixo. Ficava mais homem do sul da
europa, os esnobes londrinos não gostavam de barba grande, só bigodes esquisitos.
– Está há vontade. Mais alguma coisa? Cama nova, roupa nova…
– Tens uma cama?
– Achas que durmo no chão?
Não, aquela dama não dormia sobre a madeira por limpar.
– É bom ter-te de volta. – comenta meio corado.

217
Sete Nomes

Rachel sorri, os olhos brilham à luz da janela. Safiras castanhas de Victoria, Phill nunca
encontrou olhar mais gracioso que o dela. Tão perto de si, separados por ruas sinuosas e
movimento tão típico dos londrinos.

O estômago esfomeado comeu o oferecido. Comeu tudo, o de hoje e o de ontem. Não havia nada
para o amanhã. Antes de esvaziar a cozinha, deu banho. Quando saiu, sentou na cadeira para
Rachel ajudar a aparar o queixo. Sentiu-se seduzido, os delicados dedos barbearam com
delicadeza a pele. Ainda de robe, deu por si a passar a mão pela perna, ouviu o suspiro ligeiro
dado. Tinha vontade de descer as mangas de seda pelo ombro abaixo e agarrar a cabeça dela para
arrancar um beijo de tirar o fôlego. E perder-se pela casa, à procura da cama para deitar o corpo
que beijaria sem pressa. Mas… A mesma mão que passou pela perna, recuou e o olhar focou a
parede atrás dela. Porquê? Também era um homem com os seus limites, nem sempre podia tocar
no cristal que se partia.
Quando a noite chegou, o pugilista sentou-se ao pé da do fogão esguio para aquecer os pés. Copo
de vinho na mão e olhar intimidador para o corpo mesmo a seu lado. Rachel anotou algo num
caderno, relia os apontamentos e decorava o que precisava. Pelo menos vestiu-se, já não andava
nua pela casa.
– Posso fazer-te uma pergunta?
O som sai, estava há vontade.
– O que viste nele?
O olhar levanta para o fogão, só a chama é que procurava na mente a caixa sobre o assunto. Fecha
o caderno pequeno e respira fundo, não precisava de caixas, apenas de uma boa resposta.
– Fiquei fascinada por um homem, deslumbrada com o seu corpo, forma de agir… Com dezoito
anos tudo fascina a mente.
– Ficaste desiludida quando… Te disse que ia casar com outra?
– Não. Naquela noite, a última vez juntos, Elvis disse que não ia ficar com uma mulher que ia
conhecer e casar na mesma semana. Preferia-me. Eu é que já não o queria mais.
Phill bebe um pouco de vinho, não a imaginava nos braços do outro pugilista, é como se uma
faca fosse espetada nas costas.
– Ficas fascinada muito facilmente por pugilistas.
Vira o rosto.
– Tu foste o segundo e… Como segundo, desilusão a dobrar. – levanta da cadeira.
– Desilusão? Eu dava-te tudo. Não querias o meu amor, não querias nada mais que abrigo.
– Phill…
– É verdade. Fiquei cheio de ciúmes, porquê ele? Será que tenho que ter mais músculo para ficar
com ela? Dei-te a escolher e não olhaste para trás. Depois ainda dizes que dormiste com ele! Eu
é que estou desiludido.
Rachel fecha a gaveta com força, coloca as mãos sobre a cómoda e suspira. Verdades, mentiras…
Isso não importava mais, o que focava naquele momento era a vingança, não o amor.
– Onde queres chegar, Phill? – vira-se.
– Quero entender… Se Elvis estivesse vivo, irias chamar-me ou chamavas a ele?
Que resposta difícil…
– Disse-te de manhã que sentia nojo dele, como o chamaria se se estivesse vivo, estava a morar
em Los Angeles? Não pensas nem um pouco?
– Algo está a intrigar-me! – levanta e bate o copo na mesa – Algo que não entendo.
– O quê?
218
Sete Nomes

– Ele é melhor que eu?!


Encara-o mais de perto, já sabia ao que se referia. Um homem com falta de confiança, um olhar
perdido à procura de uma simples resposta. Revira os olhos, tinham sempre que medir forças para
ficar com as fêmeas.
– Disse ao teu pai que um homem que beija mal, não presta no quarto. Um homem que beija bem,
também não vale nada. Elvis fascinou-me há uns anos atrás, fiquei… Repugnada no fim, é bruto,
não sabe tratar uma mulher com delicadeza, está habituado a prostitutas. – aproxima a cabeça à
dele – Digo o que sempre direi, tu atrais-me, o teu olhar cativa-me, a tua boca apaixona-me, o teu
corpo incendeia-me. Entre todos os homens com quem estive, tu superaste qualquer um.
Phill mostra um enorme sorriso, não esperava ouvir aquilo.
– Estás sempre à altura do desafio.
– Chama-se instinto de sobrevivência. – recua.
– Fizeram aquele truque?
– Não, Elvis foi até ao fim.
O pugilista faz uma expressão horrenda que a faz parar de andar.
– Não cuido dele.
– Não estou grávida. Dias vermelhos… Tive na semana passada.
– De certeza?
Respira fundo, não ia mentir sobre o assunto delicado. Mal conseguiu comer por causa das dores
de barriga, sujou os vestidos todos e até a cama. Às vezes o sangue vinha em demasiado, noutras
mal dava as caras.
– Não pretendo mentir-te. Vens?
– Para o teu quarto?
– Só pensas nisso?
Nega meio envergonhado, a sociedade proibia pensar sobre esse assunto. Um homem londrino
só pensava na mulher que ia esposar, os filhos que teriam e onde iriam morar.
– Onde vamos?
– Se seguires, vais saber.
Outro desafio. Pega no copo, acaba de beber o vinho e vai atrás dela. Rachel toma a candeia
pendurada na parede e ilumina a escuridão dos compartimentos da casa. Silenciosa, mesmo com
um teatro quase a virar de rua e um movimento infernal no outro lado do vidro, a casa estava
silenciosa. Sobe as escadas para o andar de cima, uma mão trava o avançar curioso que não dá
conta da armadilha.
Sem teto, a casa ao lado não tinha nada mais que vigas de madeira por debaixo de telhas. Phill
olha para baixo da porta aberta, ninguém vivia lá, melhor que isso, estava desavagado, serviria
para qualquer coisa.
– É uma grande queda, sabes?
– É ali que vamos treinar. Pendurei uns sacos cheios de areia para bater. Aqui eu treino o
equilíbrio, tudo é essencial.
Andar em vigas de madeira sem ter os braços abertos… Essencial e uma loucura também. Phill
abaixa-se e assente ao pensar no assunto.
– Não queres voltar para o Box Dead?
– Destruíste a arena.
– Estava revoltado com a vida. Desisti de ser um deus do boxe e decidi mergulhar na pobreza
londrina.
Rachel senta no chão e pousa a candeia ao lado.
– Tive um sonho na noite em que fiz amor com Elvis. Sonhei que voltava para Boston, com uma
grande barriga e um marido. Tornou-se em pesadelo quando revejo os meus pais à porta de casa,

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Sete Nomes

a gritar que não fiz nada por eles. O meu marido… Era Logan. Perdia muito sangue, estava a ter
um aborto. Estendia a mão a eles, pedia ajuda. Do nada, estou na floresta, vi-me em pequena, a
gritar nos braços de Chester enquanto Logan matava o meu pai outra vez. Ao lado do corpo morto
dele, estavas tu. Acordei em sobressalto e entendi o recado. Não há futuro, não há família, não há
nada se deixar a minha promessa a meio.
O pugilista senta na parede adjacente, que pesadelo confuso.
– Não podia ir, mesmo que quisesse.
– O trauma roubou-te a alma.
– Roubou o que precisava de roubar. Por vezes, os sonhos dizem-nos as coisas… Não serei feliz
enquanto não matar Logan.
– Ele já deve ter voltado.
Assente ao agarrar os joelhos.
– Estive com Selena. Não contei quem era, mas decidi conhecer aquela que se passa por filha do
meu pai. A coitada nem desconfia que o seu pai é um mentiroso compulsivo que tirou a vida a
uma família.
– Vais matá-la?
Nega, Selena não parecia querer problemas. Estava mais preocupada em preparar o casamento
que dedicar o seu tempo a uma morte fútil.
– O que vais fazer quando ele descobrir que estás viva?
– Só saberá quando for o último nome. Farei de tudo para não dar nas vistas.
Phill assente, não duvidava nem um pouco do seu determinismo. Agarra também os seus joelhos
e repousa a cabeça. Que tolos, ambos estavam no terceiro piso, à luz do pavio que consumia o
petróleo. Rachel descruza os braços, gatinha para o rosto dele e rouba-lhe um beijo.
– Pensei que não pensavas nisso. – reclama ao passar a ponta do nariz pelo pescoço de porcelana.
– Tudo muda quando se tem um homem debaixo do mesmo teto.
Os olhos fecham-se, a boca abre assim sem sente os lábios quentes a subir o rosto. A mãos do
pugilista desapertam os botões do vestido, desce pelos ombros o tecido que a privava. Rachel
agarra a cabeça dele, deixa-se cair para trás e encara a sombra do teto. E sorri, verdadeiros homens
roubam o fôlego.

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Sete Nomes

Capítulo 32
Estremece o corpo ao som forte que percorre a casa. Os pombos do telhado até levantam voo,
preferiam um telhado mais sossegado para passarem o dia. Os olhos abrem para a claridade que
entrava pelas telhas partidas. Levanta a cabeça, depois o tronco aconchegado com o vestido.
Rachel boceja e espreita pela beira da porta. Outro murro forte de arrepiar a alma, Phill já treinava
no saco de areia. Sorri, deita no chão outra vez e suspira ao lembrar do aconteceu. Passa a mão
pelo pescoço, aquele homem sabia bem como cortejar uma mulher. A mão desce, segue a linha
invisível por entre os seios e termina no umbigo. Queria mais, mal acordou e já queria voltar a ter
a mão sedutora a percorrer o corpo. Fecha os olhos, nem por nada trocava aquele gentleman por
um rude homem que pensava que as mulheres eram de ferro. Não, vidro e com carinho, elas
sobreviviam.
Volta a estremecer, a paz era roubada por completo. Revira os olhos, hora de acordar.
Devorou o que estava de reserva e não hesitou em enrolar ligaduras na mão para ir desafiar o
saco de areia pendurado. Viciante, Phill nunca se sentiu tão bem a dar murro naquilo. O corpo
pedia, a adrenalina fervilhava no sangue e a emoção subia à cabeça. Bate sem parar, usa o tronco,
fixa os pés no chão.
– Phill…
Vira o rosto para a porta.
– O que raio eu vou comer?
Passa a mão pelo nariz ao fazer uma careta.
– Desculpa. Tenho que voltar a ganhar peso se quero treinar.
– E eu perdê-lo, não? Veste uma túnica, vamos sair.
– Para onde?
– Acreditas nos duendes irlandeses? É que se acreditares, espera que a comida apareça na
dispensa. Caso contrário, vens carregar o que vou comprar, não vives de graça aqui.
– Mas tu viveste lá em casa. – reclama mais baixo.
– O quê?!
Levanta as mãos em forma de paz, rendia-se a quem mandava.
Sol, as nuvens ateimavam em pincelar o céu azul, mas o sol estava lá para clarear as ruas mais
sombrias. Quarta, havia rumores que naquela manhã a Câmara dos Comuns ia lutar pelos direitos
dos operários. Iam reunir o parlamento, chefes das grandes fábricas têxteis estariam lá para fazer
frente aos sindicatos. E quem trabalhava, estava na rua, em redor do palácio de Buckingham, na
esperança de algo ser feito por eles. Os burgueses grandes estavam no lado dos patrões, não havia
dinheiro para aumentar o salário, as matérias primas eram escassas e eles, os do slum, trabalhavam
pouco. Os burgueses pequenos estavam no lado dos pobres, dependiam dos grandes para
sobreviver. E os nobres? A Câmara dos Lordes já disse que só com uma grande maioria é que
aceitava ajudar. E maioria, é o que o povo nunca conseguia para ganhar.
A rainha deixou tudo nas mãos do ministro, não estava nem um pouco interessada com as queixas
dos operários. Tinham até sorte de viverem em casas sem renda ou terem uma moeda que seja
para comer. Não davam valor a isso, queriam sempre mais. Victoria decidiu sair. Para onde? Não
dava satisfações a empregados e hóspedes, só sabia a família e Deus.
Mal se andava nas ruas, a febre dos direitos afetava até os vagabundos que tinham esperança de
ascender. Algumas barracas estavam a vender, outras encerravam. E as lojas? Os empregados
saiam de avental, diziam aos patrões que iam ver se a sorte mudava.
Que euforia, Rachel nunca viu aquilo acontecer em Boston. Lá não, mas em Washington quem
trabalhava nas fábricas levava as caçadeiras e os pés de cabra na mão para falarem com os

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Sete Nomes

ministros do parlamento. Leis? Na América as armas é que faziam a lei. Também não ganhavam
nada, mas para um pequeno aumento salarial, nem que fosse um cêntimo, conseguiam.
Nem se desvia das pessoas que iam em sentido contrário, levava encontrões e também os dava.
Mesmo atrás, com a mão dada para não a perder, Phill tenta ver por cima do mar de gente a
pequena loja que vendia feijão.
Até ia falar-lhe algo, mas os gritos de ordem consumiam qualquer ruído exterior. Farto daquilo,
Phill começa a mudar a maré, puxa a mão dela, faz o corpo mudar de direção. Rachel é forçada a
ir, as alternativas estavam escassas.
Encostam-se à parede e avaliam a situação. Parece que o Reino Unido inteiro saiu à rua. Talvez
a Escócia andasse também lá no meio.
– E agora? – fala ao ouvido.
– Estou a morrer de fome. – Rachel reclama.
– Vamos a uma pastelaria. Tomas lá o breakfast.
Assente, deviam de aproveitar enquanto os guardas não invadiam as ruas e disparavam sobre a
multidão.
Sete pences por um pão e um copo de leite. Uma libra daria para mais, talvez uma vasilha de leite
e um saco de farinha. Rachel nem reclamava, estava tão esfomeada que devorava a refeição sem
insultar a empregada de balcão. Phill não pediu nada, lia o jornal de há dois dias. Novidades?
Poucas. Pelo menos o artigo sobre borboletas monarca parecia ser mais interessante que ler os
novos impostos para as fábricas e as pequenas lojas sem lucro. Ri e Rachel levanta o olhar. Que
piada, nem a apanhou ainda.
– O que foi?
– Sabias que elas são como tu.
– O quê? – limpa a boca ao pano.
– As borboletas monarca. Elas viajam para longe para acasalarem e depois voltam para casa para
morrer. Vivem sete dias e percorrem mais de duas mil milhas. Fenomenal.
O rosto vidrado procurava a comparação estranha. Não viajou para Londres à procura de fazer
amor com um homem e voltar para casa com uma grande barriga. Estava ali para se vingar de
alguém, não aproveitar o que é comum.
– Sabes, nem vale apena tentar.
– É verdade. Tudo é efémero. – dobra o jornal.
Assente ao beber o copo de leite de uma só vez.
– Phill.
O pugilista olha pelo ombro e repara no amigo.
– Elays. – levanta e estende a mão.
– Estás vivo. – aperta – Todos pensam que já morreste.
– Nem tanto.
– É verdade, desde de quando vais na fila dos Fundos?
Fila dos Fundos? Coça a cabeça, então era esse o nome que se dava àqueles que iam aos fundos
da porta da igreja. Sorri, a vida não estava nada fácil.
– Dias maus? – pergunta meio encurralado.
– MiLady… – Elays vai à mesa e pede a mão para beijar – A sua coragem ainda está guardada na
minha mente.
– Seria pior a vergonha.
– Sempre bela.
– A beleza é algo constante no nosso ser. – repousa a mão na mesa.

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Sete Nomes

Rachel admira o rosto que começa a entristecer. O filho foi preso, levado para longe e não havia
forma de o ajudar. Foi apanhado no momento mais complicado. Homossexualidade não era bem
vista ali ou em lado algum, a sociedade fechava as portas a tudo que era uma anomalia contagiosa.
– Lamento.
– O quê? – Elays senta na cadeira.
– O seu filho. Isso afeta-o.
– Aconteceu algo a ele? – Phill senta ao lado.
O homem suspira ao retirar da cabeça a cartola.
– Phabio foi apanhado a cortejar um homem. Nem sei se é assim que se chama a dois homens
que… Recebi a notícia semana passada. – os olhos enchem-se de lágrimas – Não sei dele, a rainha
não me quer receber e estou desesperado.
O pugilista coloca a mão no ombro do amigo, essas coisas eram de partir o coração por completo.
– Temo perder o meu único filho. Eu aceitei, porque os outros não aceitam? – olha para Phill.
– Porque os outros pensam que estão certos em tudo. Vou-te ajudar.
– Como? Nem eu, que sou pai, sei dele. – as lágrimas descem o rosto.
– Mas essa é a diferença. Da mesma maneira que o coloquei em Oxford, falo com quem sabe tudo
e chego ao teu filho.
A esperança invade o olhar dele, é como se o dia tivesse valido apena.
– Farias isso por mim?
– Claro Elays, fizeste o mesmo por Yves. Os amigos são para isso, não servem apenas para virar
copos de cerveja, liquidar dívidas e ir às slut.
Abraça-o, ter o apoio de alguém era sempre ter um caminho iluminado. Phill repara no olhar de
Rachel. Really? Do you will do that? Assente, faria qualquer coisa para ajudar. Suspira com
violência, ainda era contra a caridade alheia.
– Que Deus o abençoe. – sai dos braços dele e limpa o rosto.
– Hora essa Elays, só faço o que é certo.
– Homem de honra. – sorri e vira o rosto para a mulher – Não se importa, pois não, MiLady?
– Nem um pouco. – cruza os braços.
Pelo contrário, não queria saber se a casa dele estava a ruir, os seus problemas já chegavam para
preencher os dias.
– As ruas estão um caos, todos querem direitos.
– Enquanto uma mulher governar, não vai haver direitos. – Rachel reclama.
– Pensei que defendia o feminismo.
– Eu? Defendo a independência feminina, não a supremacia por nossa parte. Precisamos de
homens para governar com cabeça, mesmo que não saibam apertar os botões das calças de vez
em quando.
Elays coloca a mão no braço do amigo.
– Acho que a tua gestora acabou de perder a cabeça. – sussurra para o lado.
O pugilista conhecia bem a mente independente dela e não estranhava tal opinião. Quando
ouvisse o contrário, isso sim, estaria perto da morte.
– Boston… Menos.
– É verdade. Boston tem na rua mulheres que pedem dinheiro enquanto falam os nossos direitos.
We need to have the same rights that´s man. Do you think we have conditions to have a baby?
Depois de ganhar o dia, vão para casa mudas. Podemos ter mais inteligência e astúcia, mas
enquanto formos analfabetas, burras, dependentes de homens e procriar como se não houvesse
amanhã… Nunca conseguiremos a coroa ou sequer estatuto. Por isso, é melhor ter um homem a
governar para insultar que uma mulher que, é vergonhoso esperar-se algo digno da sua natureza.

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Sete Nomes

Sem palavras, estavam ambos vidrados a olhar para a mulher revolucionária que rejeitava o
feminismo. Aquela de certeza que não lutaria pelo direito de as mulheres votarem para o
parlamento.
– Vai chover esta semana? – Phill muda de assunto.
– Deus queira que não, vou comprar um garanhão novo que vai puxar aquela charrete francesa
mais rápido que aquele cavalo velho que mal anda.
– Será que raça?
– Lusitano. Sir William garantiu que era de qualidade. Aquele homem… Fluente a falar e a
convencer. Conhece bem as raças que vende.
– O William Wallace?
– Não, é um tal… – Elays pensa um pouco – William Lanche.
O pugilista dá de ombros, não conhecia.
– Ele é novo na cavalariça de Ascot. Este ano as corridas prometem. Aliás, ele vai participar por
conta própria, diz até que tem um cavalo prontinho.
– E corre bem?
– Não sei, mas mostrou as medalhas que ganhou aos dezassete anos. Depois parece que casou e
deixou de ganhar.
O olhar dele fica meio embaraçado, Lanche ou Orange? Só um homem é que cavalgava
perfeitamente bem e dava prestígio à casa Stathouder.
– Por acaso ele é… – tose ao brincar com o copo vazio – Alto e com olhos azuis? Assim… Magro,
fala muito nobre, delicadeza, irritante… Cabelo para trás… Muito atirados às mulheres elegantes
e… Um terrível homem do campo que não pode ver bosta?
– Olha, melhor não poderia descrever. Conhece-o?
– Conhece, é o seu pai. – Rachel enuncia.
Elays fica com os olhos arregalados.
– Parabéns, não sabia que o tinha reencontrado. Pensei que sua mãe tinha engravidado de um
qualquer.
– Acredite que ele não é nada de especial. Apareceu porque não quer morrer sozinho.
– Deve estar feliz.
Feliz? Estaria se soubesse que o pai estava em Viena, a viver no enorme palácio. Lá se ia a ideia
de pedir um cargo de príncipe.
– Ascot?
– Sim.
Um dia, talvez fosse atrás do paizinho desaparecido. Cavalos? Não podia ter escolhido outra
coisa? Nada contra, cada um com as suas escolhas.
– Vou indo… – Elays levanta – Alguma novidade, por favor comunique-me.
– Não se preocupe.
– MiLady. – faz um gesto com a cabeça.
Rachel acena com a mão. Lá vai o homem para a rua agitada, tal como a sua vida estava. Puxa o
tronco quase sobre a mesa e encara Phill.
– De príncipe a limpa estábulos… O teu pai é um espetáculo.
O pugilista aproxima também o tronco.
– Nem me fales, perdi o orgulho de ser Orange.
– Ainda vais a tempo de ser o futuro da Holanda.
Rei dos Países Baixos, soberano de tudo e todos, dar leis, ordens e ver o povo a seus pés…
Encosta-se às costas da cadeira e sorri com essa visão magnifica. Phillipe Stathouder, o salvador
da pátria perdida. Já ouvia as aclamações dignas de um rei. Mas a visão desvanece ao se lembrar
que precisava de casar com uma prima para chegar lá. Nega, nem rei lá ou lado algum.

224
Sete Nomes

– Sabias que os reis casam com os primos? Deve ser estranho.


– Li em algum lado que os faraós no Egito casavam com as irmãs.
– Ainda pior. Casavas com um primo?
– Se fosse um homem de me tirar o fôlego, sim.
Faz uma cara de repulsa, não a reconhecia.
– Phill, nós somos primos muito afastados. Logo, não aches estranho.
– Não, minha mãe era italiana e o meu pai, ao que parece, é filho semi bastardo da princesa
holandesa, o quarto à linha de sucessão. Então, não somos.
– Tu descendes de William de Orange, aquele que ficou com Londres após a queda do
absolutismo. Eu sou descendente do rei George IV, filho de alguma mulher que tenha estado com
ele. George descendia de William, que é teu passado. Logo, somos primos muitíssimo afastados.
– Não! – insiste – A tua mãe era do campo e o teu pai segundo filho dos duques…
– Que descendem de George IV.
– Não tens a certeza disso.
– O rei era mulherengo, teve filhos bastardos não?
– Então como são duques?
– Eu é que sei!
– Continuo…
A empregada no balcão até parava de lavar os copos com cospe e pano. Estavam a falar sobre a
árvore genológica, estranho para ela porque nem conheceu a mãe. E não paravam, um ateimava
que não eram primos, ela insistia que eram. O pior, metiam o nome da rainha lá no meio. Pousa
o copo e sai com pressa para a cozinha, a pastelaria estava pela conta deles.

Comeu um prato cheio de batatas, três pães com chouriço e quase vomitou a alheira grilhada no
fogão. Bebeu vinho e água. Arrebentou, mas Phill insistiu que para treinar era preciso comer
muito. Comer sem ter fome, que desperdício.
Vestiu calças e botas, correu pelas ruas que o pugilista quis, sempre a acompanhar o acelerado.
Depois, flexões, puxou pelo corpo na barra de ferro e ainda lutou contra os sacos de areia.
Primeiros murros… Phill sentiu-se orgulhoso de ver como ela aprendeu depressa.
Quando deram conta das horas, repararam que era noite. As ruas esvaziaram assim que o ministro
veio às portas do palácio gritar que nada foi negociado. O povo vaiou, quis invadir o parlamento.
A guarda real interveio de imediato, muitos presos, muitos mortos. Só com os desastres é que se
acaba os maiores motins.
A banheira era pequena demais para dois corpos mergulhados na água. Sabão e vapor, Rachel
não sentia as primeiras dores, mas Phill ateimou que iam aparecer no dia seguinte. E a discussão?
Suspensa por enquanto, não existia provas.
– Quando vais ver o teu pai?
– Um dia. – relaxa – Quando vais caçar Merle?
– Um dia.
Brevemente, porque por agora a sua atenção focava os treinos.
– Adoro dar banho.
– Os homens não gostam de limpezas.
– Mentira Rachel, eu adoro entrar na banheira. Com uma mulher ainda melhor.
– Adoras é outras coisas.
Sorri com malícia, quem não apreciava um bom corpo sedutor? Só quem era cego.
– E o jantar?
225
Sete Nomes

– Não sei cozinhar.


– Precisamos de uma empregada.
– Não vou contratar uma mulher porque ela irá roubar ou espionar.
– Então aprende a cozinhar.
– Não sou mulher a dias para isso.
– Independência menina Rachel, começa na cozinha.
Chapinha a água contra ele.
– Aprendo depois de matar.
– Está muita coisa para depois.
– Tenho todo o tempo do mundo.
– E se morreres amanhã, continuas a ter?
Estica a mão até ao chão, pega na toalha e atira-a com força contra ele, Phill estava a ser chato.
O riso ecoa. Algo colide com violência no chão e as cabeças viram-se para a porta. Vento? Não,
o céu limpou quando a noite chegou. Gatos? Rachel nunca viu um por aqueles lados. Saem da
banheira ao mesmo tempo, nem pegam nas toalhas para cobrir os corpos. Passos lentos, pensados
para o soalho não ranger. Pé ante pé, em direção à escuridão do corredor. Não tinham armas, Phill
usaria a força e Rachel… Nem sabia o que faria. Diminuem a respiração, iam em direção às
escadas diretas à saída.
Voltam a ouvir algo a colidir, estranho demais para duas pessoas naquele pequeno apartamento.
O pugilista vira-se e por instinto, faz a silhueta negra ir contra a parede. Depois aperta o rosto
dele. Rachel revela a identidade com a candeia. Não conhecia, nunca o viu por ali nem sabia por
onde tinha entrado. Phill vê o rosto e olha para ela na esperança de conhecer.
– Quem és tu?
– Times.
– Isso é nome falso. É bom que dês o verdadeiro antes que te arrebente todo! – Phill ameaça.
– Rayno. – fala com receio.
– O queres daqui?
– Comida. Tenho fome.
– Por onde entraste? – Rachel pergunta.
– Telhado.
Aproxima a candeia e tenta adivinhar onde vinha. Quinze anos, cabelo louro manchado de negro
por causa da ausência de banhos. Magro, comia o que encontrava nos becos ou roubava das
bancas. Um olho meio cego, não tinha perceção da profundidade. Medo, a mãe o abandonou na
rua por ser mais um filho indesejado. Uma mulher o alimentou até aos nove, depois morreu no
inverno.
Faz sinal para Phill o deixar.
– Vai.
– Não me vão matar?
– Tens uma cor muito pálida, sofres de alguma coisa. Aproveita a vida antes de morreres.
O rapaz passa a mão pelo rosto, sentia dores na bochecha por causa da parede. Depois, olha para
ambos, nus.
– Vai. – Phill pede.
– Interrompi algo?
– Se não fores, interrompes o jantar. – começa a estalar os dedos da mão.
Rayno engole com dificuldades, aqueles homens tinham a mão muito pesada. Quando o pugilista
se move, corre escada abaixo, tropeça ainda e bate com o corpo na porta que é aberta à pressa.
Um ladrão àquela hora da noite, ambos nem sabiam o que entender. A miséria londrina não tinha
mesmo limites.

226
Sete Nomes

– Piedade… Raro em ti. – Phill caminha para a banheira.


– Ele vai morrer ainda esta semana. – pousa a candeia em cima da mesa – Seria injusto tirar-lhe
agora a vida.
– Acabavas com o seu sofrimento.
Entra na água e agarra os joelhos. Não sabia se era justo tirar uma vida limitada por uma doença.
Matar alguém com muita saúde é diferente de matar alguém condenado. Rachel queria que os
poucos dias de vida dessa pessoa fossem marcantes, porque fechar os olhos para o céu azul doía
sempre.
– Conta. – Phill pede.
– Ias matá-lo?
O pugilista aproxima o tronco ao corpo dela, coloca o braço esquerdo na borda da banheira e
empara a cabeça.
– Sabes bem que tenho um coração de manteiga. Algo mais te tira o sossego.
– Jason está doente. Pedi para usar o meu dinheiro se fosse preciso. Acho que não se cura.
– É grave?
– Pneumonia. Espero não o perder também. Devo-lhe muito tudo o que fez. Teve coragem de ir
ao tribunal de Boston e colocar sobre a mesa as provas de que era a única e verdadeira filha de
Cristian. Os juízes nem conseguiram desconversar.
Um segundo pai, Phill sentia isso no olhar dela. A mão direita mima o braço com carinho.
– Ele é forte.
– Nem o conheces.
– Mas sei que é. Tu és uma mulher muito impulsiva, se ele nunca perdeu a paciência ou te
abandonou, é porque é forte o suficiente para enfrentar qualquer coisa. Tem fé.
Pousa a testa no ombro dele, a lágrima que escorre para a água ecoa ao cair. Whispered. Queria
chorar, o peito segurava os soluços que surgiam. Chorar, porque não se imaginava sozinha
naquele enorme mundo. Jason podia já nem fazer falta, mas precisava dos seus conselhos, aquela
voz da razão que apelava por uma vida melhor. De vez em quando, Jason dava-se ao trabalho de
ir ao quarto da rebelde rapariga, sentava sobre a cama e colocava a mão sobre o braço dela. Don´t
go so fast. Keep calm girl, you are so young for this pain. Dor que não desaparecia, aumentava a
cada dia com o passar do tempo e nada ser feito. Fecha os olhos e agarra o tronco de Phill. Por
vezes, no meio do desespero, pensava no pugilista como sua tábua de salvação. Só Deus sabia o
seu sofrimento, só ele entendia aquele carinho que sentia por ele. Podia não ter nada, mas tinha-
o.
– Se morrer, enterras-me?
– Cá ou em Boston?
– Boston.
Phill levanta o queixo dela, limpa as lágrimas de cristal com o dedo e sorri para a tempestade se
afastar.
– Bicho ruim não morre. Não tenho dinheiro para te enterrar em Boston.
– Enterraste Abie como se fosse uma princesa.
– Porque vendi tudo o que tinha de valor. Para te fazer um funeral digno, teria que… Assaltar um
banco.
– E não assaltavas pela minha alma?
Pensa sobre o assunto ao afastar as madeixas de cabelo para trás da orelha.
– Depois pedes que compre o céu? Não sei se Deus te deixa ir para lá, és muito mazinha, anti
caridade, antifeminismo, anti amor…
Um enorme sorriso aparece no rosto e Phill fecha os olhos, aproximando a boca à dela e puxando
com meiguice os lábios.

227
Sete Nomes

– Não estás sozinha nesta luta. Se for para morrer, morremos juntos. – encosta a testa.
– É a minha vingança, não a tua.
– Só te tenho a ti, Rachel. Nada mais me irá prender aqui ou em outro lugar. Já enfrentei muitos
combates planeados, tentei proteger quem amava e acabei por perder de ambas as maneiras. Antes
de pensares morrer sozinha, pensa que tens alguém disposto a ir contigo.
Rachel dá-lhe um beijo demorado, havia coisas que não se pediam. Mas ele, queria ir junto para
a cova, porque a amava de verdade.
– Céu ou inferno?
– Que diferença terá se estivermos juntos? – Phill sorri.
– É… Que diferença terá. – abraça-o – Never Forget, first love, second take care and last one,
building a house here you will live. And dead when sunset will be the last for you.
Último por do sol, ainda faltava muitos para saber qual seria o seu fim. Abraçam-se com força,
dentro da água quente, à luz da candeia que queimava petróleo e fazia um ensurdecedor som
inaudível. No lado de fora da janela, o caos, ali dentro, um desejo simples para as estrelas ouvirem
e realizarem. Pediam ambos, desesperadamente, que no último suspiro de vida, estivessem juntos.
Sozinhos, sem nada a prendê-los, sem família a qual procurar, sem filhos a qual cuidar. Duas
almas perdidas que se encontraram quase ao acaso e só queriam desvendar os seus segredos, quer
fossem bons ou maus.
Enquanto o relógio continuar parado, o tempo não passa…

228
Sete Nomes

Capítulo 33
Um estrondo percorre o apartamento, parecia que alguém estava a bater nos sacos de areia logo
pela manhã. A cabeça levanta assim que volta a ouvir o som de arrepiar a alma. Enxergando bem
o quarto, repara que Phill ainda estava deitado a seu lado, agarrado à almofada a dormir a
madrugada.
Se não era ele, quem seria? Olha para o relógio. Oito. Não vale apena acreditar naquilo. Afasta
os cobertores e levanta do chão. O colchão estava sobre a madeira, infelizmente ninguém quis ir
ali levar uma cama de verdade e Rachel não insistiu. Aperta um pouco o vestido de dormir e
espreita pela porta a claridade do dia. Manhã. Dá leves passos para ouvir bem o som, de onde
vinha… Fecha os olhos… Coloca a mão na parede… Sente a vibração.
Quatro homens na entrada da porta, tentavam entrar à força para prender aqueles proprietários.
Armados, não estavam dispostos a ouvir histórias de ontem ou ver registos de compra e venda.
Abre os olhos e recua a mão.
– Phill, acorda. – pede ao bater o pé no colchão.
O pugilista faz um som de nem se querer mover.
– Phillipe! – Rachel quase grita.
– A casa está a arder? – fala sonolento.
Arderia caso não saísse dali enquanto havia tempo. Pega na mala, atira lá para dentro os papeis
escritos, calça as botas e corre para o relógio ao lado do colchão.
– Acorda! Estão a forçar a entrada!
O pugilista boceja, estica os braços ao rodar o corpo para o lado e abre os olhos. Forçar a
entrada… Seria um código?
– Bom dia. – sorri.
– Mau dia. Levanta que estão guardas na porta! – corre para a cozinha.
O tronco levanta ao ouvir o som que percorre a casa e estremecer as paredes.
– Merda! – levanta da cama.
No estrondo maior, olha para as escadas, começavam a invadidir. Só tem tempo de meter as botas
nos pés, pegar na mala e ir à cozinha. Agarra na mão de Rachel, obriga-a a deixar de queimar o
quer que fosse.
– As cartas!
– Não temos tempo. – fala ao correr escada acima.
Porta para o abismo. Phill trava o balanço dela. Trinta metros, dava para partir uma perna ou um
pé. Não existia janelas ou formas de ir ao telhado, as alternativas eram escassas. Olha para a viga
de madeira, nunca pensou amar tanto uma simples viga.
– Equilíbrio? Vamos testar.
– Com a mala? Estás louco.
O pugilista alinha os pés, abre os braços e tenta equilibrar o corpo. Péssima ideia, a mala inclinava
para a direita, Phill sentia vertigens súbitas só de olhar para baixo. Rachel olha para trás, os
guardas remexiam em tudo, procuravam nome, documentos, manuscritos… Qualquer coisa que
os incriminasse. É então que se lembra de algo que esqueceu.
– O passaporte. – murmura.
Não podia ir embora sem ele, era a única prova que tinha sobre quem era, onde nasceu e quem
eram os pais. Dá um passo para trás… Não ia lugar algum.
Afinal ser igual aos gatos não era difícil, bastava não olhar para baixo e respirar fundo. Chegando
ao outro lado da viga, Phill pousa a mala no terraço do telhado e olha para trás.
– Rachel?

229
Sete Nomes

Ela não estava na porta, nem estava a atravessar a vertiginosa altura. Será que os guardas a
levaram? Morde o dedo, ia voltar.
– Malditas casas! – abre os braços.
Nunca pensou odiar tanto uma casa vazia.
Espreita pela parede, segue com o olhar o movimento atarefado que procurava encontrar algo
que os identificasse. Remexiam a cozinha, o quarto, a casa de banho… Até levantavam o soalho.
Agarra a saia do vestido e reduz a respiração. Quatro, apenas quatro homens por enquanto.
Corre… Como se um sopro de vento tivesse passado pela cozinha. Esconde-se trás do aro da porta
e espreita para o corredor.
– Nada aqui! – o homem grita ao abrir o fogão.
– Nada cá! – outro grita na casa de banho.
E o quarto? Não seria tola o suficiente para esconder no lugar mais óbvio. O sopro passa pelo
corredor, desce o degrau até ao quinto a contar com o inicio e abaixa-se para levantar a tábua
pregada. O passaporte jamais estaria nos lugares onde iam procurar, até uma criança de rua saberia
onde encontrar isso.
– Está aqui!
Rachel levanta o rosto para o homem que aponta a arma. Trinca os documentos, sair ia ser um
grande problema. Quando comprou a casa, não pensou nas rotas de fuga. Nunca pensou aliás,
estava habituada a fugir pelas janelas ou portas dos fundos. Estando no segundo andar, as janelas
estavam trancadas e portas de fundo só desenhando na parede.
– Pousa aí isso e levanta as mãos no ar.
Ordens, nem sempre as soube acartar. Parecia simples, mas a mente rebelde odiava saber que
alguém tinha supremacia superior à sua. Nega, nem levanta as mãos.
Um segundo… A audição capta o som do dedo apertar o gatinho. O corpo roda para o lado, a
bala perfura a madeira e perdesse. É nesse momento em que Rachel levanta e corre escada acima.
Contorna o homem que recarrega… O corpo desequilibra ao travar violentamente o andar.
Trabalho de equipa, encurralar Napoleão no campo de batalha ao cercá-lo com o exército de
Wellington. Grande estratégia, foi assim que Inglaterra ganhou. Mas ali… Que falta de educação,
quatro contra uma simples mulher em desvantagem. Pega no passaporte que mordia, fica atenta
ao de trás e dos lados.
Aconteceu a mesma coisa no hotel que foi abaixo com a liberdade. Ali, não teria alguém que a
livrasse do quer que possa existir. E se fosse esperto, Phill fugiria com a mala para sobreviver.
Pontos fracos… No momento de pânico, ler alguém se tornava difícil.
– Facilita esta busca. Entrega-te e sobrevives.
A arma é apontada às costas. Sem ideias, fim da linha. Agora testaria o que Phill pediu na noite
anterior. Será que morreria ali, naquele corredor? Nem era pôr do sol.
Começa a cantar… Invés de rezar e apelar a Deus a sua existência, canta. Os guardas entre olham-
se, o que raio ela estava a fazer? Maioria dos prisioneiros imploram pela liberdade, ou gritam que
são inocentes. Aquela, canta.
– Cala-te. – o que aponta a espingarda pede.
Não cessava a voz, mesmo que não entoasse as palavras. Olha de esguelha e ao elevar a voz, roda
o tronco para a direita, agarra no cano da espingarda que o guarda dispara por acidente contra o
colega. Dá-lhe um pontapé para ir escada abaixo, baixa-se para escapar do murro, esgueira-se das
mãos que tentam agarrar. Bate com a espingarda nas costas de um, crava a faca na ponta na barriga
de um.
Uma mão tapa a boca e a outra, aperta o pescoço. Do nada, é atirada contra a parede e cai zonza
no chão. Rachel levanta o rosto para o último guarda que usa o apito para chamar mais.

230
Sete Nomes

Tac… O som ecoa pelo apartamento quando a cabeça é rodada até partir o osso cervical. Morto,
cai no chão. O outro que se apoiava na parede, levanta as mãos em forma de que não ia atacar.
– Vamos. – Phill pede ao ajudar Rachel a levantar.
– Devias ter ido.
– Devia, mas tu nunca vais atrás de mim.
Tropeça nas escadas e o pugilista pega-a ao colo.
Na rua, o apito da guarda real abre alas. A população parava para ver o que estava a acontecer,
quem ia ser preso pela rainha? Murmuravam o que não sabiam, espalhavam de boca em boca que
existia um espião ali. Espião? O rei da Rússia estava mortinho para invadir aquele império. Se
não era ele, só se fosse o rei da Irlanda que estava farto da guerra com a velha monarca. O inspetor
real desce do cavalo, olha para a rua cheia de testemunhas. Passa a mão pelo bigode e repara no
homem que fumava escondido debaixo de um alpendre.
– Lorde Clarel, temos feridos no segundo andar.
– E os terroristas?
– A mulher fugiu com um homem. Vamos atrás deles?
Walter vira o rosto para o soldado. Nega, se fugiu, não valia apena ir atrás. Faz sinal para ir tratar
dos feridos. Então, o olhar volta a cruzar a rua, focando o estranho. Merle Thomas, um dos
assassinos do falecido primo. Foi ele, chegou ao palácio real com uma denuncia na boca. Naquele
pequeno apartamento viviam dois conspiradores contra a rainha. Victoria estava farta deles, de
pessoas mesquinhas que faziam de tudo para a matar. Ordenou que uma escolta militar fosse atrás
dos desertores, que os prendesse e matasse em frente à população.
Passa os dedos pelo bigode, Logan estaria por detrás daquilo, mal colocou os pés em Londres e
já influenciava a cabeça da monarca.
– Uma mulher? – murmura.
Coloca a mão sobre a bengala e pensa nas mulheres que irritaram Logan. Então surge algo à
cabeça. Rachel. Será? Não, ela vivia no Box Dead, jamais se mudaria para aquele apartamento
em péssimas condições.
– Lorde.
Vira-se para o soldado que baixa a cabeça.
– Que mulher é essa?
– Cabelos longos, passaporte na mão e um vestido de dormir. Consegui ver algumas tatuagens,
mas não consegui ler os nomes.
– Tatuagem?
– Nas costas… O tecido era fino o suficiente para se reparar nisso. E o homem com ela… – faz
uma pausa – Partiu o pescoço de Vays só com as duas mãos. É muito forte.
Afasta o soldado ao caminhar para a rua onde a porta do apartamento estava. Rachel e Phill, o
pugilista mal-educado que não gostava nada de visitas. Só podia ser ela, só podia ser a sua prima
que ali se refugiou. Logan sabia dela, ia matá-la a todo o custo. Desespera, coloca a mão sobre o
peito e olha para o final da rua.
– Deus, proteja a minha amada Achel. – murmura.
Não conseguiria sobreviver com esse peso na consciência, perdeu a prima antes sequer de a
ajudar. A cabeça volta para a rua contrária ao ouvir um estrondo de fazer Londres tremer. Uma
nuvem de fumo invade o céu e os olhares curiosos tentavam procurar o local onde algo explodiu.
– Lorde! – alguém grita.
Walter aproxima-se do cavalo que estava agitado. Coloca a mão sobre o jovem soldado que
estava vermelho de tanto correr.
– O que aconteceu?
– Explodiram… Arrebentaram… – fala sem fôlego.

231
Sete Nomes

– O quê?
– Box… B… – tose com violência.
– Box Dead?
Assente ao limpar o sangue que chega à boca. Alguém segura o inspetor que caía para trás, os
soldados gritavam por água. A bengala colide no chão e Walter sente lágrimas nos olhos. Rachel.
Apostava que fugiu para lá quando invadiram aquele apartamento, estavam apenas a cinco
minutos de distância. Morta? Abanam os chapéus contra o rosto dele, tentam fazer o inspetor
beber água para a palidez passar.
– Está bem? – alguém pergunta.
Como poderia estar? Acabou de perder a prima que amava.
– Quem explodiu? – pergunta quase sem voz.
– Não sei. O pugilista deve ter morrido. Coitado, era mesmo bom a lutar.
Esse era o menos, mas perder a prima… Levanta-se com ajuda e olha para o outro lado da rua,
Merle já lá não estava. Caminha, ia atrás daquele culpado, matá-lo-ia da mesma maneira que
matou Rachel. Uma diligência Para mesmo à sua frente, pela pressa, era capaz de adivinhar quem
era o dono. Retira a cartola da cabeça e coloca-a sobre o peito. A porta abre e revela a pessoa que
andava pelas redondezas e ouviu o enorme estrondo.
– Sir Walter, o que acontece por cá? – abre o leque.
– Majestade, os seus importunos fugiram. – nem levanta a cabeça – Hoje é de lamentar uma morte.
– Quem morreu?
– Phill Smith. Pugilista do Box Dead. Acabou de explodir.
Victoria faz um som de estar chocada, o filho bastardo de William morreu precisamente no pior
momento.
– Tendes a certeza?
– Nunca vos mentiria.
– Encontra o culpado dessa morte e decapita-o bem longe dos meus portões. Phillipe de Orange
era meu amigo e amigos da minha coroa, devem ser vingados. Não quero que William apareça
no meu castelo com acusações conspiradoras. Percebeu?
De Orange? Afinal o pugilista não era um qualquer. E Rachel não amava um simples homem que
lutava boxe.
– Com certeza, Majestade.
Victoria fecha o leque e faz sinal para fecharem a porta. Discretamente, os cavalos começam a
trotar lentamente, só para não denunciarem a Majestade. Walter coloca a cartola e limpa os olhos
que revelavam as lágrimas. Olha para o céu, coloca a mão sobre a boca e respira fundo.
– Descansa em paz, Rachel. – murmura.
Só depois de morta é que ela encontrou a paz. Doce menina que sobreviveria na mente dele,
quando Stayci soubesse do que aconteceu, choraria durante dias e dias. Faria luto, enterraria a
memória sobre ela e rezaria pela sua alma. Dia triste, o céu devia-se abrir para deixar a chuva
castigar os londrinos. Walter vingá-la-ia, se Logan queria guerra, então tê-la-ia. Pega na bengala
e faz sinal para a escolta o seguir, aquela busca estava longe de acabar por ali.

Vergonhoso, andar pelas ruas de Londres com a roupa de dormir era no mínimo ofensivo. Esse
nem era o grande mal, a dama estava tapada. Mas um homem com o tronco nu… Algum estendal
ficou sem um casaco, infelizmente, Phill recusava-se andar assim. Rachel roubou um xaile, só
para ver se os comentários madrastos cessavam.

232
Sete Nomes

Box Dead mandado abaixo, o pugilista fez o seu luto ao pé do túmulo de Abie, contando o que a
miserável vida lhe reservou. Pouco tempo, ambos tiveram que voltar a fugir assim que uns homens
deram sinais de estarem a perseguir. Quem seriam eles? Rachel tinha uma pequena suspeita,
mínima. Mas não contava a Phill por enquanto. Como se não bastasse, estava cheia de dores, tal
como tinha sido avisada que teria.
Hotéis ou estalagens? Não, daquela vez ela ia para um porto seguro a qual os inimigos não
suspeitariam. Mansão Clarel, ainda com o brasão de George III pendurado nos portões, a arredores
de Windsor. Lá, vivia o inspetor a qual a rainha nomeou por confiar plenamente. Rachel não
pisava aqueles jardins desde que partiu de férias para Boston, há treze anos atrás.
Noite, mal viam o caminho e não tinham dinheiro para pagar uma diligência. Saltam o muro da
parte de trás da mansão, sacodem a lama ainda húmida da chovada que caiu ao final da tarde e
tentam sobreviver à erva que os tentava engolir.
Por fim, sem bater à porta, Rachel entra na cozinha e espanta os empregados que estavam a tratar
do jantar. Pratos colidem no chão, o cozinheiro até se queima ao ver a mulher quase negra ao pé
da porta. E o homem com lama no rosto?
– Como é bom voltar a casa. – Rachel comenta ao pousar na mesa a mala.
– Mama mia! – o cozinheiro comenta.
– Ele é italiano? – Phill pergunta ao apontar o dedo.
Dá de ombros, o último cozinheiro nem inglês falava.
– Onde pensam que vão? – a governanta aparece na porta.
Rachel vira-se. Outra mulher, o que aconteceu à Pauline que governava bem a mansão? Deve ter
morrido de idade, já era velha quando a conheceu. Encara a mulher vestida de negro, com uma
gola bem justa ao pescoço. Cabelo apanhado na nuca, uma verruga ao pé do lábio no lado
esquerdo. Olhos verdes, mas mal aproveitados por causa da ausência de maquilhagem.
Esquerdina, divorciada e com um ar de que odiava qualquer pessoa que entrava em casa.
– O que o meu primo viu em ti?
– Primo? A menina retire-se da cozinha e leve esse vagabundo para longe. Por onde entrou?
– Pela porta, ainda não sou uma alma penada para passar paredes. Sai da frente…
A mão é colocada no ombro dela e o corpo não avança. Rachel respira fundo, vira a cabeça para
encarar a alta mulher que lhe tirava a paciência.
– É bom que me deixes entrar, ou conto um segredo teu.
– Não tenho segredos. Não vão lugar algum. O amo está a descansar na sala, teve um dia muito
difícil. Como sua governanta, devo zelar pelo seu bem-estar.
Recua a mão dela com rudez.
– Que idade tinha o teu filho quando te beijou na boca?
Beijou… Os olhos arregalam de imediato, do que estava a falar? Os empregados começam a
murmurar o ultraje que ouvem.
– Que mentira é essa?!
– Bem, ele era adotado, porque nunca conseguiu dar um filho ao seu marido que se suicidou
quando a viu na cama com o filho, invés do amante. Não tem vergonha na cara?
– Não ouçam esta mulher, ela nada sabe sobre a minha vida. – tenta desconversar.
– Está tudo no seu olhar, forma de vestir… – aproxima o rosto – A forma como acarinha a aliança
no dedo. Casou com ele, mas infelizmente, o incesto não é bem visto por cá, mesmo que seja
adotado. Fugiu para longe, só para se livrar da mãe que amava profundamente. Amor de marido
e mulher, não de mãe e filho.
Baixa o rosto, casou secretamente com Michael em New Castel, mas alguém os denunciou de
encesto e a igreja anulou o casamento, perseguiu e condenou-os por completo. Mudou de vida, a
pensar que jamais alguém saberia do que aconteceu.
– Posso ir ou continuo a contar os podres que escondes?
Dá um passo para o lado e faz um gesto para ir. Rachel sorri, abre a mão para Phill agarrar e
seguir.

233
Sete Nomes

– Já agora… – olha para os demais – É mentira. Não sei nada sobre ti ou o teu passado. Passar
bem. – segue caminho.
A mulher levanta o rosto e respira fundo, agora tinha que por aquela gente a trabalhar.
O pugilista baixa a cabeça para o rosto que sorria sem parar.
– É verdade, certo?
Rachel olha de esguelha e confirma.
– Só com esse olhar lês-te a vida dela? Fico cada vez mais cheio de inveja.
– Na verdade, não foi a olhar. Conheço a fulana da feira, o meu quarto dia cá em Londres. A
mulher da loja contou-me tudo sobre ela. Nem sempre as pessoas dizem-nos o que escondem e
eu não sou bruxa para ler a mente.
A inveja desaparecia do rosto de Phill. Assim também ele. Suspira, Rachel era mesmo
imprevisível.
Não parava de chorar, Stayci não aguentou a notícia chocante sobre a prima. Ia no quarto lenço
de papel e não queria parar. Gwenny já tinhas os olhos inchados, tal como Walter. Parecia que
não, mas Rachel era muito importante para eles. Quando Angellyne anunciou estar de esperanças,
aquela família comprou tudo antes do tempo, o berço, as roupas… Desde de cedo suspeitaram ser
uma menina. Apesar de Cristian não querer caridade de ninguém, Walter sempre insistiu em
querer ajudar o único primo que tinha. A morte dele nunca foi aceite, o roubo de identidade
sempre os revoltou e agora, a morte da recém encontrada… Nem sabiam se conseguiriam comer
o jantar.
– Que cemitério.
Viram o rosto para a porta. Levantam de imediato.
– Rachel, és tu? – Walter avança.
– Alguém roubou a minha identidade? Isso já é cansativo demais.
Abraça-a, a respiração acelerada trás de novo o choro que, naquela vez, era de alegria. Viva,
Deus ouviu as suas preces.
– Calma.
– Chorei tanto… – recua o corpo dela – Mas tanto… O que aconteceu de manhã?
– Invadiram o prédio onde estava. Tive que fugir com Phill.
– O prédio que nós fomos obrigados a invadir por suspeitas de conspiração. Se soubesse que eras
tu, teria dado a volta.
– Foi o primo?! – quase grita.
– Merle entrou no castelo a denunciar um ataque ao castelo por parte de espiões. A rainha não
pensou duas vezes. Por Deus, desejei que fugisses para bem longe.
E fugiu, quase caiu do telhado só para não morrer nas mãos dos guardas. Phill foi pior, caiu
mesmo.
– Depois o Box Dead explodiu e… Perdi a esperança, suspeitava que estavas morta.
Caminha para a cômoda com uísque. Ainda estava a assimilar a informação. Merle ordenou o
ataque… Como suspeitou, chegou perto demais do covil e agora pagava as consequências. Olha
pelo espelho alguém que a privava de pensar sobre o assunto. Stayci, como estava grande e bela,
loura como quando era pequena, de doces olhos azuis como foi abençoada por parte da mãe. Sorri
ao ver o sorriso dela, cúmplices nos assaltos à cozinha há procura de bolinhos coloridos. Rachel,
como era mais velha três anos, planeava tudo e ela, a mais nova, alinhava. Depois de comer,
tinham dor de barriga e diziam que a sopa fez mal.
Vira-se e, mesmo suja do longo dia, a prima abraça com força. Gwenny também as abraça assim,
que saudades.
Walter vira o rosto para o pugilista. Vivo, ao menos a rainha já não tinha o que recear.
– Um príncipe?
– Eu? Não, apenas sou um bastardo príncipe.
O inspetor sorri ao dar a mão.
– Sê bem-vindo, apesar de não ter sido na sua casa.
Aperta a mão com força.
– Se quiser me expulsar, pode fazê-lo. Mas não sei se Rachel vai gostar.
Faz um som curioso, adorava desafios desses.
– Que sorte a sua, Sir Orange.

234
Sete Nomes

Sorri, ainda bem que as mulheres eram teimosas.


As primas recuam, olham-se de alto abaixo e tentam encontrar as diferenças. Giram ligeiramente
a cabeça, alguém cresceu muito para a idade, outra ficou pelo caminho. Desatam a rir ao darem
as mãos.
– Rachel, que saudades tuas… Nunca tive melhor amiga.
– Que exagero, eramos crianças.
– Mas fazias-me feliz. As que vêm cá em casa só pensam em casamento e vestidos. Tu só pensavas
em comida.
– Mudei, como qualquer pessoa muda. Olha para ti… – levanta o braço dela – Elegante. És muito
bonita.
– Olha quem fala, esse corpinho trabalho é um mimo.
– Meninas, certas conversas são no quarto. – Gwenny alerta.
Olham para a porta, dois homens e assuntos íntimos são escondidos.
– Quem é o bonitão? – sussurra para o lado.
– Phill, meu colega de quarto.
Stayci levanta a mão e acena com um enorme sorriso. Colega de quarto, tinha a certeza disso?
Ele era um belo homem, dava vontade de abraçar e esperar que os braços ficassem lá agarrados
para sempre. Phill acena com algum receio, tinha cara de tarada.
– Vai ficar, meu pai?
– Ele? – olha para trás – Que remédio, Stayci. Gwenny, este é Phillipe Stathouder, filho de
William de Orange, príncipe de Holanda e cunhado de Francisco da Áustria.
A esposa do inspetor faz uma vénia em forma de respeito, estava habituada à monarquia.
– Sou filho bastardo, nem título tenho. Então, nem venham cá com delicadeza, cresci com os
pobres. – Phill avisa.
– Se assim o deseja… Vou providenciar os banhos.
– Basta uma banheira, eu e Rachel estamos habituados a dar juntos.
A mulher fica sem jeito. Olha para o marido e faz sinal para a acompanhar.
– Rachel, há vontade, a casa também é tua.
– Obrigado primo. E uma banheira separada, por favor.
Assente ao sair e fechar a porta. Phill faz sinal de nem querer acreditar no pedido.
– Estás em casa de pessoas que querem respeito. Se é para dar banho separados, daremos.
– Mas Rachel, que mal tinha darmos juntos?
– Não és meu marido.
Faz um gesto com a mão no ar, nem insistia.
Stayci pega na mão da prima e senta-a perto da lareira. Como a sala ainda era grande, poderiam
falar ali, longe do tal príncipe bastardo. Phill também não se importava, estava mais interessado
em admirar a mobília escura, os candelabros pesados e a cor sem vida na parede.
– Banho juntos… Que história é essa?
– Cusca. Vida privada.
– Vá lá, antes partilhávamos tudo. Ainda te lembras… – mostra o dedo mindinho – Sem segredos?
Sorri ao apertar o dedo mindinho.
– Segredos que não envolvam vida privada.
A rapariga suspira ao colocar a cabeça sobre as mãos, a prima estava chata e crescida como as
outras damas de companhia.
– És casta pelo menos?
– Não.
– Foi com ele?
Rachel vira o rosto para Phill e ri levemente ao vê-lo embaraçado com o mapa da europa sobre a
mesa.
– Sim e não.
– Doeu?
– O quê? – olha-a.
– Aquilo. Ninguém me conta como é, nem minha mãe. É assim tão bom ou tão mau para as
pessoas não quererem falar sobre o assunto?
– Sabes que crescemos a não fazer certas perguntas.

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Sete Nomes

– Mas preciso saber, caso brevemente.


– Com o tal conde?
Começa a enrolar os caracóis nos dedos.
– Que remédio, nenhum homem dá amor como o meu pai pede. Pelo menos é rico e sabe bajular.
– Stayci!
– É verdade. Não quero morrer solteira como aquela tia que ninguém fala. Antes mal casada do
que solteira.
– Olha… – pega nas mãos dela – Conselho de prima mais velha que passou por muito. Espera
pelo homem certo, ainda és muito nova.
– Qual será o homem certo?
– Aquele que te sussurra ao ouvido um convite e te beija apaixonadamente. – sorri – Depois,
pergunta se pode e entregas a alma como se fosse Deus a pedi-la. No fim… – olha para Phill –
Não sabes se consegues viver sem essa pessoa que te dá força, carinho e principalmente, amor.
Apaixonada por completo, amava aquele pugilista com uma vida nas mãos da morte. Encontra o
olhar dele e entende a mensagem. Assente e Phill sorri, estava tudo bem.
– Isso é um código para o sexo?
– Não Stayci. Olha, é horrível, digo-te já que dói tanto, mas tanto que mal te consegues levantar
da cama. E vertes sangue como se tivessem enfiado uma faca por lá a dentro. Acredita, melhor a
virgindade.
Os olhos dela arregalam, a mão vai para o peito e fica escandalizada. Benzesse, nem morta
entregava o corpo a um homem.
– Estás a falar a sério?
– Juro pela minha alma.
Levanta e ajeita bem o vestido.
– Vou rezar, vale mais ser freira que esposa. Adeus casamento! – caminha furtivamente para a
porta.
Ri ao acenar. Não lhe ia contar os pormenores que só a si diziam respeito. Cada homem era
diferente, tal como o momento. Podia descrever a experiência com Phill, mas a com Elvis foi
totalmente diferente e, sabia que se aparecesse outro, voltava a se surpreender.
O pugilista senta em frente a ela e cruza a perna. Sujo, nos sofás da mansão? Rachel dá-lhe uma
sapatada.
– Não sujes isso!
– Também estás sentada e parece que rebolaste numa pocilga. O que disseste à tua prima para ela
correr daqui com ar de que ia morrer?
– Disse algo que perguntou e não te diz respeito.
– Conta-me… – aproxima o tronco – É uma tarada?
– Só se for com o olhar, porque ainda é virgem. E nem te atrevas a tocar-lhe… – aponta o dedo
indicador – Dou cabo de ti.
Faz um som de ofendido e recua o tronco.
– Achas que tocava naquilo? Cruz, credo! Sou um homem com honra, amo uma mulher e não
muitas mulheres ao mesmo. No mínimo, digo bom dia, no máximo, conto algo sobre mim.
Virgens a mim não me dizem nada.
Esbugalha os olhos, mesmo assim estaria de alerta. Cruza a perna e coloca a cabeça sobre a mão.
E o banho? Foi à China prepará-lo? Suspira, estava aborrecida.
– Como vamos fazer? Vou dormir num quarto sozinho ou contigo?
– Quartos separados, não te quero no meu quarto.
– Rachel, sofro de uma doença chamada frio. Preciso de ti.
Mostra o dedo do meio, nem queria saber.
– Vá lá… Prometo não te agarrar. E melhor dormir contigo, imagina que a tua prima entra no
quarto e viola-me?
Desata a rir, nem conseguia imaginar esse absurdo.
– Ela tem cara disso. Depois ninguém acredita em mim porque sou homem.
Levanta e senta no colo dele, passando o braço direito por detrás da sua cabeça.
– Só se prometeres ter respeito por mim e pelos outros.
– Alguma vez deixei de ter?

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Pensa um pouco sobre o assunto. Dezena de vezes, até em frente à rainha. O pugilista assente ao
ver a ausência da resposta.
– Prometo.
Repousa a cabeça no seu ombro e olha para o fogo. Fugiu graças a ele, novamente salva pelo
homem que estava disposto a entrar na sua vida. E se o pescoço do guarda não tivesse partido? E
se aqueles espiões a tivessem apanhado antes de entrarem na floresta? E se… Nada aconteceu
porque alguém cortou essas perguntas pela raiz. Phill conhecia bem Londres, sabia onde se
esconder ou por onde ir para despistar. Anjo da guarda, quando a força estava ausente, eles
apareciam para guiar.

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Capítulo 34
Como norma da casa, todos levantavam às oito da manhã em ponto. Daquela vez o relógio parado
acertou nas horas. Na noite anterior, ficou decidido que Phill dormiria sozinho num quarto de
hóspedes, Walter queria respeito acima de qualquer coisa. Mas, a meio da noite, o pugilista correu
muito sorrateiramente pelos corredores até ao quarto da Rachel. Tropeçou em muita coisa,
brinquedos e bonecas por lá espalhadas. Deitou na cama e encontrou a culatra apontada à cabeça,
não devia ter saído do quarto. Lá deu a volta ao beijá-la e convidar para um momento a sós.
De manhã… O sino principal tocou para alertar que deviam de levantar. Rachel já tinha saído da
cama para arranjar o que vestir. Phill ainda estava agarrado à almofada. Cama boa, nem Victoria
tinha assim um colchão feito de nuvens.
Uma empregada entra no quarto e Para ao ver que um dos hóspedes ainda não levantou. Um
homem no quarto da menina Rachel? Sai e dá de caras com a governanta.
– Onde pensa que vai?
– Lady Helga, o Sir ainda não se levantou. – fala com a cabeça baixa.
– Sua burra, aí dorme a menina Rachel Clarel, o orgulho desta casa, a sobrevivente de Boston que
trouxe alegrias com a sua existência.
– Mas tem um homem deitado na sua cama.
Empurra a empregada para o lado e invade o quarto. Arregala os olhos ao ver o tronco nu do tal
vagabundo. Lavado e cheiroso, abana a mão contra o rosto e deixa escapar o suspiro, como era
musculado. E aquele rostinho a dormir? Desaperta o botão da gola, nunca sentiu tanto calor. Olha
para o lado, e não é que a empregada fazia o mesmo? Faz um som de querer respeito e vai direta
à janela com as cortinas fechadas.
– Sir Phillipe de Orange, desejo-lhe um bom dia. – fala alto.
Os olhos abrem com muita preguiça. Boceja, vira-se para o outro lado e estica os braços.
– Bom dia. – fala ao bocejar.
– São oito e quinze da manhã e, como normas da casa, essa hora é perfeita para o pequeno-almoço.
– Sirva-o na cama. – coloca as mãos atrás da nuca.
– Infelizmente, a preguiça é uma falta de educação. Levante-se para descer e comer na companhia
de meu amo e MiLady Rachel.
– Diz à dona da casa que este príncipe quer comida na cama. Até no palácio tinha melhor vida.
Helga tose para a mão fechada e vira o rosto para o encarar.
– Serei obrigada a dizer-lhe as normas todas desta mansão. Norma um, os hóspedes devem aceitar
as regras…
O pugilista até mete os dedos nos ouvidos só para não começar a dormir novamente. Revira os
olhos, tanta coisa logo pela manhã. Pagavam àquela mulher para chatear quem ali vivia? Por
algum motivo as pessoas tinham cabelos brancos, ela não se calava.
– Pronto! – grita – Eu levanto só para poupar a sua voz de musa.
Helga sente as bochechas corar, que homem de ouro.
– Espero que tape os olhos, porque perdi as calças esta noite. – levanta da cama.
Nu, a empregada até deixa cair no chão o balde. Helga abre a boca e abana a mão contra o rosto.
Que deus grego era aquele?
– Onde raio Rachel as meteu? – coça a cabeça ao procurar – Este quarto é de criança, está cheio
de bonecas, castelos… – baixa-se até ao chão e espreita por debaixo da cama – Quem dormia
aqui?
– A menina Rachel, há treze anos atrás. – fala quase com prazer.

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– Ah! Então é isso… – levanta – Ela vivia aqui. Está bem… – coça o queixo – Têm calças ou
posso descer assim?
Por ela, podia andar como quisesse. Sorri e Phill olha para o lado, e assim se convencia as
mulheres mais difíceis.
Esgrima, mal tomou o pequeno almoço e já substituía a prima na aula de esgrima. No salão de
dança, sobre o chão de xadrez, Rachel desafiava o professor francês. Cheia de energia, nem o
homem estava assim com tanta disposição. Foi um escândalo quando desceu de calças, as
mulheres não se vestiam assim, ainda mais na casa do inspetor real. Argumentos? Não eram os
seus pais e, nem o tutor tinha poder sobre ela. Então, que aceitassem as calças, porque na próxima
vez desceria nua. Walter e Gwenny lá aceitaram, costumes americanos muito estranhos.
Stayci sentou no banco encostado à parede e tentava entender a forma estranha da prima lutar.
Nem era esgrima, parecia luta de outros tempos. Vira o rosto ao ver o pugilista a comer de pé.
– Bom dia.
Ele faz um aceno rápido e volta a devorar o bolo mergulhado no copo com leite. Sorri, Rachel
estava a cansar professor que corria atrás dela para lhe acertar.
– Dormiu bem?
– Nas nuvens. Aquela cama… Meu Deus. Rachel tem um quarto mesmo bom. – fala de boca
cheia.
– Dormiu no quarto dela? Que pecado.
– Olha, o teu pai já deu sermão. Desde de quando dormir nu com ela é má educação? Quer dizer,
já fizemos amor e essas coisas todas, e ainda preciso dormir vestido?
– Não é o seu marido.
– E quando for, já posso?
– Creio que a etiqueta proíbe.
Arrota e deixa o ar sair pelo nariz, então de que servia o estatuto de casado se não podia fazer
nada também? Enfim, Londres ia de mal a pior.
– Quem pratica esgrima?
– Eu. – levanta e mostra o vestido próprio.
Engasga-se, tose o leite que caiu mal na goela. Ela? Uma mulher? Limpa a boca à manga.
– Isso não é pecado?
– Digamos que é um desporto e treino muito as pernas. Não posso?
– Pensei que passava os dias a ler ou a comer na mesa com aquelas coisinhas todas… Não é isso
que mulheres prontas a casar fazem?
A norma londrina era clara, as meninas eram treinadas desde pequenas para cuidar da casa,
saberem receber os convidados e estarem prontas para os maridos. Quanto mais burras, melhor,
porque se fossem inteligentes demais, davam opinião contrária, criavam a própria independência
e com o tempo, sonhavam alcançar o divórcio. Stayci fazia um pouco de tudo, sabia ler e escrever
e, estava pronta para casar. Mas… Passar o dia a ler era aborrecido e, Walter não contestou a ideia
da esgrima.
– Sou diferente.
– Pois, as mulheres Clarel são todas fora de época. Olha a tua prima, nem feminista é. E teimosa,
nunca da vida encontrei alguém igual a ela.
– Cresceu em Boston, creio que lá a sociedade é virada do avesso.
Pousa o copo sobre uma mesa auxiliar e pensa sobre o assunto. Talvez tenha sido esse o mal,
cresceu livre demais para encarar as normas impostas pela sociedade.
– Quantos anos treinou para ter esse musculo todo? – pergunta ao corar.
– Desde os… Quinze. Tenho vinte e cinco… Dez anos. Queres tocar?
– Posso? Quer dizer, não… – abana a cabeça – Posso mesmo?

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Estica o braço para ela tocar. Stayci retira as luvas e pousa a mão por cima da camisa engomada.
Faz um som de admirada, nunca conheceu um homem com tanto músculo. Os que por ali
apareciam, eram tão magros que ela suspeitava que nem comiam para terem elegância. Mas
aquele… Cora por completo e sorri satisfeita por tocar. Phill fica estranho, as mulheres daquela
casa tinham grandes problemas mentais, derretiam-se ao mínimo mover de pés.
– Recua da minha mercadoria. – Rachel aponta a espada à prima.
– Achel, calma, isto não é o que parece. – levanta as mãos.
– Phill é o meu homem, se queres tocar, pedes autorização.
O pugilista bate palmas, finalmente ela colocava uma cerca em volta do galinheiro.
– Vá lá, fui eu que pedi. – pede com meiguice.
Pensa um pouco, olha para ele e depois, para a prima com receio. Baixa a espada e revira os olhos
ao recuar.
– Já podes ir. – dá a espada.
– Não, porre hoje é tudo. – o professor fala ao cair ao chão – Bonjour mademoiselle.
– Ele é fraco que dói. Vamos treinar Phill?
– Comeste muito ou pouco?
– Devorei o que me ofereceram. E tu?
Olha para o copo de leite.
– Sete pães, oito copos de leite, dez scones, bebi ainda chá, comi biscoitos… Uma baguete…
Acho que ainda não foi suficiente. Estou a comer mais aqui que quando vivia no Box Dead.
Stayci até fica pálida, ele devia ter um enorme poço no estômago para comer tanto.
– Vamos correr. Prima, diz à tua mãe que fomos por aí. Alguma coisa, toca o sino na torre.
Assente ainda sem palavras.
– A tua prima é estranha… – comenta ao seguir Rachel – Tens a certeza que é uma Clarel?
– Porquê?
– Tem cara de sonsa.
Ri ao abrir a porta.
– Sempre a teve. Em criança, eu é que incentivava a fazer as coisas, porque sempre morreu de
medo.
– E aquele quarto cheio de bonecas? Nem parece teu. Aposto que lá em Boston penduras
esqueletos nas paredes, decoras com campas ao fundo da cama e teias de aranha para aperfeiçoar
a decoração.
Para de andar e vira-se. Era parvo ou fazia-se? Nega por completo, uma coisa era ser rebelde,
outra é louca. Podia até odiar etiqueta, regras e condutas, mas continua a gostar de certos aspetos.
Como bonecas, a cor da parede que era cor-de-rosa, o tapete floral, a cama adornada a flores de
papel ao pé das cortinas… No fundo, ainda era criança.
– Às vezes não sei se te entendo ou se ignoro. Tenho cara de gótica?
– Pareces uma nos dias cinzentos.
Volta a virar e olha em frente, os homens acordavam com ideias muito estranhas.
– Não é verdade? Vais dizer-me que não querias ter um esqueleto na parede… Ou… Sangue…
Nem responde, não valia mesmo apena. Phill continua a dar sugestões assombrosas, devia de ser
esse o estilo que ela gostava. Ou não?
Os portões da mansão abriram assim que um homem se apresentou com muito respeito. William
de Orange, Gwenny até parou de estudar latim só para receber o príncipe austríaco. Descendo as
escadas da porta, coloca o chapéu azul sobre a cabeça e faz um gesto com a cabeça. Stayci aparece
logo atrás, desceu do quarto assim que soube que ia ter visitas.
– Bom dia, MiLady Clarel. – William pega na mão enluvada para beijar.
– Seja bem-vindo, vossa alteza. – faz uma vénia – Permita-me apresentar a minha filha, Stayci.

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O príncipe sorri para a jovem. Estende a mão para beijar a dela. Bela jovem loura de olhos azuis,
essa beleza hipnotizava sempre aquele mulherengo ansioso por uma boa aventura. Ela abre o
leque e esconde o sorriso por trás, até que o pai de Phill não era mau.
– Venha. – Gwenny pede.
William faz sinal para a menina entrar primeiro, os cavalheiros iam depois. O que fazia ali? Após
a notícia do Box Dead ter ido abaixo, aquele pai zeloso que mudava as ferraduras a um cavalo,
teve um ataque de choro ao pensar que perdeu o filho que lá vivia. Sim, abandonou-o pela segunda
vez, mas teve receio da sua reação ao trocar a realeza por um sonho antigo. Além disso, Phill
pediu para ser deserdado, então, no fundo, só fez o que ele pediu. Não queria perder o filho nem
por nada, amava-o e, mesmo sendo um mau pai, queria vê-lo, abraçá-lo e garantir a si mesmo que
estava bem.
Alguém, que trabalhava ali, disse na cavalariça que um Orange chegou à mansão Clarel. Só podia
ser Phillipe, não existi outro príncipe dessa casa. Sem hesitar, pegou no cavalo mais rápido e
partiu em busca da mansão que, segundo ouviu, pertencia a Rachel.
Senta no sofá em frente às damas, é servido do chá de imediato. Depois, Gwenny retira da cabeça
o chapéu e coloca-se quase de perfil, em forma de mostrar o anel de casada e de noivado. Etiqueta
que Stayci aprendeu, apesar de não ter nenhum anel no dedo.
– Meu marido não está, mas creio que veio por outros motivos. O seu filho, correto?
– Minha senhora, não podia ter acertado mais. Phillipe está?
– Phillipe… Que nome magnifico. – Stayci comenta.
– É. Dei-o em homenagem a um tio meu. Na verdade, o nome dele é Fillipo, mas de italiano não
tem nada, na minha opinião.
Fica confusa, afinal onde nasceu ele?
– Bloqueei.
– Eu explico, se me permitir. – olha para a dona da casa.
Gwenny não tinha nada para fazer e não, então faz sinal para contar.
– Minha amante, Isabella Benso, condessa de Cavour, nasceu em Itália. Aprendeu inglês e,
modéstia à parte, o seu sotaque era engraçado… Mas… Como eu era muito jovem, e príncipe que
ia casar, passando a viver em Viena, cortejei-a uma vez. Isabella era muito independente, fugiu
com um bebê na barriga e nunca me contou que ia ser pai. Quando Phillipe nasceu, ela tinha
dezasseis anos ainda e… Deu-lhe o nome de Fillipo. Na certidão de nascimento que me enviou,
estava lá escrito isso, Fillipo de Benso. Mas… Como sou o verdadeiro pai e ele é um príncipe,
ficou Phillipe Albert Aaron Cristian William Orlean Regina Habsburg Stathouder, de Orange e
Nassau. Ia colocar o nome da mãe, mas a casa Orange não permitiu.
História longa que deixava o relógio de parede ecoar o som do pendulo a balançar. Sorri na
esperança de ver uma reação delas. Nada, estavam tão vidradas a pensar sobre o assunto que não
reagiam. William suspira, não devia ter contado dessa maneira a história do filho bastardo.
– Phill, certo? – Gwenny pergunta.
– Certo, Lady.
– Sem ofensa, mas a sua vida pessoal não me diz respeito. Devo dizer-lhe que… A sua amante…
Educou mal o homem. Ele… Dormiu completamente despido ao pé da minha prima, que
sinceramente, é uma filha para mim. Sabe as regras, não se pode ter esse comportamento ao pé
de uma dama solteira e em idade de esposar.
Assente com um enorme pesar, mas infelizmente ele dava sinais de estar a “cagar” para a etiqueta,
tal como Rachel.
– Veio buscá-lo, certo? É porque duvido que aguente ser um príncipe nesta casa.

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– Na verdade… – pega no chá – Vim vê-lo apenas. Onde moro não permitem hóspedes e… Fui
um pai ausente estes anos todos. Matei a minha amante, mãe dele e… Acho que foi esse o erro,
cresceu sem modos alguns.
A duquesa nem sabia o que pensar, além de mulherengo, assassinou a mãe do próprio filho. Olha
para a filha, ali não existia tal pai, tal filho, era mais um “cada um por si”.
– O senhor cresceu também sem mãe?
– Eu? Infelizmente sou filho bastardo da princesa Anna. Minha mãe teve quatro filhos e eu foi o
último a nascer do antigo e falecido rei. Como viuvou, e meus irmãos aceitaram o relacionamento
com o sogro, sou considerado príncipe legítimo, mas o quarto à linha de sucessão. Sinceramente,
quem me criou foi as amas. Na realeza os pais só estão presentes para pintar quadros.
– Por isso fez o mesmo ao seu filho?
– Não. Isabella é que fugiu sem dizer. Mesmo que tivesse dito, casaria de igual modo e daria um
título a ele para abafar o escândalo. Tenho ainda mais uma filha, que tem quatro anos de diferença
dele. Vive na Espanha e nem sonha de quem é filha. Tenho em mente que sou um mau pai, mas
a vida não me deu escolhas. Por isso que invejo Phill, é melhor que eu, sabe amar e lutar pelo que
realmente gosta. Renega o seu título e acho que isso é bom.
O leque abre para um ventinho aparecer no rosto pálido com a história longa. Nem devia ter
pedido, grandes enredos aborreciam aquela mulher.
– Então Phill fica?
– Certo, se não se importar, é claro.
– Infelizmente a minha prima parece ter mais autoridade que nós. Fica.
– Agradecido. Rachel é uma boa menina, só muito fora da linha. Até me beijou e garantiu que
não ia ser igual às outras damas que se oferecem. Sinceramente, acho que a menina Rachel merece
todo o respeito pela minha parte, cuida bem do meu filho.
O leque fecha ao ouvir a informação. Beijou o pai do príncipe? Que galdéria a prima era ao ponto
de fazer isso, tinha uma desertora debaixo do mesmo teto. Levanta a cabeça para a janela ao ouvir
gritos.
– É ela. – William corre para a janela.
Até a sua voz decorou porque acertou plenamente. Após correrem uma hora, algo estranho
aconteceu. Digamos que Phill estava cheio de calor e queria entrar no lago perto da mansão.
Rachel negou, os nobres à volta eram pior que os árabes a cuspir para as mulheres sem véu.
Teimoso também, pegou nela e atirou ao lago. Ao inicio, quase o espancou, mas depois alinhou
na brincadeira. Conclusão? Sanguessugas viviam no lago abandonado que tinha um letreiro a
avisar que ali, nem os peixes conseguiam viver. Deram conta que estavam cheios delas ao serem
mordidos. Bem, Rachel arrancou-as com tanto furor que nem deu conta que as atirava para Phill.
Pelo caminho de regresso à mansão, berrou tanto com ele que o pugilista esteve capaz de ir embora
para Londres e deixar aquela azeda mulher ali abandonada.
Abre a porta com violência.
– Tu vais ver o que te vou fazer! – ameaça ao andar para trás – Vais engolir aquela boneca Russa!
– Ó sim, tu vais é ficar quieta porque só fazes ameaças, nada mais.
– Phill, nem te atrevas…
Para ao ver o olhar arregalado dele. Vira-se e dá de caras com quem não esperava ver logo pela
manhã. William. Sorridente demais para quem abandonou o filho e trocou a realeza por merda de
cavalo. Esse nem era o mal, o olhar de Gwenny preocupava-a. Conhecia bem aqueles olhos,
aquela forma como apertava o leque na mão.
– William, o que contou à minha prima? – encara o príncipe.
– Nada, tivemos uma doce conversa.

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Doce… Azeda conversa, que fazia aquela mulher querer gritar ali mesmo, ao pé da porta. Além
de molhada, andar de calças e ter dormido com um homem nu, algo mais foi dito sobre a vida
privada. Assente ao espremer o cabelo.
– No meu quarto, por favor prima.
Gwenny assente ao caminhar para lá. Stayci revelava um olhar ferido de que o orgulho de a ver
tinha desaparecido e dado lugar à desilusão.
– Phill, fala com o teu pai na sala. – caminha para as escadas.
– As coisas estão bem, não estão?
Faz sinal com a mão, iria ouvir gritos e berros se estivesse atento. O pugilista perde a vontade de
abraçar o pai, sentia uma ligeira dor de barriga. Receio. Não queria que Rachel ficasse de costas
viradas com a família, era a única que lhe restava.
– Phillipe…
Levanta a mão para o pai nem se atrever a abraçar.
– O que disse à prima dela?
– Nada Phillipe.
– Não me minta! – quase grita – O que contou?
– Contei as tuas origens e que me beijou, nada mais.
Olha para as escadas, Rachel avisou que eram conservadores demais, uma mulher ali devia de
ser casta até ao casamento e, caso não fosse, seria expulsa. Cristian afastou-se durante muitos
anos por causa dessa política, pois cortejou Angellyne antes do casamento e isso gerou escândalo.
Rachel iria ouvir sermão da prima, culpa do príncipe que nem devia ter aparecido.
– O pai não devia ter vindo. Como sempre estraga tudo! – caminha para as escadas.
William estava confuso, não estava a entender o que se passava. Olha para Stayci triste, talvez
nem ela soubesse. Senta na cadeira atrás de si, quanto mais tentava se aproximar do filho, mais
este o rejeitava. Afinal, ainda pagava pelo passado, o abandono parecia uma enorme sombra que
o consumia. Morreria sozinho, como sempre previu.

Esqueceu a etiqueta, os anos de aprendizagem ou tudo o que envolvesse a casa Clarel. Rigor e
prestígio sempre foi o lema daquela família que se destacava sempre pela positiva. Uma desertora,
no seio deles? Gwenny não se calava, falava para a muda mulher virada para o jardim, com os
braços cruzados e o robe vestido. Os olhos cheios de lágrimas queriam deixar sair o choro, nunca
da vida esperou ser recebida assim por parte da família.
– Cala-te. – pede cansada.
– Custa ouvir as verdades? És igual à tua mãe, sem um pingo de brio no sangue!
Limpa as lágrimas, vira o rosto para a prima que mais odiava no momento.
– Quer saber a melhor? Fiz amor com outro homem antes de voltar para Phill, beijei não sei
quantos, mostrei o meu corpo nu e desrespeito a etiqueta londrina que não me diz nada! Não era
casta com dezoito anos, optei por deixar de ser no momento em que é nojento casar com um
homem por obrigação.
Um segundo de pausa e a estalada dada ecoa pelo quarto. Não devia ter dado, mas Gwenny sentia-
se ofendida por completo. O problema de Rachel é que cresceu aos cuidados de tutores que não
souberam abrir a mão de vez em quando.
– Falta-te muita coisa Rachel. És uma meretriz. Não mereces o meu respeito ou respeito algum
por parte de Walter. Como deixei que entrasses aqui em casa?
As lágrimas descem o rosto, os soluços aparecem de imediato.
– Pega nas tuas coisas e vai embora, morreste para mim.
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– Só Walter pode expulsar-me.


– Como não está, eu é que mando aqui em casa. Não viverás no mesmo teto que o meu, os Clarel
seguem a etiqueta, não a desordem humana. Uma mulher impura traz azar.
Limpa as lágrimas e vai à mala aberta sobre o sofá. Sempre mal recebida, bem que Jason avisou
para nunca procurar o primo em Londres, eles próprios tinham avisado Cristian que não voltariam
a ajudá-lo no negócio que afundava por falta de dinheiro. Por que partiram para Boston? Porque
Gwenny discutiu com Cristian antes de Walter chegar, fez Angellyne chorar e gritar na sala.
Sempre fria e sem remorsos, aquela mulher sempre dividiu os primos por inveja. Do quê? Gwenny
ia casar com Cristian, mas ele se apaixonou pela camponesa e preferiu-a como esposa. Daí a raiva
de ver o fruto de um amor forte. Mal-amada, aquela mulher casou com Walter por não ter escolha
e sempre foi isso, invejosa e mal-amada.
– Phill, entra por favor. – despe o robe.
A porta abre e o pugilista dá de caras com a prima dela.
– É para ir?
– Não posso ver mais esta mulher que há treze anos atrás rugou uma praga à minha família. –
veste as calças novamente – Disse que o navio devia de se afundar antes de chegar a New York.
Deve ter saltado de alegria quando soube que Cristian foi assassinado.
– O teu pai foi uma pena, mas a morte de Angellyne foi uma bênção.
– Bênção seria ver-te a morrer de febre numa cama! – grita – Tenho pena do primo, casou com
uma cobra nojenta.
Abre o leque e abana ligeiramente, não estava nada ofendida.
– Para onde vamos? – Phill ajuda a arrumar a roupa lavada.
– Londres, ficamos numa estalagem. – mete o relógio ao bolso.
– E o teu primo?
– Que me procure.
O pugilista olha para Gwenny. Como não deu conta que aquela mulher não prestava? Faz uma
cara de desdém, mal-amadas deviam de morrer antes de estragar a vida dos outros.
– Fiquei sem a minha casa, agora perco o meu quarto de infância… – pega na mala – Stayci não
tem culpa da mãe que tem, mas espero que case com amor, só para te fazer frente e ser feliz.
– Isso é o pensas. Se depender de mim, casará da mesma maneira que casei.
– Esse é o problema. Ela não tem só um parente vivo, ainda tem um pai que pode bater na mesa
e dizer não. Quando passar por mim na rua, desvie-se para bem longe, nunca se sabe quando uma
bala se pode perder no meio do alvoroço.
Fecha o leque, uma ameaça? Phill puxa o braço de Rachel para fora do quarto, parecia que ia
saltar sobre a prima e arrancar-lhe os cabelos castanhos de uma só vez. Gwenny sorri para a janela,
livrou-se dela tão rapidamente que nem teve que planear a sua expulsão. Melhor assim, Walter
nunca percebeu o porquê de Cristian partir antes de voltar do trabalho. Continuaria a não saber e
iludido, jamais pediria o divórcio.
Volta a descer as escadas que um dia desceu no colo do pai. Ainda ouvia os gritos… We never
will return this house! Devia ter-se lembrado do motivo que os levou a ir embora, mas teve
esperança disso ser águas passadas. Pousa a mala ao pé da porta e olha para a prima a chorar.
– Pai, ainda tem o cavalo lá fora? – Phill pergunta.
– Tenho. Vão embora?
– Vamos para Londres.
Londres… Stayci agarra-se à prima e chora no seu ombro. Nega, não podia ir e deixá-la ali
sozinha outra vez.
– Não posso ficar. – Rachel fala sentida.
– Preciso de ti. Ela vai cansar-me, não te contei, mas Gwenny tem plano sombrios para nós.

244
Sete Nomes

– Que planos? – recua o corpo.


– Stayci, recua. – Gwenny pede no cimo das escadas.
Recuando, fala com os lábios a Rachel, um truque que aprenderam em criança. Carvalho torto.
Assente ao se virar e pegar na mala.
– Venham, levo-vos até à cidade. – William abre a porta.
Planos… O olhar de Rachel ainda se volta para o cimo das escadas. Planos, rezava para não ser
o que suspeitava, ou teria que tatuar mais um nome nas costas. Passa o dedo pelo pescoço e
transmite a mensagem à prima, a morte ali entrou e a ameaça ficou. A porta fecha e ecoa pela
casa o tiro da bala que um dia iria manchar aquele chão. Se fosse o que pensava… Talvez os
culpados fossem inocentes.

245
Sete Nomes

Capítulo 35
Estreito quarto que a estalagem deu. A cama estava a cinquenta centímetros da janela, não havia
espaço para a mala ser escondida ou comprar uma banheira para dar banho. Quem pagou o quarto
foi William que, com pena deles, comprou para um mês a renda. Melhor que nada, Phill muito
agradeceu o sacrifício. Só existia uma casa de banho para trinta hóspedes, cozinha no primeiro
piso com comida a preço de ouro e serviço de limpeza inexistente.
Abre a janela para acender o cachimbo, deixou de fumar porque não precisou mais. Mas agora,
que a vida estava a dar voltas e voltas… Talvez o tabaco ajudasse. Vira o rosto para Rachel, não
devia ter ido buscar as cartas que estavam dentro de uma caixa enterrada no carvalho torto. Mal
dormiria a pensar sobre o que leu. Gwenny sabia o que Logan fez, ajudou-o a roubar o título e
testemunhou em segredo que aquele era o seu primo Cristian. Pior, alimentou a esperança de
Angellyne para encontrar a filha morta, fazendo-a ficar presa em Boston invés de fazer retornar a
Londres e pedir ajuda à rainha.
Senta na cama e estende o cachimbo para ela experimentar. Estava também desiludido, Stayci
escondia isso do pai por receio de o perder, Gwenny era vingativa.
– Tens fome?
Rachel nega, rejeita o cachimbo e só não salta da janela porque não queria ver Phill a chorar.
– O meu pai tem razão, agora vais até ao fim e depois dás um jeito de a matar também.
– É difícil aceitar isto. A minha prima tramou a minha família por inveja… Nem aqui estou segura.
Logan vai encontrar-me o quanto antes.
– Que encontre, mal passa aquela porta e esmurraço-o todo. Já te disse que não estás sozinha.
Estava e não estava, se a força chegasse para matar um homem, o seu medo seria menor. Não
chegava no momento em que os espiões estavam onde menos se espera.
– Vou dormir. – puxa os cobertores.
– Queres que te mime?
Nega ao deitar a cabeça na almofada, queria estar sozinha no pequeno quarto. Phill beija-lhe a
cabeça antes de levantar.
– Vou-te proteger até morrer, sabes disso. – volta para a janela.
– Phill…
Olha para trás.
– Ainda bem que te tenho.
Sorri ao colocar o cachimbo na boca, isso confortava o seu coração por completo. Encosta a
cabeça ao aro da janela e admira a rua agitada, pobre Rachel, estava rodeada de inimigos que
invés de a matarem de uma vez, brincavam com a sua vida. Não merecia aquilo, por mais rebelde
que fosse, não merecia.
O bater na porta ecoa, os olhos abrem para a claridade que invadia o quarto. Dia… Phill olha
para a cama e repara que Rachel ainda estava a dormir. Levanta do chão, fecha a janela e tropeça
ao caminhar para a porta. Dia. Mal fechou os olhos e já tinha amanhecido.
– Sim? – abre a porta.
– Valentina Daylux está?
Detetive Bogges… Phill coloca o cotovelo no aro e estala os dedos na madeira. Não sabia se
deixava-o entrar, até porque se lembrava de ele ter sido uma grande pedra no sapato.
– O que queres dela?
– Oferecer ajuda.
Começa a fechar a porta, não precisavam de mais traidores.
– Por favor. – trava o avanço com o pé.

246
Sete Nomes

– Olha, desaparece que não fazes falta.


– Rachel precisa de mim. O primo enviou-me, o inspetor Walter Clarel.
Abre a porta e sai para o corredor. Cruza os braços e tenta ler nele se era verdade ou mentira.
Que azar, perdeu essa maldita capacidade.
– Como sei que não foi Gwenny?
– Porque ele mesmo apareceu lá em casa a pedir para cuidar da prima. Contou-me a sua história
e se soubesse que se tratava de uma vingança, teria encobrido maior parte das mortes.
Coça a barba que tinha o queixo, cheirava-lhe mal aquela ajuda. Do nada, aparecia ali o detetive
que tinha que descobrir quem matou Chester, a oferecer ajuda em nome de Walter… Esbugalha
os olhos, não acreditava nem um pouco.
– Phill, a justiça inglesa está sempre a favor dos ricos. Além disso, conheci Cristian, trabalhei
para ele um ano antes de partir para Boston.
– Rachel não se lembra de ti.
– Porque nunca estive na casa dela em pequena. Preciso de falar com ela, o assunto é importante.
Abre a porta, mas antes de o detetive entrar, coloca a mão sobre o ombro.
– Neste momento estou capaz de matar quem quer que seja. Se a fizeres sofrer, eu mesmo te mato
e parto os teus ossos um por um.
Assente com receio, se soubesse que o seu amante era assim tão violento, teria ido ali quando
estivesse fora. Entra e repara que o quarto era pequeno demais. Na cama, Rachel levantava o
tronco para ver quem fazia barulho no outro lado da porta. Fica confusa, fez de tudo para afastar
Bogges, agora estava ali novamente para a incriminar?
– Phill, corre com ele.
– Eu até corria se o homem não tivesse mais segredos para ti. – senta na cama – Acreditas que
trabalhou para o teu pai?
– O meu pai era agricultor…
– Eu sei que o teu nome é Rachel e és filha de Cristian Clarel. – Bogges fala ao dar um passo em
frente – Trabalhei para ele.
Trabalhou… Levanta da cama e pega no robe. As coisas tinham que surgir agora, que cada vez
mais ficava confusa com a vingança que planeava? Primeiro Gwenny e agora o próprio pai com
segredos? Quantos nomes tinha que tatuar nas costas?
– O que ele te pediu?
– Falo em frente a ele?
– Phill é meu namorado, pode falar.
O detetive encara o pugilista que mostra um grande sorriso. Namorado, tinha que salientar?
– Cristian andava à procura do irmão perdido para deixar o comércio do ouro. Suspeitava que o
pai não o tinha afogado no poço.
Afogado… Fica confusa com a informação. Que irmão?
– Do que estás a falar? O meu pai era filho único, nunca conheci os meus avôs paternos ou
maternos, ambos morreram muito antes de eu nascer.
– Não Rachel, há um irmão gêmeo que foi afogado no poço por nascer com uma deficiência. Na
verdade, foi a desculpa na época, porque Charles nasceu perfeito, mas Jason queria que ele
parecesse morto aos olhos da sociedade.
– Jason era o nome do meu avô?
– Jason Dylan é o nome dele.
Sente uma tontura e cai sobre a cama. Phill empara a cabeça que ia bater na parede. Jason, o
advogado do pai que apareceu um ano após a sua morte. Jason, aquele que ajudou a filha do
cliente a recuperar a fortuna, o nome e a mansão que ia ser leiloada. Avô… Aquele tempo todo
esteve aos cuidados do avô?

247
Sete Nomes

– Água, rápido! – Phill pede ao ver a palidez.


Bogges sai a correr do quarto, grita nos corredores por água.
– Avô…
– Nem sei o que dizer.
Agarra bem o braço dele, sente as lágrimas nos olhos. Avô. Sessenta anos, sempre disse que
perdeu os dois filhos em Londres antes de trabalhar para Cristian. A verdade é que ela nunca o
viu em casa, nem nos documentos aparecia. Mas, a mãe deixou uma carta à filha, se algum dia
aparecesse, que ficasse aos cuidados de Jason, porque saberia como ajudar.
Fecha os olhos, não podia ser. Aqueles anos todos, pensou que o tutor era um simples homem
que voltou a casar com uma mulher anos depois e que perdia a paciência a cuidar da menina
rebelde. Não, nunca suspeitou que ele fosse o avô a tentar cuidar da neta que ficou sozinha no
mundo.
– Rachel, não chores. – Phill aconchega-a no peito.
– Meu avô, eu maltratei-o estes anos todos sem saber que era meu avô.
– Acontece, aposto que te vai explicar o motivo.
O detetive entra no quarto, fecha a porta e estende o copo com água. O pugilista insiste que ela
beba para se acalmar.
– Conheces Jason?
– É o tutor dela, nunca suspeitou que era avô.
– Coitada. Jason tinha problemas com Logan, muitas dividas no meio, ameaças… Por isso que
fingiu matar Charles para ele ir para fora e ser uma pólice de segurança caso os Clarel fossem
mortos. Se todos morrerem, a fortuna vai para um Clarel que se prove ser um. Cristian morreu,
mas Logan ficou com a fortuna ao fingir que não tinha morrido. Herdou tudo o que era teu e de
Jason, visto que fingiu morrer queimado na mansão em Liverpool.
– Esta vingança anda em volta de uma herança? – Rachel pergunta.
– Tu não sabes, mas o navio que o teu pai tinha, escondia um mapa de um contrabandista que
tinha uma enorme fortuna. Cristian sabia desse mapa, queimou-o porque não queria saber de nada.
Logan fez a cabeça àqueles sete homens que o assassinaram, estavam iludidos que conseguiriam
saber. Eu sei onde está o mapa que escondeu secretamente. O teu relógio.
Vira a cabeça para a cama, mesmo ao lado da almofada, o maldito relógio parado no tempo
escondia o que todos queriam? Como?
– Gwenny ajudou Logan a passar-se por Cristian porque sabe disso. – Phill conclui.
– E Jason? Ou Charles?
– Charles morreu. Foi assassinado em Berlim na tentativa de chegar a Boston para te contar tudo.
Merle o assassinou na rua e deitou o corpo ao rio. Se eu estiver certo, se o teu primo morrer e não
tiver descendentes vivos, o resto da fortuna vai para ele. Pode nem saber do mapa, mas a fortuna
que herdará é suficiente para ser mais poderoso que a rainha. Precisas de sobreviver para que isso
não aconteça.
Atira o copo contra a parede. Ninguém lhe contou aquilo, nunca suspeitou dessa teia enorme que
alguém fez no passado. Há um mês atrás só tinha sete nomes e poucos motivos para entender o
assassinato violento. Agora, aparecia uma herança e uma vingança que envolvia o avô que afinal
não era tutor… Abaixa-se no chão e coloca as mãos sobre a cabeça que doía. Logan matou
Cristian, não só porque ele queria desistir de tudo, como queria se vingar de Jason. Matou
lentamente Angellyne para que ela nunca fosse capaz de denunciar aquela história confusa. Sete
homens enganados que iam receber a fortuna, esqueceram de matar Rachel porque ela morreria
no orfanato. Gwenny iludia o marido o tempo suficiente para um dia morrer sem dar nas vistas.
Matava Stayci de seguida e deixava Logan como único Clarel, herdando a fortuna de Jason.

248
Sete Nomes

Por isso que Chester disse que ela não sabia das coisas, por isso que Baker odiava Angellyne que
queria denunciar tudo com ajuda do sogro. Merle tentou matá-la ao influenciar a cabeça da rainha,
e os restantes nomes apareceriam no meio daquela vingança absurda que envolvia apenas uma
herança. Última Clarel que Jason queria preservar, porque Rachel cresceu na sua inocência
roubada, a ganhar ódio de um homem que destruiu aquela casa antiga. Deu-lhe apoio por ter
orgulho da neta, por saber que a sua força faria justiça no meio de um mundo com ausência disso.
E agora morria de pneumonia. Deus não podia castigar mais um homem que tentava proteger a
família que perdeu.
– Merle Thomas, Donald Noah, Bronwen Daniel, Darwin Logan… São os últimos na minha lista.
Mataram a minha família por causa de uma herança absurda que o meu pai não queria.
– Na verdade, Cristian queria viajar com o pai para Edimburgo, acabar com esta rivalidade
absurda antes que fosse tarde demais. Jason mal te conhecia, viu-te no dia em que nasceste, mas
teve que fugir, ir a Irlanda para se manter morto. Cristian queria recuperar o irmão, mudar-se com
a família para longe e viver a paz. Quando soube que Logan tinha sido o culpado da morte da sua
mãe na corte de Victoria, despediu-o na esperança de ainda te proteger. Rachel, foi tarde demais.
Matou o pai, matou a avó e agora mataria a neta. Olha para Bogges, aquele tempo todo, o detetive
sabia da verdade sobre os Clarel. E afastou-o a pensar que era um inimigo. Levanta do chão e
limpa o rosto.
– De nada serve contar à rainha, certo?
– Não. Logan está muito bem posicionado lá. Victoria jamais acreditaria que o duque Clarel foi
morto por um homem que procurava vingar de outro homem. Estás sozinha. Quando li o teu
passaporte, fiquei confuso, conhecia esse nome de algum lado. Walter apareceu lá em casa e
contou-me quem eras e lembrei-me de tudo.
– O meu primo sabe da verdade?
– Sabe do tio vivo, sabe que Logan queria se vingar de ambos os Clarel, quer o teu avô, quer o
pai dele que morreu a tentar prendê-lo… Não sabe de Charles ou que existe esse mapa com uma
fortuna ou que Cristian morreu vítima de duas vinganças.
Melhor assim, apenas ela sabia da verdade que enterraria no dia em vingasse a família.
– E agora Rachel? – Phill pergunta.
– Posso ajudar em qualquer coisa, mesmo que o meu filho possa perder-me. – Bogges comenta.
– Não. Ele provocou os Clarel e o destino escolheu que eu fosse a única a vingar duas mortes
injustas.
– Até pode ser verdade, mas não estás sozinha. – Phill levanta – Se é para morrer, morremos
juntos.
Aproxima-se dele, coloca a mão sobre o peito e encosta a testa ao queixo.
– Bogges, protege o meu primo. Não deixes que Gwenny mate-o.
– Não te preocupes, estará protegido.
Olha no olhar de Phill, passa a mão pelo rosto dele na busca de pedir mimo. Sentindo-se a mais,
o detetive sai e fecha a porta.
– E depois de tudo?
– Não haverá depois.
– Claro que haverá. Podíamos mudar-nos para Itália, viver em Cavour. Lembraste, minha mãe é
condessa de lá.
Sorri ao abraçá-lo, não podia pensar no futuro sem resolver o presente.
– Vamos ou não? Acho que não vais querer reclamar esta herança maldiçoada.
Desde que soube a verdade, nem uma Clarel queria ser. Talvez ir não fosse mal pensado. Assente,
ia depois que algumas contas estivessem bem acertadas.

249
Sete Nomes

“Jason,
Pensei muito no que te ia escrever. Estes dias foram muito agitados, fugi para lugares onde
pensei encontrar abrigo e, no final, só entregava os meus segredos ao inimigo. Avô, descobri a
verdade toda sobre a morte do meu pai, já sei quem és e sinto-me mal por estes anos todos ter-te
desvalorizado, feito a vida negra e deixar-te com o coração na mão. Também já sei como a avó
morreu, não essa tua nova esposa que fez tripas coração para me domar. Não sinto rancor de
nada, tinham segredos para me proteger. Não sei se sabes, mas Charles morreu em Berlim.
Prometo que colocarei um fim a isto, esta vingança foi longe demais, levou muitas vidas inocentes
e derramou muito sangue. Mesmo que seja a última Clarel, quero que deixes essa fortuna a
alguém que mereça realmente. Vou rezar todos os dias para que não morras, mesmo antes de
saber quem eras, já te amava e considerava um pai. Preciso de ti, mais do que imaginas.
Tua neta, Rachel Clarel.”

Coloca a carta no posto de correio depois de lamber o selo. Daqui a alguns dias teria a resposta,
talvez um perdão, talvez mais verdades. Fica parada a olhar para o posto, pensava nas saudades
que sentiria dele caso fosse tarde demais. Avô…
– Vai demorar muito, MiLady?
Vira o rosto para o lado… Logan, com um cigarro na boca e uma carta na mão. Não se move,
não estava à espera que Deus a colocasse à prova naquele preciso momento. Como demorava,
Logan movesse para colocar a carta, mas Rachel tapa a ranhura com a mão.
– Algum problema, MiLady?
– Ainda não acabei.
– De…?
– Colocar cartas.
Então faz sinal para que coloque lá mais cartas. O problema era esse, Rachel não tinha mais
nenhuma. O olhar dele estava sem paciência, capaz de empurrar aquela mulher para o lado sem
problema algum dos comentários que ouviria.
– A carta, MiLady? Vai continuar a olhar para mim?
– Não tenho pressa alguma, Lorde Clarel.
Os dedos pegam no cigarro e o fumo sai pela boca. Conhecia-a de algum lado? Ele não, porque
mal se lembrava da rapariga que ordenou que fosse violada e abandonada algures.
– Sabe o meu nome?
– Claro, sua carruagem tem o brasão na porta. – sorri ao afastar a mão – É uma grande honra o
conhecer pessoalmente. Lady Florence.
Pega na mão dela e beija como manda a etiqueta. Logan estava velho, bem cuidado, mas forte
ainda. Cabelo branco, tal como o bigode sobre o lábio. Óculos na vista que fingia ser fraca, alto e
bem treinado. Rachel conseguia ver que torturava pessoas, não ali em Londres, mas torturou na
Índia muitas mulheres que rejeitaram trabalhar para ele. O mesmo olhar de quando disparou sobre
Cristian e soprou o fumo da pólvora. Depois, virou o rosto para a menina que chorava e sorriu.
Treze anos atrás, nunca pensou rever aquele homem novamente.
– Já posso colocar lá a carta?
– Claro. – Rachel desvia-se para o lado.
Logan dá um passo e passa a carta pela ranhura.
– Foi um prazer rever-te… – aproxima o rosto – Rachel.

250
Sete Nomes

O coração acelera assim que ouve o seu nome. O olhar vira-se de esguelha para o dele.
Reconhecia-a? Não se conseguia mover, é como se alguém a tivesse paralisado ali mesmo, ao pé
do assassino do pai.
– Logan.
– Achas que não te reconheceria? – passa a mão pelo pescoço dela – A mesma medalha de
Angellyne… O olhar de Cristian… – aproxima a boca ao ouvido – Achas que não sabia que
estavas cá?
– Sou proibida de visitar o país onde nasci?
– Não, pelo contrário, fizeste bem. – agarra no braço dela e força-a a andar – Viste como o teu
pai morreu? Então, é bom que fiques de boca fechada em relação ao passado.
Tenta não andar, mas a violenta mão não dá alternativa. Sorri, só para não parecer que era forçada
a algo que não queria.
– Não quero saber do passado, estou cá para arranjar família.
– Mentir é feio Rachel. Eu sei que mataste três dos meus amigos. É bom que pares essa pequena
vingança, posso ser pior do que imaginas.
– Vais matar-me como mataste o meu pai?
Para em frente à diligência e ao virar-se, ajeita o vestido dela.
– Cristian escolheu desafiar-me invés de se aliar. Devia ter-te matado lá também, assim não davas
problemas.
– Repito o que disse, estou cá por outros motivos.
Logan abraça-a com força.
– Cada passo que deres, eu saberei. O que comeres, eu saberei. Não me desafies, além de
mentirosa, perdes a tua vida da pior maneira possível. Volta para Boston e vives para veres-me
chegar ao trono.
– Tenho pena de Selena, orgulhosa do pai que destruiu uma família inteira. Demoro o tempo que
for preciso, mas nego-me a enterrar o passado.
Selena… Logan aperta o tecido do vestido com força, o corpo de Rachel não se conseguia soltar
dos braços fortes.
– Toca na minha filha e o teu pugilista amador vai ter com a empregada negra mais cedo.
– Mete-te com Phill e eu mato-te. – fala sufocada.
– Não tenho medo algum de ti, aliás estou mortinho para dilacerar o teu corpo todo, osso por osso.
Depois, o teu primo muito curioso morre com a sua filhinha intrometida. Um homem que mata
uma vez, não tem medo de fazer mais sangue, nem teme o que Deus lhe possa fazer depois. Tu
Rachel, devias ter ficado na tua vidinha rebelde lá em Boston, mas não, sempre mais… És igual
ao teu pai e isso lhe custou a vida.
– Metes-me nojo!
Recua o corpo dela e ajeita bem o casaco negro.
– Já sabes, um passo em falso e vemo-nos no cemitério. Tenho pena, uma bela mulher a
desperdiçar anos de vida à toa.
– Vingo quem amava. Tens sorte de eu não ir ter com a rainha e te denunciar. Aliás… Ela sabe
que eu existo.
Logan olha para os lados antes de apertar o queixo dela e arrumar o corpo contra a diligência.
– Shhh… Vou falar uma só vez, acaba com essa ideia louca antes que eu revele quem sou de
verdade. Matei mais de quinhentas pessoas, sou perito em tortura e desaparecimento dos corpos.
Queres viver, volta para Boston. Queres morrer, vai em frente que eu fico há espera.
Os olhos ficam cheios de lágrimas, tenta recuar o corpo dele com as mãos, mas não conseguia se
libertar.
– Fica a dica.

251
Sete Nomes

Abre a boca ao sentir algo a picar no pescoço. A mão dele larga a boca, o corpo desfalece contra
o chão. Logan abaixa-se e sorri ao mimar a cabeça. O olhar de Rachel não conseguia ver bem,
tentava rejeitar o carinho envenenado, mas estava sem forças.
– Fica bem filha, é uma pena isto estar a acontecer desta maneira. – beija os lábios dela – Devias
ter ficado em Boston.
Tenta falar o que lhe vinha à cabeça, abre a boca para gritar o que não sai. Logan abre a porta da
diligência, o cocheiro pega no corpo dela e atira-o para o beco ao lado. Depois, assente para o
patrão e bate nos cavalos para começarem a trotar.
O grito sai baixo demais, as mãos cravam-se na terra húmida, o tronco levantava furtivamente a
cada dor que sentia. Veneno, as veias fervilhavam a cada bombiar de sangue, a boca queria abrir-
se ao limite para expelir o que queimava. Grita ao levantar a cabeça, mas escondida atrás das
caixas, ninguém conseguia ver.
A respiração começa a pesar, a visão turva capta uma mão estendida que a chamava.
Rachel… Come whit me.
Sorri ao ouvir a melodia da mãe, os olhos fecham-se para melhor acompanhar. Cai para trás,
sente a chuva a tocar o corpo e sorri… Por saber que a mãe estava ali mesmo, a seu lado.

252
Sete Nomes

Capítulo 36
Entre a vida e a morte, Eyes tentava explicar que não sabia que tipo de veneno tinha sido usado.
Mais para lá do que para cá… Phill agarrava a mão dela com força e rezava a todos os santos que
conhecia para a salvarem. A notícia chegou da pior maneira. Um dos amigos do pugilista
encontrou aquela mulher quase sem vida num dos becos da cidade. Levou-a no colo até ao Eyes,
por ser o melhor médico da cidade. E Phill, que preparava um banho especial, tinha pago em
dinheiro para a casa de banho ser deles por uma hora, saiu a correr para ir ao consultório do
médico. Chorou quando ouviu que ela estava fraca, não teria muitas horas de vida.
Quem lhe fez aquilo? Quem? O pugilista só suspeitava de uma pessoa. Gwenny, só ela é que
poderia se ter dado ao trabalho de assassinar a prima, assim Logan herdava tudo ainda naquele
ano.
Beija a mão e limpa o suor na testa com meiguice. Morrer daquela maneira… Olha para o que
estava sobre a maca do lado. Se bebesse o frasco todo de anestesia não sobreviveria de certeza. E
depois, quem a enterrava? Nega, absurda ideia, prometeu que a enterrava, nem que fosse em
Boston. Como chegava lá? Venderia… Vender-se-ia para cumprir o que prometeu.
– Este veneno deve ser de fora, já tentei todos os que cá tenho.
– É muito forte?
– O suficiente. Se soubesse o que foi usado, arranjava cura. Assim... – retira os óculos dos olhos
e suspira – Lamento Phill. Deve sobreviver até o sol nascer. Depois…
Assente com os olhos cheios de lágrimas. Perder outra mulher vítima de envenenamento… Olha
para Rachel, olhos fechados, lábios roxos. Pega novamente na mão e beija com carinho.
– Vou sentir a tua falta… Não sei se sobrevivo a mais uma morte. Estive com Abie até o último
suspiro, estarei contigo até alcançares o céu. – as lágrimas descem o rosto – Devia ter ido contigo,
devia ter-te obrigado a esperar por mim. Rachel, não vás, por favor. – desata a chorar.
Eyes passa um pano pelos olhos, doía vê-lo assim. Conhecia bem Phill, soube das mulheres que
perdeu, mas nunca o viu a chorar assim por uma. Quando visitou Abie, o pugilista disfarçava a
dor com um enorme sorriso no rosto. Ali, a mesma dor, um amor diferente e desatava a chorar
por saber que não havia forma de a salvar.
– Deus, salva-a… Salva-a por favor. Eu amo-a, preciso dela para ser feliz. Perdi tudo o que me
deste, perdi a minha casa… Os meus filhos… – fala por entre os soluços – Não me faças perder
esta mulher, escolhe-me a mim. Eu amo-a… Eu amo-a…
O médico coloca a mão no ombro dele em forma de dar apoio.
– Tem calma Phill.
– Não a quero perder.
– Eu sei. Entendo o teu sofrimento, perdi a minha mulher no parto que eu próprio fiz. Acredita…
Não há dia que não me arrependa da decisão que tomei. Mas… A esperança é a última a morrer.
Acredita, ela aparece em momentos complicados.
Assente apesar de não conseguir acreditar num milagre. Viram o rosto para o bater à porta.
Àquela hora? Quem seria? Eyes coloca os óculos e apressa o passo para ver quem era.
– Prince William, o que o traz por cá?
– O meu filho… – entra sem ser convidado – Disseram que aconteceu uma tragédia.
Phill levanta da cadeira, a única tragédia que aconteceu foi o envenenamento de Rachel, nada
mais. O príncipe abraça-o ao vê-lo que estava bem, por momentos pensou que o tinha perdido. O
pugilista desata a chorar nos braços dele, sofria com o que estava a acontecer, sofria em saber que
a qualquer momento o coração rebelde ia parar por completo, levar a alma para longe e deixar
apenas o corpo para a terra comer.

253
Sete Nomes

William olha para Rachel deitada na maca, soada da febre que não baixava por mais
medicamentos que tomasse.
– Como está?
– A morrer. Vai morrer da mesma maneira que a mãe dela morreu… – fala rouco – Não aguento
isto.
– Como adoeceu se ainda ontem estava bem?
– Envenenaram-na, deitaram-na num beco para morrer. Eyes não encontra o tipo de veneno…
Vou perdê-la pai, vou perdê-la também!
O príncipe toca a mão dela, nunca pensou que a veria assim, deitada e quase sem vida. Venenos…
Cruzou-se com muitos, Viena tinha um departamento especializado nisso. Caso o rei fosse
envenenado com algo, os médicos encontravam a cura caso houvesse.
– Testou mesmo todos? – olha para o médico.
– Desde cianeto a venenos mais leves. Nenhum deles ficou azul quando misturei o sangue. Assim
não sei como ajudar.
– Em Viena existia uma enorme prateleira cheia de venenos que usavam para matar o meu sogro,
ou tentar.
– Tenho todos o que o senhor está a referir. Esse deve ser de fora, só isso explica a difícil solução.
De fora… O máximo a que William chegou foi à Índia. E lá, qualquer coisa era veneno. Coloca
a mão na testa dela, febre… O que a sua amante falou sobre o assunto? Que existia venenos que
assustavam apenas, não matavam. Outros tinham cura através da natureza.
– Alguém esteve na Índia recentemente.
– Logan é o único inimigo que lá esteve. Achas que ele a envenenou?
– Tenho a certeza. Mesmo que não saiba quem é… Ou que tipo usou. Mas… As sanguessugas
gostam de sugar sangue com essas toxinas. E se não me engano, este veneno é de rã anã, acho.
Então, se tivermos muitas, ela fica limpa.
– Pai… Essa é a pior ideia que já ouvi. Quero salvá-la, não alimentar essas lesmas negras que
metem nojo.
– É capaz de ter razão. – Eyes comenta ao pensar sobre o assunto – Em Roma usavam-nas para
limpar o sangue. Vai ser difícil encontrá-las.
– Tem a certeza? – Phill olha-o.
– É uma possibilidade que devemos testar.
O pugilista coça a cabeça. Sanguessugas… Elas fizeram o dia anterior ficar bem desagradável,
além disso, Rachel odiava-as.
– De quantas preciso?
– Um fraco seria genial.
Respira fundo ao arregaçar as mangas. Ia doer muito, mas fazia um simples sacrifício por ela.
– Vais ficar a dever, Rachel. – beija-lhe os lábios – Acreditas que elas te vão salvar a vida?
– Onde vais Phillipe? – William pergunta ao vê-lo pegar num casaco.
– Vamos aos vampiros. Um frasco Eyes.
O médico apressa-se em ir buscar um.
– Sabes onde arranjar?
– Se sei? Prepara o cavalo que vamos precisar de velocidade. E luz. Eu sacrifico-me.
Eyes dá o frasco vazio
– Boa sorte, Phill.
– Cuidas dela?
– Alguma vez deixei de cuidar dos meus pacientes?
Coloca a mão no ombro dele antes de caminhar para a saída.
– Anda pai!

254
Sete Nomes

O príncipe corre para não o aborrecer. Bem, a ideia estava lá até ver o enorme cavalo a qual lhe
dava vertigens. Nega, mudou de ideias. Nunca da vida montou um e só de se imaginar lá em
cima… Enjoava.
– O que aconteceu ao de ontem?
– Ficou cocho, as ferraduras ainda não estavam prontas. Este é o Flash… – acarinha o focinho
com meiguice – É um puro lusitano.
E muito alto, parecia o cavalo de Troia.
– Vou a pé.
– Vá, vais mijar nas calças agora?
– Já olhou para esse… Bicho?! Partirei a coluna se cair no chão.
William suspira. *Ao assobiar, o cavalo baixa o dorso para o medricas subir.
– Assim está melhor?
Phill não queria fazer má figura em frente ao pai. Agarra bem o frasco debaixo do braço e monta
o cavalo. Quando Flash levanta, o pugilista sente um solavanco de fazer cair. Sem medo algum,
William passa a perna pelo dorso e agarra nas rédeas.
– Vais te agarrar a mim ou preferes cair quando galopar?
– O pai não podia gostar de póneis? – coloca o braço direito em volta do tronco dele.
Desata a rir, jamais gostaria de brinquedos da realeza que só serviam para passear os infantes.
Dando com o pé no dorso, o cavalo levanta as patas e Phill grita de medo. Depois, desata trotar
pela rua iluminada pelos postes a óleo. Melhor da casa Orange, porque William nunca se dedicou
a outra coisa. E ainda bem.

Nunca, mas nunca mais da vida entrava num lago cheio de sanguessugas. Conseguiu um frasco
inteiro e se tivesse levado mais, enchia mais uns cinco. Phill gritou tanto que fez um proprietário
sair de espingarda para a rua. William lá alertou que era príncipe e estava o serviço da rainha.
Sanguessugas para a rainha? O homem riu tanto que tropeçou numa pedra. Depois eles é que
riram dele.
Eyes lá vestiu umas luvas e colocou com delicadeza as sanguessugas no braço de Rachel, algumas
nas pernas e no pescoço. Phill ainda passava a mão na virilha, uma entrou por lá e mordeu de tal
maneira que teve que descer as calças para a tirar. Mais uma vez, William riu até ficar vermelho,
aquele não daria descendência.
As horas passaram, o dia chegou calmamente. Sobre a mesa, o relógio parado fazia companhia à
sua fiel dona. Pela janela entrava o aroma que cruzava a rua, bolo de chocolate acabado de sair
do forno. A multidão parecia saber que a paciente esteve perto das portas do inferno, estavam
calmos demais para um dia movimentado. As crianças brincavam com o meigo cavalo lusitano
que ficou no lado de fora, à espera do cavaleiro que adormeceu com a cabeça sobre a maca.
O médico volta a medir a temperatura. Sem febre. Escuta o coração, batia calmamente no peito.
Confirma as veias que estavam em volta da picada, normais. Suspira ao retirar a última
sanguessuga do braço dela. Milagre, sobreviveu ao envenenamento graças a elas. Olha para o
frasco ainda cheio, talvez fossem úteis.
A porta abre. Phill faz sinal para não falar nem comentar o que trazia. O quê ao certo? Uma
enorme caixa embrulhada com um laço rosa. Eyes esperava comida para a paciente, não uma
prenda.
– Como está? – murmura.
– Normal. Pode acordar fraca, mas está normal.
Esfrega as mãos ao sentar na cama.
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Sete Nomes

– Rachel… – chama meigamente.


Os olhos não dão sinais de abrir.
– Rachelzinha… – aproxima o rosto e começa a beijar-lhe o pescoço.
Movem-se, num pequeno pestanejar, para a luz do dia. Sorri ao sentir os lábios a beijar, só mesmo
ele para a acordar assim logo pela manhã.
– Bem-disposta?
Uma pergunta que fazia a si mesma. Suspeitava que não, depois do que Logan lhe fez, as
ameaças, aquele ataque… Nega com uma enorme tristeza no olhar.
– Comprei algo que te vai animar. – pega na caixa e pousa-a sobre a barriga dela.
– O que é? – olha o embrulho.
– Se te contar não é surpresa.
Um laço rosa… Os dedos seguem a seda macia. O que seria? Podia ser qualquer coisa, um
vestido, um chapéu aplumado… Tudo, bastava imaginar.
– Como pagaste?
– Deixei na conta de… – tose – William de Orange!
O príncipe levanta a cabeça ao chamamento.
– Morreu! – grita subitamente.
Phill levanta e faz sinal para não se mexer. Eyes esconde o riso por detrás da mão, parece que as
sanguessugas escolheram outro hóspede.
– Pai, não te mexas. – pede muito sorrateiramente.
Os olhos de William tentam alcançar o cimo da testa. Tapa a boca para não gritar, tinha umadas
sugadoras presa à pele. Phill pega numa pinça e com jeitinho, toca na sanguessuga e puxa-a.
Rachel faz uma cara horrenda ao ver aquele bicho largar um muco. Lesmas pretas, não se enganou
muito ao apelidá-las assim.
– O que isso faz aqui? – pergunta repugnada.
– Rachel, elas salvaram-te a vida. – atira para longe.
– Limparam o veneno que tinhas no sangue. – Eyes comenta – Desta eu não sabia.
Veneno… Sabia que Logan a tinha envenenado. Curar com aquilo… Olha para o frasco, quantas
teve sobre o corpo? Repugnada, a expressão não revelava outra coisa.
– Já passou. Eu é que fiquei pior, meti-me no lago para elas se apegarem ao meu corpo. – senta
na cama – Mas valeu apena, salvei a tua vida.
– E morreu de medo de andar a cavalo. Pensei que eras feito de ferro. – William comenta ao
limpar a testa.
Faz sinal para ficar calado, também não podia contar que era medricas a quase cem por cento. A
mão de Rachel toca a dele, mesmo de olhos fechados, ouviu o seu sofrimento, o quanto rezou
para não morrer. Agradecida para o resto da vida, não sabia o que fazer para lhe pagar as vezes
todas que a livrou da morte. Os olhos enchem-se de lágrimas, condenou-o, Logan sabia da sua
existência e agora iria usá-lo como escudo.
– Rachel… – mima o rosto dela.
– Desculpa.
– Eyes, preciso que veja esta testa, receio que ela me sugou um neurónio. – William pede ao fazer
sinal para a outra porta.
O médico entende o pedido. Coloca os óculos e segue o príncipe que também sabia ser pai quando
queria.
– Foi Logan, o meu pai disse que o veneno era indiano. Aliás, foi ele que te salvou, eu perdi a
minha fé de te ver viva novamente.
– Ele sabe de mim, sabe os meus passos todos, sabe que estás comigo… Vai Phill, ainda te podes
salvar de mim…

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Sete Nomes

Tapa os lábios dela. Medo, o olhar estava cheio de medo do que ia enfrentar quando saísse pela
porta. Nega, não a ia deixar nem por todo o ouro do mundo. Nega ao beijar-lhe a testa, chegava
de ser um pequeno cobarde que vivia na sua vida por medo de morrer. Queria mais, queria ser um
homem de verdade, bater de verdade invés de planear os combates. Abie pediu para ser feliz, e
iria ser se a tivesse por perto.
– Logan não está há espera que te ajude a matá-lo. Repito o que te disse, se é para morrer,
morremos juntos.
– Não é justo, tens um pai…
– Tenho-te a ti. E sei que farias o mesmo por mim. Agora que sei a verdade toda, o que aquele
homem fez, quantas pessoas matou inocentemente… Acredita, não te vou deixar. Vingo a teu
lado, vingo em teu nome e em nome da minha mãe, mesmo que o culpado não seja o mesmo.
As lágrimas descem o rosto, beija as mãos dele com tanto apreço que podia jurar que era Deus a
falar.
– Pensa no melhor, o pior já estás a viver.
– Obrigado, do fundo do coração.
– Duvido que tenhas um, mas… Deves ter. Agora abre a prenda, não a trouxe para passear nas
ruas com ela.
Passa a manga pelo rosto antes, começa a puxar o laço rosa até o laçarote se desfazer. Phill ajuda
a retirar a seda, abre a tampa da caixa e um riso sai de imediato. Rachel olha para ele, fazia
mudamente a pergunta. Really? Uma boneca, com um belo vestido azul bordado a dourado.
Cabelos negros e olhos verdes. Um colar negro no pescoço e uma sombrinha na mão de porcelana.
Tinha quarenta centímetros e deve ter custado mais de trezentos pences.
– Com tanta coisa para oferecer, tinhas que me dar uma boneca? – toca o vestido.
– Ia desenterrar um esqueleto, morreu Marcio Jungle e dava para enfeitar o nosso novo quarto.
Mas… Ele devia de cheirar mal e como era gordo, ia pesar nas costas. Se não gostas, eu dou às
meninas no outro lado da rua…
– Não. – agarra a mão dele – Adoro. Só não estava há espera de receber uma.
– Tive pena do quarto que ficou na mansão, aposto que vais sentir falta dele.
Suspira, em Boston não tinha muitas bonecas. A raiva consumiu a alma dela desde os dez anos e
a infância ficou perdida. Jason, não o tutor, mas com muito orgulho chamava de avô, de vez em
quando dava-lhe uma boneca de porcelana, na esperança de ver uma menina no olhar dela.
Tentava o que não conseguia, despertar um olhar piedoso para concertar o que se partiu por dentro.
– Não tinha outra cor?
– Tinha um amarelo feio. Pedi a melhor e ela apresentou-me uma boneca que parecia Victoria
vestida de negro com aquele olhar autoritário. Disse “Boston não gosta disso, vai-lhe dar
pesadelos.” A mulher perguntou quantos anos tinhas. Disse vinte e três e ela comentou torto “Tem
idade para casar e não brincar às casinhas.” Respondi “A senhora tem idade para ficar calada na
hora de comentar a vida dos outros.” Tive que ir a outra loja, porque ela correu-me quase à
vassourada.
Desata a rir, um homem daqueles a comprar uma boneca? Não conseguia imaginar sequer a entrar
na loja.
– Essa foi a mais bonita e olha, fiz frente à filha do arquiduque Fellings, tem dez anos e quase me
bateu por pegar nessa.
– Gostava dela?
– Gostava é de me irritar. “Toca nela e eu dou-te um pontapé nos verdes!” Mostrei os dentes e
disse que, como filho do príncipe William, tinha direito a uma boneca exclusiva. Ela puxou o pé
atrás para me bater e agarrei-a pelos ombros. O pai apareceu para me bater e perguntei se a filha

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Sete Nomes

lavava a boca com sabão, disse que queria bater nos verdes. É a primeira e última vez que compro
uma boneca.
Rachel assente vermelha de tanto rir.
– Primeiro as sanguessugas, depois a boneca… A seguir vai ser o quê? O Flash defecar para o
meu pé?
– Quem é ele?
– O cavalo do meu pai. É enorme… – ergue os braços – Nem sei como sobrevivi. Rezei aos santos
todos em italiano, e vê lá tu que mal sei a língua.
Rachel não tinha algum conselho a dar, nunca foi comprar uma boneca ou andou num cavalo
gigante. Retira a boneca da caixa e passa a mão pelo vestido. Gostava daquelas, grandes e bonitas.
Lembrava-se de a mãe chegar a casa sempre com uma nova, com outra cor e nome. Escolhia
sempre os nomes com a letra do mês. Estavam em Abril, logo o seu nome tinha que ter um A.
– April, é o nome dela.
– Deixa-me apresentar adequadamente… – Phill levanta – Good morning, MiLady April. I am
Phillipe of Orange, future husband of the MiLady Rachel Clarel. How you been?
O riso infantil percorre o consultório.
– I understand, MiLady, I love her too. Is she your best friend? Do you can tell me your secret?
Ah! I don’t believe, she loves me! Vês, ela disse que me amavas, certo?
Dá de ombros, quem sabe…
– Uma boneca? Phillipe, as mulheres preferem vestidos. – William comenta.
– April, aquele é o meu pai. Cuidado que ele é péssimo com as mulheres. – fala para o lado.
O príncipe admira a boneca de porcelana. Coça a cabeça, as filhas tinham aos montes e nunca
chegavam a brincar.
– Quanto custou?
– Cem libras. Está em teu nome.
– Achas que vou pagar isto? Podias ter dito que trazia uma de Viena.
– Alguém vai ter que pagar. Além disso, não quero bonecas das batardas.
– Que eram tuas irmãs.
– Não no momento que não eram nada a mim. Sou filho da condessa de Cavour com o príncipe
bastardo de Orange. Se tenho irmãos… Isso é problema seu.
– Agora já é condessa, quando estás à rasca com as contas.
– Paizinho… Acho que a sanguessuga fez-te muito mal. A sério, do fundo do coração, ela fez-te
mal.
A testa enruga, estava preste a gritar com o filho. Acabou de fazer uma dívida desnecessária,
onde ia arranjar cem libras para pagar aquilo? Fechas as mãos, caminha para a saída e bate a porta
quando começa a gritar na rua a ira. Phill olha para Rachel, não sabia que o pai odiava brinquedos.
Ela sorri, o lado bom de o ter, é que às vezes existia grande momentos que arrancavam grandes
sorrisos para afastar a tristeza. E dava vontade de viver mais um dia.

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Capítulo 37
Corre pela rua, faz a lama salpicar toda das botas de couro. Nem acreditava, mal as comprou e já
sujava. Esquerda… Direita… Os braços não tinham outro ritmo que não esse. Os dentes cerrados
seguravam a respiração no peito que, já não doía no momento em que se habitou àquilo. Vira de
rua, usa a pipa como apoio para saltar para o ferro, dá uma volta e salta para a varanda,
escondendo-se atrás da viga que suportava o telhado. Os homens que perseguiam continuam a
correr, nem davam conta que a sua presa já lá não estava. Rachel olha para baixo, confirma se
ninguém ficou para trás. Suspira de alívio e encosta a cabeça à viga.
Vinte e quatro anos quase acabados de fazer, abril era o seu mês favorito por fazer anos. Phill e
William fizeram uma grande festa num casebre em Ascot, longe dos olhos de Logan ou de outro
espião. Não recebeu nada, depois da boneca custar dois cavalos ao príncipe, outra prenda só se
fosse roubada. Um milagre aconteceu, Jason já não estava doente, curou a pneumonia ao ir à
lavandaria de Boston. Lamentou ela ter sabido daquela maneira o grau parental e pediu à neta
para ter cuidado, Merle não tinha sentimentos quando matava.
Como se isso fosse um problema, Phill treinava-a de manhã à noite, viviam no pequeno quarto
na estalagem por ter a renda paga e, quando deixassem de ter, mudar-se-iam para outro lado.
Salta para o chão e compõe as luvas de couro negro, não sabia como o pugilista arranjava dinheiro
para os mimos, mas chegava sempre ao quarto com coisas novas. Não trabalhava ainda, dizia que
traçava uma forma de matar Logan. Bogges ajudava quando podia, o filho também precisava de
um pai.
– Quieta!
Levanta a cabeça para o final da rua. Um ficou para trás.
– Bom dia, mal-educado. – vira-se.
Uma faca na mão? Ri ao ver como ia ser atacada. Se tivesse treinamento, golpeava bem, se fosse
fraco, falhava logo. Faz sinal para avançar.
– Não, tu primeiro. – cospe para o lado.
Aproxima-se e a faca começa a cortar o ar. O tronco desvia-se até se cansar e com força, dá-lhe
um murro na barriga, cotovelo no queixo e, rodando, pontapé nas costas. O homem cai no chão a
ganir.
– Devias ter avançado primeiro. – pega na faca.
– Maldita!
– Chama-me como quiseres, logo que não me insultes. Diz-me… Merle tem medo de vir atrás de
mim?
– Ele vai pendurar-te naquele poste e bater-te até te partir a bacia!
– Espero que não seja o contrário. Diz olá a Chester e Baker no inferno. – pega na cabeça pelo
cabelo.
Corta a goela, infelizmente não podia deixar provas para trás, tinha que ser invisível o suficiente
para Logan não a caçar. Já o deixava saber onde vivia, só para sossegar. O resto, só Deus. Crava
a faca na lama e levanta para voltar a casa.
Contrabandista, aquele homem até podia ser um, mas também revelava um enorme medo ao
mandar atrás dela os ajudantes invés dele próprio sujar as mãos.
Para ao captar algo, um som sorrateiro. Vira-se e a cabeça é tapada com por um saco negra.
Rachel mexe-se, tenta libertar-se das mãos que a agarravam com força. Traída, não deu conta que
ainda estava a ser seguida, encurralaram a presa para não fugir dos tentáculos. As mãos são
arramaras às costas, uma pancada violenta contra a cabeça faz o corpo rodar para o lado e perder
o equilíbrio.

259
Sete Nomes

Não via nada, mas ouvia os passos. E Phill… Rachel fecha os olhos, o pugilista não saberia onde
a encontrar.
Nunca cuidou de filhos pequenos, adotou-os já com tenra idade para entenderem que o pai era o
patrão e recebiam salário pelo que faziam. Andreo só tinha sete meses e já conseguia fazer Phill
ficar cativado para o resto da vida. Mãozinhas pequenas que queriam tocar em tudo, olhar sempre
atento ao pormenor, sorriso na boca que se babava, mexer agitado das pernas que ainda não tinham
equilíbrio. Querido… Como Phill nunca quis ser pai de um bebé? Abana o brinquedo de madeira
e as mãozinhas de Andreo se esticam para tocar.
No outro lado do sofá, a ama estava com cara de que o convidado lhe roubou o dia de salário.
Também tinha cara de que satisfazer o patrão se tornava difícil. Porquê? Passava as noites
acordado invés de dormir.
– Vá buscar qualquer coisa para eu comer. – Phill pede.
Como se fosse sua empregada… Ela lá suspira ao levantar, não era, mas cada vez mais não tinha
escolha. Phill não tinha vontade de comer, apenas deu um motivo para a ama se mover. Aquele
olhar dava náuseas, se fosse bebé, não a escolhia de certeza absoluta.
– Onde a contrataste? – vira o rosto.
Bogges pousa os papeis que relia e entrelaça as mãos sobre a mesa.
– Algures. Porquê?
– Parece que quer vomitar em cima de mim. É tua amante?
O detetive sorri com malicia.
– Também tem os dias contados. – alerta ao levantar.
– É má. – recompõe o bebé.
– Não tem feito um bom serviço… – pega na garrafa – Ontem Andreo estava a chorar e ela lá trás
com um vagabundo qualquer. Pode abrir as pernas a quem quiser, mas o meu filho não pode ficar
sem cuidados.
– Eu criei dois adolescentes, não precisei de ama. Acho que quando for pai, eu dou a educação,
não quero amas que substituem o verdadeiro significado de ser o progenitor.
– Rachel concorda? – pergunta ao espreitar pela janela.
– Nem sequer pensamos num futuro juntos ou com filhos. Mas se ela engravidar… Assumo a
criança.
Homem de honra, tal como o detetive foi quando a mulher que amou engravidou acidentalmente.
Maior parte, fazia filhos por aí, deixavam às amantes uma quantia para nunca mais aparecer à
frente. Se era uma prostituta, que criasse sozinha que o oficio tinha essa regra. Bogges repara
como Andreo se dava bem com o pugilista, era raro, aquele bebé só gostava do colo do pai e da
ama, nem os avôs queria. Deve gostar do perfume, ou simplesmente sentia-se confiante.
– Onde ela anda?
Phill olha para o relógio, de facto, Rachel estava atrasada. Disse que ia espionar, mas parece que
as coisas não devem ter corrido bem.
– Achas que…
Pela demora, talvez tivesse sido apanhada. Por quem? Qualquer um. O copo bate na mesa e cruza
os braços ao se aproximar da janela.
– Mais um pouco. Se não aparecer, vamos atrás dela.
Um pouco… O brinquedo de madeira não era mais abanado para as mãozinhas, a mente só focava
todas as localizações que ela o obrigou a decorar. Se algum dia desaparecesse… Phill começava
a ir a todos os locais assinalados no mapa. Mas, se ela tinha ido atrás do novo covil de Merle,
talvez eles não a encontrassem. O olhar foca o de Andreo, deveria de pensar no pior? Por
enquanto, o atraso era justificado pela chuva.

260
Sete Nomes

Gritavam, até os ouvidos rebentarem. Gritavam insultos até os santos tremerem no altar.
Arrastavam-na pela multidão que parecia ser masculina. Onde estava? A mente baralhada pouco
focava, não conseguia ler nada por causa da visão cega. Só sabia que estava algemada. Raptada.
Merle jamais sujeitar-se-ia a matá-la na rua.
É empurrada, alguém surge para tirar os grilhões e puxam o saco negro para a visão captar o que
rodeava. Luz… As mãos vão até ao rosto para tapar um pouco a claridade. E dá conta. Estava
rodeada de homens, de pessoas que trabalhavam para Merle. Traficantes, violadores, assassinos,
raptores… Tudo o que mais podre tinha a humanidade, estava ali reunida, atrás da linha desenhada
no chão. Pequena arena diria um pugilista, sem lutadores, só apostadores que ansiavam ver
sangue, tortura e gritos de acordar Deus.
Rachel acelera a respiração, conseguia ler qualquer um deles. O esconderijo? Uma linha de
comboio que ficou inacabada, tapada nos túneis por tijolos vermelhos. Servia de taberna e ponto
de encontro para negócios, além de um local de morte. Escadas para cima, um camarote que
alguém fez. E de lá, Merle e Logan, a sorrir para a nova convidada.
Dá um passa em frente e os vários dentes aparecem para a assustar. Cães esfomeados, Rachel
recua até sentir o famoso poste de madeira. Sangue… Alguém morreu recentemente. Quente…
Só passou uns minutos.
O rei levanta as mãos e povo cessa a voz.
– Não vamos assustar a menina. – Merle comenta com um enorme sorriso – Ela não se pode
esconder debaixo da cama.
Os risos percorrem o túnel, vibravam as paredes que não suportariam muito.
– Ela é toda tua. – Logan murmura ao ouvido do amigo.
– Isto devia ter acabado há treze anos atrás. – vira-se.
– Querias que eu adivinhasse que aquela pirralha ia crescer e cruzar um oceano para nos matar?
Agora, podes disfrutar um pouco, não?
O olhar vira-se para a mulher assustada. Disfrutar… Rachel não era mais uma menina de dez
anos, tinha um belo corpo feminino. Quantas mulheres eram violadas antes de serem mortas?
Muitas… E Londres nunca castigou.
Desce lentamente as escadas, arregaça as mangas e passa por entre a multidão que fazia um
pequeno corredor. Mudos, queriam ver o mestre em ação e para isso, para aprenderem, estavam
calados.
– Quanto tempo… Rachel.
Agarra-se bem ao poste de madeira, sabia o que ele queria, leu os lábios de Logan. Desarmada,
nem pistola nem faca para se defender. Não conseguiria fugir sem ser espancada ou assassinada.
Devia ter calculado que existia inimigos com o dobro da astúcia.
Dois homens surgem, agarram nos braços dela e arrastam o corpo para perto do contrabandista.
Rachel cospe para o rosto quando é largada.
– Irresistível. – estala os dedos.
O que significava aquilo? Rapidamente descobre. Despiam-na, arrancam o casaco, rasgam a
túnica branca, o espartilho é cortado pela faca, baixam as calças, puxam as botas de cano alto…
E ela, apenas focava o olhar do quarto homem que matou o pai. Não se mexia, não lutava contra
aquela violência. Nem se importava de ficar nua perante tantos homens, não tinha nada a
esconder.
Assobios surgem, que prenda àquela hora do dia.
– Boss. – um aponta.
Merle tenta entender o olhar do homem que apontava pavorosamente para as costas. Virando-a,
afasta o cabelo e o choque é tremendo. Os demais murmuram, agitam-se com aquela lista tatuada
nas costas.

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Sete Nomes

– É bonito, não? – Rachel pergunta.


Merle Thomas… Passa os dedos pelo seu nome. Ela tatuou o de todos, os sete amigos que se
uniram para colocar o fim a um homem que não aproveitava o que a vida lhe dava. Ainda olha
para as escadas, mas Logan já lá não estava para ver que aquela vingança ia longe demais.
Aperta-a contra o corpo e agarra na garganta com a mão.
– Muito nobre saberes quem somos. Esqueceste de escrever o que eramos, esqueceste de ver o
nosso cadastro. Os primeiros nunca são os piores, nunca ouviste isso?
– Os últimos é que merecem morrer mais lentamente. – fala com os dentes quase cerrados.
– Diz-me… O que sofreste no orfanato não te fez aprender que a vida é uma merda? Sabes, eu
cresci lá, no mesmo local onde Chester te abandonou. Ia morrendo queimado com azeite do
vaticano, é estranho como Deus nos castiga. Fugi quando matei a maldita freira e lancei-me ao
rio, nadei tanto, mas tanto para fugir, que ainda hoje penso que deveria ter morrido. Como fugiste?
– Esperei sete dias e sete noites por um fornecedor de trigo. Ajudou-me a esconder na carruagem
que partiu para Boston. Aprendi que na vida, as vinganças vêm em primeiro.
– É mesmo? – a mão esquerda sobe a barriga – Até que não és má.
Rachel deixa-o tocar, deixa-o apalpar os seios. Porquê? Porque enquanto focava naquilo, a mão
chegava ao mosquete que estava na algibeira. Merle começa a beijar-lhe o pescoço, lambe-lhe a
pele e por vezes, mordisca. Rachel fecha os olhos, cerra os dentes e agarra finalmente no cabo do
mosquete.
– Se queres violar-me, faz isso em um lugar privado, não em frente a cães de caça.
– Que piada teria esconder-te? – vira-a.
As mãos erguem e os demais mostram as pistolas. Sozinho no covil? Que nem apertasse o gatilho,
seria baleada até parecer um tecido cheio de buracos.
– Muito inteligente Rachel, mas como podes ver… – baixa os braços – Tenho muitos amigos aqui
dentro.
Disso sabia, mas eles sabiam o que ia na cabeça dela? Lança o mosquete aos pés dele, recua até
ao poste de madeira e ergue os pulsos para ser presa.
– Vamos, acaba com isto.
– Escolha sensata. – caminha para ela – E como desejas morrer?
– De prazer antes de me torturares.
Os demais viam que ela se rendia, baixam as pistolas e devoram o corpo dela como se fosse um
pedaço de carne. Prazer? Merle dá-lhe um murro forte na barriga, os pulsos deixam de estar no ar
e caem sobre os ombros dele. Da boca, já sente algo que iria subir a goela.
– A dor também é prazer, sabes? – agarra a cabeça dela pelo cabelo.
– É o que dizem. – fala quase sem voz.
– Tiveste a tua oportunidade, agora, só dor. – arruma-a contra a parede.
Nem espera que lá chegue, uma estalada vira logo o rosto para o lado, outro murro e um pontapé
quando o corpo cai sobre a lama do chão. Rachel grulhe, o sangue surgia nos dentes e pintava-os
de vermelho.
– Logan queria que dilacerasse os teus ossos. Acho que vais dentro de uma caixa para a sua casa.
– Que bom… Selena já tem um passatempo para se entreter. – comenta com um grande sorriso.
Puxa a perna atrás e… Quando vai acertar na barriga dela, o corpo ergue-se rapidamente. Erro,
um taco bate-lhe nas costas, colide na parede e lá se apoia para se ajoelhar. Abre a boca, deixa o
sangue escorrer pelos queixos.
– Resistente à dor? Nunca vi, as mulheres são as primeiras a cair.
Ofega, não se conseguia mexer sem sentir o corpo a reclamar da extrema violência que estava a
passar. É vaiada, os demais vaiam a alto e bom som. E as paredes tremem, fazem o teto de madeira
vibrar. O olhar ergue-se, as narinas sentem…

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Sete Nomes

– Prende-a no poste. – faz sinal para uns.


Pólvora… Quem era o burro que armazenava pólvora a cima da cabeça? Erguem o corpo dela,
não lhe roubam a atenção que já desconfiava daquilo desde que desceu as escadas a correr.
Prendem um pulso…
– Quero uma última coisa antes de morrer. Mereço, vistos que é desta que vou ter com o meu pai.
Merle ergue a mão e quem a prendia Para.
– Pede.
– Quero deixar uma carta a Phill, ele fez muito por mim.
– Tragam um papel…
– São analfabetos e quero uma letra bonita para ele não pensar que escrevi sobre um joelho.
– Nem penses!
– Não consigo fugir daqui, tens dez homens à entrada das escadas do túnel. Tens cerca de trinta
aqui baixo. Achas que seria louca a esse ponto?
Passa a mão pelo queixo, levá-la para o escritório também era uma loucura. Faz sinal para a
libertar.
– Cinco minutos. – agarra no braço dela.
Andar rápido? Rachel engrunhava o tronco que latejava de dor. Por onde passa, é apalpada,
cuspida pelas bocas que queriam morder a sua pele de porcelana. E à boca, continuava a vir
sangue, parecia que uma veia se abriu para o esófago não parar de se afogar. E os pulmões?
Ardiam, os braços doíam… Se sobrevivesse, tirava uns dias de folga antes de partir para outra.
Abre a porta e arruma-a contra a mesa. Tranca à chave, pousa um papel qualquer, tinta e um
estilete para escrever. Agarra no cabelo dela com força.
– Cinco minutos a contar.
– Assim não escrevo, não tenho inspiração.
Primeiro bate a cabeça dela na mesa antes de largar o cabelo. Zonza… Rachel tenta ver por entre
a visão turva o papel. Peso, parecia que tinha uma bala de chumbo agarrada à cabeça que queria
cair dos ombros. Passa a mão pela testa e vê sangue nos dedos que pareciam partidos.
– Escreve! – grita.
Levanta o olhar ao pegar no estilete. Zonza… Pistola na cômoda. Zonza… Janela de vidro. Molha
na tinta… Já sabia o que fazer.
– “Dear Phill… – murmura – “Morri vítima deste cão nojento… – mal consegue escrever – Tenho
vontade de vomitar sobre ele o sangue que sinto na boca… Ele abusou de mim, meteu a sua
enorme pila podre que fedia…
A estalada atira-a ao chão. Cospe o sangue para o chão, coloca a mão sobre a barriga e repousa
a testa na madeira.
– Estás assim com tanto desejo de ser violada… – abre as calças – Que te faço o favor.
– Vai para o inferno.
Merle vira o corpo dela, abre as pernas para encaixar as suas ancas. Crava as unhas no chão
quando é penetrada com violência. Outro forçar e ela não permite mais aquilo. Pega na pistola da
algibeira, Merle puxa mais a nádega para a frente, agarra no pescoço dela, Rachel estica a mão
para a janela e prime o gatilho…
– Falhaste.
O som ecoa, trespassa a janela que se quebra, percorre o ar pesado com cheiro a vinho e suor,
fura a madeira do teto…
– Nunca falho. – murmura ao ouvido dele quando levanta um pouco o tronco.
A explosão repulsa o corpo do contrabandista contra a parede. Rachel vira-se para o lado e
protege a cara do que começa a fazer o túnel tremer. Fumo e gritos, não demorava muito até que
o chão de Londres desabasse sobre quem já estava morto ou queria sobreviver.

263
Sete Nomes

Olha para Merle no chão, cerra os dentes e corre para a pistola sobre a cômoda.
– Nem penses! – agarra no pé dela.
Cai no chão, tenta gatinhar para lá chegar. O pilar do alpendre parte-se e o escritório inclina-se,
levando a rasto a mobília. Rachel agarra-se à ranhura do chão e tenta segurar o corpo que
escorregava com os pés. Merle rola pelo chão.
Algo suspende o escritório, é como se Deus agarrasse na corda que fugia pelos dedos e desse
essa oportunidade de ela se vingar. Pistola… Rachel não a encontrava. Mas encontra algo melhor
que uma bala de chumbo ou veneno. Tinta, tóxica ainda dentro do pequeno fraco. Vira o rosto
para Merle que ficou com a perna cravada num ferro que se partiu. Sons percorrem o túnel, a
pedra que se prendia queria cair novamente.
Larga a ranhura, escorrega pelo chão e apanha o frasco de tinta. Mesmo ao lado do
contrabandista, não espera ao fazer balanço com a mão direita e meter o frasco pela boca dele.
Merle vai lá com as mãos, mas Rachel coloca-se sobre ele, as pernas prendem os braços e tapa a
boca que devia de engolir aquilo. Tose do fumo que lhe chegava às narinas.
– Não devias de esconder a pólvora sobre a cabeça, não devias dar ouvidos a uma mulher
desesperada! Que venham os piores, não tenho medo de nada no momento que luto pela minha
felicidade.
O contrabandista começa a ter convulsões, sufocava com aquilo na boca. O escritório move-se
mais um pouco.
– Inferno, todos vão lá ter. – sai de cima dele.
Merle deixa de se mexer, os olhos encaravam o rosto que há treze anos atrás desejou que morresse
no sofrimento. Rachel suspira de alívio, uns dos mais difíceis já estava. Abre os braços para ter
equilíbrio assim que volta a sentir aquilo a ruir. E agora? Procura uma alternativa, na arena estava
pessoas em carne viva, escombros e o pior ainda estava para acontecer, se as carruagens
continuassem a passar, o chão demoraria… Três minutos a engolir quem lá passasse.
Olha para o lado, metade das escadas ainda estavam intactas. Respira fundo, vira-se e corre sobre
o aro da janela que partiu. Descalça, não poderia sentir mais dor que aquela. Com balanço, salta,
o escritório afunda-se e as mãos agarram-se a um degrau para não cair. Uma nuvem de fumo volta
a surgir, a madeira era consumida pelo fogo que se alastrava.
E agarrada às escadas, agradece a Deus a ajuda dada, que sozinha, não ia longe.

264
Sete Nomes

Capítulo 38
Coração na mão, Phill e Bogges correram ao estrondo que abalou Londres. Segundo os boatos,
estavam a abrir mais um caminho ferroviário. Mas, nada foi decretado e assim que o chão se abriu
e engoliu não só pessoas como casas… Os guardas reais e em conjunto com a polícia, isolaram o
perímetro para evitar mais mortes. Afinal, o que aconteceu?
O detetive teve que voltar para casa, três horas à procura dela e nada. Andreo precisava de uma
ama nova antes que aquela o assassinasse. Phill agradeceu a ajuda e voltou para o quarto da
estalagem, talvez ela lá estivesse. Não estava. Remexeu o mapa inteiro, assinalou por onde
passaram. Se ela não estava lá, onde estaria?
De olhos na janela, na esperança de a ver, Phill recusava deitar e fechar os olhos. Esperava que
Merle não a tivesse apanhado e matado. E se fez isso? Teria que viver com o pai e tatuar o nome
dela em algum lado, só para se lembrar de que amou verdadeiramente uma mulher.
Vira a cabeça ao ouvir o bater à porta. Devia de ser o serviço de quartos, raro, mas alguém gostava
de ir lembrar o hóspede que estavam quase no final do mês e precisavam de mais dinheiro.
Roda a maçaneta e puxa a porta para…
– Rachel.
Acena com a mão que estava no aro da porta. Invés de ver um sorriso, é abraçada com força.
Cerra os dentes, esqueceu-se que aquele homem tinha força de três.
– O que aconteceu? Estás a sangrar… O que fizeram à tua roupa? Onde estavas…
Ela tapa os lábios dele com o dedo. Uma coisa de cada vez, pedia com o olhar cansado.
– Pega em duas libras, desce lá em baixo e paga duas horas de casa de banho.
Assente ao beijá-la antes de entrar no quarto, pegar nas moedas e correr escada abaixo. Rachel
senta na cama e suspira. Já passou. Correu do túnel, calçou algo de alguém que morreu no corredor
e correu para não ser mais uma vítima dos escombros. Depois, nua, aproveitou a nuvem de fumo
que cerrou a visão e meteu-se por um beco. Que sorte, alguém secava a roupa. Roubou um vestido
qualquer e um casaco. Mais sorte ainda, chovia e assim o corpo lavava metade do sangue, do suor
e da violência que passou. Violada? Não, porque fez por isso. Não, porque ele não conseguiu
fazer nada mais que uma penetração sem significado. Se fosse mais que isso, sim, dizia que foi
violação.
Despe o casaco, um banho vinha mesmo a calhar.
Duas horas? A dona da estalagem gritou ao ouvir o pedido, deve ter batido com a cabeça ou
esquecia-se que ali viviam trinta e oito hóspedes com necessidades variadas. Colocou duas libras
sobre a mesa e a opinião suavizou. Mas não era suficiente. Então Phill colocou mais sete e ela
deu-lhe a chave.
Quando chegou lá, Rachel já enchia a banheira, limpava o que alguém sujou e depois, mergulhou
na água quente e fecha os olhos. Matou mais um, chegava a essa conclusão. A agulha e a linha
estavam mesmo ao lado do bidé.
Passa a água pelo ombro dela, nota como as costas estavam massacradas. Da cabeça, já o sangue
tinha sido lavado, tal como o rosto que teria uma nódoa sobre a testa.
– Já queres contar o que aconteceu? – pergunta ao pegar na faca.
– Merle apanhou-me. – a voz era profunda – Levou-me para um túnel de metro, despiu-me em
frente aos outros e violentou-me.
– Violou-te?
Deixa o tronco aninhar-se no dele, puxa os braços para encontrar consolo.
– Bateu-me. Quando estava a violar, eu fiz aquele túnel explodir.
– Quando estava… Ele estava? – fica desesperado.

265
Sete Nomes

– Phill, estava a começar. Não foi uma violação, não ouve ejaculação.
– De certeza?
– Juro pela minha negra alma que ele começou a penetrar, mas nada aconteceu porque eu explodi
com o túnel.
Beija-lhe o rosto e agarra com mais força o tronco. Sentia pena, raiva e vontade de matar ainda
mais o morto. Tentou violá-la… Phill se visse esse homem na rua, partia os ossos por completo e
nem assim parava de lhe bater.
– Na próxima vez, vou contigo. Não quero que sofras mais do que já sofres, ou que algum homem
te toque dessa maneira.
– Não sabia que ia ser raptada. Matei-o, é o que importa.
– E como estás psicologicamente? Quer dizer… Uma tentativa de violação é grave, defendeste-
te ou forçou-te? Acho…
– Phill… – vira-se – Eu estou feliz, com vontade de matar o próximo da lista e terminar isto para
irmos embora para Itália. Provoquei-o de propósito, queria que tentasse fazer aquilo para chegar
à arma na algibeira. Eles armazenavam a pólvora no andar em cima, consegui que ele focasse o
meu corpo e não os meus passos. Não tive receio de ficar nua, nem de mostrar o meu corpo a eles,
porque revelei a minha lista negra e mais que isso, não sou feita de vidro. Podes sentir repulsa de
mim, dormir no chão invés da cama…
– Nunca. – agarra no rosto dela com carinho – Nunca faria isso. Não o fiz quando fizeste amor
com Elvis. Só tenho raiva dele, raiva de te ter batido e tocado. Continuas a ser o meu futuro, e se
é para morrer, morremos juntos.
Beija aquelas mãos meigas que queria ter perto de si até um dia fechar os olhos. Não podia estar
mais feliz por ter aquele homem, mesmo que nada fosse o que parecia.
– Corta este nome das minhas costas e coze.
– Aguentas ou tentamos daqui a uns dias?
– Mesmo que esteja cheia de dores, com a cabeça a andar à roda e o corpo quase desfeito, quero
que me tires este peso de cima.
Assente ao ajudá-la a virar. Rachel pega na rolha de cortiça e coloca na boca. Phill bebe um
pouco antes de cortar levemente o nome tatuado. Merle Thomas. Aquele nome ficaria entalado
na garganta, nem podia ver a lápide dele no cemitério, tinha a certeza que cuspia para a terra ou
urinava. O sangue começa a escorrer, desce as costas e perdesse na água quente. A dor parecia
ser mínima, Rachel deixava as lágrimas de cristal deslizarem pela pele, rezava ao pai que a devia
odiar por ser tudo o que a sociedade proibia. Pedia perdão a Deus, perdão a si mesma por se
castigar tanto.
A agulha perfura a carne aberta, Phill sentia a cada perfuração uma dor aguda que aparecia na
barriga e fazia-o sentir mal.
– Como morreu?
A rolha cai na água, as mãos agarram a beira da banheira com força.
– Aproveitei que a perna estava presa num ferro e meti um tinteiro pela boca a dentro. Sufocou
com aquilo e depois de ingerir obrigatoriamente a tinta.
Fica arrepiado, não era a melhor maneira de morrer.
– Os restantes, ficaram por debaixo do teto que explodiu, isso se não tiverem morrido
desmembrados, ou queimados. Vi pedaços de carne a feder, como se fosse churrasco.
– Foi a explosão que ouvimos quando fomos à tua procura. Parece que o chão cedeu e engoliu um
prédio operário, uma casa e metade das pessoas que lá andavam.
– Não tive alternativa, se não tivesse dado conta que tinham pólvora, talvez tivesse sido violada,
acorrentada ao poste de madeira e massacrada até morrer. Outro golpe de sorte.

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Sete Nomes

Sorte? Não, nervos de ferro e estômago de aço para se sujeitar a tanta violência para se libertar.
Estava mesmo desesperada ou cairia na primeira pedra da rua. Corta a linha e coloca um pano
com brandy sobre a ferida. Rachel cerra os dentes e ergue a cabeça que queria gritar a dor que
sentia.
– O que importa é que conseguiste e estás aqui novamente. Se não chegasses, iria procurar-te
novamente.
– E se não encontrasses? – fala quase sem voz.
– Pediria ajuda a alguém.
– E se estivesse morta? – deixa-se cair para trás.
– Enterrava-te em Boston, como tanto queres.
Sorri, pelo menos depois de morta tinha paz. Phill bebe mais brandy, ainda custava a engolir.
Rachel puxa a garrafa para si e bebe sem parar.
– Próximo nome?
Sem mais uma gota, deixa a garrafa cair no chão.
– Preciso de um tempo. No mínimo, uns dias.
– E esse nome, eu posso ajudar de verdade ou vais continuar a desafiar a sorte?
A mão sobe o pescoço dele, passa por entre o cabelo negro e sente-se feliz. Porquê? Estava em
casa, segura nuns braços que sempre dariam mimo. Viveu, ultrapassou a força que não tinha e
conseguiu escapar com vida.
– Tenho que deixar acontecer primeiro.
Phill percorre a mão pela barriga e sobe lentamente a pele. E àquele, Rachel sorri ao sentir o doce
arrepio de prazer. A diferença entre um violador e um verdadeiro homem era essa, forçada, nada
sentia, livre, entregava-se.
– Amo-te Rachel, não sobrevivo à tua morte.
– Não vivo com o teu nome tatuado no peito.
– No peito? – sorri.
– Sim, perto do coração. Para me lembrar todos os dias que amei um homem que me deu tudo o
que precisava e jamais fechou a sua porta. Nunca soube o que é amar e agora sei.
– Também eu. Amar é… Não pregar olho a noite toda, com medo de ver aquela pessoa morrer
sobre a cama sem existir algo que a salve ou nós fazermos por isso. Hoje fiquei fascinado com o
Andreo. Pensei… “Phill, quando tiveres um filho com Rachel, vais ser um pai babado.” Lembrei-
me que nenhum dos dois está a pensar nisso.
Ri ao negar, naquele momento uma gravidez era arriscada.
– Que nome teria se fosse menino?
– Cristian.
– Não, prince Cristian Charles William…
– Blá, blá, blá… De Orange.
– Certo. E menina?
– Isabella Angellyne Abibatu.
– Espera… Não ouvi bem… O nome da minha mãe e da Abie?
– Elas não merecem uma homenagem digna?
Enche-a de beijos, nunca ficou tão feliz por tal prenda. Mas, nem estava grávida ainda.
– Vamos já fazer um filho e ver se a sorte é grande.
– Para chegar mais um que me bate na barriga e perda a criança? Não, nem penses. E isto é só
uma vaga ideia, nada mais.
– Vaga ideia do futuro. – cantarolei-a.
Revira os olhos, aquele não podia ouvir planos que ficava logo prendido à ideia.

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Sete Nomes

Os corpos estremecem com o forte bater à porta. Quem era? Um hóspede qualquer que se lembrou
de ir ali.
– E agora?
– Eu tenho a chave, Rachel. Para entrar vai ser preciso arrombar e eu duvido que ele faça isso.
– Quero entrar! Estou de caganeira e quero entrar! – o homem grita ao bater com força.
– Vai ao penico! – Phill responde.
– Ou saem daí em cinco segundos ou deito a porta abaixo!
O pugilista ri, não ia fazer isso. É então que ouve o contar e não acha piada nenhuma.
– Lá se foi o banho. – Rachel levanta devagar por causa das dores.
– Comprei a casa de banho por duas horas e em trinta minutos, somos varridos daqui. Malditos
vizinhos! – sai da banheira e procura a toalha – No meu tempo era penico debaixo da cama e
caganeira, monte!
No tempo dele? O olhar de Rachel relembrava que isso não era nada típico da cidade.
– Kayo contava as suas aventuras por New York e Miami. Dizia que lá era assim.
– Nós, os states, somos civilizados. Temos esgotos. – fecha o robe.
– Aqui também há, ninguém é que vai lá limpar, ou todas as casas tem canalização. Por algum
motivo ainda vivemos como a idade média, apesar de ser o século XIX.
Era bem verdade, muitas pessoas ainda viviam na miséria primitiva, junto às docas, em pequenas
ilhas com casas de madeira e carcaças espalhadas pelos cantos. Nem sempre se sabia o que eles
comiam, vendiam o corpo para alimentar os filhos que nasciam quase em ninhada. Trabalhavam
todos os dias, morriam de qualquer doença e nunca veriam o verdadeiro nascer do sol. Slum,
Londres não conseguia ser uma New York se continuasse a colecionar pobres nas margens sujas
do Tamisa.
– Dez! Onze…
A porta abre e Rachel cruza os braços. Um gordo com caganeira. Comeu a carne que certamente
não era do Tech, vistos que estava preso e longe de Londres.
– Desculpe MiLady, mas estou mal da tripa.
– Menos barulho às quatro da manhã, a tua cama range muito com as tuas amantes.
– Elas são prostitutas sem modos. – sorri.
– E com gostos muitos exóticos para fazer com a boca o que se faz com outra coisa.
– Como sabe isso? – fica desconfiado.
– Muito se sabe com um simples olhar. – caminha para o quarto.
O homem fica a pensar sobre o assunto.
– Cake, olha… Aquela mulher que bateu à porta ontem… – Phill coloca a mão sobre o ombro
dele – Ela é muito bonita e tem ar de que faz um serviço impecável. Mas… Estou comprometido
a um futuro muito digno do meu nome. Diz a ela que não estou nem um pouco interessado.
– Como a tua amante sabe que faço sexo oral? – sussurra ao aproximar o rosto.
O pugilista fica pensativo. Boa pergunta, como ela sabia?
– Não é um pouco nojento? Quer dizer… É estranho.
– Amigo, elas é que metem lá a boca. Além disso, dá prazer e é para isso que as pago. Tens ali
um banquete de lamber os beiços. – pisca o olho.
Ri, Rachel era rara no mundo da submissão.
– Antes rebelde que freira, como metade das mulheres londrinas. Vou indo para o jantar.
O homem ri com o trocadilho. Acena antes de entrar na casa de banho.
Phill fecha a porta do quarto e pousa a caixa de prata ao pé da boneca de porcelana. Como ela
sabia que as prostitutas do Cake faziam aquilo? No bordel do Rabbit até se entendia, elas faziam
de tudo, mesmo que ninguém entendesse. Mas ali… Olha para ela a deitar na cama e pegar na
banha de porco.

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Sete Nomes

– Como sabias aquilo das amantes dele?


– Está na cara que faz. – esfrega o creme branco – Depois, houve uma noite que tive que ir à casa
de banho e vi por entre a porta encostada o serviço. Tenho olhos na cara.
E uma curiosidade de diamante.
– Estou curioso para saber como é…
– Digo desde de já que não estou disposta a qualquer erotismo macabro como é aquilo. Depois,
uma história horrível varreu Boston sobre isso.
– Tipo…
– O marido de uma mulher cortou o pénis do amante enquanto ela usava a boca para dar-lhe
prazer. Ela ficou com aquilo na boca e nem consigo imaginar sem ficar enjoada.
Levanta as mãos, nem insistia no assunto que parecia coisa do diabo.
– Vamos dormir?
– Nada de apertar-me com força ou encurralar-me contra a parede, estou partida por completo.
Não é cedo para dormir?
– O dia para mim já acabou. – entra na cama.
Nem discordava, às vezes era melhor acabar com o que começou mal. Aninha-se no tronco dele,
pede mimo indiretamente à mão livre. Então e a regra de agarrar? Rachel precisava tanto daquilo
que nem queria saber se sentiria dores. Como se tivesse corrido metade de Boston e saltado de
um prédio, entrava no escritório de Jason e deitava no sofá, pedindo uma mão que passasse pelo
cabelo e desse à menina o que deixou de ter. Ele sempre a soube mimar, tal como Phill sabia. O
que mudou? As distâncias e o amor, porque a menina era a mesma.

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Capítulo 39
Tanta pressa logo pela manhã, alguém batia à porta como se fosse um caso de vida ou de morte.
Phill é quem sai da cama, Rachel nem se dá ao trabalho de levantar o rosto, apenas tapa os ouvidos
com a almofada do lado.
Abre a porta e dá de caras com Bogges, apavorado com o filho no colo, vestido ainda com o
fatinho de dormir.
– Quem morreu? – boceja.
– Quase morri! – entra no quarto.
Desvia a almofada da cabeça e vê que era o detetive. Pior, trazia o filho.
– O que aconteceu? – o pugilista pergunta ao fechar a porta.
– Logan cortou a garganta da ama de Andreo. Deixou bem frisado que sabia que estava a ajudar-
me. Adivinhei?
Bogges nem olha para Rachel para dar a clara resposta. Abana o bebé no colo para não chorar.
– Ele vai matar-me antes de Andreo crescer. Sabia do risco que corria, não sabia era assim tão
grande.
– Diz lá… A culpa é minha? – Rachel ergue com cuidado por causa das dores e dos pontos.
Nada fala.
– Diz! – grita – A culpa é minha?
Vira o rosto.
– Sabes bem que é. Era preciso explodir com o chão?
– Não sei do que estás a falar…
– Merle foi encontrado carbonizado nos escombros. Está na morgue e adivinha, não entendem
como um tinteiro ficou entalado na goela. O teu primo vai chegar aí com a polícia, uma pessoa
sobreviveu para contar a verdade.
Rachel olha para Phill também alarmado. Uma testemunha que não morreu... Senta na cama, não
podia haver mais azar que esse.
– Quem?
– Não sei, só tive tempo de pegar em Andreo e fugir. Logan tem espiões, sabe de tudo o que fazes.
– Ele está um passo à tua frente, Rachel. – Phill comenta desiludido.
Mas não estava na cabeça dela para saber o que podia fazer ou não. Podia até ter olhos e ouvidos
em Londres, mas não tinha quem fosse capaz de ler a mente só com o olhar, ou ouvir o
pensamento. Levanta da cama, caminha para a mala ao lado da boneca e abre para pegar no cheque
que Jason mandou para ajudar na despesa. Mas, só de saber que o avô a sustentar a neta, não
aceitou nem um único dólar.
– Parte com Andreo para Linford e fica na casa dos antigos Flange. – vira-se – Estás fora desta
vingança.
– Achas que fugir ajuda? Quero ajudar.
– Não estou a pedir, estou a exigir. Vai, é melhor que ficar e deixar esse bebé órfão, sem um único
parente vivo. Começa do zero, troca de nome e conta uma nova história a Andreo, mas não deixes
Logan atingir o que é o teu ponto fraco.
Abana o bebé que fica agitado, olha para o simples cheque que trocaria tudo na sua vida
miserável. Linford, não era assim tão longe e o comboio ia lá. O pedido estava no rosto com receio
de ver mais uma vítima de algo que buscava sozinha. Espancada, a nódoa negra não dizia outra
coisa. Batalha dura que travou com o traficante, por um lado, os ingleses agradeciam aquele
atentado suicida, matou muitos criminosos foragidos, por outro, as vidas inocentes perdidas não
tinham perdão.

270
Sete Nomes

Pega no cheque.
– És igual ao teu pai, bondosa demais com quem te estende a mão. Espero que não tenhas o
mesmo fim.
– Morrerei de consciência tranquila.
E determinada em seguir o longo caminho para a morte. Nunca ficou tão contente em rever o
antigo cliente no olhar cheio de esperança de se vingar. Assente, o ódio era um solitário percurso
a percorrer. Envolvia muitas pessoas e no final, protegia-as. Vira o rosto para Phill, agora que se
aperfeiçoava à ideia de ter um amigo, tinha que ir.
– Espero rever-vos vivos.
Ambos sorriam, pedia o que quase era impossível. Sem mais palavras e antes que fosse tarde,
Bogges sai do quarto. E agora? O pugilista perguntava com aquele olhar receoso. Rachel coloca
as mãos nas ancas, começa a andar para a janela e analisa a difícil situação. Presa… Podia até ser
prendida na cadeia, mas apostava que o primo não a ia deixar lá por muito tempo.
– Pega na mala e parte antes que cheguem.
– Sabes que não partirei para lado algum.
Vira o rosto, deu um osso ao cão e agora ele estava aos pés do dono. Enche as bochechas com ar
e liberta de uma só vez, estava sem alternativas.
– Vai… – caminha para a mala – Tens de proteger os meus documentos e… – pega na boneca –
April.
– Não.
– É o melhor a fazer, se ambos formos presos, vai ser difícil conseguir um alibi que te ilibe do
que fiz… – pega na roupa e começa a despir-se.
– Não te vou deixar!
O olhar de Rachel ergue-se para aquela palavra de ordem. As mãos deixam de baixar o vestido,
tocam o rosto dele e com um simples repousar de testa nos lábios, reza para que ninguém o mate
antes do final.
– Procura um Wood, eles são grandes advogados. Escreve uma carta ao meu avô, pede imunidade
diplomática porque sou americana.
– Quero…
– Copia a morada de uma das cartas que tenho ali…
– Não me faças isto…
– Juro que saio em uma semana ou vinte e quatro horas. – recua a cabeça – Não posso fugir, agora
tenho que encarar uma das consequências. A testemunha é Logan e ele quer a todo o custo ver-
me morta. Pode brincar comigo, mas não com quem eu lido todos os dias.
Perdida, desemparada e com medo, Phill encontrava isso na voz, no olhar e na mão tremule que
segurava a sua. Matava e agora tinha medo de ser presa, condenada à morte por tentar vingar um
passado perdido. Agarra o rosto dela, foca bem aquele olhar cheio de lágrimas de cristal.
– Força Rachel, a tua mala vai, mas sem ti, não vou a lado algum. Vou libertar-te, nem que implore
à rainha, nem que implore ao meu pai… Não vais morrer, juro.
Assente ao se abraçar a ele com força. Deus não costumava ser tão generoso com aquela alma
rebelde, porém, de vez em quando, lá apareciam os anjos mais improváveis para guiar. Para não
ficar preso ali, Phill larga-a, calças as botas, veste a camisola, ajeita o casaco nos braços, coloca
a boina e pega na mala.
Com a mão na maçaneta da porta, vira o rosto para quem ia ficar à espera. Por detrás de Rachel,
as nuvens deixam escapar um raio que entra pela janela, ilumina o quarto e aquece o ar. Sorri,
sozinhos estavam os preguiçosos, quem luta nunca está só. Fechando os olhos, sai e fecha a porta.
Próxima paragem, casa Wood.

271
Sete Nomes

A estalagem foi invadida por soldados da realeza e o inspetor que, por mais contrariado que
estivesse, cumpria o dever que prometeu no parlamento. Quando chegou a carta escrita à máquina
que uma mulher ia ser presa por matar mais de quarenta pessoas… Não teve a certeza de quem
teria coragem para isso. Bastou ler que Merle Thomas estava entre os mortos para levantar da
cadeira e arregalar os olhos ao escriba. Rachel matou-o e ainda matou os restantes. Não sabia
como a ia ajudar, Gwenny pediu para deixar a prima apodrecer na cadeia por ser um mau exemplo
para a família. Mas, Walter tinha um coração de manteiga, principalmente para ela, a prima que
amava.
Lá a encontrou deitada na cama, com as mãos atrás da cabeça e perna cruzada. Resistência?
Nenhuma, apenas ameaçou matar o soldado que a fazia gritar de dores. O que ele pensava que ela
era? Um pedaço de aço? Até teve coragem de lhe dar uma estalada por a empurrar para a
carruagem com grades.
O povo vaiou, quem tinha cestas na mão, atirou contra a carruagem legumes na esperança de a
acertar. Os pobres e os órfãos aproveitavam isso para roubar a comida que os ia alimentar à noite.
Escoltada, Walter coloca as mãos nas grades e mostra a profunda tristeza que sentia.
– Desculpa primo. – Rachel pede sentada no banco.
– Serás sempre a minha Achel, quer boa menina ou vilã.
Um sorriso confortante surge no rosto apavorado. Toca a mão dele e beija na esperança de pedir
clemencia. Família de verdade, não se imaginava a chorar a morte dele, nem de Stayci.
– Sir, está tudo pronto para ir. – um soldado alerta.
– Não fales nada sem um advogado presente. O conselheiro da rainha vai julgar-te ao lado da
testemunha que te viu. Farei de tudo para te ajudar.
– Preciso de imunidade, sou americana e tenho direitos.
– Para isso é preciso os teus documentos.
– Casa Wood, Phill foi lá. Vai à embaixada e pede, só assim me liberto disto.
Assente ao recuar e fazer sinal para começarem a ir.
– Silêncio. – pede quase em sussurro.
Sorri ao sentar novamente, Logan estava mesmo por lá? Iria ler muito com o olhar, qualquer
podre do conselheiro da rainha, qualquer escriba que estivesse a registar, qualquer pessoa que se
sentasse numa cadeira. Precisavam de motivos para a prender e, sem testemunhas de peso, nada
feito.

O relógio trabalhava como se fosse a era do carvão. O problema é que esse século estava no
outro lado da janela, nas ruas cinzentas e nos becos imundos. Qualquer coisa era motivo de fome,
doença e morte. A vida do operário raramente se resumia a outro assunto, trabalhavam para pagar
o caixão e com sorte, mais uns xelins para a cova ser bem funda, ou os esfomeados roubavam os
corpos e vendiam nos talhos como carne de porco.
Ali, por detrás da janela, na sede judicial de Londres, a culpada estava presa por grilhões, em
frente a uma mesa cheia de papeis, na alçada de um quadro enorme com a imagem de Victoria e
uma cruz logo em baixo. Culto do chefe, Cristo, e culto da rainha. O mundo ainda veria que
grandes homens teriam direito a um altar em casa dos comuns. Mas esses grandes homens também
poderão ser pesadelos para a humanidade, ninguém que não faça uma guerra merece um lugar na
parede.
Logo atrás, um homem com a cartola na mão, lia o jornal que trouxe debaixo do braço. Sossegado
demais para quem ia testemunhar, foi pago para repetir vezes sem conta o que ia voltar a repetir

272
Sete Nomes

ali. Foi pago para estar presente onde não esteve, deitar as culpas para uma estranha que por mais
culpada que fosse, não merecia o destino cruel.
O olhar de esguelha foca o espelho pendurado na parede à esquerda. E lê… Lê o homem que
sofria do pulmão esquerdo, tossia até perder as forças e bebia chás tão quentes que o esófago
queimou quase por completo. A voz era baixa, para ser ouvido era preciso fazer um voto de
silêncio. Esquerdino, anel de casamento dado pelo avô que vendeu a casa para o comprar. Pai de
sete filhos, calhou a sorte de ter um rapaz ou voltava a tentar. Um olho quase azul e outro verde,
mas por usar óculos, essa mesquinha diferença não se notava. Lia devagar, ainda analfabeto.
Comprou diploma do curso ali mesmo, e disso fazia a vida. Em quê ao certo? Vendia sabão,
apesar de ser contabilista na loja.
O homem levanta o olhar ao se sentir observado. E do espelho, repara que a mulher o mirava
como se fosse uma estátua. Fecha o jornal e pousa-o no sofá, em breve veria a cabeça dela a rolar
pelas escadas de Buckingham.
– Quer algo, MiLady?
– Quanto te pagaram para falares sobre o que não sabes?
– Não sei do que fala.
– Sabe muito bem. Cristian Clarel pagou a minha morte. Aviso-o que quem mente também é
morto.
Entrelaça as mãos sobre o joelho e foca a porta, fim de assunto.
– Pois bem, pode até mentir, mas direi à sua mulher que dorme com a irmã dela e teve inclusive
um filho que é seu lacaio lá em casa. Como sei? O seu rosto não indica outra coisa.
Mudo, mas não surdo.
– E…
A porta abre subitamente. Rachel vira a cabeça para a janela e reza para que o primo ou Phill
tenha conseguido chegar à embaixada, ou seria presa sem qualquer opção de liberdade ou
julgamento.
– MiLady… – o conselheiro senta na mesa.
Como suspeitou, chega um secretário com a máquina de escrever em mãos. Pousa no canto da
mesa, coloca uma folha branca, roda para a encaixar, coloca os óculos e aguarda ouvir palavras.
– MiLady… Sinceramente não sei o seu nome… – Conroy remexe os papeis – Não entendo esta
letra. Quem escreveu isto?
– Lady Huglos.
– Tem uma letra mesmo feia. Despede-a antes que vossa Majestade me corte a cabeça. – sorri
para a mulher.
Não encontra outro, apenas um ar azedo de que estava a ser presa injustamente. Todos eram
inocentes até provar o contrário.
– Pode dizer o seu nome, MiLady?
– Rachel Clarel, filha de Cristian Clarel e Angellyne Linford, prima de Walter Clarel e de vossa
Majestade por parte de George IV. Mais alguma coisa?
Conroy puxa o tronco para o lado.
– Procura o nome dela nos registos.
– Quais, Sir? Aqueles que se amontoam na gaveta e ninguém consegue colocar em dia?
Faz uma careta, a justiça inglesa ia de mal a pior. Ou, o conselheiro que queria se exibir, não
percebia nada sobre o assunto.
– Tem antecedentes criminais, MiLady Clarel?
– Como cidadã americana, só falo na presença de um advogado e de um diplomata americano.
– Americana… Americana… – ri.
O escriba não encontra a piada, mas também desata a rir para não parecer mal.

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Sete Nomes

– Vai fechar essa boca de hiena e explicar a graça?


Fica sério com a exigência, até parecia que mulheres tinham direito a pedir algo.
– Primeiro… – ajeita as mangas – Americanos não registados no consulado não têm direito a
nada. Está registada?
Baixa o olhar, ilegalmente andava pelas ruas de Londres, porque se usasse os verdadeiros
documentos, a sua identidade seria revelada. Imunidade? Bem podia sonhar com ela.
– Segundo, sendo uma “fêmea”, solteira, sem filhos e que não vive na casa do pai, está restrita às
regras de direitos. Deste modo, aviso desde de já que não tem direito a advogado, alibi e
testemunha a seu favor.
– Isso é desumano.
– Infelizmente, o mundo precisa de homens e não de mulheres. – organiza os papeis – Uma mulher
sem ninguém é um… Objeto.
O olhar é tão obscuro que a luz que refletia era sugada pelo buraco negro. Sem direitos já
suspeitava, objeto… Coloca as mãos sobre a mesa e encara o conselheiro pavão.
– Vou falar uma só vez, levante esse rabo lambido pela prostituta e vá lá em baixo receber o meu
advogado, antes que o meu irmão leve uma carta à rainha a alertar que o senhor ajudou a desviar
pólvora para a América. Ambos sabemos que esse velho ódio é motivo de disputa e acho mesmo
que chega a ser um ato bem condenatório em solo britânico. Se daqui a uns minutos não entrar
por ali o meu advogado, grito bem alto e a sua cabeça será atirada ao Tamisa. Entendido?
Conroy engole com tanta dificuldade que até o som da saliva a descer é sentida pelos restantes.
O escriba escreveu aquilo? Não, estava com as mãos levantadas infelizmente.
– Mas… Como cidadã americana e mulher órfã, a regra não se aplica. Irei imediatamente arranjar
o seu advogado, MiLady. – levanta pálido.
– Diga que é para a miss Boston.
Retira o pano branco do bolso e limpa o suor na testa. Como aquela mulher sabia do desvio da
pólvora? Não ajudava os americanos, apenas fez um bom negócio na doca, um negócio bem
promissor e nas sombras da coroa. Se a rainha soubesse dessa traição, matá-lo-ia e depois doava
a casa ao parlamento.
Rachel reconforta-se na cadeira, quando entrou ali, ouviu muito piamente esse rumor, um
desabafo de deputado para melhor amigo que iria só contar a um amigo de confiança que… Sabe
lá Deus para onde ia a informação. Graças a isso, conseguiu contornar as dispendiosas regras que
os analfabetos não conheciam e aceitavam de cabeça baixa. Sem advogado… Isso queria ele. Mas
jamais seria burra ao ponto de se queimar sozinha.
Thomas Wood, filho de Walker Wood, neto de Wilson Wood, o melhor advogado da época
georgiana que morreu de causas naturais após um baile na casa do filho. Walter foi um advogado
de brio e ensinou o segundo filho a ser um dos mais prestigiados de Londres. E foi, se a velhice
não tivesse chegado. Mulato, com o cabelo quase branco, Walter abre caminho pela rua agitada e
leva na boca o habeas corpus. Estava muito bem a dormir, com os sobrinhos da irmã Sophie que
morreu em Irlanda na casa da tia, depois de dar ao mundo três lindos filhos. Mas um pugilista
cheio de dívidas bateu na porta até a deitar abaixo. Depois apareceu o inspetor que devia os
serviços, com cara de enterro numa quarta-feira de sol. Ambos exigiam o mesmo, a liberdade de
uma mulher. Eles dormiam ou esqueciam-se dos direitos? Mulheres presas raramente eram
libertadas e quem fosse, é porque abriu muito as pernas.
Mesmo contrariado, e com um intocável feitio do avô que se orgulhava, lá vestiu o fato dos
domingos e saiu de casa à pressa que já ia tarde.
Entra no departamento judicial e retira a cartola. Como suspeitava, muita gente para tão poucas
pessoas.
– Bom dia, Sir. – um homem estende a mão.

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Sete Nomes

– Bom dia não, é quase hora do lanche. – aperta a mão – Procuro o preguiçoso Conroy que pelos
vistos, está a dever metade da casa que eu fiz tripas coração para livrar dos impostos. Sabe dele?
O rosto não parecia muito esclarecedor. Onde estava? Os empregados não eram pagos para saber.
– Thomas Wood… – o conselheiro desce as escadas – Espero que não tenha vindo reclamar a
fiança.
– Se a minha vida fosse a reclamar fianças, estava rico às custas dos londrinos, tal e qual a realeza.
Procuro MiLady Boston.
– Ela o contratou?
– Não, Deus me mandou em missão de paz. Olhe que hoje estou muito irritado e é bom que mexa
bem os pés que odeio deixar os clientes há espera. – sobe as escadas.
Nem precisava indicar o caminho, o advogado conhecia bem os cantos da casa. Abre a porta da
sala e pousa a mala no sofá, mesmo ao lado da testemunha que encolhia bem o corpo. Porquê?
Também devia ao advogado.
Rachel vira o rosto para o Wood que retirava os papeis. Casado, mas nunca teve filhos, era feliz
a viver com os sobrinhos. Pelo ar, menos conversa e mais ação. Sorri, desses ela gostava.
– MiLady Clarel… – Thomas vira-se – Dois homens desesperados tiraram-me da cama quase a
tiro. No breve relatório que mandei escrever consta que, como estrangeira… – coloca os óculos e
foca a letras – “Vinda de Boston, Estados Unidos da América, qualquer delito feito sobre o solo
inglês deve ser imediatamente registado para o consulado que, tem no mínimo um mês para enviar
ao Supremo Tribunal de Justiça americano e pedir extradição para ser julgada no seu país. Caso
isso não aconteça e sem consentimento de um juiz ou ministro, a coroa inglesa não tem qualquer
poder sobre a réu… – vira a página – A menos que esta seja ilegal, refugiada, foragida, altamente
perigosa, sem residência fixa e inimiga pública. Dentro da legalidade, o consulado americano
passa a enviar a vossa excelência a imunidade.” Entendeu? – olha-a.
Perfeitamente, só suspeitava que o conselheiro não entendeu uma única linha, ainda estava de pé.
– Trabalho feito e pago. Tenham um bom dia. – arruma os papeis na mala.
– Um momento Sir, ela é ilegal, sem documentos e matou quarenta e sete pessoas sem qualquer
motivo. – Conroy fala.
– Pois bem, apresente as devidas provas. – retira os óculos.
– Sir Olphais viu tudo. – aponta.
O homem levanta e ajeita o casaco negro. Respirando fundo, assente.
– Viu o quê?
– Tudo.
Thomas cruza os braços e encara o homem.
– Fale o que viu e que o homenzinho da máquina registe.
Registar… Mete as mãos ao bolso e esconde o nervosismo.
– Vi-a lá. Matou quarenta e tal pessoas com pólvora armazenada, trancou a porta e fugiu.
– Ótimo, quero os registos dessa pólvora. De quem estava em nome a propriedade?
– Não era de ninguém, vistos que se tratava de um túnel abandonado. – Conroy comenta.
– E a pólvora foi Deus que a colocou lá para escondê-la de Lucifer… Senhores, sem provas não
há culpados. O que levava esta mulher a matar tantas pessoas?
– Foi violada.
– Sendo assim, terão de ir para as ruas, porque mulheres violadas vingar-se-ão todos os dias.
Soube do importuno e na minha opinião, o dono ilegal, o homem que encobrem, Merle Thomas,
teve um incidente com esse carregamento ilegal e agora culpam a amante que sobreviveu. Bebam
menos brandy e usem os neurónios.
– Mas eu vi o que aconteceu, essa mulher pegou numa bomba e atirou para dentro do paiol, depois
trancou a porta e fugiu.

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Sete Nomes

O advogado aproxima-se da testemunha.


– Diga-me, como sobreviveu sem qualquer ferimento? Porque até a própria assassina está cheia
de marcas de violência.
Touché, Rachel queria gritar. Mas estava muda a ouvir as barbaridades escritas no papel.
– Eu… Eu… – gagueja – Estava no corredor.
– O chão engoliu metade de uma rua, como sobreviveu Sir? – insiste.
– Fugi! – quase grita.
– E porque não salvou essas pessoas presas?
– Porque… – faz uma pausa.
O advogado assente com um enorme sorriso, aquele homem mentia.
– Confirma esta versão, MiLady? – vira o rosto.
– Infelizmente, estava na cama a fazer amor com o filho do príncipe William, a satisfazer o
homem que gritou o meu nome bem alto lá na estalagem.
– E essas marcas? – Conroy pergunta.
– Esse mesmo homem bate-me e como todos sabem, nós sofremos em silêncio permanentemente.
Se quiser ver os meus pulsos negros de ele apertar com força… – arregaça as mangas – Ou a
queda que dei na banheira… O murro dado no rosto…
– Mentira! – o homem grita.
– Sim, infelizmente é mentira. – levanta – A menos que prove o que aconteceu, a menos que lá
tenha estado para confirmar qualquer merda que acabou de falar. Não matei ninguém e estas
marcas todas, estas… – aponta para a testa – Foi do treino de boxes. Phill é pugilista, todos
conhecem Spectrum e sabem como é duro a ensinar. Não se lembravam de ver Yves com o rosto
negro? Ou as mãos esfoladas?
E agora? Calado porque isso ele viu muitas vezes. Quem frequentava o antigo Box Dead estava
habituado a ver o esguio aprendiz do pugilista negro de tanto levar nos treinos. O boxe era assim
mesmo, cruel e duro.
– Onde estava ontem de manhã? – o advogado pergunta.
– Fui treinar com Phill, acabei por fazer uma luta amadora que perdi. De cabeça quente, corri até
as margens do rio e lá estive até sentir fome. Pergunte a quem quiser.
– Porque aprende a lutar? – Conroy senta na poltrona.
– Porque cresci na rua e fiquei fascinada com a luta. Algum problema em relação a isso? Por ser
mulher, não quer dizer que seja feita de vidro.
Levanta as mãos, nada contra, apenas nunca viu uma mulher londrina a praticar tal desporto
violento.
– Vistos que o Sir Olphais está a mentir, quero que imediatamente o prenda por difamação, falsas
injúrias, crime público e genocídio de quarenta e sete pessoas.
– Não pode prender um homem inocente!
– Apresentou queixa sem fundamento e ainda levou a apreensão de uma mulher inocente.
Acredite, a lei não está a seu favor. A menos que conte quem o ajudou e isso reduz a pena.
Confessar quem lhe pagou? Sério demais e isso dá a resposta, não entregava o verdadeiro culpado
daquela confusão.
– Conroy, liberte a MiLady Clarel.
Que remédio tinha, nada a indicava como culpada do que aconteceu.
– Escreveu tudo? – Thomas pergunta ao escriba.
– Todas as linhas.
– Ótimo. Caso encerrado. Se o Sir… – olha para o homem – Quiser os meus serviços, vai ter que
pagar imediatamente quarenta libras.
– Tanto assim?!

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– O seu processo vai ser muito, mas muito dispendioso. Como não tem dinheiro nem para pagar
o de ontem, não se atreva a mandar uma das suas filhas lá a casa, nem a esposa… – pega na mala
– Nem a neta com doces olhos, baterei a porta na cara e cago para o assunto. Um bom dia que já
vou tarde para o meu repouso. – caminha para a saída.
Rachel sorri, estava em dívida para com ele, soube bem argumentar para apanhar o mentiroso.
Por algum motivo era o melhor dos melhores. Mostra bem os dentes brancos ao conselheiro que
não ganhou nenhuma cauda aplumada no traseiro.
– Que sorte, MiLady. – comenta com desdém.
– É, sou uma mulher afortunada, rodeada de tesouros. Acredite que sabe bem provar o contrário.
Se fosse presa, teria que abrir as pernas para sair?
Pousa os grilhões na mesa.
– Teria que fazer bem mais que isso, MiLady.
– Ainda bem que putas só na rua. Espero que nunca lhe calhe uma com tuberculose, ou varíola,
ou febre… – aproxima o rosto – Ou uma como eu, que pega na faca e mata enquanto dorme. Nem
imagina os horrores que posso fazer com um simples garfo. Mesmo presa, jamais abriria as pernas
para si, fede a podridão à distância.
O conselheiro aconchega a gola ao pescoço, que palavras ofensivas para uma dama.
– Passar mal, porque bem vou eu para a cama dormir novamente. – abre a porta e sai.
Nem sabia o que pensar, acabou de libertar uma possível psicopata. Senta na poltrona e faz sinal
para prenderem o outro antes que fugisse. My god… Repetia isso na mente para não cair na
tentação de se maltratar. Esperava nunca mais a ver à frente, só se fosse morta.

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Capítulo 40
Adeus estalagem, adeus quarto apertado porque a dona não aceitava mais hóspedes
problemáticos. E um pai babado como era William, lá foi falar com a dona da casa, lá em Ascott.
Primeiro… No! Na segunda… No way! Na terceira, com uma pistola na mão… Fine! O príncipe
até beijou a boca da mulher velha de cabelos ruivos desbotados, só por ceder muito meigamente
quando foi ameaçada. Quem pagava a despesa? O príncipe, vistos que ofereceu o seu quarto para
o filho e a amante dormirem.
Rachel quando chegou à cavalariça, caiu na cama e por lá ficou, dispensou falar com o primo ou
com Phill que, preocupado, queria saber o que aconteceu para ter tanta sorte. O pugilista tinha
que esperar, ela estava com dores e com sono, algo estranho demais para uma mulher agitada por
natureza.
Cavalos… Muito ele correu para se livrar dos lusitanos que galopavam atrás do medricas.
William riu tanto, mas tanto que ficou completamente vermelho. Não foi só ele, os demais homens
que amavam aquela vida, riram do medo desnecessário. Mas Phill argumentava que teve uma
dura queda no passado e agora não podia ver esses amigos há frente. Que pena, não conseguia ver
a verdadeira beleza que, segundo os cientistas, um dia ia ser colocado de parte e substituído pela
máquina a vapor. Que pesadelo, William não se via a substituir os cavalos por criações de fábrica.
O sol deu lugar à lua e, longe da cidade, as estrelas brilhavam milagrosamente no céu. A dona da
casa, Lady Louisiana, assava à brasa da lareira o frango que depenou. O aroma percorria cada
canto e recanto, abria o apetite e a vontade de jantar. Cedo, só sentavam à mesa às oito em ponto.
Lá passava as folhas de louro com coral e vinho sobre a carne, o som de as brasas queimarem
ecoava sem ferir.
A cabeça vira-se para a dama que dormiu o dia todo. Na idade dela também dormia de dia, após
vender o corpo para pagar o quarto.
– O jantar ainda demora. – levanta o tronco – Tem vinho se quiser refrescar a boca.
Rachel olha para a mesa com a garrafa. Por metade, apostava que o príncipe ou Phill não tinham
bebido.
– Alcoólica? – pergunta com as mangas nos dedos.
Louisiana pousa a bacia de cobre na pia de madeira e pega no pano. Infelizmente, certos pecados
eram pagos na velhice.
– Refresquei a boca. – comenta ao sentar na cadeira em frente à lareira.
Assente, bebeu e deu conta que tinha sido demais. Então, pousou ali na esperança de não voltar
a pegar para beber. Infelizmente, alguém relembrou a sede. Estala os dedos na mesa ao olhar pela
janela, sabia quase tudo sobre ela. O quarto onde dormia era mesmo ao lado da casa de banho,
bastava entrar para sentir o intenso cheiro a cocaína e ópio no ar. Escondia dentro de uma caixa o
vestido de noiva, casou com um magnata que ficou falido. Como não podia engravidar, os pais
deserdaram-na após o casamento falhado. Com vinte e três, vai para a rua sem rumo, vendendo o
que melhor tinha, o corpo. Bastou um ano para se apaixonar por um pianista e aprender ballet.
Tinha futuro, se a rival não a tivesse empurrado pelas escadas baixo e o pé partir-se. Dois anos
perdidos na casa do pianista que morreu afogado no rio. Vagueou por Londres novamente, foi
uma slut por completo, até na droga entrou, o álcool não teve dó e agora, com apenas quarenta
anos, aparentava ser uma velha de sessenta.
Vira o rosto, os olhos azuis ainda guardavam a mais antiga beleza perdida às custas do azar.
Peruca para parecer velha de verdade, porque na verdade, ainda era jovem demais para se render
à morte. Como chegou ali?
Louisiana faz sinal para se sentar, também conhecia o silêncio cheio de perguntas.

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Sete Nomes

– Tens uma história?


– Cheia de reviravoltas. – Rachel senta ao lado.
– William e Phill vão demorar, uma égua está a parir. O frango faz lentamente… – vira o rosto –
Pergunta.
– Não tenho dúvidas.
– Rapariga, andei muito tempo fora para entender o olhar.
Disso não duvidava, só quem cruzou as fronteiras é que conhece realmente os horrores da vida.
– Também tive problema com o álcool. Dois anos perdidos, quase três.
– Vinte anos a beber e nada capaz de me salvar. Morrerei cedo, o médico já disse. – estica a perna
sobre o chão – O que tirou do buraco?
Coloca a cabeça sobre a mão.
– O meu avô. Pegou fogo a todas as garrafas que comprava, revistava-me sempre que entrava em
casa, vigiava-me sempre que cruzava a rua. Nem sei como saí do vício.
– A família tem um poder sobre nós… – fala com uma voz profunda – A minha virou-me as
costas. Desejei a morte de todos, sem qualquer exceção.
O rosto vira-se, Rachel desejava todos os dias ter de volta os pais que perdeu, porque sabia que
a vida teria sido diferente. Talvez a família de Louisiana tenha feito algo para merecer tanto ódio
por parte dela.
– O que faz por cá?
– Um pouco de tudo… – Louisiana comenta distante – Lavo, passo, cozinho… Remendo as celas,
escovo os potros… Também satisfaço quem não aguenta… – vira o rosto – Não vês uma mulher,
vês um pedaço de carne que andou por muitas bocas. – retira a peruca – Invejo as mulheres da
minha idade, mulheres que não sofreram fome, miséria… – desce o vestido do ombro esquerdo –
O que vês em mim?
Uma mulher que se negou morrer sobre a lama londrina. Uma guerreira que por mais que os
outros vissem que não tinha valor, ela via que tinha. A mão toca a cicatriz que descia o ombro de
Louisiana. Queimada com ferro, torturada até ficar sem voz. Uma fina cova cravada na pele que
possivelmente, terminava no peito, ao pé do coração. Todos os troncos das árvores contavam uma
história nas suas cicatrizes, todos os sobreviventes tinham motivos para se lembrar do que
passaram.
O que via? No olhar cansado, palavras doces de alguém que não queria mais castigar quem muito
apanhou da injusta vida. Sobe a mão para o rosto enrugado, nenhuma alma caridosa para dar
alento.
– Vejo uma grande mulher que se negou morrer. – recua a mão – Não carregues nesse peito a
pessoa que te fez isso.
– Eu matei-o… – sobe o vestido – Enfiei o ferro em brasa pela boca e esperei ver a ponta no outro
lado. Não tenho receio algum de matar ou remorsos.
Rachel levanta, sentia que podia confiar nela. Abrindo os botões da túnica, deixa o tecido descer
pelos ombros, vira-se para a chama da lareira e revela o que a alma sofria. Louisiana ergue-se,
pousa a peruca na cadeira e vê mais de perto os nomes tatuados, as costas negras, as pisaduras na
barriga… A mão fria toca a pele, é como se sentisse o peso que aquela jovem mulher carregava
nos ombros.
– Mataram o meu pai mesmo à minha frente quando tinha dez anos. Mataram-no para atacar o
meu avô, herdarem uma fortuna incalculável e acabarem com a minha família. Perdi a minha mãe
aos doze, morreu de febre, negando se tratar. Fui abandonada num orfanato, passei fome e frio,
desejei morrer ou sobreviver para me vingar. O meu avô adotou-me sem eu saber quem era de
verdade, fez de tudo para provar quem era e o que herdava. Cresci sem alma, bebia para esquecer
o que passei e não me sentir sozinha. – olha de esguelha – Cada cicatriz conta o que sofri por

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Sete Nomes

consequência da minha teimosia. Mato, matei e matarei cada nome dessa lista, nem que isso me
custe uma vida. Diga-me, o que vê?
A mão fria recua, invejava as outras por terem boas vidas, mas ficava sentida por saber que não
foi a única no mundo a sofrer. O que via?
– Queres um conselho?
Rachel sobe a túnica ao se virar, não pediu nada, mas tudo era bem-vindo.
– Quando vingares o último, em nome de todas nós, escacara a boca e os dedos para que nem no
inferno nos toque. És uma grande mulher.
– Não, apenas não deixo ficar para trás o passado. Nem o enterro para fazer culto.
Sorri, agora não se arrependia de a ter ali hospedada, via uma guerreira que desde de cedo vingava
a família perdida. Tatuou os nomes para nunca esquecer, suportava a dor das linhas que unia a
carne só para saber que mais um estava debaixo da terra. Isso, nem Louisiana fazia.
A porta abre e ambas viram os rostos para os atrasados.
– Nunca, nunca mais penso o contrário dos cavalos, eles são tão fofos em crias. – Phill comentava
feliz.
– Ótimo saber.
– Rachel… – encosta-se à mesa – Melhor?
Faz um gesto com a cabeça, não estava a cem por cento, mas a cinquenta estava.
– Lamento ter sido presa, é vergonhoso o que Londres faz a simples cidadãs pacificas.
– Realmente. Feliz por nos ter em suas posses? – Rachel cruza os braços.
– Ter o meu filho por perto é sempre motivo para estar feliz. – William sorri.
E Phill bem que podia comprovar isso, nunca viu o pai a rir tanto ou a perder tempo a ensinar.
Também… Antes de tudo, nem o podia ver à frente.
– Contou a sua história, Lady Lou?
Ela vira o frango na grelha e levanta o tronco.
– É de confiança. Vai dormir no sofá?
– Que remédio meu. – estica os braços.
– Pensei que tinha costas de porcelana. – comenta.
William coça a cabeça, nunca da vida dormiu num sofá, no palácio tinha tantos quartos há escolha
que não precisava desse luxo burguês. Burguês, porque os pobres tinham sofás de madeira ou
nem isso.
– Faço o sacrifício.
– Ou durma na minha cama, cabe lá mais um.
O filho revela um grande sorriso, que pedido mais indiscreto.
– Só se arejar o seu quarto, não aprecio iguarias vindas de fora.
Louisiana limpa as mãos ao caminhar para o quarto, pedido aceite. É então que Phill dá com o
cotovelo no braço dele, fazendo um som bem animador.
– Vá… – William fala meio sem jeito.
– Tu gostas.
– Lou não é cortejada há mais de dez anos, prefere companhia feminina e não masculina. Magoada
por completo por conta do passado.
O pugilista vira o rosto para Rachel, companhia feminina… Ela nega, que nem viesse com essas
ideias do terceiro mundo perdido.
– Se me irritas, dormes no sofá.
– Se ela for mais dócil contigo… – Phill coça a cabeça ao sorrir – Nada contra.
– Ótimo, apostos que sabe fazer bem o serviço, vistos que não estás satisfeito. – cruza os braços.
– Insatisfeito, eu? Engano teu, por mim fazíamos amor todas as noites.
– Duvido, empurras-me para os braços de uma mulher.

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Sete Nomes

Ofendido, despe o casaco, retira a boina e puxa a camisola e revela os peitorais esculpidos com
os anos.
– Vamos a isto Boston. Quarto.
Rachel rasga um sorriso ao negar com o dedo.
– Meu doce, hoje não há nada mais de um limpar com algodão e brandy a minha ferida. Queres
cama, segue este corredor até à porta ao lado da casa de banho.
– Estás com receio do quê?
– De te espancar por causa das dores. Parece que não vês as minhas nódoas negras!
Sabia da existência delas, mas também sabia que o prazer podia mudar tudo. Lá pega na boina e
coloca na cabeça, contentava-se com o não. William coloca a mão no ombro dele, no tempo de
juventude, elas não negavam nem os beijos.
Alguém bate à porta. Quem seria? Algum cavaleiro que estava de passagem e queria ajuda para
o cavalo andar. Ou algum trabalhador para dar um aviso ao colega. Abrindo a porta, o príncipe
olha para Rachel, a família dela andava muito perto da sua.
– Inspetor e cara… – pega na mão delicada – MiLady Stayci.
Ouviu bem? Rachel corre para a porta e trava o balanço no aro de madeira.
– Primos? O que fazem aqui?
– Precisamos de falar. – Walter pede ao retirar a cartola.
Faz sinal para entrarem, a casa não era sua, mas passava a ser no momento em que a família
estava na mesma corda bamba.

Nem aqueles Clarel estavam a ter uma vida de sonho. Gwenny forçou o noivo da filha a casar na
manhã seguinte, quer com festa preparada, quer sem ela. Ameaçou-a deserdar se estivesse contra.
Ofendido, Walter gritou bem alto que a filha casaria por amor e não por contrato. Quando voltou
ao trabalho, Gwenny apareceu no palácio a gritar que o marido a espancou violentamente e
ameaçou matar. Bem, entre marido e mulher ninguém mete a colher e todos sabiam que uma
mulher espancada não era crime dentro de casa. O problema é que a rainha também foi esposa e
entendia bem o receio daquela dama. O que fez? Mandou prender o marido. Stayci fez a mala
antes de a mãe voltar e fugiu para avisar o pai que estava perto das docas a apreender mercadoria
ilegal.
Sem casa, sem dinheiro e com medo de serem separados, foram ao encontro da prima que vivia
ali, em Ascott. Não pediam abrigo, apenas uma noite para resolverem as coisas.
Rachel atira a garrafa de vinho contra a parede, pega no copo, nos pratos… Quando agarra na
estatueta grega, Phill segura os braços e faz sinal com a cabeça, a casa não era sua.
– Gwenny anda a brincar com o fogo! – vira-se – Ela quer desafiar-me?!
– Tu não lhe causas medo algum. Não entendo este ódio por mim, ou pela nossa filha.
– Ela está unida a Logan, quer destruir os Clarel para herdar algo também.
A novidade não parece cair bem ao inspetor. Não sabia que a esposa estava aliada ao inimigo.
Olha para Stayci que assentia e levanta chocado.
– Sabias?
– Pai, não podia contar, ela ameaçou-me que o matava e não vivo sem o senhor.
Empurra a cadeira para o lado e levanta as mãos à cabeça, não acreditava que tinha uma traidora
debaixo do mesmo teto. Se soubesse, tinha-a prendido há tanto tempo que agora nada estaria no
caminho da prima.

281
Sete Nomes

– Gwenny nunca te amou, ela queria Cristian e rogou-nos uma praga há treze anos atrás. Foi por
esse motivo que nós partimos para Boston, foi por esse motivo que a minha mãe não voltou a
Londres para pedir auxilio.
– Nunca soube disso. Gwenny fez algumas atrocidades, pensei que tinha deixado essa vida.
– Que atrocidades?
Nega ao caminhar para a lareira.
– Primo, que atrocidades? – insiste.
Walter passa um pano pela boca e olha para a prima que pedia para saber dos segredos todos.
– Ela estava grávida de Cristian no mesmo ano que Angellyne engravidou. Embebedou-o e
aproveitou o facto da tua mãe ir a Linford para se aproveitar dele. Como sabes, não estava casado
na época com ela e… Gwenny refugiou-se na casa em Liverpool, dando à luz um menino
saudável. Andou um mês a tentar arrancar dinheiro ao teu pai, ameaçando que contava à esposa
dele tudo. Cristian sempre disse que só havia lugar para um amor e um filho que amava, não
considerava o filho bastardo seu no momento em que ela o forçou a algo que não queria. Na
manhã seguinte, ela atira o bebé aos cães esfomeados e vê a criança a ser devorada até aos ossos.
As lágrimas descem o rosto, o corpo é emparado pelos braços de Phill que, também estava
chocado com a crueldade. Teve um irmão, bastardo e sem culpa da mãe oportunista querer o que
nunca teria. Morto, dado aos cães esfomeados como se fosse um pedaço de carne.
– Se eu soubesse na época, teria negado qualquer matrimónio com aquela louca! Desde que Stayci
nasceu que a vigio, com receio de perder a minha filha. Muitas vezes Gwenny tentou te matar,
muitas, mas Cristian ateimava que devias de dormir na mesma cama que a dele, dormias no meio
dos teus pais. Ele sabia que aquela louca poderia fazer algo, queria te proteger.
– Não basta aqueles homens todos como essa também? – fala quase em murmúrio.
– Só descobri isso um ano após o meu casamento e na época, entendi que ela teve uma
adolescência muito marcada pelos pais divorciados e sempre a discutir. Nunca pensei que ela
sempre se quis vingar de Cristian, mesmo depois de tudo. Rachel, tens que ser forte, tanto eu
como Stayci estamos fracos demais para te ajudar.
Respira fundo, aperta com força a mão de Phill e assente, começou a sua lista e terminá-la-ia até
que não existisse um único nome. Debaixo do mesmo teto, existiu uma assassina que há muito
devia ter sido morta. Ainda ia a tempo de lhe cortar a goela e atirar o corpo aos cães para a
devorarem ainda viva.
– Phill, a minha mala. – pede ao limpar os olhos.
O pugilista caminha para o quarto.
– O que vais fazer, prima? – Stayci pergunta.
– O teu tio está vivo, Jason Dylan, o meu avô que mudou o último nome para se esconder. Não
se preocupem que terão um emparo da minha parte, dinheiro não me falta.
– Não queremos viver da tua caridade, juramos que isso nunca aconteceria.
– O meu pai jamais vos negaria ajuda. São a minha única família e farei de tudo para vos proteger.
– Rachel… – Walter aproxima-se e pega na mão dela – Minha Achel, quero muito que um dia
acordes sem lembrar essas atrocidades. Mas… Às vezes preferia que não soubesses de nada. Se
morres, tanto eu como Stayci ficaremos destroçados para o resto da vida. O tio então… – as
lágrimas escorrem novamente – Sobreviveste e nenhum de nós quer voltar a perder-te.
Beija muito meigamente as mãos dele, não podia desistir por mais riscos que haja a cada nome
que risque. Ia até ao fim, até ao limite de si mesma, vingaria cada nome, vingaria o que perdeu às
custas dos invejosos e mal-amados. Um amor forte não morre e se Rachel é fruto disso, uniria na
vida e na morte a família que o pai construiu.
– Está aqui a mala. – Phill fala ao descer.
– William… A casa Orange pode receber dois nobres duques de Londres?

282
Sete Nomes

O príncipe assoa o nariz após limpar as lágrimas, até ele ficou sentido com a história chocante.
– O meu primo deve estar mortinho para me cortar a cabeça, vistos que abandonei o meu dever
diplomático e a casa Austríaca. Porém… Meu primo, Edward, também é um homem sentimental
e sempre posso fazer milagres.
– Quero que ambos partam para Orange e fiquem lá até eu resolver este assunto de família.
– Estás louca?! Jamais te deixarei aqui sozinha.
– Primo, Logan arranjará meios de vos matar. É a única forma de vos proteger. Só por um tempo,
nada mais que isso. Preferem viver para me ver ou morrer sem me enterrar?
O inspetor olha para Stayci a assentir, naquele momento queria estar mais longe do que nunca da
mãe. Seria a melhor coisa a fazer, a ordem de prisão, Logan, Gwenny… Estavam num beco sem
saída e cada vez mais o cerco se apertava. Assente à única alternativa, antes vivos para a rever
que mortos sem saber o fim.
– Vossa alteza… – vira-se para o príncipe – Espero que tínheis o selo de Orange em vossas posses
porque necessito que escreva uma carta.
– Educado ou rude?
– Escreva a merda que quiser, mas se os meus primos não forem para lá, vai ter problemas com a
sua futura nora.
Futura… Phill pousa a mala na mesa e estala os dedos na mão, é que nem se atrevesse a contrariar
a futura nora. William suspira, que pessoas violentas.
– Sinto-me inspirado para uma boa carta. – levanta – Com a vossa licença. – caminha para as
escadas.
– É seguro confiar no príncipe? Os boatos em torno de William são mesmo terríveis. – Walter
fica preocupado.
– Do tipo…?
– William de Orange tem dívidas voltadas a milhões lá em Viena. O sogro quis livrar-se dele
antes que desse prejuízo.
Dívidas… De onde isso era familiar? O olhar de Rachel focava o coçar de cabeça de Phill, tal
pai, tal filho, ambos faziam dívidas impossíveis de pagar.
– Mentira, deixei de fazer.
– Porque eu pago as coisas.
– E ninguém vem reclamar… – tapa a boca.
– Reclamar? Fala antes que te faça engolir a vela!
Walter e Stayci sorriam um pouco com a discussão.
– Bem… As luvas, as botas, os vestidos de dormir… O tapete… Não custaram assim muito… –
conta com os dedos – Devem rondar os trezentos xelins… Pouco mais que isso.
O som do copo se partir na mão estremece o corpo. Talvez não tenha sido boa ideia contar-lhe o
delicado assunto das dívidas.
– Estás chocada com a história do teu primo… – começa a recuar – E o longo dia… A acusação
que é verdadeira… Cansada, até abres a boca para puxar o sono.
– Tu estás tramado comigo.
– Achas? És paz e amor nos dias em que o sol brilha. Perdoas as dívidas? – sorri.
Grita e o pugilista desata a correr escada acima. Rachel vai atrás dele, certamente que o mataria
por continuar a ser o maior devedor de Londres. Walter abraça a filha que finalmente estava a rir
de algo familiar. Beija o rosto dela, jurou no dia em que nasceu que a protegeria de qualquer coisa.
Mesmo adulta, faria qualquer coisa para a proteger do cruel mundo que girava em torno do sol.
Longe de Londres, porque o insuportável ar era irrespirável.

283
Sete Nomes

Capítulo 41
Acordou tão virada para uma visita palaciana que não perdeu tempo em pensar sobre o assunto.
Deixou na doca os primos, um cheque na mão e uma carta a autorizar o embarque para Orange.
A carta para William chegou uma semana após a escrita, mais rápida tinha sido a de Jason com o
cheque.
O que a levava ao palácio? Muitos assuntos pendentes. Um deles, a hipoteca da casa que
pertenceu ao pai. Segundo o advogado, o avô, a mansão Clarel estava em nome de Logan que se
intitulava de dono. Porém, segundo o testamento que Cristian deixou em Boston e ali em Londres,
constava que a casa e todos os bens que ela continha, tal como o jardim em volta, passava a ser
da única herdeira que tinha, Rachel Clarel. Não só, a fortuna também era sua, bastava casar e
passar para o nome do marido. Isso Jason contornou, como uma mulher sem senso para uma vida
conjunta, tinha o direito de herdar.
Louisiana arranjou o melhor vestido que tinha. Apesar de ser mais alta e um pouco mais forte, lá
coube na hóspede que negava usar azul. Que cor mais horrível, para Rachel um preto, cinzento
ou roxo estava perfeito. Mas não, segundo o intitulado príncipe longe de casa, o azul sempre caía
bem, mesmo que a tendência de moda fosse outra. Na cabeça, um pequeno chapéu floral de
primavera, piorou em dobro o trançado preso à nuca. Nem comentava a maquilhagem, saiu da
cova e ia assassinar a rainha.
Abre as portas da sala do trono e é parada por um guarda real. No fundo, rechonchuda como
sempre, Victoria pousava para o quadro que um pintor pago queria pintar. Era da fotografia, já
alguém o disse. A rainha também tinha, só que as pinturas podiam imortalizar melhor um deus.
Em volta, alguns lambe botas a comer, damas sem inveja alguma da gorda rainha e o que queria
encontrar… Logan e os amigos do parlamento.
Vai à bolsa, caminha na direção dele com tanto determinismo que o som das botas a bater no
chão ecoa pelo salão inteiro. O pintor até se engana a fazer o inexistente sorriso real.
– Paizinho, quanto tempo?
Logan vira o rosto para Rachel. O que o chamou? De pai, sabendo bem que essa identidade não
podia ser revelada por causa das perguntas que apareciam.
– Quem é esta MiLady, Sir Clarel? – um pergunta ao olhar de alto a baixo.
– Filha esquecida de Cristian, aquela que foi raptada e deixada sabe lá Deus onde. Veja só… –
abre os braços – Voltei para o meu amado pai que nunca me procurou.
Os rostos sempre dispostos a novidades daquele cariz, perguntavam com o olhar o que estava a
acontecer. Segundo Cristian, a mulher foi assassinada e a filha raptada e levada para muito longe.
Procurou-a durante dois anos e regressou a Londres para começar do zero. Palavras do próprio
assassino que encarnava quem estava enterrado no cemitério de Boston. Logan fazia um sorriso,
mas por dentro, estava capaz de partir-lhe os dentes, os ossos… Morta e enterrada bem longe dali,
era o seu destino.
– MiLady Clarel… – Victoria fala ao se aproximar com algum aborrecimento no rosto – Sua
presença não é bem abençoada no momento em que ignorou.
– Infelizmente, vós estáveis a pousar para um quadro e eu não queria destruir o futuro Da Vinci.
– Há sempre tempo para a boa educação, MiLady. – desvia o olhar – Sir Clarel, espero que
reconheceis a vossa filha.
– Claro vossa Majestade, até estou feliz de ver que ela me encontrou.
– Não era difícil encontrar o meu pai, vistos que vive na minha casa. Por coisa do destino, a casa
que supostamente está em meu nome no testamento.

284
Sete Nomes

Os rostos viram para Logan, do que ela estava a falar? O testamento era sigiloso, só podia ser
lido após a morte de um parente. Bebe o vinho num só golo e pousa na mesa auxiliar.
– Rachel… Sempre a mesma menina rebelde que lê o que o pai deixa na secretária.
– Exatamente. – sorri – Não entendo o que lá está a fazer.
– Se estou vivo, a casa é minha. – quase arregala os olhos.
– Então porque o tribunal de Boston deu-me qualquer direito legitimo sobre a casa?
Enterrado até ao pescoço, não tinha como contornar a forte indireta que quem fosse esperto,
entendia. Cristian estava morto na América, durantes semanas os jornais não falaram de outra
coisa que não o estranho assassinato do jovem empresário. Morto, a casa Clarel voltava para a
dona, aquela que nunca entendeu o porquê de os pais não viverem lá. Era grande, vazia e com
muito valor financeiro e zero sentimental. Rachel passou metade da sua vida a viver com o primo,
apesar de nascer na casa que agora queria recuperar a todo o custo.
– Do que fala, MiLady? – Victoria pergunta impaciente.
– Nada, era uma piada. Olhe como o rosto do meu pai ficou branco. – ri.
Os demais desatam a rir, conseguiu mesmo enganar. Logan força um enorme sorriso, ciente de
que aquela piada não tinha humor algum.
– Piadas desse cariz são muito aborrecidas. Espero não voltar a ouvir. – Victoria anuncia.
– Lamento ter sido tão taciturna, mas infelizmente acordei virada para a ironia pura. Que boas
marés conta a sua corte?
– Uma má maré, vistos que a carta que dei ao vosso futuro marido ainda não foi assinada por
vosso pai. Sir Clarel, quando tenciona entregar assinado o negócio entre a Índia e Inglaterra?
– Do que fala, Majestade? – fica sério.
– Dei a vosso futuro genro o tratado comercial entre os dois impérios, como vossa filha, MiLady
Selena, tinha pedido. Vistos que não estava, dei o documento a Sir Phillipe de Orange, para dar a
vossa filha primogénita, MiLady Rachel. Assinou o documento ou não?
O olhar vira-se para um rosto sorridente, iluminado, cheio de orgulho… Por estragar um
importante negócio de Cristian Clarel, que por acaso era Darwin Logan. Fecha as mãos com força,
disfarça a raiva que sentia e sorri para amenizar o clima de guerra. Ela apanhou a importante carta,
ela desapareceu com a assinatura da rainha… Mandou Selena ir lá, mandou-a o quanto antes.
Pelos vistos, o filho bastardo do príncipe e aquele fantasma do passado estavam onde não deviam
de estar.
– Explica a vossa Majestade onde está a carta.
A rainha vira o rosto para Rachel, era bom que explicasse.
– Digo a verdade, meu pai, queimei a carta assim que li o absurdo tratado entre o comerciante
médio e o intitulado mestre do mar, vós. Pensei seriamente entregar-vos, mas mereceis grandes
projetos vindos do ocidente, nada mais se pode explorar na velha Índia colonizada.
– Não deveis ter pensado dessa maneira! – Logan berra – Como ousais desobedecer-me? Parece
que vos esqueceis das consequências.
– Vai bater-me? Arrancar o cinto das calças e colocar o meu corpo a pingar sangue? Ou
forçadamente me violará e colocará aos pontapés fora de casa? Melhor… Manda vossa Majestade
prender-me.
Ergue a mão, mas do nada surge alguém que ninguém estava à espera. Logan vira o rosto para
quem prendia o pulso com força, os demais recuam, abrem caminho para a rainha ver o insolente
que se metia na discussão. Hora essa, o amigo de Victoria era sempre bem-vindo.
– Como vai, Sir? – Phill sorri.
Saiu da cama, Rachel bem que pediu para ele não demorar a levantar, ia ao castelo e não estava
com paciência alguma para esperar. Phill grunhiu algo na almofada, um… Maybe… Bem, ele
vestiu o fato do pai e ali decidiu aparecer para colocar as rédeas nos cavalos selvagens.

285
Sete Nomes

Logan retira a mão dele e ajeita bem o casaco, que sorte que ela tinha.
– Sir Orange, bela surpresa. – a rainha estica a mão.
– É sempre um prazer levantar da cama, lavar as pulgas e vir ver-vos. – beija a rechonchuda mão
quente – Pensei que não tínheis paciência para a pintura.
– Infelizmente, alguém deve homenagear as minhas rugas.
– Mentira, ainda tendes vinte anos. – sorri.
Ela faz um som ao virar um pouco o rosto corado. O que o pugilista queria era estar lá nos
momentos em que Rachel perdia a cabeça e quase a cabeça. Chegou a tempo e ainda bem.
– Como é, vamos tomar o pequeno-almoço? – esfrega as mãos.
– O Sir não o tomou em vosso casebre?
– A vossa manteiga parece ter mel, a vossa companhia é sempre de ouro. – estica o braço.
– E vossa futura esposa?
– Rachel não sente ciúmes de vossa senhoria. Como dizem os italianos… Gallina vechia fa buon
brudo.
– Pensais que não sei italiano, Sir?
Tose para a mão ao olhar os restantes confusos. Bem que os boatos contavam que a rainha saberia
mais de vinte línguas.
– Vossa alteza, refiro-me à minha futura esposa, não a vós.
Desconfiada do contrário, Victoria finta de esguelha o bastardo que esticava a corda. Phill sorri
para dispersar o nervosismo, é claro que a galinha velha era o gnomo do palácio. Se não mudasse
imediatamente o humor dela, acabaria com a cabeça sobre o chão.
Momento ideal, Logan agarra no braço de Rachel e arrasta-a para uma porta do salão. Brincava
com o fogo, abriu a boca que deveria de ficar fechada se queria viver mais uns dias. Sempre ao
desafio, como o pai que teve o merecido destino. Não se admirava muito, herdou dele a teimosia
de desafiar e a estúpida ideia de que ia sempre a tempo de emendar os assuntos pendentes. Mas o
passado não se iguala ao presente e se fosse agora a morte de Cristian, não seria um tiro dado no
coração, torturava-o, esmagava o crânio e deitava ao rio o corpo.
Empurra o corpo contra a parede do corredor, disfarçando um pouco a deselegância com o passar
de alguns nobres.
– Custa engolir as verdades? – Rachel levanta do chão.
– Queres morrer em menos de duas horas! – agarra no cabelo dela – Pedi silêncio e atreveste a
abrir a boca?!
– Sou a verdadeira herdeira da mansão que tu intitulas como teu lar. Tens vinte e quatro horas
para sair, ou digo a todos quem és.
– É mesmo? – cantarolei-a ao ouvido – Acabaste de dar o teu prazo de vida. O veneno não te
alertou de como eu jogo?
Sorri.
– Sabes, não estou sozinha. Se matas Phillipe ou William, Victoria vai abrir uma exaustiva
investigação para apurar os culpados. Ambos pertencem à casa Orange e ambos conseguem abrir
uma guerra com Inglaterra se tu os matares. Podes crer que o teu nome era logo apontado.
– Acidentes podem acontecer.
– Ainda pior. Para teu próprio bem, abandona a mansão antes que seja tarde demais.
Empurra o corpo contra a parede e prende o rosto contra o tapete exposto. Retira a faca escondida
na perna e força a lâmina contra o pescoço.
– Merle teve um lamentável fim às tuas custas. Não vais mesmo desistir?
– Jamais baixarei os braços. – fala com dificuldades.

286
Sete Nomes

– Continua em frente, os restantes que apanhares serão o teu maior pesadelo. E quando for o único
ainda vivo, a luta vai ser sangrenta. Terei todo o gosto de te matar, dilacerar cada osso que tens…
– fala ao ouvido – Morderei o teu coração e engolirei o teu sangue como se fosse vinho.
O olhar vira-se, ainda bem que não lia a mente. A mão esquerda agarra no pulso, empurra para
fora, a direita vai até o pescoço, roda o corpo e manda ao chão Logan. Dá um pontapé na faca que
desliza para longe. Abaixa-se para o rosto que bufava o golpe.
– Já não sou aquela pequena criança que todos contavam histórias de terror para dormir debaixo
da cama. A Rachel ignorante deu lugar à Rachel ferida, com força capaz de mover Londres e sem
medo algum de acertar contas com a morte. Matava-te aqui e agora, ia presa, mas enviava-te para
o inferno.
– Mata! – grita – Sê o que o teu pai nunca foi e nunca seria!
Sorri ao olhar para o lado.
– É feio saltar os nomes da lista e deixar para último quem não deu o tiro. Terei todo o tempo do
mundo, aceito abertamente esta guerra entre nós e deixo um aviso… Posso ser mulher, mas não
sou feita de vidro. Quando menos esperares, estarei lá para te deter. Tens espiões… Tenho mais
que isso. Tens força? Tenho astúcia. Tens medo… Tenho raiva. Fica com a casa, só foi mote para
te denunciar. – levanta.
Não denunciou, colocou na cabeça deles certas perguntas que dificilmente teriam resposta.
Nenhuma mentira foi dita, e quem pensasse bem sobre o assunto, encontraria a verdade escondida.
– Um bom dia, Logan.
Uma mão agarra o pé dela com força.
– Isto ainda não acabou por aqui!
Virando o corpo, dá com o pé direito no rosto dele, fazendo-o virar-se contra o chão e cuspir o
sangue que os dentes rasgaram.
– Por hoje é tudo. – volta a andar.
Logan bate no chão com força e grita de ira, não a podia deixar ganhar terreno, perder dessa
maneira era humilhante. Mataria Rachel, nem isso implicasse morrer também. Aquela Clarel não
ia ter o que tanto queria, nem agora, nem no final da sua demanda. Acabou a jornada há ruína.

Salta para o rio e deixa-se afundar até ao fundo. O corpo refresca-se, gela os ossos e faz o sangue
querer parar. Os olhos fechados queriam puxar pela memória as últimas palavras que o pai disse
quando foi morto. Às vezes sabia, noutras, não conseguia ler os lábios que deram o último suspiro
a proferi-las. Rachel… Só se lembrava de ouvir isso, o resto… É como se um enorme lençol negro
tapasse a boca, é como se algo sugasse a voz que queria pedir algo.
Emerge a cabeça e cospe a água, enquanto os nomes estivessem tatuados, talvez a mensagem
continuasse a ser desconhecida.
Olha para Phill na margem do rio, balançando o relógio parado como se fosse um brinquedo e
com a túnica a tapar os ombros. Gostou do breakfast com a rainha, comer mais que ela, riu mais
que ela e ainda contou piadas absurdas. O assunto azedou quando ouviu o ultimato do sogro que
não era seu, mas sim do pai. Tinha sete dias para retornar a Viena e acertar contas. Phill disse que
ia transmitir a informação, cabia ao príncipe obedecer ou ignorar.
Voltar? William deu uma risada tão alta que se calou ao ir a correr fazer a mala. Porquê?
Francisco não costumava brincar em serviço e quando ameaçava, era preciso ser esperto o
suficiente para não cair na teia. Voltava no domingo, isso se não fosse morto em solo austríaco.
Phill garantiu que lhe mandava flores e ficava com o lugar de príncipe. Pelo menos alguém
mantinha a casa Orange de pé.
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Sete Nomes

– Vens?
Nega, apanhar sol era bom, entrar na água fria era loucura.
– Se algum agricultor aparece e tu estás assim… Ainda te queimam na fogueira. – Phill comenta.
Atira água ao ar e fecha os olhos, não estava minimamente interessada se era vista nua ou não,
todos os homens sabiam como as mulheres eram sem roupa, não podia haver assim tanto
escândalo.
– Porque trouxemos isto? Eu sei que é de prata e Louisiana pode roubar para comprar ópio. Mas
podias trancar na mala, mesmo ao lado de April.
– Quero que encontres o mapa que Logan quer.
– Eu?
– Sim. Também és uma águia.
Sorri e levanta o relógio até aos olhos. Como ia encontrar o mapa? Nada invulgar, umas
montanhas esculpidas na tampa que tapava os ponteiros parados, em volta, parecia ser vento a dar
a volta e no fundo, um prado caraterizado por árvores. Virando, palavras em espanhol que
deveriam de pedir algo. Clica no botão ao pé da corrente, a tampa abre e lá está o infinito oito
parado na esperança de alguma hora do dia ser útil. Nada mais.
– Onde o teu pai comprou isto?
– Não sei. Jason dizia que ele tinha herdado quando ganhou o navio. Se o Royal Sean atracar
novamente na doca, eu própria reverei o meu legado. Até lá… Fico pelo relógio.
– Onde ele anda?
– Os registos alfandegários contam que está no Rio de Janeiro. Logan tem um contramestre que
o usa para traficar açúcar e cacau. Só daqui a duas semanas é que retorna.
De mar, Phill não entendia nada porque nunca navegou. Mas ouviu da boca de alguns que o barco
a vapor ultrapassava os velhos navios movidos a vento. Preferências que nem sempre agradava
os velhos lobos do mar.
– Pela análise… É um relógio qualquer feito numa montanha. Suíça, talvez.
– Não, se fosse suíço, não parava. – sai do rio e senta ao lado dele, embrulhando o casaco de couro
no corpo – É algo mais.
– Olha, o teu relógio já foi aberto por um mestre e não tem nada por dentro. Então… Não sei.
Rachel pega na corrente de ouro e encara o rio. Cristian viajou muito, tentou levar sempre a filha
para todos os lugares onde tinha estado, apesar de muitas vezes ter que também a deixar em terra.
– Patagónia.
– Onde é isso?
– Chile do sul, colónia espanhola. O pirata descendia de Sevilha e deve ter sido lá que deixou a
fortuna. Por isso que pede isto.
Phill fica confuso. Pedia… Podia ser mais especifica.
– Sabes espanhol?
– Falo as línguas necessárias para sobreviver.
– Eu também, inglês e italiano são as minhas armas. Algum francês… – sorri – O que diz?
Pousa o relógio sobre a perna e deita para trás.
– “Segue a estrela do norte quando te perderes no sul. Nos ventos do paraíso, nunca estás perdido.”
Desde que Fernão Magalhães deu a volta ao mundo que os oceanos não são mais enigmas para
os seus navegadores. Patagónia é onde ele deixou a sua fortuna. E se bem que me lembro… Royal
Sean tem um quadro de lá. Será que James Hook tinha dinheiro ou a fortuna era a aventura?
O pugilista encara o céu e pensa um pouco. O que levaria um homem começar um rumor se era
falido? Fama, para fingir ser um homem rico, para ser procurado e levar de boca em boca a sua
imortalidade. Ou tinha mesmo e ninguém conseguiu descobrir ainda.
– Nem conheço esse pirata.

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Sete Nomes

– O nome dele é Emilio Ruaz del Sevilla. Mas como criminoso inglês, é conhecido como James
Hook. O almirante roubou-lhe o navio com todos os pertences e o pirata morreu em Porto Rico
de loucura. A nossa família ficou com o Royal porque George ganhou a aposta e deve ter deixado
ao filho bastardo algo ou simplesmente… Roubamos também.
– Eu devo ter navios lá na Holanda. Rei dos mares, sabes.
O riso é levado pela brisa quente da primavera.
– Nunca navegaste na vida.
– No ventre da minha mãe sim, em vida não. É divertido cruzar um oceano?
Coloca as mãos atrás da cabeça e respira fundo.
– Todos os verões íamos para Boston, é uma espécie de tradição. Desde os três anos que me
habituei a cruzar o Atlântico e imaginar quantos barcos se afundaram na esperança de mudar de
vida. Quando chegas ao largo das Marianas, dás conta que o oceano e o céu estão unidos por um
manto estrelado. É como se fossem um só. No silêncio… Só tens vontade de cantar, esticar a mão
para a água e apanhar uma estrela. Sou sempre a única que vê essa maravilha.
Phill até conseguia imaginar e apostava que não existia mais nada belo que ultrapasse a beleza
natural de um oceano confundido com o céu.
– De madrugada, corres para a proa e ficas de olhos no horizonte. O sol vai nascer, iluminar tudo,
pintar as águas de um tom rosa e o céu de um laranja desgastado e quente. Esse é o largo mais
belo antes de entrares nos nós mais difíceis do oceano. Tempestades, ondas grandes, remoinhos,
furacões… Só quem conhece bem o Atlântico é que não afunda o navio.
– Serias capaz de navegar sozinha?
Nega ao virar o rosto.
– Apesar de gostar estar três dias no mar, não conseguia me guiar pelas cartas marítimas. Não
conheço nada sobre o assunto, o meu pai morreu cedo demais para me ensinar.
– Então não vou contigo para a Patagónia. Ainda me matas!
– Porque raio irias comigo?
– Não sei… Lá pode ter índios que correm de tanga com enormes lanças na mão. Quem te vai
salvar deles? Eu, é claro.
Ri do absurdo.
– É verdade.
– Phill, o sul do Chile tem neve, é frio e um mar congelado. Como queres índios nus a correr lá?
Vira o rosto e assente um pouco pensativo, de facto é estranho ver homens a correr assim.
Viravam enormes cubos de gelo mal colocavam os pés fora de casa.
– Pode haver espanhóis com lanças, a correr super vestidos e com vontade de te matar por seres
Anglo-americana. Estarei lá para bater neles.
Dá um murro no braço musculado e ri, que desculpa mais absurda para ir no navio.
– Não vou lá. Já disse que sou rica e não quero herdar nada que seja deste pirata.
– Merda, lá se foi a viagem de lua de mel. Ainda podemos ir para Sicília de barco?
– Só se entrares na água fria. – levanta.
– Poupa-me Rachel, não quero ficar doente.
– Medricas! Ainda te proclamas de grande homem.
– E sou. Vais ver… – levanta e despe as calças – Sou mais homem que o meu pai.
Rachel entra na água e chama com o dedo indicador. O pugilista mal coloca o pé no rio e dá um
grito ao negar, não estava fria, estava gelada.
– Que pena. Pensei que os pugilistas suportavam qualquer coisa.
Cerrando os dentes, ganha balanço e salta para dentro de água. Emerge a cabeça e grita bem alto
que estava mais fria que o ar. Rachel não espera para começar a guerra ao atirar água contra o
rosto dele. Phill submerge o corpo e agarra-a nas pernas, erguendo-a.

289
Sete Nomes

Quando o corpo cai, ambos encostam as testas e abraçam-se para suportarem melhor o frio.
Longo era o rio da vida, tinha um início e um fim, passava por muitos lugares, dava a vida e a
morte. E não parava para descansar.

290
Sete Nomes

Capítulo 42
Onde teria sido visto Donald Noah pela última vez? Numa casa muito bem frequentado em
Londres. Diriam os homens que as donas de lá sabiam encher bem as bocas secas que saciavam
de alimento carnal. Apesar de Phill não ser adepto de prostitutas, já esteve várias vezes no Hell´s
and Sky. Beber e não só, comer com os olhos o que era oferecido aos clientes. Na hora de colocar
o dinheiro na mesa para comprar a mercadoria, recuava na decisão e lembrava-se que se estivesse
no lugar delas, desejaria todos os dias que nenhum homem a tocasse. Coração de manteiga, o
pugilista por vezes até se arrependia de ser um.
Quem deu a novidade foi Elays. Na esperança de encontrar uma nova amante, cruzou-se com o
intitulado dono de um banco da realeza. Digamos que o velho amigo de Phill não teve muita sorte
com a slut, mais uma vez foi roubado, enganado e deixado na exaustão dentro do quarto. O que
importava é que o pugilista deixou as novidades do paradeiro de Phabio e em troca, recebeu
notícias animadoras.
Um banco… Nem todos conseguiam abrir um. Diriam os mestres de Florença que alimentar um
povo era mais fácil que cobrar as dívidas atrasadas. Por algum motivo os Medicis foram amados
e odiados, imortalizados na cidade distante da cinzenta Londres. E o que os londrinos não tinham
era capital para qualquer projeto. A industria sempre conseguia arranjar grandes marés de
negócio, mas também conseguia grandes tempestades. Num dia, o sonho construía-se numa
enorme torre. Noutro, o abalo dela ruir fazia Londres tremer. Então, como Noah tinha dinheiro
para um banco da realeza?
Roía a pergunta com resposta simples, se matou Cristian, conseguiu um grande prémio. Mas…
A fortuna de Rachel não era tão grande quanto parecia. Na breve carta do banqueiro em Boston,
o primeiro limite da herança estava a chegar ao vermelho. Mesmo que Jason tenha ainda o resto
do dinheiro, Logan já gastou o quanto podia e o pouco que restava pertencia à sobrevivente. A
ideia de ficar pobre não a atormentava ainda, até porque iria reclamar ao estado inglês cada
centavo que Logan roubou, perseguiria a filha e a mulher dele até reaver o dinheiro roubado. E
não só, todos os outros que estavam mortos também abririam as contas para pagar.
Senta sobre a cama e estala os dedos sobre o colchão. Phill estava imparável há dias, exercitava
o corpo como se não houvesse amanhã. Nervosismo, William alertou que ainda não podia voltar,
estava a pagar os pecados em Viena. Como bom filho, desejou-lhe as maiores felicidades. Como
homem rancoroso, ergueu as mãos aos céus e pediu que fosse bem castigado. No fundo, não
queria perder o pai, mas também não queria que saísse impune do que fez no passado.
– Ajudavas a pensar se parasses.
Phill vira o rosto e cai no chão, chegava de flexões.
– No que queres pensar?
– Como apanho Noah.
Estica a mão para a túnica suada e limpa a testa.
– Compra dinamite, atira para dentro do banco e espera que exploda.
Pediu uma ideia, não um atentado. Levanta e caminha para a porta, nem sabia onde é que ele
tinha a cabeça. Talvez em Viena.
– Rachel… – levanta do chão – Já mataste quatro homens, não entendo essa pergunta.
– Pediste para participar e agora não sabes? – vira-se.
– Não planeio a morte dos meus inimigos, às vezes improviso.
Bate palmas, é que aquela sorte não foi toda ao acaso. Sai e bate a porta, estava sem assunto de
conversa.

291
Sete Nomes

– Às vezes eu tento entender. Desisto, as mulheres são como aqueles livros… – levanta do chão
e coloca o tecido nos ombros – Sobre leis, por mais que leia, não entendo nada.
Desde que Logan se cruzou com ela que não andava bem, dava voltas e voltas na cama, comia
calada, acordava várias vezes antes da madrugada, bebia ao pé da lareira e rezava. Phill sempre
teve a tentação de sentar ao lado e ajudar a suportar a dor, mas nem a sua força por vezes conseguia
chegar ao próximo.
Coça a cabeça, estava a ser um mau colega de quarto.
– Mulheres!
Passa água pelo rosto, sabão pelos braços e peito. Despe as calças quase coladas à pele, troca as
meias que fediam os dias anteriores e atira pela janela as botas fedorentas antes que o quarto
virasse um curral. Lavado e cheiroso, sai do quarto a ajeitar o cabelo. Rachel precisava de mimo,
precisava de um ombro amigo. Tinha que fazer boa figura, quando fosse apresentado a Jason, não
podia parecer um pugilista amador que fedia a suor.
Para ao ver uma mulher sair do quarto de Louisiana. Ergue as sobrancelhas, não esperava ver ali
a empregada do pequeno bar ao pé da estrada que ia ao castelo.
– Bom-dia Oleya.
A mulher nem responde ao baixar a cabeça e correr para a porta. Phill coloca o braço no aro e
espreita pela porta a dona da casa, deitada sobre a cama, tapada por cobertas de lã e na boca um
cigarro que largava para o ar o aroma das ervas vindas da Índia. Satisfeita, se fosse homem diria
isso, mas sendo uma mulher, o termo seria estranho.
– Era boa?
Louisiana vira o rosto e abre a boca ao fumo quando pega no cigarro.
– Virgem de homens e não de mulheres. É pena ser tímida.
– Tímida? O meu pai já lhe deu uma boa apalpadela. Se soubesse que era desse lado, tinha-lhe
dito que não valia apena.
Sorri, nem todos os virados tinham rótulo na testa.
– As coisas não estão bem? – afasta os cobertores.
– Rachel anda estranha. Acho que tem medo.
Mete o cigarro na boca e pensa sobre o assunto. Talvez. Podia parecer forte o suficiente para
aguentar a chuva, mas um dia cairia.
– Que atenção tens dado?
– Como homem… – encosta-se ao aro – Faço o típico jogo de sedução, roubo um beijo,
acarinho… Damos banho juntos…
– Merdas que enchem qualquer balde.
– O que queres que faça?
Levanta da cama e veste o casaco de pelo branco. Pousa o cigarro no copo de vidro e desfaz a
trança em frente ao espelho. Um dia, revoltou-se com o longo cabelo negro cheio de caracóis.
Cortou-o na esperança de enterrar a boneca de porcelana. Agora, este chegava aos ombros,
maltratado pelo tempo, escondido debaixo da peruca ruiva que assentava melhor nas rugas.
– Rachel é americana, está tempo a mais na nossa etiqueta enjoativa. Estive com muitos
marinheiros vindos de lá e não sei… Todos falam em liberdade e todos acabam presos a algo.
– Achas que está presa a mim?
– Não, fazer amor não significa estar presa a um homem. Se engravidar, isso sim… – olha-o –
Enjaulas uma águia em solo desconhecido.
– Sossega, não fazemos amor desde que viemos para cá.
Fica admirada, teve esperança de ouvir o que já não sabia como era.
– Falta de tempo ou de vontade?
– Ambas às vezes, agora está no dia vermelho e acho que é isso.

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Sete Nomes

Sorri ao pousar a escova.


– E tu?
– Eu o quê?
– O teu pai partiu… – pega na caixa de madeira e abre – Deves chorar pelos cantos.
De vez em quando ressuscitava dentro de si o pequeno menino que corria para casa da avó e
chorava no regaço, dizendo que sentia falta da mãe. Dela sempre recebeu os ternurentos dedos a
passar pelo cabelo e a frase de que ela tinha encontrado o paraíso no céu. Chorar não, mas tristeza,
sim, muita, é como se William tivesse roubado o seu coração e deixado uma sombra no lugar.
Solidão. Sentia necessidade de o ter por perto nem que fosse mais um minuto.
– Francisco quer que ele resolva a instabilidade na corte, descubra quem anda a conspirar e prenda
o quanto antes. O problema é que o meu pai já não se reconhece em Viena e não quer lá estar.
Não pode voltar, o sogro não me considera filho e… – faz uma pausa.
– E não sabes se aguentas a ausência.
Assente ao sentir as lágrimas a descer o rosto.
– Pela primeira vez da vida, sinto falta do meu pai. Sinto falta da sua ignorância. Sinto falta
daquele ar da realeza, de me levar a ver os cavalos e rir de ser medricas… Sinto falta de tudo.
Devia odiá-lo, matou a minha mãe e deixou-me órfão… Mas amo-o também e provou que merece
o meu amor.
Louisiana até se sente mal por pegar no ópio. Pousa a caixa e olha pela janela, que assunto difícil.
– William falou-me dessa tal mulher. Isabella de Cavour. Disse que jamais aceitou o assassinato
e que se tivesse tido escolha, preferia que vivesse para um dia rever. Rever-vos. Até entendo o
lado dele, fez uma escolha a pensar que era certa. Foi errada, mas se não tivesse sido assim, não
se tinham reencontrado. Não podes mudar o passado, apenas podes seguir em frente e aceitar as
merdas que fazes. – vira o rosto – Aceita o que não entendes e espera o resultado.
– Pensa no pior, que o melhor estou a viver.
– Diria… Que se foda tudo o que nos magoa. Mas… Sim, vai por aí.
Fica admirado, não estava acostumado a dizer palavrões pesados.
– O jantar vai ser ovos cozidos com broa. – abre o guarda roupa – Não há sobremesa.
– E o almoço?
– Olha… Sou dona da casa, não vossa empregada. Ainda ando com esta mulher na cabeça, o que
aconteceu aqui foi intenso. Então… – bate as portas – Se queres comer, faz!
Levantas as mãos, rendia-se ao não.
– Fica bem. – começa a sair.
– Phillipe.
Olha para trás.
– Tens uma boa mulher e nem imaginas os calores que o corpo dela dá. Estima.
Sem palavras ou pensamento. Ela andava a admirar o que era sua propriedade?
– Rachel é minha, entendido?
– Keep calm, só comentei.
Bate a porta com força e mete as mãos aos bolsos. “Calores”? Phill dava-lhe os calores no rosto
se se aproximasse dessa maneira. O problema dos perdidos é que achavam que podiam perder os
outros também. Mas não, nem sempre deviam de levar para a mesma estrada quem andava
encaminhado. Agora estava revoltado.
Gostava de flores, sempre que Maddey comprava ela pegava em uma tesoura e depenava os
ramos. Às vezes não fazia por mal, queria brincar com a tutora que grita bem alto que naquela
casa não existia ramo de resistisse ao pequeno furacão. Não tinha nada a apontar dela, soube fazer
bem o papel de mãe, tentou guiar quem se perdeu por mágoa do passado. Lembrava-se de chegar
a casa suja de cair nos becos após de beber e Maddey mandava encher a banheira. Depois,

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Sete Nomes

ajoelhava no chão e lavava os cabelos. Why you drink so much? Respondia sempre com os olhos
em lágrimas. I need drink.
Ainda ouvia o suave riso que arrepiava o corpo. No, you need be woman. Sometimes it´s easy to
lose. Always find a star to guide you.
Deixa a flor roxa cair no chão, nem olhando para o céu estrelado encontrava a sua estrela. Já era
mulher e isso não chegava para ser feliz.
– Estamos por nossa conta, Louisiana fez caldo de galinha e agora dorme defumada na cama.
Vira o rosto e cruza os braços.
– Eu sei. Oleya tem problemas com os homens, sempre que tenta, dá conta que não consegue.
Louisiana a satisfaz e isso deve ser bom para ela.
– Uma mulher a fazer o que um homem faz… O mundo está perdido.
– Cada um tem os seus gostos.
Desses Phill não conseguia. Não se imaginava a gostar de outro homem, lutou com tantos em
tronco nu e nunca teve aquele desejo de tocar ou abraçar. Não sabia como os outros mudavam de
lado, talvez nascessem com defeito.
– Já sei como matar Noah. Raptamos, prendemos a um poste e mata-o.
Nega, não repetia a mesma forma de matar duas vezes. Chester teve algo parecido, por isso, Noah
morreria de maneira completamente diferente.
– Não vou planear. Cheiras a sabão.
Sorri ao a puxar para os braços.
– Lavei-me. Preferias o suor?
– Não. Preferia que fizesse algo para teres cá o teu pai. Sofres, o teu olhar quer enganar quem lê.
– É por causa disso que quero enganar. Tu escondes algo, voltei a conseguir ler.
Olha-o nos olhos.
– O que lês?
Pensa um pouco.
– Jason quer vir cá ajudar-te a recuperar a mansão. Pediste para não vir, que cuidasse de Maddey
e deixasse isso para o fim. Ele disse que era um homem forte e que ia à mesma. Os teus primos
estão cansados de Orange e pedem para retornar. Estás cheia de fardos difíceis de carregar. Li
bem?
Sai dos braços dele e caminha para o carvalho. Quanto mais pedia para aguentarem, mais os
pontos arrebentavam e abriam o tecido. Rachel não conseguiria protegê-los, Logan queria a
fraqueza dela para a atacar. Não conseguiam chegar a Phill por ser um pugilista e ela não tinha
mais nada em Londres que a afetasse. Se voltassem… Não dormiria uma única noite só para
garantir a sua segurança.
– Não sei o que fazer.
– Está na hora de acreditar neles e deixar escolher.
– És louco! – vira-se – Os meus primos estão fracos, Gwenny roubou-lhes a felicidade. Jason
pode nem dizer, mas está mortinho para matar Logan, é por isso que quer regressar, só para trocar
o meu lugar. Se morrem, terei que carregar no peito essa culpa.
– Não achas que eles pensam o mesmo? – agarra no rosto dela – Rachel, neste momento, és o
pilar deles, a única que une a família. Se morres, andaram a culpar-se por teres morrido.
– Eu fiz uma escolha. Escolhi enfrentar o meu trauma e vingar. – os olhos enchem-se de lágrimas.
– É por isso que estou a teu lado para te ajudar. Juntos podemos acabar com isto.
– Nunca é junto. Nunca será. – recua.
– Noah morrerá às mãos de ambos, Daniel e Logan terão o mesmo. Só matas sozinha porque
queres.
– Porque calha.

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Sete Nomes

– Então começa a planear que a sorte não dura para sempre. – caminha para a porta.
Encosta-se ao carvalho e deixa as lágrimas descerem ao sabor da brisa. Enfrentava sozinha a sua
dor por ser mais fácil de suportar. Levar os outros para o mesmo barco… Não, não naufragava
antes de chegar a um farol. Mas Phill tinha razão, a sorte não durava para sempre e podia estar
preste a morrer antes do fim. E de morta, acabou a esperança de ser feliz.

A realeza não estava costumada a abrir a porta para pedintes, principalmente quando se tratava
de um pobre. Porquê? Se faziam a vontade de um, tinham que fazer a vontade de um milhão. E
de milhões a rainha só gostava no cofre. Volta a soprar o chá perto aos lábios pintados. Entendeu
o pedido, não entendia como poderia ajudar.
– Sir Orange… – pousa a xícara de porcelana na mesa – O meu amigo, Sir Francisco, não é um
grande aliado inglês, por mais família que sejamos. Não encontro nada que o seu pai possa fazer
em Londres. Relembro até que o Sir William abandonou o meu palácio sem um pedido de
desculpas por sair sem agradecer a estadia.
– Eu sei… Eu sei… Mas também sei que precisa de ministros. Então… – pega num scone –
Escreva uma carta para Viena e peça que William de Orange venha para cá representar a casa
Habsburgo.
– Que absurdo!
Trinca com força o scone, absurdo era usar um vestido negro debaixo de um caloroso sol. E
ninguém dizia que parecia um corvo negro, gordo e branco do pó de arroz, sentado na cadeira a
comer que nem uma loba.
– Preciso do meu pai, por favor.
– Visite-o em Viena, Sir. Já lá estive e é um belo país.
– Disseram o mesmo de Madrid e ninguém viu nada de especial.
O olhar severo não tolerava ofensas dessas.
– Tem pai?
Victoria fica surpresa com a pergunta. Phill bate com a mão na testa, que pergunta absurda, ela
era velha, se tivesse pai ele teria cem anos.
– Entendo. Mas se um dia tivesse sentido raiva dele e agora se arrependesse e quisesse a todo o
custo, não imploraria aos céus mais uma semana na sua presença?
A rainha volta a pegar na xícara, todos sabiam que as mulheres eram educadas com as amas, com
os professores, com qualquer pessoa menos a família. Só Viena é que se permitia que os filhos
fossem quase criados com os pais.
– Pronto! Se o seu neto pedisse para o seu pai voltar da Índia, não ajudaria?
– O Sir não é meu neto e se fosse, pagaria um milhão de libras para o educarem de raiz.
– Valia mais nem apostar assim tanto dinheiro. Sabe… Estou desesperado, nem faço amor por
causa disso. Quando beijo Rachel, vem a imagem do meu pai à cabeça. Como vivo com isto?
Depois ainda espalham aquela frase… We need baby’s! Não dá.
Quase se engasga, assunto proibido debaixo do seu teto.
– Só vós, sol deste império, flor mais bela do jardim de Abudabi… Mulher mais elegante… –
coça a cabeça – Avó e mãe de grandes frutos… Traga de volta William. – sorri.
Pousa a xícara, limpa a boca no pano de seda, dobra-o sobre a toalha de linho, encosta busto à
poltrona de ouro, repousa as mãos entrelaçadas sobre o vestido de cetim e respira fundo o ar
adocicado do chocolate.
– O que me dá em troca, Sir?

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Nada, Phill era tão pobre que nem a Deus poderia prometer algo. Olha-se, mal-amanhado como
era, não podia vender corpo.
– Aceita… Luvas? – mostra – São as únicas que ainda não paguei por falta de tempo e emprego.
– Não trabalha, Sir? Pensei que era pugilista?
– Era, mandaram abaixo o Box Dead… O seu filho deve conhecer o lugar, jogava lá póquer,
passava a mão no rabo da prostituta… – calasse ao ver os olhos arregalados – O seu filho é um
anjo, bom homem…
Victoria até vira o rosto, nem acreditava no que estava a ouvir.
– Não nesse sentido, bom homem de ser bom homem… Não! Não dessa maneira de bom… Bom
de ser bom… Não! Bom de ser… Bom com os outros. Entendeu?
Assente um pouco aborrecida.
– Pronto. Vamos ao pagamento. Posso… Lavar o chão do salão aos sábados, domingo não que
vou à missa, de segunda a sexta tenho que ver na agenda… É.
– Duvido que lave bem aquele chão.
– Até conseguiria ver o seu rosto lá. Rachel nunca reclamou da limpeza.
A rainha estava cheia de dúvidas.
– Sir, o que lhe vou pedir é extremamente delicado e secreto. Devido aos traidores que tenho,
mesmo que caminhe para um amanhecer sem retorno, preciso de deixar o meu reino em boas
mãos. Para isso, tenho que morrer com dignidade.
– Espera… – mostra a mão – Quer que assuma o império? Meu Deus, não estou pronto para isso,
nem a minha casa sei gerir, quanto mais a casa de milhões de londrinos! Não… Pior… – aproxima
o tronco – Quer que a mate? Isso é uma ofensa a mim e a vós.
– Phillipe de Orange. – coloca a mão no pulso dele – Não sonhe tão alto que pode partir-se na
queda.
– Então o que quer?
Olhando para os lados, aproxima a boca ao ouvido dele. Os olhos de Phill arregalam-se, um
enorme sorriso surge.
Não estava há espera, após anos de trabalho árduo, finalmente ia ser reconhecido pelo mérito.
Guarda costas de Victoria, nem deus tinha esse privilégio. Também não era nada de especial, o
gnomo bastava meter-se numa toca de coelho para fugir ao perigo. Mal por mal, ou isso ou o pai
continuaria em Viena a sofrer de desgosto.
Desacelera o passo ao ver que um homem lhe fazia uma espera. Não, a última vez que isso
aconteceu, partiu-lhe as duas mãos. Olha para trás, a rua estava quase deserta. Baixa a boina e
segue caminho, talvez fosse mania da perseguição.
Ao mínimo movimento, desvia-se e agarra no pulso do homem, arruma-o contra a parede e aperta
o corpo com o joelho.
– Quem te mandou?
– Uma pessoa que quer falar contigo em privado.
– Diz a Logan que terá o merecido fim, basta esperar que a lista chegue ao nome dele.
– Não é Logan, é Nosaj.
Larga-o, conhecia esse velho truque de ler o nome para trás. Só os espiões é que o usavam e só
quem esteve no ramo é que sabia interpretar. Jason, ali, sem Rachel saber, a querer falar em
privado… Faz sinal com a cabeça, onde ele estava?

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Sete Nomes

Capítulo 43
Passa pela porta e sente o intenso aroma a café acabado de fazer. Americano… Não dispensava
o bacon frito e os ovos mexidos ao lume. Nasceu em Londres, criou lá uma família, mas um dia
virou do nada para o ocidente, adaptou-se ao máximo para não parecer um inglês cheio de velhos
costumes. Poucos conseguiam abandonar tudo para começar do zero, casar pela segunda vez e
criar uma rapariga a qual não podia chamar de neta.
Phill fica de pé a olhar para o homem que via da janela a cidade que ficou mais negra. Cabelo
cinzento, alto e elegante no fato de seria italiano. Mãos atrás das costas, luvas brancas. Chaleira
na mesa, talheres no prato. Bengala ao lado da cadeira desalinhada, charuto no cinzeiro a queimar
a cada segundo que passava lentamente. Jason Dylan, ou como antes se chamava, Jason Paul
Clarel. Pai de dois filhos gémeos, perdeu a mulher num assassinato na corte de Edimburgo e fugiu
para se livrar de Logan. De nada adiantou, a vingança é uma enorme sombra que persegue sempre
a vítima.
Não estava sozinho, dois homens na porta do prédio tão alto quanto a torre do relógio.
– Rachel não costuma levar amigos lá para casa, diz que são sempre homens que não pedem,
forçam. Segundo me disse, não forçaste, pediste… – vira o rosto – Isso já faz de ti um convidado.
Olhos castanhos, iguais aos da neta. Agora Phill tinha a certeza que ela herdou mais do pai do
que da mãe. Barba branca a preencher o rosto enrugado do tempo. Sorriso honrado de ainda viver
para os outros odiarem. Diria… Os Clarel tinham todos ares de que qualquer coisa servia para
matar. Qualquer, o feitio já era americano demais.
– Phillipe de Orange, ela fala muito sobre ti. – estende a mão – Eternamente agradecido por teres
acolhido aquela teimosa. Soube do importuno do Box Dead e garanto que se for preciso, mando
erguer o teu altar.
Não agarra a mão estendida, não estavam a negociar nada. Jason repara que o olhar estava frio
demais para um aperto simples.
– O que lhe fiz? – cruza os braços.
– Estou nervoso.
– Com o quê? Sou um homem igual aos outros, só muda a idade e o sorriso.
– Rachel não sabe que está cá. Se ficar aqui, estou a trair a confiança dela.
– A minha neta não demorará muito a saber que por aqui ando. É inteligente demais para dar
conta. Além disso, é para ter uma conversa civilizada, não lhe estou a pedir a mão. – senta na
cadeira – Serve-se?
Nega ao se manter de pé. Humor, Rachel era direta demais na hora de dizer na cara. Ele, rodeios,
voltas, caminhos, trilhos… A carruagem não devia de chegar ao destino assim tão rápido.
– Ingleses… Desconfiados. Também já fui um e digo desde de já que ser americano tem as suas
vantagens.
– Matar sem motivos?
Nega ao mexer o café.
– Tudo é um motivo para se perder a cabeça. Como sobrevivente, deve saber como é.
– Não sei do que fala.
Levanta o olhar e pousa a xícara no pire. Abre os braços, que não se faça de desentendido, entre
Rachel e ele não havia segredos, agora mais do que nunca deviam confiar um no outro.
– Senta-te e come, de barriga vazia não se conversa.
– Fui bem servido no palácio. – senta na cadeira.
– És amigo de Victoria? Como príncipe, é bom ser. Como súbdito, quero distância. – deita açúcar
aos ovos.

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Sete Nomes

– Porquê?
Limpa o garfo após remexer e dobra o pano branco.
– A minha esposa, Anitta, morreu em Edimburgo na visita de Victoria ao rei escocês. Como se
perde a mulher numa simples visita? Apanhei o primeiro comboio para lá e pedi explicações.
Victoria, na sua paz de alma, respondeu que o assassino desapareceu e nada podia ser feito. Nada!
Como eu, marido, com dois filhos de dez anos para criar, chega a casa e diz… “A vossa mãe
morreu de uma facada no coração e foi atirada à estrada ao pé do castelo.” Valha-me Deus! No
mínimo, como dama de companhia da corte, Anitta devia ter tido uma investigação digna do seu
nome. Tive que eu, vinte anos depois, ir atrás de quem fez aquilo e descobrir que tinha sido o
mesmo homem que matou o meu filho. Ambos. Não peças doces no meio do inferno que eu sou
capaz de te atirar pedras.
Revoltado, o olhar de Jason estava tão revoltado que nem conseguia conter o sentimento. Odiava
Victoria, odiava a sua coroa e o seu país. Ficou viúvo cedo demais, casou obrigado, mas aprendeu
a amar a mulher que sempre foi seu braço direito. Perdê-la no momento em que precisava de sua
ajuda… As guerras levavam tudo, mas o ódio era pior.
– Lamento. Também perdi a minha mãe, assinada à minha frente por homens a mando do meu
pai. Hoje, não vivo sem ele.
– Eu sei Phill, Rachel contou-me que se conheceram melhor e viram que estavam sozinhos. Nada
contra, o que está em jogo é a minha família. – entrelaça as mãos sobre a mesa – Só descansarei
quando Logan estiver enterrado, sem cabeça e coração.
– Por isso que apoia a sua neta nesta loucura que lhe custa a vida?
Levanta da cadeira, pega na bengala e volta à janela virada para as chaminés fumegantes.
– Rachel só teve infância até os dez anos, depois disso, cresceu rápido demais. Não sabes o quanto
custou educá-la.
Jason tomava conta do filho sem ele revelar o sentimento paternal. Quando soube do seu
assassinato, não demorou muito em fazer as malas e mudar-se com a segunda esposa para Boston.
Encontrou a nora despedaçada, aterrorizada com a morte e o desaparecimento da filha. Para a
emparar, prometeu ficar até que Rachel fosse encontrada, tentou dar-lhe forças, contou a verdade
e deu-lhe a mão nas noites em que não dormia a pensar em ambos. A doença chegou e Jason
pouco conseguiu fazer para a ajudar a se erguer e esperar. Morre e por azar, Rachel aparece no
dia seguinte, enrolada numa manta e cheia de fome. Foi nesse momento em que o coração dele se
partiu por completo e jurou vingar quem lhe tirou a família.
– Todas as noites, ela acendia uma vela que deixava acesa até o sol aparecer. Tinha pesadelos, via
o pai a morrer todos os dias. Acordava a correr e entrava no quarto, acudindo aquela criança que
chorava até adormecer. Não ia à escola, não aguentava estar com outras crianças da sua idade.
Isolava-se no quarto, copiava os livros da biblioteca e aprendia línguas sozinha. Fazia sempre a
mesma pergunta “Quando o poderei vingar?” Uma criança com treze anos a pensar em matar um
homem… Isso destroça qualquer coração. Pior… – vira o rosto – Não a podia chamar de neta,
não lhe podia negar qualquer coisa porque para si, não passava de tutor. Encontrei um caderno
escrito, li-o e dei a Maddey para ler. Devias de ver o seu sofrimento, não sabia distinguir a
felicidade da tristeza, não sabia o que era chegar a casa e ter os pais a aconchegar a solidão.
Phill baixa o rosto, Rachel cresceu traumatizada de tal maneira que ainda hoje se notava no rosto
isso, a solidão e a rejeição de companhia.
– Quinze anos, pega na arma do escritório e aprende a disparar. Maddey interrompeu os meus
estudos, infelizmente acabava o doutoramento em avogacia e disse “Jason, anda rápido que ela
ainda vai matar alguém!” Tive que a ensinar, tive! Não podia dizer que não a alguém que já estava
revoltado com tudo o que passou. Essa fase durou até os dezoito, quando descobriu o álcool e a
rebeldia. Cinco da manhã, chegava a casa totalmente alcoolizada, subia as escadas quase a

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gatinhar e deitava na cama. Ficava com o coração na mão, tinha medo que alguém lhe fizesse
mal. Lembrei-me, talvez casando-a ela ganhasse um novo rumo. Bastou anunciar a ideia para ela
deixar de ser casta. O médico espalhou pelo bairro inteiro e Rachel era vista como rameira. Tive
que explicar a quem frequentava a casa que ela não queria casar e por isso, fez isso. Quando
escreveu nas costas os nomes e depois mostrou… – vira-se e quase bate no vidro – Demorei dois
anos a fazê-la sair do álcool, demorei cinco anos a domá-la. Só quando fez vinte é que se sentou
na mesa e disse “Não vos vou dar mais dores de cabeça. Para parar de sofrer, tenho que encontrar
estes nomes. Ou ajudam-me, ou chego lá sozinha.” Que remédio eu tinha?
O som dos pombos sobre as gárgulas ecoa pela sala com chão de madeira e paredes cinzentas,
quentes da braseira acesa e aroma do café.
– Ama-la?
Phill coloca as mãos sobre a mesa, estava chocado, sabia que Rachel tinha feito muitas coisas no
passado, nunca desconfiou que tivesse sido um pesadelo para os avós.
– Se não a amasse, não estava com ela.
– Não te dá voltas à cabeça? – pergunta com um enorme sorriso.
Bufa, perdeu a conta.
– Poucos a entendem e os poucos que conseguem, são os verdadeiros amigos. Devo-te a minha
vida por tudo o que fizeste, as vezes em que as coisas acabaram mal e estavas lá para ajudar.
– Jason, com todo o respeito, não me deve nada mais que a bênção.
– Tenho cara de Deus para te abençoar? – abre os braços.
– Não é essa bênção, é a outra.
Sorri ao assentir, entendeu muito bem ao que referia. Estava a pedir a mão da neta. Tinha-a,
bastou acolhê-la para a ter.
– Já dormiram juntos? – volta a sentar.
O pugilista tose para a mão e puxa o prato para si, acabou de ter fome.
– Olha que os britânicos não gostam…
Phill cospe os ovos ao provar. Jason estende o lenço para limpar o casaco.
– Isto sabe mal! – pega na xícara com café.
– Isso…
Nem precisava de falar, até o café é cuspido para o casaco. O advogado suspira e bate o pano na
mesa, britânicos, eram todos iguais.
– A sua empregada cozinha mal! – limpa a boca às mangas.
– Aprendi a cozinhar. Fique a saber que ovos com mostarda é bom. Café com natas e mel é bom.
– É horrível! – salienta com a expressão horrenda – Parece caca de pombo misturada com açúcar!
– É americano amigo. Rachel adora ovos com maionese.
– Maio… Quê?
– Maionese? Nunca provou?
Nega ao pensar em todas as coisas horríveis que comeu ao longo da vida. Até carne de cavalo
estava na lista de Never more.
– Londres está mesmo atrasada.
– Isso é bom? – Phill pergunta.
– Foram os franceses que inventaram e olha, é um mimo na comida.
Nem queria desconfiar, talvez mais caca de pombo com ovos e sal. Os ocidentais eram mesmo
do outro mundo, tinham cada gosto mais estúpido que nem valia apena pensar sobre o assunto.
– E a pergunta sem resposta? – olha-o nos olhos.
Não podia dizer que dormiam vestidos na mesma cama, ambos sabiam que o óbvio tinha que
acontecer.
– Engravidou?

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– Não, sou um homem cauteloso e sei o que fazer para isso não acontecer. Mas ela já dormiu com
Elvis, por isso… Se quiser perguntar a ele como foi, encontre-o no inferno.
– Elvis, o pugilista de Boston… – coça a barba – Andou com dois homens ao mesmo tempo?
– Não… Eu explico. – ajeita bem o casaco negro – Discutimos… Feio… Elvis apareceu para
confundir, expulsei-a do Box e ela correu para os braços dele. Então, coiso… E meses depois
voltamos. – sorri.
Estragou a mostarda de Jason, a cara não estava nada contente em ouvir a parte da discussão.
– Rachel é a minha principal prioridade e garanto-lhe que em momento algum a desrespeitei. Sou
um homem impecável, dócil, meigo, cavalheiro…
– Cheio de lábia também.
Ri ao coçar a cabeça, lábia a mais, para dar e vender.
– Acha que sua esposa aceita-me lá em casa?
– Maddey aceita qualquer um que dê paz a Rachel. Admiro-a muito, soube ser mãe, mulher e
dona de casa.
– Rachel sabe ser dor de cabeça e acho que chega.
Os olhos de Jason arregalam-se, há coisas que não devem ser ditas à frente de quem manda.
– Porque chamou? – cruza os braços.
– Tinha que te conhecer.
– Não bastava mandar uma carta?
– Pelas palavras só se conhece os sentimentos, cara a cara vê-se as emoções. Aqui para nós… –
aproxima o tronco – Se chegas a casa e comentas qualquer coisinha aqui dita… Faço-te a folha
num estalar de dedos.
– Acha que tem cabedal para mim? – desafia.
– Amigo, já ouviste falar em leis? É fácil prender um homem cheio de dívidas. Fui o melhor aluno
da faculdade de Boston.
– Tenho o melhor advogado de Londres.
– É mesmo? O teu amiguinho percebe alguma coisa de dívidas por pagar?
Pobre Thomas, a sua vida resumia-se a favores que ninguém pagava.
– Ele desmoraliza-o em dois segundos. – Phill insiste.
– Eu enterro-o em meio segundo.
– Como? É um franguinho…
– A aparência ilude.
– Está bem, eu chamo cá o Wood que vai ver! – bate na mesa.
– O Wood? Wilson Wood… Walker Wood… Conheço a sua família melhor do que julgas.
Phillipe Worthwhile foi um grande arquiduque inglês, soldado, deixou o maldito pai a apodrecer
no hospital psiquiátrico e mudou-se com Evangellyne para Dublin. A minha família conheceu-os
por acaso e digo desde já, tanto Walker como Phillipe merecem respeito da minha parte,
desmoralizaram Inglaterra, mas nunca perderam o brio de ser inglês.
O pugilista não sabia mesmo de quem estava a falar. O seu forte não era história, geografia,
literatura, política… Dominava as contas que enchiam os bolsos ou faziam dívidas.
– E o que Phillipe de Orange não tem que esse Phillipe Worthwhile tem?
– Ponto um, coragem. Ponto dois, ambição. Ponto três, azar. Ponto quatro, uma mulher que valha
apena. Ponto cinco, amigos.
Respira fundo, entrelaça as mãos sobre a mesa e pensa um pouco.
– Tenho coragem, enfrentei homens que faziam-no mijar no lugar. Tenho ambição, quis ser o
maior pugilista de Londres e o azar levou-me o sonho. Azar tenho que chega e sobra, órfão de
mãe, quase de pai, vivi nos becos, comia os restos dos outros… Mulher que valha apena tenho, a
menos que desvalorize a sua neta e isso é traí-la. Amigos… Amigos… É, amigos não tenho, mas

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tenho a rainha a meu favor. – cruza a perna e coloca as mãos atrás da cabeça – Quer melhor coisa
do mundo que ser príncipe de uma das mais importantes casas holandesas?
Jason estava impressionado, ele tinha a resposta na ponta da língua e ainda se achava o maior do
mundo. Rachel não podia arranjar melhor, só lhe faltava educação e isso possivelmente não se
arranjaria da noite para o dia.
– Muito bem, prince Orange.
– Prince Orange não! – abana o dedo – Excelentíssima alteza real, príncipe de Orange, filho de
William de Orange e herdeiro do trono holandês, austríaco e inglês. Saliento até o italiano que a
minha mãe era importante em Cavour.
O advogado assente ao pegar no charuto.
– “O que Phillipe tem que eu não tenho?” – faz uma voz fininha – Ele não se gabava ao exército
francês, nem ao britânico quanto mais. És um gabarola… Achas que vais herdar algum trono se
casares com Rachel?
– Asseguro-lhe a casa Orange.
– Coisíssima alguma. Vê se mesmo que não a conheces, Rachel iria rasgar todos os vestidos e
partir os espelhos ou a louça. Ela e a etiqueta londrina… Nem em Boston quanto mais.
– Ela come com faca e garfo. – defende.
– E? Também deito esmola na igreja e Deus ainda não me deu o céu. Rachel já tem planos. Depois
de Logan, ela vai retirar-se para Boston e refazer a vida.
– A meu lado.
Ri ao soprar o fumo, nunca encontrou homem mais vaidoso.
– Queres mesmo tirar-me do sério?
– Não é dono dela. Além disso, vamos para Cavour de férias.
Fica admirado, até agora ela garantiu que ia era uma campa no cemitério.
– Acreditas que Napoleão era meu primo?
Nega.
– Pois, eu também não acredito nas escolhas que toma no teu peito. Rachel apaixonada é igual
àquela comida servida na mesa que ninguém come. No dia seguinte, está estragada e dá-se conta
que foi absurdo fazer para quem não ia comer.
– Acha que sua neta está a enganar-me?
Abre a garrafa de uísque e derrama no copo de vidro. Pousa o charuto no cinzeiro e abana o
líquido.
– Porque será que faz isso? Hm? A buon intenditor, poche parole.
Dava-lhe esperança, tirava-lhe o medo e desenvolvia um sentimento pacifico. Não ia para Itália,
cavava a própria cova antes de saber o fim e pagava a Deus os pecados que fez. Baixa o rosto,
sonhou demais, pensou o que não devia de pensar. Tinha que ser um homem de fora para abrir os
olhos, Rachel só era o que os outros queriam que fosse, mas por dentro, andava a mil, destruía as
ideias futuras e focava o amanhã sangrento.
Olha para Jason a assentir, sim, ela enganava qualquer um que acreditasse na carinha de anjo. Os
maiores demónios andavam disfarçados.
– Vai pensando no teu futuro sem ela. – levanta da cadeira.
– Acredita que vá morrer?
– Rezo todos os dias para Logan sofrer sem a fazer sofrer. – abre a gaveta – Fui espião britânico
durante anos, estive em solos muito instáveis e sei como não ser visto. Aprendeu comigo muita
coisa e se pensas que é sorte, engano teu. Achas que o olhar de águia herdou do pai?
Nem sabia em que acreditar mais.
– Também tenho.

301
Sete Nomes

– Boa Phill. Rachel aprendeu a ler as pessoas graças a mim, obrigava-a a fazer um relatório
completo dos vizinhos. Sorte tem em ter onde dormir, o resto… – abre o caderno e pega num
envelope – É pura esperteza no sangue.
– E o relógio?
O olhar de Jason olha para a janela, tinha que tocar nesse assunto.
– Quem o parou? Quem o compôs garantiu que ele não podia ter parado, é coração suíço a
trabalhar.
Fecha o livro e pousa-o na gaveta.
– Parei-o. Admito isso.
– Para aumentar nela o trauma?
– Não. – vira-se – Quando lhe dei, disse que o relógio era do pai e de facto era, Angellyne o
encontrou na mão do marido, cheio de sangue. Ela é que quis que parasse no oito, insistia que o
pai tinha morrido a essa hora. Então parei-o.
– Fez mal.
– Não me venhas ensinar a educar, porque segundo sei, o teu filho adotado fugiu com a amante
para Edimburgo e a tua outra filha morreu nos braços. Então, se é para dar sermão de como educar,
vais já levando o aviso de que tu foste pior!
É, podia não bater no rosto, mas sabia dar as respostas.
– Darei cobertura a Rachel sem ela saber, vou limpando o caminho, desaparecendo com quem
morre… Espero que colabores.
– Neste momento tenho vontade de ficar de fora.
– Cobarde.
– Não! – levanta – Para quê lutar se vou ficar sem ela? Pensei que era para morrer juntos, mas
agora não tenho dúvidas que só sirvo para a satisfazer. – caminha para a saída.
– Esperança, Phillipe tinha isso. Levava no peito Evangellyne e lutava para a ver. Mesmo cá,
aquela duquesa ateimava que a sua outra metade estava viva. Qual foi o dia em que Rachel baixou
os braços?
Olha de esguelha para o advogado. O dia? Quando estava preste a fazê-lo, ergueu-se do chão e
correu para o próximo da lista.
– Espera que ela mude?
– Dificilmente. Mas a Rachel que partiu de Boston não é a mesma em Londres. O amor foi um
milagre e espero que não seja a sua fatalidade.
Mete as mãos aos bolsos, isso era verdade, aquela mulher fria que matou um velho não era mais
a mulher que andava lá por casa em calças e a pensar na vida. Existia esperança e enquanto
houvesse, era melhor mantê-la.
– Tenho força, olhar de águia, conheço Londres de este a oeste, os pesadelos e os sonhos. Sou
uma pequena consciência de Rachel e sem futuro. O que tem para mim, avô?
Jason tenta prender o riso, mas não consegue. O que o chamou? Que voz foi aquela? Phill revira
os olhos ao vê-lo rir até chegar as lágrimas.
– Podia levar-me a sério.
– Tu? A sério? Já entendi o que aquela praga viu em ti. És o bobo da corte.
– Sou príncipe e pugilista.
– Príncipe bastardo e ex-pugilista amador. E não me chames de avô que não somos nada.
– Passará a ser no dia em que me casar com Rachel.
– No dia… – faz um gesto com o dedo – No futuro longínquo. Sabes, tão longe quanto as ilhas
Fiji.
– É mesmo insuportável.

302
Sete Nomes

– Bem-vindo à família Clarel. – estende a mão e pega na dele – Somos dores de cabeça em pessoa.
Queres um conselho? Entra na maré ou ficas na doca.
– O seu sobrinho não é assim.
– Walter ficou britânico demais. Tu tens futuro se fores americanizado.
– Nem morto!
– Vivo também não vais longe. Isto é o seguinte… – coloca a mão nos lábios – Sabes disparar?
Olha para a janela e nega. É então que Jason dá umas pancadinhas no ombro dele.
– Pobre Rachel. – murmura.
– Sabe lutar?
– Não.
Phill faz o mesmo.
– Pobre Rachel.
O advogado rasga um enorme sorriso, não é que começava a gostar do jeitinho rançoso dele?
Saiu-lhe cá uma encomenda…

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Sete Nomes

Capítulo 44
Abre a gaveta e levanta o lenço amarelo. Até baixa o rosto para confirmar bem. Onde estava a
pistola? A mão tateia a madeira, procura os buracos ou os ratos que lhe levaram a arma. Repousa
a mão junto ao queixo, tenta se lembrar na última vez que a carregou e colocou ali. Olha para
Phill deitado na cama, a ler o jornal que Louisiana arranjou ao trocar cagalhões de cavalo por um
barril de vinho.
– Viste a minha arma?
O pugilista com um ar muito intelectual, olha-a.
– Estive a treinar.
Esteve… Fecha a gaveta com força e senta na cama.
– Pensei que eras contra balas de chumbo. Elas são uma espécie de uvas estragadas dentro de um
copo de vinho.
Baixa o jornal.
– Eu disse isso?
– Quase.
– Bebi de certeza… Como guarda pessoal da Vicki, devo saber disparar e bater. – recompõe o
jornal.
– Vicki?
Assente ao ler o artigo sobre gaivotas. Como nunca deu conta que elas comiam carne? De facto,
não andava por aqueles lados desde que deixou a velha vida de pugilista.
– A Vicki?!
– Estás com ciúmes que chame assim a rainha?
– Nenhuns, só surpresa pela intimidade.
– Descansa meu amor, aquela enorme gnomo não deve ter mais chama. – coloca a mão sobre a
dela.
Sem palavras, Phill regressou tão estranho da visita real que nem se atrevia a ler o que escondia.
Animado, lanchou como se a vida dependesse de comida e falou do futuro brilhante como guarda
real. Rachel desconfiava que no primeiro tiro, ele fugia a sete pés.
– Vou ver a Lou. – levanta da cama.
– A Lou? – baixa o jornal.
– Descansa meu amor… – toca a mão dele – Ela não tem fome. – sorri.
Mostra os dentes em forma de raiva, estava farto desses trocos.
Fome tinha, comia a pata de pato em frente à lareira e virava a garrafa de vinho como se fosse
água. Dia de folga, levantou da cama às sete da tarde e já jantava sem os hóspedes. Ainda em
robe, o vestido devia de aquecer muito o corpinho jovem. Pelo menos uma bênção, as rugas não
descerem o rosto e estragarem o que ainda pagava as contas.
– Viste a pistola?
O rosto vira para cima das escadas, Rachel não devia ter feito a pergunta no momento em que a
resposta era Phill.
– O teu amigo vai fazer buracos difíceis de tapar.
– Cobra. – senta ao lado.
Que remédio tinha, o inverno voltaria e com a casa esburacada era difícil sobreviver.
– O ópio é bom?
Louisiana vira o rosto e deita às chamas os ossos.
– Quem é fraco não experimenta.

304
Sete Nomes

– Havia um ritual índio com isso… Eles faziam uma espécie de bebida, nós bebíamos, fazíamos
umas linhas no rosto e andávamos em volta da fogueira. Não consegui chegar ao acampamento
deles para experimentar.
A dona da casa até arregala os olhos ao mastigar bem a carne que sobrava na boca, ela andava
bem-assombrada para falar em bruxaria.
– Que ninguém te ouça a falar, ainda aparece aí a santa inquisição e faz uma limpeza. – pega na
garrafa.
– Em Boston a fé está no dinheiro e não nos homens.
– Achas que Londres não está igual? A igreja diz que putas não entram lá, depois vejo cornudos
ao lado de verdadeiras putas a rezar a Deus. Pureza… Nem aqui nem na China.
Sem palavras, a droga afetou metade do humor e tento da língua.
– Olha lá… Como vamos fazer com a renda? A casa não é minha e não abro as pernas ao dono.
Por isso, resolvei o problema.
– Manda carta para Viena, William é que paga.
Bebe e depois assente, empurravam as culpas para quem não estava. A seguir pediriam para a
rainha pagar porque estava ali hospedado o novo guarda costas. Levanta da cadeira, abre a garrafa
do ópio e bebe um pouco.
– Que miséria de vida, até mendigos vivem aqui.
Outro disparo violento percorre a casa.
– Filho da mãe! – Louisiana grita – É bom que pares essa porcaria antes que te parta os cornos!
A porta abre e o intitulado príncipe bastardo surge no cimo das escadas, com a pistola na mão e
muito confiante que ia dar a volta à situação.
– Maldisposta, Lou?
– Lou a tua mãe. Para ti sou MiLady Louisiana. Pensas que tenho a tua idade?
– E… Alguém que tem falta de cama.
– Eu? Tu é que não fazes sexo com a fulana e eu é que tenho falta? Arruma essa pistola antes que
ela te fure algo.
A confiança rolava escada abaixo, a dona não estava para brincadeiras.
– Quero dinheiro até amanhã, senão expulso os dois com um pontapé no cú. Não há dinheiro, um
vai dar o olho e outro abre as pernas. Quero aqui… – bate na mesa – Até às nove, quarenta penses
para pagar ao dono, ou vão os dois porta fora.
– Estamos desempregados…
– Chora ao paizinho rico dinheiro para pagar!
– Ó minha grandessíssima… – Rachel levanta – Vais ter tento na língua com nós os dois,
entendido? Que eu saiba, o que comes de bom, as bolachinhas coloridas e o vinho do Porto, fui
eu que paguei, foi o príncipe que pagou. Vais rebaixar a crista que a renda da casa é paga dia vinte
e nove, queres é dinheiro para as iguarias.
Louisiana ainda levanta o dedo indicador para fazer frente, dependia daquelas coisas para
sobreviver, estava viciada aos anos e isso a destruía. Sem elas, entrava em stress. Invés de gritar,
beija-a, agarra nos ombros para prender o corpo. Rachel levanta a mão para Phill não cometer
uma loucura, rendia-se ao desejo dela.
A beijarem-se mesmo à sua frente… Estava tentado a premir o gatilho, não podia permitir aquilo.
Mas Rachel deixava-se levar, levantava a mão como se dissesse que estava tudo bem.
Descola os lábios lentamente e limpa as lágrimas nos olhos. Sorry. Pedia isso ao aconchegar o
corpo no robe. Desculpa por não conseguir aguentar ter aquela mulher debaixo do mesmo teto,
ser irresistivelmente bela e mal aproveitada.
O pugilista agarra o braço da dona e baixa os lábios ao ouvido.

305
Sete Nomes

– Volta a beijá-la dessa maneira e eu juro-te que te parto cada osso que tens e te penduro numa
rua londrina para seres cuspida por todos. Não leves para o teu submundo quem procura a luz.
Louisiana encara aquele olhar ferido, magoado de presenciar o que chocava profundamente a
alma. Avisou para ficar longe, não pensar nela um único segundo e não levou a sério a ameaça.
Talvez agora pensasse bem antes ter qualquer ato absurdo.
A mão abre, o corpo movesse a toda a velocidade para o quarto a qual a porta se tranca.
Beijada, Rachel nem sabia o que pensar, estava vidrada a olhar para a parede castanha. Beijar
uma mulher não era diferente de beijar um homem, era quase o mesmo. Apenas mudava a
delicadeza do ato, elas sabiam onde colocar bem os lábios, eles iam por instinto.
– Rachel.
O corpo estreme ao sentir a mão. Acorda. Era de homens que gostava, era Phill que amava e não
se via a mudar de lado. Beija-o, agarra bem aquele cabelo quase negro, coloca-se em bicos de pés,
pede para ser agarrada pelos braços fortes e seguros. O instinto era melhor que a delicadeza, havia
algo que viciava, algo que tornava especial. Phill encosta-a contra a parede, deixa cair no chão a
pistola e puxa a perna contra a nádega. Selvagem, Rachel gostava daquilo, gostava de quando os
lábios desciam a face e acarinhavam o pescoço. Homem, fecha os olhos ao sentir o que queria
sentir. Fogo, aquela chama incessante que começava a incendiar o corpo. Sorri, realizada.
Então Phill recua, deixava de querer sangue e agora limpava os beiços sujos. Olha para o pugilista
confuso. O que fazia? Fazia-a esquecer a situação embaraçosa que passou, fazia-a relembrar que
não podia pensar mais sobre o assunto.
– Gostaste?
– Quero mais… – as mãos tentam puxar a túnica dele.
– Não. – trava – Dela?
– Não sabes que Louisiana está apaixonada por mim? Nunca deste conta?
– E tu estás?
– Por amor de Deus Phill, sabes bem o que eu gosto e quero. Prefiro um homem a uma mulher.
– Mas deste um beijo de língua. Nem deixaste-me intervir.
– Não, porque realizei o seu pedido, como fiz o mesmo ao teu pai. Ela sofre muito com as suas
escolhas e sente um conforto em me ter por perto. Se não fosse agora, seria pior mais tarde.
Pior? Coloca as mãos atrás da cabeça e caminha um pouco.
– Pior como? Farias amor com ela?
– Jamais.
– Então? Até onde vais com a tua caridade desnecessária? Eu que peço, negas. Aos outros, abres
as pernas.
Dá-lhe uma violenta estalada. Até parecia que fez amor com mais alguém. Elvis fora uma
exceção e Phill estava ciente que, até ao momento, era o único que tinha esse direito. Pega na
arma no chão, carregada.
– Ambos deixamos de fazer no momento em que tu pensas mais no teu pai que em ti próprio.
Antes eram os teus amiguinhos pequeninos que precisavam de atenção. Agora, o paizinho que
tem idade para parar de fazer merda. Tu é que estragas a nossa relação.
– Fala a mulher que se isolava no quarto e escrevia… – tapa a boca.
Prometeu a Jason que não revelaria que estava em Londres.
– Escrevia… – volta atrás – Num caderno a sua infinita dor, numa letra medonha para ninguém
entender… Tentou pegar fogo aquilo e não conseguiu. Quem te contou isso?
Dá de ombros ao sentar na cadeira.
– Deduzi.
Agarra na cabeça dele pelo cabelo e aponta a culatra contra o queixo.
– De perto, a bala fura o cérebro e sai. E fica ali, naquela viga de madeira.

306
Sete Nomes

Phill não se atrevia a mover as mãos para se defender, era cobardia a mais tentar bater-lhe.
– Jason está em Londres.
– Como está se ele te envia cartas?
– Deixou de enviar. Pediu para saberes disparar para me defenderes. Deve ter-te contado tudo
sobre mim, até quando peguei fogo a um vestido de noiva em plena loja.
Essa parte mal-entendeu, qual é o problema de uma jovem rapariga se casar? Rachel entrou por
lá a dentro, pegou na vela e atirou-a contra o vestido. A loja nunca mais abriu por causa do
incidente, ardeu tudo e ninguém pagou o prejuízo.
– Muito bem avô, bem-vindo a casa. És um traidor e não gosto de traidores.
– Ele é que me convidou para falar. – fala com a testa suada de receio.
Sorri, acabou de ouvir o que queria.
– Sabes… – larga a cabeça dele – Eu não sabia que estava cá, acabaste de me confirmar.
Foi bluff? Phill bate nos braços da cadeira, pensou que ela tinha lido no rosto.
– Se ele sabe que te contei, vai meter-me na cadeia.
– Jason ameaça em vão, a menos que tenha na mão as tuas dívidas. Que mais está a planear?
– A minha boca é um túmulo. Estoura-me os miolos.
Faz um som de estar interessada, adorava esse tipo de jogos. Sobe as saias do vestido, passa a
perna sobre a dele e senta no colo.
– Phillipe, Jason é um homem que manipula, engana para tentar saber o que quer saber. O que
contaste sobre mim? – ajeita os botões dele.
– Tu seduzes, enganas e manipulas para saber. Ambos são farinha do mesmo saco, baby. – passa
a mão pelo rosto.
– A pequena diferença é que eu tenho mais coragem que ele. – mete a culatra por debaixo do
queixo – Não estou para brincadeiras.
Aperta a face dela com força.
– Então que ambos não brinquem ao mesmo tempo. Não disse nada de ti, limitei a conhecer-te
melhor, pequena Rachel.
O dedo estava com vontade de puxar o gatilho, uma vontadinha mesmo grande. Lia no olhar, lia
que não estava a mentir, apenas tentou agradar o avô difícil de entender. E Jason gostou, se Phill
estava vivo é porque gostou.
Baixa a pistola e desce a manga do ombro direito. Phill recua a mão.
– Perdi a vontade e estás nos dias vermelhos. Sai.
Rachel levanta e baixa as saias com violência, a rejeição era terrível.
– Queres uma pistola, compra. Como não tens dinheiro, é bom que não uses a minha, ou dou cabo
de ti. – caminha para as escadas.
O pugilista fecha os olhos e repousa a cabeça na mão. Não gostava de chegar ao ponto vermelho,
perdia o controlo e era capaz de matar sem dar conta. Se Abie estivesse ali, ou Yves, gritariam
para parar de agir feito um animal de beco. Saudades, sentia falta dos dois, da voz, das tarefas, de
gritar ambos os nomes e aconchegar nos braços quem procurava amor. Deus tirou-lhe tudo,
arrancou-lhe do peito o coração e mandou governar-se com a saudade.
O choro surge, precisava de momentos sozinhos, precisava de chorar sem que uma vozinha
aparecesse ao ouvido e dissesse para esquecer. Era feliz na sua vida cheia de dívidas, acordava às
oito com a ameaça de balde de água sobre a cama, descia para comer sopa aguada e pão duro de
uma semana atrás. Depois, vestia o casaco, mudava os nomes do quadro negro e ia aos negócios
com Yves. Entre inimigos e amigos, sempre lhe pagavam um copo e riam das mulheres que davam
a volta à cabeça. E quando ninguém pagava, mandava meter na longa conta que, só com o nome
Phill, já fazia um caderno.

307
Sete Nomes

E chora, porque nem em casa estava, andava de quarto em quarto, de cama em cama, de estrada
em estrada. Não tinha tempo de construir um lar, perdeu o pouco que guardou da mãe, das
mulheres que amou intensamente e os pertences de ambos os filhos. Derrotado e destruído, sofria,
não existia um único dia que não desejasse voltar atrás no tempo e não falar com Rachel. Queria,
voltar àquele beco e deixá-la ir…
Vai. Foge. Mete o cachimbo na boca e as mãos aos bolsos, pensa no gatuno que não pagou a
aposta de logo à noite. Quem era a mulher? Nunca a viu e nunca mais a veria. Lá passa os guardas
vermelhos aflitos, gritam homem morto na loja. Jack merecia, roubava bem a quem pouco tinha.
Beatas ao pé da porta, espalhavam de boca em boca que um ladrão escapou…
Limpa os olhos, não podia refazer de novo a história e esquecer o que ganhou ao perder. De
Rachel não perdoava a sua vida perdida. Dela não perdoaria nem o desprezo que teve com Abie
e Yves. E o Box Dead ainda lá, um monte de entulho que o tribunal não conseguia encontrar uma
solução.
Grita bem alto, grita com força para a casa tremer.
– Odeio-te Rachel! Odeio-te tanto!
O ouvido ao pé da porta força o arrepio que percorre o corpo e brota as lágrimas nos olhos.
Odiava-a… Os soluços aparecem e com eles, o choro. Odiava-a… Ajoelha-se no chão e encosta
a testa à porta. Odiava-a. Roubou-lhe tudo, arrancou-lhe o coração sem pensar nas consequências.
Sofria às custas da americana que traçou um caminho e nele, fez andar descalço os cegos que
confiavam na quimera. Rachel não queria ir ao seu baú e agarrar na antiga Rachel que bebia e se
sentava ao pé da parede, rezando, cantando, falando… Qualquer coisa. Não, Jason deu-lhe um
motivo e a dor não a podia levar para lá outra vez. Não remes contra a maré… A mente ecoa…
Ecoa… Não remes… Deita no chão, a respiração pesa no ouvido. Afunda o navio antes que ele
encalhe no porto. Afunda… Fecha os olhos.

308
Sete Nomes

Capítulo 45
Procissão lenta, se o santo George fosse lá trás, no cimo da carruagem da rainha, estava bem
tramado. Lentidão, até os caracóis eram mais rápidos no verão. Bem-disposta, Victoria acordou
virada para um passeio pelos campos de Ascott. Pois bem, se acordasse virada para assassinar
metade de Londres, os céus pintar-se-iam de vermelho. Todos ao molho e fé em Deus, quem
sobrevivesse que contasse a história.
Há frente dela, vinte cavaleiros, o general e o coronel e, ainda, o capitão que não quis ficar a
contar moscas no palácio. Atrás destes, o conselheiro real, o ministro dos negócios que negociou
tirar o dia, o guarda costas com cara de enterro e um lacaio qualquer vestido de branco. No meio,
a carruagem que lentamente andava. Lá dentro, Victoria com uma cadela, a dama de companhia
e o véu. Atrás, dez soldados a pé com as espingardas apontadas para o céu. Paciência, estava
nublado, o ar abafado da humidade e a rainha a passear-se como se de uma cadela se tratasse.
Cara de enterro, no enfadonho e apertado casaco azul, calças brancas, meiotes altos, botas até ao
joelho negras, medalhas compradas ao peito, túnica passada e lavada, colete justo, lenço no
pescoço e só não usava chapéu porque o coronel mandou-o passear longe. Montava o lusitano
que foi do pai, o único cavalo que aprendeu a andar. Espada no lado esquerdo, pistola no esquerdo.
Olhar vidrado, focava outra coisa que não fosse a paisagem ou os restantes. Que sorte Flash ter
consciência que tinha que andar, porque pela vontade do cavaleiro, parava na berma.
– A sua amante deixou-o no altar, Sir? – o coronel pica com um sorriso.
Nem desvia o olhar. Rachel… Há uma semana que não falavam e, essa semana já parecia um
ano e esse ano… Um século. Viviam na casa de Louisiana. Deixou o ópio e o vinho, dedicava-se
ao culto da solidão dentro do quarto e deixava a casa à mercê dos hóspedes. Quais? Phill ia para
o castelo para evitar falar e Rachel ia para a taberna beber até o avô a ir buscar. Não estava no
hotel dele, não, Jason queria que ela ficasse com Phill, para a torturar ainda mais. Na verdade, o
único motivo de ela não ir ter tantas vezes com o avô é para que Logan não chegasse a ele, ou
morreria da noite para o dia. Dormiam na mesma cama, não se tocavam, não falavam, não davam
banho juntos, evitavam olhar para perguntar, censuravam os pensamentos para ambos não se
questionarem. No fundo, só partilhavam o mesmo teto, sentavam ao pé da lareira juntos, ela com
os pensamentos e a garrafa de brandy, ele com os pensamentos e a saudade.
Naquela manhã, Rachel permaneceu deitada, a olhar para o relógio. E quando Phill chegou à
porta, os olhares cruzaram-se. Boa sorte… Fica bem… Mais nenhuma palavra foi trocada com o
olhar. Vontade de estar ali? Nenhuma, o pai chegava naquela manhã e a vontade de estar com ele
ainda era pior. Cento e vinte por cento negativos, se o número existisse.
– A sua tristeza deprime-me… – Victoria comenta ao abanar o leque contra o rosto – Até o meu
ramo de flores murchou esta manhã por sua causa.
Phill vira o rosto e dá conta que estava lado a lado com a carruagem. E? Queria que fizesse o
quê? Comesse-as?
– Credo, estais pior do que julgava. – fecha o leque – Podeis contar o que aconteceu com vós.
– Não comi.
– Quereis bolinhos coloridos?
Nega, queria parar e sentar no chão.
– Denisse, dê um bolinho colorido ao Sir Orange.
– Não. Depois como.
A mão majestosa aparece fora do vidro e no ar fica o apetitoso queque com recheio de morango
e pepitas de chocolate. Os cavaleiros viram o rosto para trás, os soldados descarrilam na rota e as

309
Sete Nomes

línguas saem para o petisco. Porque o bastardo tinha direito a bolinho? A eles, a rainha mandava
marchar, a ele, esticava a mão.
– Vamos Sir Orange, direi ao seu pai que emagreceu às suas custas. Aproveite a minha bondade
que muitas pessoas passam fome.
Fica admirado, sabia que passavam fome e mesmo assim mandava os banquetes que não comia
para o lixo. Lá pega no queque antes que parassem de andar. É então que dá conta que todos
queriam aquele bolinho, todos, sem exceção.
– Prove. – Victoria pede.
Abre a boca e trinca o queque. Delicioso? Para o cavalo, acabou de dar motivos ao estômago
para abrir a sua boca.
– Olhe que ficou pálido. – faz sinal para pararem.
Ficou? É que nem deu conta. Desce do cavalo, deixa o queque cair no chão e agarra-se ao arreio.
– Se me der licença, vou… Aliviar.
– Quer ajuda? – abre a porta.
A rainha a ajudar o bastardo? Um soldado bate o pé no chão, o que ela viu nele? Até o coronel
olhava para o general, a Majestade dava muita importância ao insignificante.
– Não. Vão indo que já vos apanho.
– Mesmo Sir? Ninguém tem pressa. Alguém tem pressa?
Todos negam obrigados, se dissessem o contrário perdiam a cabeça.
– Mas quero que vá, o vómito é algo que vem da tripa e acaba na boca. Vá.
A rainha lá fecha a porta e faz sinal para prosseguir.
– Não demore.
Acena com a mão, não demoraria se o estômago fosse rápido. Um soldado passa e apanha o
bolinho. Phill até agradecia, estava enjoado demais para o fazer arrotar pó. Puxa as rédeas do
cavalo e mete pelo lameiro. Desde de quando passava mal por causa de comida? Desde que
cozinhava com ingredientes que cheirava e não provava. Naquela manhã até evitou comer, já
sabia para o que ia.
Coloca a mão na árvore, a outra sobre a barriga. Sai um arroto e com ele, a água que bebeu e o
chá rápido dado no castelo. O cavalo começa a puxar a rédea e Phill não permite que vá. Volta a
sentir a garganta a puxar o que estava no estômago, uma dor aguda obriga a apertar a barriga na
esperança de suportar. Aliviado, coloca a boca salivada conta a mão sobre o carvalho e respira
fundo com os olhos em lágrimas. Nunca, mas nunca da vida teve aquele mal-estar. A primeira
vez foi antes de um combate e o truque para evitar era comer e beber.
O cavalo continua a puxar.
– Flash não! – berra.
Mas o lusitano era mais inteligente que o dono. Com os dentes, trinca o casaco azul e puxa.
– Que raio! – vira-se – Estás louco?! O meu pai educou-te para seres malcriado? Os casacos não
são para comer, são para se usar! Chateia-me que ficas a cenouras e água…
Repara para onde a pata batia e o focinho virava. Caminha para trás da árvore e espreita para lá.
Dez homens vestidos de negro e com o rosto tapado, a mover-se pela rama do trigo, baixados para
não serem vistos pelos soldados que, ao chegarem ao cruzamento, veriam a rainha encurralada.
Um atentado…
– Lindo menino, vais receber um tratamento de sonho. – beija o focinho do cavalo.
Pega na espingarda presa ao dorso do cavalo e aponta para o ar. Como se espantava os corvos?
Dispara e o som ecoa.
Os cavalos na procissão agitam-se e os soldados, cavaleiros e restantes, olham para os lameiros.
Só disparava quem andava por perto e não estavam na época de caça. Arriscavam? Outro disparo
e sem dúvidas a carruagem devia de voltar para trás.

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Sete Nomes

O coronel faz um gesto no ar, mudança de marcha.


A todo o galope, Phill voltava à trilha. Esperava que tivessem entendido o sinal. O que vê ao se
aproximar? Que transportavam a rainha para o cruzamento que dava para o castelo.
– Burros!
Quem ficava para trás vê o louco que chegava atrasado.
– O que ele gritou? – um pergunta.
– Bolo?
O conselheiro e o ministro ri, agora queria comer mais. Que tivesse aproveitado a oportunidade,
a rainha não estenderia a mão novamente.
– Estão burros?! – desce do cavalo – A rainha não pode ir por ali!
– É um atalho. – o general avisa.
– É onde os bandidos a querem apanhar! Não entenderam o sinal?
– Qual sinal?
– São os piores soldados! Como ganharam a batalha de Waterloo? – monta o cavalo – Napoleão
deu-vos foi a vitória!
E parte sem se explicar. Os demais entre olham-se, soldados para cavaleiros, cavaleiros para
coronel e general.
– Ele disse bandidos. – o coronel comenta.
– Não, este lugar é seguro demais.
– Ele planeou o ataque para ser útil. Vamos que a rainha está em perigo!
Claro, agora batia certo o facto de ir querer vomitar, foi fazer sinal aos restantes. E de tolos,
deixaram a carruagem ir sem qualquer guarda, porque pensavam que mais ninguém conhecia o
maldito atalho. Lá batem nos cavalos para se apressarem, um atentado apenas e perdiam a
monarca.
Flash tinha um nome adequado, o pai bem que o queria usar como cavalo de corrida. Era rápido
e mesmo em perigo eminente, a carruagem conseguia ser lenta. A rainha espreita pela janela,
confusa por ver ali quem foi vomitar.
– Leva-a para a vila. – grita.
– O que se passa? Quererei uma explicação?
– Querem-na matar, estão no cruzamento.
– Quem?
– Os seus opositores…
Não estavam lá, estavam mais em frente, montados nos cavalos e vestidos de negro. Uma pistola
apontada, um tiro certeiro no cocheiro. E os soldados reais? Lá trás, lentos como sempre. Os
cavalos não param, levavam a carruagem na direção dos inimigos.
Phill passa a perna pelo dorso do cavalo, aproxima-o do banco e fecha os olhos ao saltar… Agarra
nas rédeas, vira os cavalos com violência, a carruagem acompanha a mudança de rota. A rainha
prende o chapéu na cabeça, lá vai a cadela para o chão e a dama contra a porta.
Bate nos dorsos para correrem mais rápido, entra na floresta sinuosa. Como se conduzia uma
diligência? De certeza que era como uma enorme carreta cheia de copos de vidro. Não podia
bater, não podia perder as rodas e não podia sequer deixar o inimigo chegar perto. Olha para trás,
os guardas intervinham, os cavaleiros emparavam metade da seita, outra entrava na floresta.
– Merda! – bate as rédeas.
Se sobrevivesse, pediria a carta de despedimento, nunca mais virava guarda costas de alguém.
Preferia ir resolver outro tipo de problemas, talvez os da Rachel fossem mais fáceis. Espreita pela
janelinha, a rainha mal se equilibrava.
Os sons dos disparos percorrem a floresta. O alvo? A carruagem.
– Baixam-se! – grita pela janelinha – Baixem-se!

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Sete Nomes

A dama de companhia ajuda a rainha a se ajoelhar no chão e a baixar a cabeça. Não podiam ter
feito o ataque noutro dia? Onde estavam os soldados?
– Se sair viva disto, lembrai-me de demitir aqueles incompetentes.
A mulher assente com receio.
Phill não estava com muitas alternativas, ou continuava a seguir a trilha e chegava à vila ou
tentava chegar ao castelo. Ambas eram arriscadas e existia poucos caminhos a percorrer.
– O que farias? O que farias?
O que ele faria se fosse general? Arranjava maneira de despistar os cavaleiros. E quem guiava a
carruagem?
Mais um dia comum em Slough. As casas que precisavam de aumentar começavam a receber os
carpinteiros que, metiam os pedaços de carvão no ouvido e olhavam para os telhados. Os
lenhadores pegavam nos machados e marchavam para a floresta. Era preciso fazer mais umas
vigas. As mulheres lavavam a roupa nas bacias de madeira, esfregavam contra a madeira os
tecidos encardidos que secariam no estendal. As crianças brincavam na estrada calma. Um burro
a puxar a carroça de erva para o gado que ficou na loja. O velho lá cumprimenta a mulheres
honradas, trabalhadeiras. Ainda levanta…
Os rostos viram para a carruagem que invade a vila, faz as galinhas desviarem-se, os escadotes
caírem… Correm as crianças, saltam os mais distraído para a berma. Pela porta, viam que se
tratava de uma carruagem real. A rainha, o que fazia ali? Não sabia que aquela velocidade era
letal?
Phill dá conta que tinha uma fonte no meio da praça. Arregala os olhos, puxa as rédeas para o
lado esquerdo, depois direito… Uma roda parte-se ao bater no pilar de pedra que sustinha a
imagem de um cavaleiro. Por sorte, os cavalos param assim que alguém se mete à frente e abre
os braços. A carruagem fica contra a porta de uma casa, desequilibrada e em risco de virar.
– Rápido, vossa Majestade precisa de ajuda! – grita ao saltar para o chão.
Como bons súbditos, correm para abrir a porta, estendem a mão para Victoria e perguntam se
está bem.
– Preciso que a escondam… – Phill pede ao presidente da câmara – Em qualquer lado!
– O que aconteceu?
– Vão chegar aí uns bandidos. Levem-na!
A rainha agarra-se aos braços dele e puxa para baixo o tronco.
– Sir Orange, dou-lhe a permissão para matar estes homens que me tomam. Proteja-me!
– Dou a minha vida pela sua. Agora vá e se esconda.
Assente ao pedir a cadela. Agarrando a mão da dama, segue uma mulher que sabia onde a
esconder.
– Os restantes, quem quiser ficar, que fique! Precisava que mulheres e criança se escondam!
– É general? – um pergunta.
– Sou guarda costas.
– Então não dê ordens.
Sorri e aperta a garganta dele com a mão.
– Vossa Majestade não pode ser apanhada neste atentado, ou esta vila pagará com a vida a dela.
Está a ver aqui os soldados? Não, porque se acobardaram. É bom que me obedeça, entendeu?
Assente e a mão recua. O presidente, no seu casaco negro, arregaça as mangas e pede a
espingarda. Os demais, fecham as portas, as janelas, escondem as crianças debaixo da mesa,
aconchegam os velhos ao pé do lume e ouvem de dentro o movimento. Em volta da fonte do
duque de Wellington, o general inglês que aquelas pessoas relembravam com orgulho, homens
de tenra idade ou não, carregavam as pistolas e escondiam-se atrás das caixas de madeira que

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Sete Nomes

espalhavam para se proteger. Quem não lutava, tratava de preparar as armas para quem ia desafiar
a vida.
Phill estava dentro da fonte, atrás da estátua que lhe deu cabo da roda. E se não tivesse dado,
continuaria o rumo até chegar ao castelo. O general e o coronel deviam de mandar para ali os
cavaleiros. Invés disso, demoravam para aquele guarda costas falhar a missão e ser demitido sobe
pena de morte. Que sorte tinha em saber falar a bem.
– É a sua primeira guerra? – o presidente encosta-se na pedra.
– Guerra sim, luta não.
– Sabe disparar?
– Aperfeiçoei nestes últimos dias.
– E usar a espada?
Quase nada, nunca da vida usou uma. Só em último caso é que se atreveria a desafiar a um duelo.
– O meu bisavô foi mosqueteiro em Paris, defendeu grandes reis. Agora é meu dever defender
Victoria.
– A rainha ficará eternamente grata.
– Claro. Depois aumenta os impostos. Mesmo assim, não podemos virar as costas, por mais má
governante que seja. Fez coisas boas e é nessas coisas que devemos lembrar.
Momentos bons… Phill baixa a espingarda apontada. Os bons momentos é que ficavam, não os
maus. Teve tantos ao lado de Rachel que, nem se atrevia a pensar nos mais difíceis. Porque a
deixou no sofrimento? Porque não entendia que precisava dele para sorrir mais um dia? Não podia
morrer ali, prometeu-lhe que se era para ir, iam juntos. Logan queria matá-la? Então tinha que
matar ambos.
Entravam lentamente pela vila, lentamente porque os cavaleiros combatiam a frente que os
empatavam. A rainha devia de estar ali, a carruagem não aguentava a trilha cheia de buracos,
pedras e poças de água que encalhavam qualquer roda. Lentamente, demoraram uma semana a
planear a queda dela e não seria agora que falhariam.
Um homem faz sinal que eles chegaram. Phill faz sinal para se esconderem atrás das caixas.
– Ao meu sinal, dispararam. – avisa o presidente.
Assente ao deitar à água o cigarro. Waterloo em Inglaterra, Wellington jamais morreria sem se
vingar novamente.
A mão enluvada ergue e para os demais que olham para a praça.
– Majestade, entregue-se e prometemos que não a mataremos aqui. – fala alto – Temos aguentado
muito os seus luxos, está na hora de se curvar.
Ela não estaria a ouvir… Pensam eles sem conhecerem bem a mulher que se habituou aos
atentados. De pé, a espreitar pela janela com a portada de madeira entre aberta, no cimo do terceiro
andar, Victoria tenta reconhecer o homem com o lenço até ao nariz. Não seria o último que a
tentou matar?
– Vamos Majestade, tenha bom senso de se entregar. Não queremos ir ao palácio e raptar um dos
seus netos.
Coloca a mão sobre o peito, como tinham a crueldade de referir os netos? Vira-se, enfrentaria
sozinha aqueles cães do inferno. Uma mulher coloca a mão no aro da porta e priva essa decisão.
Porquê? Porque era a rainha e devia de sobreviver para governar. Mesmo revoltada, entende o ato
e senta na cadeira, depositava a sua fé no guarda costas.
– Olha que ela foi a pé para Windsor. – Phill caminha pela água da fonte.
– É mesmo?
– Sou tão mau condutor que virei a carruagem. Se aquele gnomo negro estivesse aqui, estes
aldeões matavam-na, mal podem ver a monarquia à frente.
– Se a odeiam, porque se abrigam detrás das caixas?

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Sete Nomes

– Porque se sentem ameaçados. Não é todos os dias que o carnaval percorre as cidades. É
Halloween? Estou vestido de soldado inglês. – abre os braços.
O som da espingarda ser destravada e apontada fá-lo perder o sorriso no rosto. Brincar com coisas
sérias? Eles não gostavam de desses.
– Vai buscar a rainha ou os meus homens invadem o castelo.
– Mentes, são apenas vinte bandidos, distraem os restantes para tentarem encurralar a vossa
Majestade. Dois deles nem sabem disparar. Não invadem o castelo porque morreriam mal
cruzavam os portões. Lá por estar sozinha, não quer dizer que é fraca.
– E quem vai nos enfrentar?
– Eu e o meu exército inglês. Com sorte, sobrevivo para vos partir os dentes. Depois tiro férias,
não sou pago para morrer antes do jantar. Entendido Majestade?
Victoria abana o leque contra o rosto, não gostou de ser ofendida. Gnomo, ela? Podia ter só um
metro e cinquenta, mas jamais seria isso.
O homem ri e baixa a espingarda, que coragem.
– Matem-no. – fala para o lado.
Phill corre assim que desatam a disparar. Tapa os ouvidos, não era igual ao outro Phillipe que foi
para a França, aquele Phillipe preferia arenas pequenas e socos rápidos.
– Fire! – grita.
Os aldeões espreitam e disparam contra os cavaleiros. Uns metem-se atrás dos cavalos para não
serem alvejados. O cabecilha abre caminho, salta por cima da frente de caixas e continua a galope.
Phill nem acreditava que existia sempre um que não ficava quieto no lugar.
– Albert, mata estes franceses antes que chova.
– Não peças duas vezes.
Não ia pedir e não. Aproveitando a recarga, corre pela rua a qual o outro meteu. Para de correr
ao ver mais bandidos, a vila estava cercada e não se trava apenas de vinte, eram mais.
– Virem a frente… Virem a frente… – grita para os outros.
O presidente repara nos sinais que o guarda costas fazia, estavam cercados.
– Cuidado que vamos ficar cercados!
E para onde disparar então? Albert benzesse, beija o pilar de Wellington e faz sinal para alguns
o seguirem, uma batalha fazia-se sem maioria, fé na boca e sorte no peito. Morriam por Victoria
e isso é que importa.
O pugilista andava sorrateiramente pela rua camuflada pelos sons dos disparos. Onde estava ele?
À procura da rainha, cavalgava quase em círculos e olhava para as janelas na esperança de a ver.
Respira fundo e pensa um pouco. Nunca lutou assim, não sabia usar a espada e não sabia mesmo
o que fazer. Apenas sabia usar as mãos e a pistola.
O bandido salta do cavalo, encontrou a velha que queria.
– Nem penses perturbar a minha amiga Vicki.
Ergue as mãos ao ouvir o som da espingarda ser apontada.
– Um fiel à coroa?
– Um bem pago que prometeu defender uma amiga em troca um favor.
Num virar rápido, uma bomba de fumo é atirada, arromba a porta da casa. Phill mesmo assim,
corre atrás dele, empurra-o contra o chão antes que subisse as escadas. Atira a espingarda para
fora e fecha a porta.
– Nunca pensei que um apostador do Box Dead tivesse tomates para enfrentar a rainha.
– Somos homens de fé e de submissão. – levanta do chão – Com saudades? – baixa o lenço.
Saudades de um velho lutador? Às vezes sim, noutras não. Tegs, fez tantos combates planeados
que ambos enriqueceram aos vinte anos de idade. Depois disso, dívidas, apostadores que estavam
fartos dos assaltos combinados. Pediam um vencedor, um deus a qual amar. Calhou Phill resistir

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Sete Nomes

os murros fortes e virar dono do Box Dead. Calhou Tegs ser expulso da arena, cuspido por todos
e viver na rua. Não odiava Phill, pelo contrário, admirava. Odiava era os restantes, a monarquia,
os ricos, os que tudo tinham e deitavam fora sem pensar. Num dia, os guardas prenderam metade
dos mendigos, torturaram e mataram para limpar as ruas. Tegs ficou cego do olho direito,
sobreviveu às custas de um opositor da rainha que lhe prometeu dar um lugar no castelo se
matasse-a.
Como ia adivinhar que Phill estava lá? Revoltou-se ao saber que era filho bastardo de um
príncipe. Isso explicava muito, o facto de ser amado pelos apostadores e Kayo o considerar filho.
– O que contas?
– Dinheiro e mulheres. E tu?
Sorri, o humor estava intacto.
– Pelo respeito que te tenho, fica de fora.
– Da porta? – aponta.
– Isso mesmo.
– Não sou um cão para roer os ossos à porta. A casa é minha e não és bem-vindo neste momento.
A bebé Vicki está dormir e se acorda, vamos ter problemas.
– Terás… – caminha para a sala ao lado e pega na garrafa de vinho – Não tardará a culparem-te
do atentado. Não penses que a corte segue tudo o que a rainha quer, eles também eliminam as
sobras mais deliciosas.
E provas que ordenou o ataque? Nenhuma, tinha dois bons advogados a seu favor e se Victoria
fosse realmente amiga, veria que o amigo fez tripas coração para a defender.
– Soube que Yves está em Edimburgo e abriu uma loja de sabões. Casado e já vai ser pai em
novembro. Deste-lhe asas? – olha-o.
Não tinha noticias do traidor aprendiz. Se tinha a vida encaminhada, que bom, soube ser homem
para isso.
– Pediu a algum anjo asas e voou.
– Abie morreu, também soube. Não a podias ter levado a uma lavandaria? Os vapores fazem
milagres.
Na altura não se lembrou da cura, queria apenas criar uma memória a qual chorar mais tarde.
– Eu e roupa suja… Só se for lavada na rua.
Bate o copo na mesa.
– Andas com uma mulher jeitosa… Não faltam homens para a cortejar.
Fecha as mãos, homens e mulheres.
– Boston nasceu para dar tesão.
– Acredito que sejas bem servido. Pergunto-me… – aproxima-se – Se eu te matar, chegar a casa
e contar o que me fizeste, ela fica comigo?
– Não, parte-te um dente e enterra-te na pocilga.
Faz um som de ficar interessado em a conhecer.
– Talvez a tome como minha rainha.
– Boa sorte, se nem para Viena quer ir, quanto mais para Windsor.
– Talvez ela não queira, mas se Logan a obrigar… Talvez vá.
Logan… O mundo Para de girar, os sons dos disparos soam lentamente em volta, como se algo
fizesse as balas de chumbo voarem lentamente. Logan estava por detrás daquilo? Claro, era um
dos opositores, um dos que pagava para os ataques acontecerem. Claro, não podia matar Phill
diretamente, então matava-o indiretamente. Touché, livrava-se dele e da rainha num só ataque.
Viva ao absolutismo, alguém sentava no trono e usava coroa. O intitulado Cristian ganhava um
cargo e a vida seguia.
– Um sparring. – conclui.

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Sete Nomes

– Um pugilista de peso que não abandona o cargo… Acertaste em cheio.


Claro que acertou, quem mais fazia uma luta simulada há espera de sair a ganhar? Até os mais
sábios perdiam.
– Desculpa o murro.
– Que murro, Phill?
Puxa a mão atrás e bate-lhe no rosto. Tegs cai sobre a mesa e abre a boca ao sentir a terrível dor.
– Esse murro. Este acerto de contas não tem nada haver com o nosso passado. Na verdade,
invocaste o nome errado quando falaste. Logan… Esse homem está a tirar-me do sério. Talvez…
Empara a queda no aro da porta. Levar sem dar resposta? Tegs retira o chapéu, tentou começar a
bem, mas Phill continuava o mesmo teimoso.
– A rainha só sai daqui morta. – limpa o canto da boca.
– Tu é que vais sair daqui morto. – despe o casaco.
Um último KO sem sparring, acabou a fortuna.
A cada disparo, a rainha rezava a Deus a sua sobrevivência e a dos demais. Nunca foi tão devota
como estava a ser. Onde estava o exército, os soldados que levou, o general… Onde estava? Mima
o choro da cadela, estavam onde não deviam de estar, chegariam quando o massacre tivesse sido
feito.
Entra pela janela uma bomba. O que fazer? Alguém pega nela e manda-a pela janela outra vez.
Explode sobre as cabeças que se limitam a olhar. Um segundo de paz em que ambos estão no
mesmo lado. Acabou o segundo e a guerra volta em força.
Albert queria testar o azeite a ferver sobre os bandidos que se acumulavam na praça. Aquela ideia
vinha de Portugal e bem que os ingleses que por lá andaram, aprenderam os variados métodos de
tortura. Gritando para recuarem, atiram sobre os homens vestido de negro o azeite. Barris de
uísque e brandy são lançados para a fonte, lá se vai o óleo de baleia que alimentava os mais
pequenos. O padre com a fé na boca, pega fogo à fonte e as chamas ganham tal dimensão que
assustam os demais que estavam em volta. O problema é que nem todas as ideias acabam bem e
o rasto deixado no chão acende um rastilho.
– Corram. – o presidente pede.
O rasto vai direto à casa da pólvora.
Ensanguentados e cansados, o pouco que sobrou da procissão andava à procura da rainha
desaparecida. Ao verem a explosão no horizonte, não duvidam que esta tenha sido levada para a
vila. Ainda bem que alguém foi pedir reforços, sozinhos não iam longe.
Se Tegs deixou de lutar, Phill estava mais que feliz por voltar a testar-se. A louça partia-se, a sala
era pequena demais para dois furacões que disputavam o lugar. O sangue era cuspido à medida
que o punho fechado quase quebrava os maxilares.
Farto da túnica justa, rasga-a de alto abaixo e desaperta o lenço no pescoço. Tegs estava no chão,
respiração acelerada, cansado e estourado da tareira. Gatinha até à cadeira e levanta.
– Sempre o mais forte. Até metes raiva.
– Também foste forte. Agora, és uma galinha bem depenada.
Ri ao pegar na cadeira e partir nele. Depois corre contra o tronco musculado e sem ver o que
estava atrás, partem a janela e caem no chão lamacento. Aquilo já não era uma luta entre pugilista,
lutavam até à morte.
O som da trompeta real faz Victoria levantar da cama e correr para a janela. Só agora, quando os
aldeões tinham dizimado metade da frente? O general acena para a rainha.
– Estais demitido! – grita.
Viva e com o mesmo humor de sempre, o império não cairia ainda. Erguendo a mão, os soldados
invadem a praça e matam os bandidos.

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Sete Nomes

Apertar a goela não era permitida nos combates, mas ali, no chão, sobre a lama, qualquer coisa
servia para matar. Phill estava por baixo, Tegs apertava o pescoço com força. Bate no braço dele,
a outra tenta empurrar o rosto para cima a fim de conseguir distrair.
– Morre!
Os olhos fechavam-se, o ar desaparecia dos pulmões. Distraction. Deixa as mãos caírem, os
lábios cerram-se. Os dedos sentem o cabo da faca, puxam-na da bota. Num movimento horizontal,
rompe o peito de Tegs. As mãos largam o pescoço, as mãos cravam a faca no pulmão.
O sangue salta para o rosto de Phill, pinga para o tronco soado, cheio de feridas profundas.
Cansado, larga a faca e desvia-se para o colega não cair por cima. Morto. Salvou a rainha.
– Quero férias.
Tose algum sangue que estava na goela e repara que alguns bandidos vinham na sua direção. Não
acabou? Claro que não, matou o cabecinha e agora cada um por si.
Levanta do chão, pega na pistola que por lá ficou e faz mira. Um tiro na cabeça, o bandido cai, o
cavalo continua a correr. Com velocidade, corre para a espada. Um salta, desafia.
O corpo estremece ao som do disparo. Morreu? Virando-se lentamente, repara que o homem cai
no chão antes mesmo de disparar. Ao pé da porta da casa ao lado, a rainha sopra para o fumo que
sai da culatra.
– Fui a melhor caçadora de Windsor. – fala com brio no olhar.
E quem era Phill para duvidar.
– Estais com sangue. Tendes dores?
Sorri ao se ajoelhar no chão. Dores? Estava partido, levou com tanta louça em cima que, se o
corpo aguentasse o retorno a casa, é porque era feito de aço.
– Vamos que já vou atrasada para o almoço. Denisse, a Laica. – caminha para a praça – Venha
Sir Orange, seu pai já deve ter chegado.
Crava a espada na lama, que William esperasse, naquele momento queria dar um banho e deitar
na cama. Pobre Phillipe Worthwhile, se foi para Waterloo lutar de espada e pistola, deve ter
voltado para casa dentro de um saco. Ou aquele Phillipe de Orange não percebia nada sobre
batalhas e lutas. Ganharam ou perderam? Se Victoria ia para casa, é porque ganharam.

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Sete Nomes

Capítulo 46
Ovos com maionese, nunca recebeu tanto mimo em solo inglês. Pega no sal e deita sobre a mistela
branca, só o avô mesmo para mimar a neta bem-comportada. Bebeu apenas um copo de vinho,
lavou a louça que Louisiana deixou na banca e ainda varreu o chão. Quando Jason chegou,
colocou a frigideira ao lume e partiu os ovos que fritariam em azeite. Agora, depois daquilo, urina
no penico e cama que o dia foi longo e sem muito para contar.
Olha para o relógio. Nove e meia. Então a pergunta aparecia na mente… Where is Phill? Limpa
as mãos ao pano. Nunca esteve àquelas horas no castelo, às sete em ponto chegava a casa, dava
banho e descia para comer algo. Será? Logan não se atreveria a matá-lo, seria como declarar a
morte. O que faria se isso tivesse acontecido? Deixava os outros nomes para o fim e enterrava
aquele fantasma antes que chegasse ao coração dela.
– Queres bacon?
Nega ao beber um pouco. Deve ser William, deve ter voltado e o filho quer passar mais horas
com ele. Também, não tinha nada ali, apenas duas mulheres mudas, metidas nos seus pensamentos
confusos.
Louisiana aparece na cozinha sala, faz um leve gesto com a cabeça para Jason, pega na garrafa
de vinho e volta para o quarto. Acabou dias de censura, queria apanhar uma bebedeira.
– Como estão as coisas entre ti e ela? – limpa a boca.
– Somos amigas. Não vou ficar mal com ela por causa de um beijo.
– Mas tu e Phill… Não vai bem.
– Estraguei-lhe a vida e admito isso. Amanhã enterro mais um nome e depois, vou à procura de
um quarto lá na cidade. Não quero ser a dor dele.
– Serás se fores.
– Serei se continuar aqui.
Jason não acreditava lá muito nisso, Phill tinha perfil de homem que se contentava com a
companhia da muda mulher. Indo embora, abriria nele uma ferida bem difícil de fechar.
Rachel vira o rosto para o bater à porta. Nem hesita em levantar e correr para a fechadura.
Abrindo, fica vidrada a olhar para quem chegou tarde a casa.
– Antes de perguntares o que aconteceu, digo desde de já que tirei férias após a condecoração de
Cavaleiro Real do Império.
O que via? Phill estava cheio de remendos. Por outras palavras, um braço ao peito, feridas
vermelhas que foram limpas por médicos, uma túnica nova que escondia algumas mossas, o canto
do lábio inchado, um dos olhos quase roxo… Faz sinal para entrar, ele sim teve um dia longo.
– Em nome de Thomas Jefferson, o que te aconteceu? – Jason levanta.
Phill senta à lareira, descalça as botas que não podia mais ver à frente e aquece os pés. O que
aconteceu? Regressaram ao palácio após contarem os trinta e oito mortos e dezoito feridos. Pelo
caminho, o general e o capitão tentaram envenenar a cabeça da rainha, dizendo que quem planeou
o ataque foi o guarda costas. Victoria gritou bem alto que quem quer que tivesse sido, não admitia
que os seus homens estivessem no cu de judas e uns meros aldeões, liderados por um príncipe
bastardo e um presidente, combatessem os rebeldes. Bastou colocar os pés em Windsor para
despedir quase todos. E Phill? O herói do dia que ganhou muitos inimigos dentro do palácio. Após
três horas na enfermaria, o pugilista arrastou-se até à sala do trono para receber a medalha de
mérito e a condecoração de Cavaleiro Real do império britânico. Os príncipes aplaudiram-no e
agradeceram o facto de ter tido a coragem de defender a rainha, usando apenas homens,
espingardas, óleo de baleia e murros. O óleo não entendeu, talvez Albert tenha exagerado.

318
Sete Nomes

Só voltou à estrada depois do jantar, conversar com o pai e inventar uma história sobre quem
tenha planeado o ataque. Dar Logan de bandeja seria dar um presente a ele e ainda não estavam
a comemorar o Natal.
– Fomos atacados.
– Por quem?
– Adivinha Rachel… Adivinha o nome do filho da mãe que nos tramou.
Senta ao lado dele. Logan.
– Falou com um colega meu, invocou o teu nome e ainda o futuro de Londres. Há muitos
opositores, maior parte é americano e escocês. Outros são grandes nobres que querem ver a rainha
morta e a família real assassinada para terem o absolutismo. Um desses nobres é Logan que, hoje
esticou muito a corda ao querer assassinar-me e assassinar a rainha.
Incidentes… Bem que ele cantarolou isso ao ouvido de Rachel. Um acidente pode acontecer e
Phill morrer. Mais uma vez, aquele assassino subestimava duas pessoas que sabiam jogar xadrez.
– A rainha?
– Bem-humorada, a comer bolinhos coloridos na enorme cama. Eu, partido e com vontade de
gritar. Obrigado por perguntares.
– Victoria devia ter morrido! – Jason bate na mesa.
– Se ela morresse, eu é que morria. Não se esqueçam que se ela cai, temos o absolutismo à porta.
– Mentiras. – levanta da cadeira – Nem quero saber, sou americano aos anos e não troco isso.
Phill nem comenta. Repara no olhar de Rachel, o quanto estava triste e perdido na chama da
lareira. Toca a mão dela e agarra com força, já passou.
– Não está na hora do avô voltar para casa?
– O que queres da minha neta?
– Uma longa conversa. – olha-o – Com a sua bênção.
– Não sou Deus… Mas vou indo… – pega no casaco – Já devia ter ido e já. Rachel, cuida-te, meu
anjo. – beija a testa dela.
Olhando para Phill, baixa o rosto até ao ouvido.
– Alguma merda que a faça chorar e terás a tua dignidade enfiada no cu. Aí nem um santo
advogado te salva.
Assente um pouco amedrontado, Jason não tinha ar de estar a brincar com a situação. Quando a
porta bate, levanta da cadeira, pega num prato e num copo e senta novamente em frente à lareira.
Passa as narinas pela comida. Caca de pombo com sal… Fica curioso.
– É americano?
Rachel assente.
– Maionese?
Rasga um sorriso.
– Finalmente. – enche o garfo.
Metendo na boca, os olhos arregalam ao saborear. E não é que sabia bem? Acabou de alargar a
sua lista Eating Forever. Nem espera para mastigar direito, devora os ovos com maionese até
ficar enjoado. Rachel apenas sorria, se soubesse que ia gostar, já tinha feito há meses.
– Isto é mesmo bom. – fala de boca cheia – Há cenas americanas que são boas. Mas… Mostarda
com ovos parece caca de pombo com açúcar. É horrível! Que mais sabes fazer?
– Hot Dog.
Mastiga lentamente e vira o rosto.
– Como se come um cão quente?
A risada sai e percorre a casa. Todos os britânicos pensavam que era isso e na verdade, não era.
– Phill, hot dog é um pão grande com uma salsicha no meio. Depois juntamos maionese e
comemos com queijo.

319
Sete Nomes

– É bom?
– É a melhor coisa do mundo. Tens que experimentar.
– Não sei se arranjar pães grandes e salsichas cá. Nós, os British, não comemos essa coisa do
ocidente.
– E pizza?
Pousa o prato na mesa auxiliar e suspira, afinal estava longe de ter uma boa lista de comidas.
– É bom?
– As melhores são italianas e nós não sabemos fazer. A menos que um italiano tenha restaurante…
Então comemos esparguete com carne muito miudinha e queijo.
– E eu a pensar que frango assado com vinho era e melhor coisa do mundo. Como sou mesmo
britânico!
Frango com vinho… Rachel abana a mão contra o rosto, nunca riu tanto. Phill passa a mão pelo
rosto dela e limpa as lágrimas de felicidade que desciam a porcelana. Era assim que a queria ver,
a sorrir, todos os dias, a todas as horas. Aproximando a cabeça, beija-a com carinho. Chamou-a
quando os olhos se fecharam e o ar escapou, então recordou o significado de distração. A caminho
para o castelo, chorou em silêncio, sentiu na pele a dura tarefa de lutar sozinho numa vingança e
fazer de tudo para não morrer. Aquela mulher sofria tanto nas mãos dos outros que não sabia onde
ia arranjar coragem para continuar.
– Eu amo-te Rachel. És o que me faz todos os dias querer ficar na cama a dormir mais uns
segundos.
Sorri ao bater na mão dele com meiguice.
– Mentira. Ficar na cama se lá estiveres, porque se não estás… Procuro-te. Não te odeio, amo.
Acho que perdi os meus sonhos manipulados e entrei nos meus pesadelos. Sabes qual é a coisa
boa nisso? É que quando chego a casa, todos os dias, depois de um dia de cão, estás cá, sentada,
à minha espera. Não podia pedir mais.
Beija a mão dele, estava perdida na sua dor, solidão e caminhos sem rumos. Não o queria magoar,
não o queria afastar de si. Precisava dele, por mais estúpido que algumas vezes fosse, precisava.
– Os meus dias vermelhos acabaram.
– Estás a gozar comigo? Estou todo partido e pedes cama?
– Desculpa… Foi uma ideia tola… – levanta da cadeira.
Puxa o tronco dela e senta-a no colo.
– Não tens nada a dizer?
– Podes usar a pistola.
– Não isso.
– Podes falar comigo?
– Não.
– Podes dar banho comigo?
– Rachel!
Suspira e brinca com a manga.
– Talvez tenha sido dura contigo e abusado com Louisiana. Ainda aprendo a moldar-me, não sou
perfeita e quando me perco, dificilmente me encontro. Perco a fé, o nome e as ideias. Estraguei a
tua vida, admito… – as lágrimas chegam aos olhos – Deves sentir falta de tudo.
Respira fundo, sentia, mas também não sentia assim tanto. Podia não ser mais o rei do boxe de
Londres, mas ganhou outras coisas que em pugilista não ganhava. Ganhou o respeito, o amor do
pai e aventura. Perdeu? Perdeu, para chegar a algum lado era preciso perder.
– Prometo ir embora em breve e pagar por tudo.
– Ir para Cavour comigo, certo?
Nega.

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Sete Nomes

– Vais, nem que te rapte. Já pagas aos poucos, eu cobro nos beijos.
– Não é justo.
– Diz-me… O que sou para ti?
Coloca as mãos no rosto dele e aproxima a testa.
– És… Um gastador, pedinte, cobarde…
– Sem ser isso.
– Amo-te. Chega?
– Foi quase convincente. Tens de treinar mais.
Pensa sobre o assunto, assim não ia longe. Sorrindo, levanta e pega na mão dele, puxando-o para
as escadas.
– Mereço depois do longo dia a defender a gnomo. – pega-a ao colo.
Onde ia buscar a força para a suportar nos braços? Quando o prazer estava em jogo, até tinha
fôlego para dar a volta a Londres. Fecha a porta com o pé, fim de greve.

Passa o braço pelo peito dela e aconchega-se. Rachel vira-se e sem dar conta, fica com os lábios
rentes ao dele. Exaustos, após duas ou mais semanas sem terem nada um com o outro, o retorno
foi abençoado pelos céus.
As narinas sentem algo, é como se fosse… Fumo. Lenha a ser devorada. Tecidos a serem
queimados…
– Rachel!
Erguem os troncos ao mesmo tempo assim que ouvem gritos de arrepiar a alma. Entre olham-se,
o fumo entrava por debaixo da porta. Será que a casa estava a arder?
Rachel levanta, veste o robe e calça as botas. Pegando na arma, caminha lentamente para a porta.
Louisiana gritava, não conseguia entender o quê que gritava, mas sentia a sua agonia.
– Tem cuidado. – Phill pede ao apertar as calças e vestir o casaco azul.
Abrindo a porta, um bafo quente faz os cabelos esvoaçarem para trás. O corredor estava a arder,
as paredes, o teto, o chão… Espreita para as escadas e vê Louisiana a arder, no chão, a ser engolida
pela quimera que a ia levar para a terra.
– Rachel! – estica a mão para ela.
Phill puxa-a para dentro do quarto e fecha a porta. Alguém pegou fogo a casa.
– A tua mala?
– Debaixo da cama. – fala em choque.
O pugilista abaixa-se, puxa a mala e abrindo-a, mete as medalhas, as balas de chumbo, pólvora
e algum dinheiro. Lá dentro já estava a roupa de emergência, a boneca que nem saiu e os
documentos.
– Temos de a ajudar.
– Não dá, o chão vai colapsar. – fecha a mala – Temos de saltar pela janela.
– Louisiana não merece morrer, ela precisa de mim!
Agarra no rosto dela.
– A Lou morreu, ninguém sobrevive queimada pelas chamas. Também tenho pena, mas temos
que sobreviver. Certo?
Assente, era verdade, Louisiana já estava morta. Se saíssem vivos dali, poderiam descobrir quem
pegou fogo à casa.
– Anda que o Flash está na cavalariça… – abre a janela e pega na mala – Se formos rápidos,
saltamos antes que exploda. Como sabes, ela tem barris de óleo na cave.

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Sete Nomes

Sabia, não entendia a teimosia de guardar tais bombas debaixo dos pés ou sobre as cabeças. Phill
atira a mala e depois, passa o pé pela janela e agarra-se à parede de pedra. Rachel atira a pistola e
segue os passos dele. Um vidro explode e o pugilista vira o corpo para trás e agarra-se ao outro
lado. As chamas saem e sobre elas fica Rachel.
– Salta. – estica a mão.
Olhando para baixo, salta para a mão que a agarra e o braço consegue esticar ao máximo para a
colocar no chão. Em segurança, dá um pulo para trás. Apanha a mala, agarra na mão e desatam a
correr para a cavalariça. Para onde iam? O castelo seria o próximo refugio.
As chamas chegam à cave e a explosão abala o terreno. Phill e Rachel atiram-se ao chão e tapam
as cabeças. Olham para trás, as altas chamas que consumiam a casa que a horas atrás, estava
serena. Se não tivessem acordado? Se não tivessem dado conta do fumo? Se demorassem só mais
uns segundos? Entrelaçam as mãos e olham-se, se… Estavam mortos como Louisiana. Mortos
como muitas pessoas desejavam que estivessem.
– Conseguimos.
Rachel assente, mais uma vez, conseguiram escapar às armadilhas que apareciam pelo caminho.
Sentia-se observada… Sentia uns olhos distante que miravam vidrados o que ardia. Levanta do
chão e olha para a moita iluminada, para o homem de capuz e a mulher que sem vergonha na cara,
sorria para as chamas. Logan. Gwenny. Uniram-se tão tardiamente que, até se sentia mal por unir
só agora aquele casal. Nas costas, não tinha espaço para mais um nome. Não precisava de o
escrever lá, existia coisas que não se esquecia.
– Terão uma cova conjunta. – Phill entrelaça os dedos nos dela.
– Com todo o prazer, terão. Achas que devia matar Julieta primeiro que Romeu?
– Não mudes a história, segue o guião. Primeiro vai Romeu… Depois, Giulieta.
Estava tentada demais a enfrentar a prima. Mas, como último nome a surgir, e como os sete
andavam há mais tempo entalados na garganta, ia dar-lhe o privilégio de ser a última.
Logan vira o olhar e mira-a. Viva. De pé. Rachel sorri e passa o dedo pelo pescoço, perdeu uma
amiga e isso não se perdoava. Ele caminha para o cavalo preso numa árvore, aquela mulher tinha
mais vidas do que julgava.
– Vai na sombra que a luz queima! – grita.
Gwenny vira o rosto e dá um passo em frente ao ver que estava viva.
– E agora, Logan? – pergunta com receio.
Montando o cavalo, pensa um pouco. E agora?
– Fica o aviso.
– Vai denunciar-me.
– Acho que a tua prima não vai abrir a boca, a menos que queira perder mais alguma coisa que
lhe resta. Preciso que descubras quem a anda a ajudar.
– Phillipe de Orange.
– Não…
Vira o rosto, quem mais a poderia ajudar? Assente, tentaria descobrir.
– Agora, eles vão se refugir em algum lado, temos que descobrir onde.
– Se cair nos braços da rainha, estamos tramados.
Salta do cavalo e aproxima-se da amedrontada.
– Prometi que mataria aquela mulher, fruto da relação que tu tanto querias ter e não tiveste. Não
tens raiva dela, de Cristian a amar invés do teu filho? Não a queres morta e enterrada?
– Mas receio ser considerada traidora e condenada à morte. Livrei-me de Walter, desde de então
que receio perder a fortuna também.
– Se fores apontada de algo, eu estarei por perto para te ajudar. Juntos, mataremos quem nunca
devia ter nascido. – toca o rosto – Acredita em mim, Gwenny.

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Sete Nomes

Sozinha, não podia acreditar em mais ninguém que não ele. Beija-o e quando recua, puxa o seu
capuz para a cabeça. Logan estava-se a marimbar para aquela mulher, apenas a usava para ter
uma aliança forte e capaz de derrubar a inderrotável Clarel. Quando matasse Rachel, mataria
Gwenny, Walter e Stayci, ficando o único herdeiro da fortuna e sem ninguém para o incriminar
do que fez há treze anos atrás. Estava perto disso, muito.

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Sete Nomes

Capítulo 47
Viver juntos na mesma casa? Jason abriu a porta à neta, pegou na mala e bateu a porta na cara
do pugilista. Rachel lá fez aquele olhar de que ele também tinha direito e o advogado abriu a porta
e deixou entrar. Don´t eat my food! Então o que comeria? Os restos? Nem na mesma cama que a
dela podia dormir, regras da casa.
Amanheceu e a frigideira a rugir no fogão de lenha ecoava pela casa. A luz entrava pelas enormes
janelas da sala e percorria o espaço. Futurismo diriam os franceses. Aquela torre deveria de suster
o segundo relógio londrino, mas a rainha não deu permissão e o homem aproveitou o terreno livre
para uma fábrica. Nem a fábrica foi rentável e aquela torre foi leiloada ao estado. Jason comprou,
gostava de ver de cima o que o esperava lá em baixo.
Em calças, com a túnica a descer os ombros, Rachel cozinhava o breakfast. Mal pregou olho na
madrugada, a imagem de Louisiana a arder e estender a mão marcou-a. Sozinha na enorme cama
a enfrentar o pesadelo… Não ajudou nada.
– Qual é o fascínio do teu avô pelas alturas?
Lambe a colher de pau e encosta-se ao aro da porta.
– Em Boston há prédios altos.
– Estou zonzo desta altura. – vira o rosto.
Dá um assobio ao ver que o seio estava à mostra. Ela revira os olhos, nem colocou o espartilho
porque apertar e não… Já era hora de almoço e ainda não estava vestida.
– Para onde olhas? – Jason pergunta ao apertar o botão da manga.
– Para as pessoas. – vira o rosto para a janela.
O advogado olha para a neta a puxar a túnica para cima.
– Já vi Rachel nua… Na altura não sabia que era avô. – entra na cozinha.
– Ela não, mas o senhor sim. – Phill manda a boca.
Anda para trás com a colher de pau na mão e olha para o intrometido.
– Falou alguma coisa?
– Falei a verdade.
– Eu é que me despi no quarto, Maddey e Jason entraram ao mesmo tempo, viram as tatuagens e
descuidada como era, nas tintas para tudo, virei-me e viu. Qual o mal? – Rachel pergunta.
– Respeito.
– Não continua a haver? – cruza os braços.
O pugilista mete as mãos aos bolsos. Continuava, só achava estranho esse facto, nada mais.
– Ainda vou a tempo de o colocar na rua. – murmura para a neta.
– Seria um desperdício. Ficaria à porta a ganir feito um cão com fome.
– Sabes as regras da casa.
– Nada de cama, nada de bebedeiras, nada de coisas mal-intencionadas e nudismo.
Beija o rosto dela, assim gostava de ver.
– A comida é para hoje ou para amanhã? – Phill reclama.
Muito o advogado teria que engolir para o aceitar.
Ovos com… Bacon, frango frito e natas com cebola e coentros. Café forte, sumo de laranja
açucarado demais e pão aquecido na chapa do fogão, crocante das brasas o defumarem. Phill não
se sentia em casa, sentia-se… Distante demais. E mais, no outro lado da janela era Londres. Onde
estava o chá quente ou o leite morno que pedia o pão duro do dia anterior? Onde estava a sopa
aguada de babata e cebola, o copo de vinho acompanhado de água? Onde estavam os scones ou
os bolinhos coloridos cheios de chantili? Enquanto os americanos devoravam os ovos com bacon,

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Sete Nomes

Phill olhava para o prato pobre. Que miséria, se soubesse que ia ser mendigo, tinha dormido na
rua.
Jason dá um leve toque a Rachel no braço e faz sinal para o convidado a mais.
– Não gostas?
O garfo toca ovo frito. Nunca da vida comeu um e já parecia enjoado de o comer todos os dias.
– Não tens leite e pão duro?
Ninguém comprou isso, até porque começava a chegar o calor e ficava difícil conservar o que
azedava rápido.
– Nem manteiga?
Nega, a casa só tinha pratos americanos.
– Não tenho fome. – afasta o prato.
– Passei o mesmo quando vim para cá, só chás, pãozinho com manteiga, pão de leite… – limpa a
boca – Estava farta disso.
– Mas comias bem na minha casa, até bolinhos de chocolate mandava comprar para ti. Os
americanos vivem pior que os ingleses.
– Não queres, mais sobra. – Jason pega no prato e passa para o seu a comida.
Sentia… Sentia no ar que as coisas não ia acabar bem. O advogado gostava dele no teto que não
fosse o seu, porque no momento em que o falido príncipe austríaco passava a viver na sua casa,
o assunto mudava muito.
Phill coloca a mão sobre a barriga que roncava de fome. Dieta.
Olham para a porta, quem é que seria?
– É o meu pai, deixei uma carta nos correios a dizer onde vivia. – levanta.
– Estás louco?! Se Logan sabe que estou aqui, morremos todos!
– Calma avozinho, o correio real é secreto. – abre a porta – Pai! – abre os braços.
William abraça o filho com cuidado, a coça que levou no dia anterior ainda estava no rosto. Olha
para o espaço espaçoso e iluminado. Bem futurista, muitas casas ainda tinham a moda escura e
pesada que a rainha limitou-se a transmitir aos súbditos.
– Comida. – pega na caixa branca – É mesmo um grande pai.
– Era para Rachel…
– Ela está servida. – trinca o pão de leite.
O príncipe vira-se e acena com a mão para os demais. Eles erguem os garfos, pequeno-almoço
bem americano.
– Como acordou a gnomo? – senta no sofá em frente à janela.
– Bem-disposta, até queria ir passear. Mas lembrou-se que estarias pela cidade e os soldados,
depois de ontem, merecem castigos.
– É príncipe da Áustria ou Holanda? – Jason pergunta.
– Ambas. – coloca as mãos atrás das costas.
– É casado?
– Viúvo, divorciado… Solteiro.
Olha para Rachel, não gostava do futuro sogro que arranjou. Parecia muito… Liberal. Ela
limitasse a comer, o avô nem desconfiava que o beijou.
– Quer comer? O seu filho rejeita comida americana.
Se Phill rejeitava, então William nem se oferecia para provar.
– Vai ficar de pé feito um espantalho ao pé da minha porta?
Nega ao tossir para a mão e caminhar para o sofá. De costas direitas, senta e olha para o filho a
comer. Estala os dedos enluvados nas pernas, como deveria de falar com um americano? Olha de
esguelha para o avô de Rachel. Quando ouviu falar dele, pensou que se tratava de um banana

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Sete Nomes

qualquer que criava a neta ao ponto de a deixar fazer tudo. Ali de perto… Nem sabia como ela
conseguiu infernizar-lhe a vida.
– Vais ao bordel hoje? – Jason fala baixo.
– Vou. – Rachel bebe um pouco e limpa a boca – O que conseguiste?
– Precisam de uma meretriz nova. Pensei que poderias apanhar Noah no quarto.
Nega, tinha outras coisas em mente.
– Hoje vou conhecer mais de perto a presa. Depois vejo como morrerá.
– Vais levar aquele suitcase?
Afasta o prato e alinha o copo.
– O que tens contra ele?
– Estou a fazer de propósito, sabes que lá em casa mandas tu. Só cuido de ti e dos teus negócios.
Não quero que ele se sinta livre ao ponto de não ter regras.
Vira levemente a cabeça para o mirar, entendia. Phill livre era um perigo para si mesmo. Com
rédeas, até que ia longe.
– Vai. Desta vez, quero-o nos meus planos.
– Mesmo que seja um perigo? Logan quer ambos.
– E terá. – olha para o avô – Terá a minha cabeça na sua bandeja de prata. Se a conseguir cortar.
– Não brinques com o fogo.
Bebe num golo o sumo e bate o copo na mesa.
– Antes de chegares, já eu tinha sobrevivido a muitos atentados. É só mais um da lista. – levanta.
Sempre só mais um, mesmo quando o mais um significava estar mais perto da tumba. Mas era
verdade, a neta mandava no momento em que herdou tudo dos Clarel. Como sombra, Jason
limitava-se a servir. Não permitia faltas de respeito, nem homens que se esqueciam das regras.
Não estavam na selva e por mais liberdade que houvesse, certas coisas não mudavam.
William coça a ponta do nariz e aproxima o tronco ao filho.
– Ele não vai com a tua cara.
– Que pena, nasci com esta e não posso mudar. – devora o último pão.
– Onde dormiste?
– No sofá. O avozinho rezingão não quer que durma com a neta. Cá em casa, nada de amor ou
banhos a dois, só divórcio.
– É pior que o palácio do meu sogro.
– Conta… Como ficou lá a caça ao homem?
O príncipe cruza a perna e olha da janela a cidade.
– Nem investigava, andava atrás de uma duquesa. Quando estava preste a ir para os seus
aposentos, recebo a novidade que a rainha Victoria queria a minha presença no palácio. Devias
ter visto a cara do meu sogro. “O que raio aquela louca quer de ti? Cá para mim já andas no roliço
com ela!” Eu e vossa Majestade? Nem em sonhos ou pesadelos.
Phill faz uma carranca, nem imaginava a rainha como sua madrasta.
– O que disse?
– Bem… “Vossa prima gostou da minha presença e terei que ir.” “Vais e aproveita para a alertar
que certas possessões em África não fazem sentido. Se roncar, alerta-a que os meus ministros a
esperam na reunião.”
– Não lhe transmitiu isso, pois não?
– Achas? Recebeu-me de braços abertos, ameaçou que me expulsava se voltasse a fugir e ainda
ia transmitir a mensagem azeda do meu sogro… Francisco que venha cá dizer-lhe isso na cara.
Tapa a boca, nem queria imaginar a catástrofe que seria ambos os reis a discutir África.

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Sete Nomes

– A situação não vai bem na europa. Ao que parece, estão a querer traçar uma linha férrea do
Cairo até ao Cabo da Boa Esperança. O rei Carlos, de Portugal, tem duas possessões que ficam
mesmo no meio da linha. Se for avante, Inglaterra não terá dó deles.
– Achas que Victoria mandaria o primo dar um passeio?
– Não duvido nem um pouco. Se os portugueses recusarem, serão invadidos.
Coça a cabeça.
– De Portugal só gosto o vinho.
– De lá não gosto nada, passei por Lisboa, fiz a tua irmã em Madrid, mas quando estive em Lisboa,
não encontrei um grande palácio como tenho em Viena, encontrei… Um desenrasque. Disseram
que o convento de Mafra era o Versalhes português. Estive lá e não vi nada. Só o palácio de Sintra
é que tinha algo digno, construção austríaca.
Phill assentia, nunca cruzou o mar para as maravilhas do mundo e dispensava, pela boca dos
outros, já tinha viajado muito.
– Louisiana morreu queimada?
– Sim. Pior, beijou Rachel e desde esse dia que está abalada.
– Beijou? – fica abismado.
– Beijo de língua. Rachel contribuiu para o momento estranho e não sei… Ontem ao fazer amor
notei algo no olhar.
– Tipo…
– Não pensava em mim.
Enche as bochechas com ar, ser beijada por uma mulher… De língua… Nem se atrevia a insinuar
que se inclinava para o outro lado.
– Ela beijou-me de língua também.
– Qual é a necessidade de beijar uma mulher? Não sabe que se se apaixonar por ela… Corre
riscos?
– Rachel ama-te, deve estar só confusa.
– Achas?
– Acho. – coloca a mão na perna dele – Vais ver que isso não alterou o vosso amor.
E se alterou? E se algo se tiver partido? Nem sabia o que pensar ou em que querer pensar, perdê-
la para uma mulher morta era a pior ofensa que podia acontecer.
– Empata ali o avozinho, vou falar com ela.
– O que queres que faça?
– Fale de leis, ele é advogado. – pousa a caixa.
– Não sei nada sobre leis.
– Invente. Não tem dívidas em Viena? Então, arranje maneira de se livrar delas com ele.
William vira o rosto para Jason. Braços cruzados e olhar de poucos amigos… Os sacrifícios que
fazia em nome do filho.
– Vais a algum lado? – o advogado pergunta.
– Vou urinar pela janela. – avisa ao ir para o quarto.
O advogado segue-o com o olhar e repara que o príncipe se sentou à sua frente. Esbugalha os
olhos, Phill era mesmo parecido ao pai, só mudava a idade e o peso.
– Eles vão conversar.
– Tal como nós. Diga-me… Boston é acolhedor?
Coloca as mãos sobre a mesa e suspira, lá tinha que fazer a gentileza de falar a bem com um
príncipe.
Sabão de camomila… Fecha os olhos ao sentir o intenso aroma. O avô não veio de mala vazia
para Londres, trouxe os mimos todos. Até o vestido de dormir com longas mangas, maiores que
os braços. Abre a mala e pega na boneca, nem sabia se a punha a apanhar sol ou a deixava

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Sete Nomes

arrumada. Se voltasse a sair a correr, não teria tempo de a colocar na mala. Beija o rosto dela e
deita-a novamente, não ia perder aquela boneca tão especial.
Olha para a janela ao sentir a porta fechar. Phill. Dobra a roupa sobre a cama, queria falar pela
demora das palavras. Sobre o quê? Qualquer coisa que lhe pesava na alma. Talvez um assunto
mal resolvido. Talvez algo do futuro. Larga a roupa e cruza os braços. Louisiana. Claro, tinha que
tocar nesse ponto novamente, falar sobre o beijo como se se tratasse de um assunto urgente.
– Não estava a pensar nela ontem. Quando começaste, lembrei-me de Merle e o que estava a fazer.
– Isso já vai há algum tempo. Disseste que não ias ficar perturbada psicologicamente.
– E não fiquei até ontem… – pega nas camisas e caminha para a gaveta.
– Estava a ser violento?
Nega.
– Phill, não toques em certos assuntos.
– Assuntos que mexem contigo. Louisiana mexeu contigo.
Fecha a gaveta com força.
– A menos que me estejas a esconder algo.
Encosta-se à cómoda.
– O que escondo? Sou um livro aberto. Tu andas a criar paranoias em torno daquele beijo.
– Ontem parecias que estava lá por obrigação, olhavas de tal maneira o teto que… Pensei que
estava a fazer algo errado. Até ignorei. Se é dela de gostas… Diz.
Vira o rosto, beijar uma mulher fora a mais estranha experiência que teve. Não significava que
sentia algo por ela ou que pensava sobre isso. A verdade é que Rachel também tinha segredos que
afetavam o seu bem-estar.
– Quando saíste ontem… Gwenny apareceu-me à porta.
Não a esperava, nem tão pouco teve vontade de a receber. Tentou fechar-lhe a porta na cara, mas
a prima insistiu numa conversa civilizada sobre certos assuntos pendentes. Santa paciência,
Rachel lá abriu a porta e fez sinal para Louisiana ir. Não havia nada a acertar, o que estava feito
não se alterava, nem a praga, nem o ódio. Sentando à lareira, Gwenny pediu chá e recebeu um
copo de água, não eram ricos para esse luxo e a boa educação ficou no outro lado da porta.
– O que ela queria? – Phill pergunta.
Rachel vira o rosto para ele e assente suavemente. O que queria? My dear… Começou assim,
como quando se começa uma carta que é lida e arrumada na gaveta. You will have many problems
if you revenge your parents. Conselho azedo, certo demónios não aconselham nem os mais
iludidos. Mas Gwenny acreditava que conseguia, foi com essa fé na boca a fim de conseguir
converter uma ateia.
– Tentou convencer-me a desistir da vingança, que estaria morta antes mesmo de riscar o próximo
nome. Ela sabe da lista que tenho nas costas, sabe do próximo nome e me ameaçou que aparecerias
morto caso arrisca-se. Cravei a faca na mesa e disse que só morta é que parava. Então, levantou,
colocou sobre a mesa um nome e sussurrou ao meu ouvido… “Da mesma maneira que matei o
teu pai, mato-te a ti também, mato o teu amante e ambos apodrecem na cova.”
O pugilista não estava muito surpreso, ameaças desse tipo não faltava em Londres. Mas Rachel
parecia abalada demais com isso.
– Que nome estava na mesa?
Caminha para a janela, cruza os braços e encosta a testa ao vidro gelado pela madrugada.
– Abibatu.
Abie… Phill tenta entender como ela teria sido morta. Morreu de pneumonia, ninguém a matou.
– Não entendo.

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Sete Nomes

Claro que não. Mas Rachel sabia como a prima a levou. Sabia até que Elvis morreu no mar vítima
de um favor vindo de Gwenny e Logan. Cristian foi assassinado pela própria prima que se uniu
ao assassino para destruir uma família.
– Abie estava a melhorar, ela ia sobreviver à pneumonia. O médico matou-a.
– O Eyes? – acelera o passo e agarra no braço dela – É bom que digas como ele a matou, porque
aquele homem é meu amigo aos anos e sempre cuidou bem de mim e dos meus filhos.
– O que Eyes lhe deu foi letal. Veneno, tossiu sangue, febre alta… Parecia normal, a pneumonia
ataca nos pulmões e mata lentamente o corpo. O que ele comprou… O que ele pagou na feira, foi
o que a matou. E isso, não foi o destino, um ajudante de Logan comprou a Gwenny para vender
ao homem da drogaria que, deu a Eyes, como tinha prometido. Tu perdeste Abie para não teres
forças para me ajudares, sem ela, desistias de viver e eu desistia de ti. És o meu ponto fraco.
Recua, os olhos em lágrimas denunciavam a raiva que sentia. Mataram-lhe a filha por causa de
uma amante que tinha fugido com um pugilista profissional? Fizeram Abie sofrer até ao último
segundo só para o enfraquecer? Coloca as mãos na cabeça e abaixa-se, não acreditava, não
conseguia acreditar.
– Por isso que ontem estava estranha. Sinto-me culpada, mataram-na inocentemente. Não
conseguia estar contigo sem sentir essa culpa no peito. Tentei fingir, tentei parecer a mesma
Rachel de sempre. Mas… – as lágrimas descem o rosto – Gwenny matou Abibatu e Elvis.
A cabeça de Phill levanta.
– Elvis?
– O barco que afundou seguiu uma rota diferente da habitual. Logan matou-o para ficar
destroçada. Desde o inicio que tudo foi um jogo viciado.
Desde o dia que a viu que os problemas começaram em bola de neve e se alastraram. Uma vida
destruída por causa dela, um futuro deitado ao ralo da banheira por culpa de uma vingança.
Levanta do chão, limpa as lágrimas e pega no casaco sobre a cama.
– Phill… – aproxima-se.
– Podem ter feito trinta por uma linha! Podem ter brincado comigo, com o meu coração, com a
minha vida… Mas não com a Abie, não com aquela filha que perdi e ainda hoje sofro! Não existe
um único dia em que não tente ouvir a sua voz. Todas as manhãs ouço-a a gritar “Boss, acorde
antes que Yves coma tudo.” Perdi-a por tua causa e isso eu não perdoo.
– Gwenny sempre soube, desde o dia em que cá pôs os pés que ela sabia que vinha me vingar.
Antes de Logan saber, já ela começava a dar cabo dos meus planos. Se soubesse que ia fazer isso,
juro que ter-me-ia afastado da tua vida.
– Invés disso, destruíste tudo o que tinha. Preferia que tivesses morrido no lugar dela! – sai e bate
a porta.
Preferia… O corpo cai sobre a cama, o choro surge, uma necessidade para aguentar o que ouviu.
No lugar da empregada, preferia que a pessoa amada tivesse morrido no lugar da rapariga
comprada na feira e dada como filha adotiva por não haver alternativa. Bate no colchão, queria
gritar, queria cravar as unhas e gritar até ser ouvida. Jamais escolheu estragar a vida de alguém.
E todas as dores merecem momentos de silêncio. Ia contra a maré por mais que tentasse segui-la.

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Sete Nomes

Capítulo 48
Era difícil fazer uma mala vazia no momento em que se partiu sem nada e se usava o que os
outros davam. Jason deu-lhe uma suitcase e desejou felicidades. Um… “Vai que já vais tarde.”
Senta sobre a cama, ia levar nela o vazio da vida vistos que tudo o que ganhou estava debaixo dos
escombros. E Rachel? Saiu. Como prometeu, ia caçar Noah. Jason ia falar com o advogado Wood
para saber como recuperava a casa Clarel que pertenceu ao falecido filho. E Phill, no quarto, no
silêncio londrino que parecia uma bênção. Regressou às sete da tarde, se tivesse chegado um
minuto mais cedo, teria visto-a. Onde esteve? Sentado ao lado da tumba de Abie, contou-lhe o
que estava a acontecer, descreveu a raiva que sentia e como estava farto de ajudar Rachel. Chorou
a saudade que sentia, relembrou o quanto foram felizes e prometeu que jamais a esqueceria.
Quando voltou, decidiu que ia sair de vez da vida dela. A vingança não era sua por mais motivos
que surgissem. Perdeu uma vida que não recuperava.
Olha para a mala e suspira. Cabia lá dentro o casaco que Vitoria deu para usar, só foi isso que
ganhou da realeza. E as medalhas lá presas. Será que valiam alguma coisa? Se o ouro fosse
escocês valia mais que o ouro vindo de África.
Fecha a mala, levanta e pega na asa de madeira, ia antes que desistisse e ficasse preso a algo que
não queria.
Ouve o bater à porta. Quem seria? Talvez fosse Jason que esqueceu da chave. Pousa a mala na
mesa. Puxando a aldraba repara que se tratava de William. Claro, só faltava se cruzar com ele.
– Phillipe… – abraça-o – Ainda bem que te vejo… – entra – Sabes o que Francisco enviou? Um
pedido de desculpas, estava arrependido de me ter feito casar com as três filhas e eu ter sido um
inútil de todo o tamanho. Victoria riu com aquela…
A alegria do príncipe cai por terra ao ver a mala sobre a mesa. Quem ia viajar? Quem ia abandonar
a casa? Vira o rosto para o filho que baixava a face. Sim, ele estava de saída.
– É por causa da discussão que tiveram de manhã? Phillipe, as mulheres são como os gatos bebés,
magoam, mas nunca é com intenção.
– Fala isso porque não está por dentro do assunto. – fecha a porta.
– Não, mas até aposto. O beijo de Louisiana… Rachel ama-te, só pode estar um pouco confusa.
Elas são enigmáticas e dão a volta à cabeça.
O pugilista suspira, o pai não sabia mesmo nada sobre o que era perder algo que nos completava.
Estava habituado a deixar nos quatro cantos do mundo o que no fundo, não lhe pertencia. Mas
Phill não conseguia ser como ele, apegava-se muito ao que conquistava com sacrifício.
– Jason deu-te a volta? Não leves a peito o que aquele velho advogado diz, tem cara de pertencer
à época de Elizabeth I. Depois ainda falam da nossa rainha, mas a outra foi pior.
– Se fosse Jason a enjoar-me… – pega na mala – Já eu teria vomitado no chão e deitado na cama.
Posso dormir no sofá do seu quarto?
– Vossa Majestade quando te ver vai dar um quarto.
Pelo menos ela estendia uma mão.
– Deixa-me ajudar-te… – William estende a mão à mala.
– Não é preciso…
– É claro que é.
Quando o príncipe pega, dá conta que estava muito leve. Olha para o filho, tinha esperança de
ouvir que levava o essencial. Pelo olhar, não havia nada a levar, só a tristeza, o choro e a solidão.
O pugilista pega na mala e caminha para a saída.
– E Rachel? Vais deixá-la?
Para, fez a pergunta, tinha que fazer.

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Sete Nomes

– Somos completamente opostos.


– Isso não é bom?
– Não… – vira-se – Ela fez-me algo que não perdoo. Algo mais grave do resto que já me fez.
– Mas ela precisa de ti. Está sozinha nesta loucura e isso não é mau?
Pousa a mala no chão e olha para o teto para não puxar as lágrimas.
– Pai, desde o inicio que fui uma distração. Sempre lutou sozinha, sempre avançou sozinha. Não
precisa de mim.
William nega.
– Ter-te foi como ter o apoio que precisava.
– O que sabes sobre o assunto? Estás habituado a deitar-te com mulheres, fazeres filhos e obedecer
às ordens que te dão. Nunca tiveste uma casa tua, nunca soaste ou vertes-te sangue para dar
conforto aos teus filhos. Nunca perdeste nada por causa de uma mulher que, desde o primeiro dia,
ditou o fim da tua glória. Rachel fez-me perder, não tenho nada, nem passado, nem presente e
muito menos terei um futuro. E sabes porquê?! Porque a amei e esse foi o meu erro.
O príncipe baixa o rosto, de facto perdeu tudo. Estava revoltado e tinha motivos para isso, quando
a casa cai abaixo, os poucos pilares que ficam não ajudam a reconstruir. Monta-se o telhado, cai
mais um pilar. No fim, no último pilar é que se dá conta que não vale apena tentar. Phill pega na
mala, limpa as lágrimas e caminha para a porta.
– Perdi as infantas e o filho que nasceu. Podia não as amar como te amo, mas recordo-me delas
todos os dias. Casei três vezes e não encontrei felicidade nesses casamentos. Quando amei uma
mulher, mataram-na por saberem que era da coroa austríaca. Os únicos filhos que tive sem amor,
foram os únicos que sobreviveram. Achas que não me revolto várias vezes comigo mesmo ou
com os meus pais? Desde o primeiro dia que nasci que todos sabiam o meu destino. Casar para
unir casas. Mesmo bastardo, mesmo sendo o quinto filho da princesa que se deitou com o sogro,
sou um dos mais importantes da casa Orange. E sabes porquê?
O pugilista olha de esguelha a tristeza do pai.
– Porque tive um filho que é amigo da maior rainha da europa. Tive um filho que fez William
Stathouder ganhar um lugar em Londres, na corte mais ríspida, sentado ao lado da rainha que
pergunta por onde anda Phillipe de Orange. Não tenho vida, nunca tive. Em Viena sigo ordens,
em casa ouço desdém dos meus primos e irmãos. Nos outros países sou diplomata aliado ou
inimigo. Sabes onde este príncipe é realmente ele? Aqui, quando estou contigo. Todos os dias eu
acordo não para cortejar uma mulher, mas para estar contigo. Mudaste-me a vida para melhor e
não me arrependo de ter perdido tudo, valeu apena caminhar pelos mais estreitos caminhos para
te encontrar.
O som da mala cair no chão e dos pés acelerado para o abraço, ecoa pelo espaço vazio. Abraça
com força, chora nos braços dele o que sentia.
– Não sei o que Rachel te fez, mas não desistas dela. Também lhe mudaste a vida.
Nega ao limpar as lágrimas.
– Sim, mudaste. Acredita em mim, de nada serve ires, vais-te arrepender.
– Não a perdoo do que me fez.
– Já imaginaste o quão longe tu foste com o que ela te fez? Não tens mais grandes dívidas, a
rainha já não quer a tua cabeça e tens-me. O que teria acontecido se nada tivesse acontecido?
Dá de ombros, não tinha ganhado o sonho manipulado e continuaria nos seus pesadelos. Não
pediu para mudar, não pediu a Deus o azar que tinha. Cada passo dado, caminhava para a
guilhotina. Culpa? O amor, o maior veneno tomado em demasiada dose e agora, fervilhava nas
veias, assassinava um coração de pedra e demolia uma torre que, por muitas vezes, foi escalada
para alcançar o sol.
– Nada me vai fazer mudar de ideias.

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Sete Nomes

– Claro que vou. Ela saiu bem aprontada, cheirosa… De certeza que se vai meter em sarilhos. Tu
sabes, Rachel tem queda para o que não deve. Pensei… Pouca coisa nos move, se o amor já não
te move, talvez a paixão sim.
– Paixão? Não estou apaixonado.
– Claro que estás, ou darias conta que levas o lenço dela no bolso das calças.
Baixa o rosto e a mão arruma o tecido branco com o perfume dela. Dá de ombros, enganou-se a
pegar no seu.
– Ou que te perguntas a onde foi.
– Eu sei onde está.
– Então porque demoras a ir para lá?
– Porque me vou embora. Se quer ir em frente com a vingança, irei em frente com outros planos.
Coloca a mão no ombro dele e respira fundo.
– Quantas vezes já interpretaste o papel de Rachel? Alguma vez trocaste de lado?
Não sabia o que o pai comeu, mas estava a conseguir pô-lo a pensar sobre a questão… Ir sem
olhar para trás. Entende a conversa, nada o faz mudar de ideias se o pai não estiver por perto. Dá
umas pancadinhas no braço dele e caminha para o quarto de Jason, ia vestir algo emprestado.
– Vais ficar?
Ia, porque se estivesse no lugar dela, a sofrer com tudo, a culpar-se do azar que trouxe para a
vida da outra pessoa, quereria que a única metade que a completasse nunca fosse embora. Não
tinha culpa dos outros se vingarem e lhe destruírem a vida, atacavam os seus pontos fracos para
a fazer cair.
– Achas que o avozinho vai ficar irritado por ficar? – abre o armário.
– Depende do sorriso de Rachel em te ver por cá.
Sorri ao pegar numa camisa branca. Ainda não era daquela que o velho conseguia o que queria.

Os olhares… O que mais rendia num bordel eram os olhares. Os pedintes de mão estendida, as
palavras divinas que atraiam o pecado, as libras e os xelins que faziam os milagres mais
rebuscados. Numa sociedade opressiva, existia sempre os seus libertadores, homens que
prometiam trabalhar até mais tarde e arrastavam-se até um lugar onde os velhos costumes ficavam
na porta. Queriam prazer, gritar, apertar… Queriam o que mulheres de família não queriam. As
prostitutas se saíssem há rua, nem tinham direito de dirigir a palavra a uma mulher de gola. Nem
podiam entrar na igreja e rezar, porque Deus as abandonou. E alguém se perguntou o que
aconteceu para chegarem a esse ponto?
Caminha lentamente por entre as mesas, o vestido decotado fazia os mais distraídos repensarem
sobre o assunto. Cabelo solto, maquilhagem obscura que realçava os lábios vermelhos. Luvas em
renda negra, sapato com salto e pernas com meiotes brancos. O vestido vermelho e preto. Uma
enorme racha que permitia a perna direita ser revelada, só para chamar mais atenção. Sorriso no
rosto e ar saudável. Para no balcão, bate três vezes e a empregada com espartilho e altos meiotes
entende. Queria vinho.
Rachel não tinha vontade de estar ali, mal comeu, bebeu na casa de banho com a porta trancada
e disse ao avô que estava a dar banho. O que Phill disse ainda lhe pesava na alma. O mais obscuro
desejo de a ver morta… Pensou que era amor, deu de caras com o ódio.
– É nova? – a mulher pergunta.
Encara-a. Vinte e um anos, vivia ali após ter sido expulsa de casa. Cabelo negro cortado por
debaixo da peruca loura, vendeu-o para comprar comida. Maquilhagem exagerada para esconder
os maus tratos, os clientes batiam-lhe por não fazer o pedido ou reclamar do serviço pago. Baixa,
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pouco escolhida. Para não dar prejuízo, ficava atrás do balcão e servia vinho. Desastrada, naquela
manhã partiu copos e escondeu num barril.
Pega no copo com vinho, tinha uma filha. Deixou-a na roda do orfanato por não a amar. Esperava
outro filho, ser prostituta tinha os seus riscos.
– Vais abortar? – pergunta.
– Do que fala? – pega no pano e limpa o balcão.
– Da criança que esperas. Todas as slut abortam, é mau para o negócio.
A mulher esfregava o pano com tanta força que ele escapava dos dedos. Não sabia o que fazer
ou como fazer. Rachel bebe o vinho e bate o copo no balcão.
– É arriscado, mas resulta maior parte das vezes. Deixa-te cair das escadas abaixo ou cai de barriga
no chão. Ainda mais arriscado, vai a um médico, paga para forçar o aborto. Eles metem uma faca
pela vagina e tentam furar a bolha de água. Em Boston, existia um homem que fazia isso, às vezes
falhava e as hemorragias demoravam semanas a passar. Umas ficavam estéreis, outras não podiam
ter mais relações sexuais. E quem morria, não tinha funeral.
– É crime?
– O que é crime é nascer com pai incógnito e mãe prostituta que não vai dar amor.
– E se eu quiser este filho?
Pousa dois xelins na madeira do balcão.
– O que ainda estás aqui a fazer? – recua.
As mãos seguram no pano, a mente pensa nas palavras. Se queria aquela criança, porque ainda
estava ali? Não devia ter feito as malas e procurado trabalho? Todas as fábricas precisavam de
mulheres nem que fosse para limpar os chãos. Talvez ela não quisesse e vendesse à estranha uma
ilusão. Ou esperava uma solução desesperada. Coloca a mão sobre a barriga, arriscado, mas teria
que dar.
Casa cheia, por detrás do sucesso estaria uma mulher que, antes das outras, já andava na profissão
mais antiga do mundo. Tornou o pequeno armazém de vinho na grande casa de prostituição. Tinha
sete quartos com horas marcadas, dormiam nas caves húmidas e pagavam a renda ao estado como
todas as pessoas que serviam a coroa. Escadas para o segundo andar, uma casa de banho masculina
e só.
Rachel caminha por entre as dezasseis mesas que vendiam a mercadoria feminina. Lá, homens
me meia idade passavam as mãos pelas mulheres em espartilho e meiotes com laçarotes coloridos,
perucas exóticas, joias em ouro e perfume doce. O que eles não conseguiam esconder era o olhar
a cada passo dado pela estranha. O que ela tinha que as outras não tinham? Um corpo trabalhado,
uns seios sustidos pelo tecido do vestido, uma perna grossa que qualquer mão quer apalpar. E o
olhar que nada focava, no leve respirar por entre os lábios vermelhos. Seduzia sem fazer por isso,
não se vendia apesar de se vender.
Na última mesa, uma mulher de vestido negro surge. A dona. Olhos azuis e pele branca como a
porcelana. Cabelo negro preso na cabeça com travessos em ouro e prata, luvas em renda até ao
cotovelo e nas orelhas, uns grandes brincos com diamantes. Abre o leque colorido e abana contra
o rosto maquilhado.
O olhar de Rachel vira-se para o lado. Quando contou a ideia que tinha a Louisiana, esta avisou
que Carmen Keyma era conhecida como a duquesa Vermelha na casa Hell´s and Sky. Onde estava
a cor que lhe dava o nome? Por ser irlandesa, pintava de negro os cachos ruivos.
– Vens pedir emprego?
Não, e mesmo que precisasse, jamais iria ali pedir-lhe. Carmen era cruel com as mulheres mais
belas, fazia-lhes uma marca no corpo para os homens a usarem por usar e nunca se apaixonarem.
Ali, só tinha uma mulher bela e essa mulher era Carmen. As outras, serviam como aperitivo para
o verdadeiro banquete. Rachel olha-a, lê a vida. Mal-amada, deixada no altar no dia em que o

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homem a conheceu para casar. Gritou bem alto que não se casava com ela, por ser feia. Mentira,
Carmen tinha pouco mais de quarenta e seis anos e uma beleza típica dos irlandeses, notava-se a
pele de porcelana, notava-se a meiguice no olhar carregado de purpurinas azuis. Louisiana
trabalhou para ela, colegas pioneiras no sonho de enriquecer às custas de quem prometia prazer.
Dela, só guardava rancor, cravou-lhe um pedaço de vidro no braço para deixar de ser a preferia.
Revoltada, Louisiana preferiu ir embora, foi quando chegou ao teatro.
– Sirvo para a casa?
Carmen fecha o leque e agarra no queixo. Vira o rosto de um lado e do outro. Rachel continua a
olhar fixamente. Abortou sete vezes e a última foi letal. Relações sexuais? Depende do que o
cliente escolhe, porque numa das opções, a possibilidade de ter é nula.
– Que idade tens?
– Trinta e um. – Rachel mente.
– Nome?
– Lacen.
Larga o queixo dela, bela mulher, tinha um bom corpo. Coloca a mão sobre os seios e apalpa.
Rachel fica desconfortável com o ato, era assim que escolhia as prostitutas? Coitadas, sofriam
uma tremenda humilhação mal diziam que sim.
– Família? – afasta a racha do vestido.
– Desaparecida.
Carmen passa a mão pela perna, sobe-a até à nádega e avalia. Vontade de Rachel? Empurrá-la
contra a mesa e partir uma garrafa na cabeça. Achava o quê? Que pertencia ao mundo dos
perdidos? Louisiana foi a única exceção, mais nenhuma mulher a beijava ou sequer tinha aquele
comportamento.
– Virgem? – recua a mão.
– Não.
– Com quantos homens deitaste?
– Estou de passagem. Mas sirvo?
Abre o leque e faz uma careta.
– Tinhas que ter mais perna e seios. Para saber se vales apena, teríamos que descer até há cave.
– Para quê?
– Para te testar. Achas que emprego aqui quem vai dar prejuízo? Uma coisa é ser prostituta de rua
que fede a doença, outra é ser acompanhante, saudável e bem apresentável, com o que é preciso
para se agarrar.
– É assim com todas?
– Sem exceção.
Faz um som de estar surpresa, as coitadas eram mesmo humilhadas. Pega no leque dela e encara-
a.
– Mete a tua avaliação pelo cu acima, vistos que é esse lado que te sujeitas. Não sou puta e se
voltas a tocar-me dessa maneira, vais ter problemas mais graves do que já tens.
– O que faz aqui uma mulher que não quer vender-se? Procura o marido que a rejeitou?
– Procuro um homem com sentença de morte. Todos sabem que as slut sabem tudo. Como eu sei
tudo sobre ti.
Ri ao enrolar no dedo o colar de pérolas.
– Que ameaça crua. Vai para casa bebé.
Abre o leque, agarra no colar de pérolas brancas e puxa com força o busto que vai ao encontro
do nariz dela.
– Desesperada para abortar, fizeste sozinha a pior asneira. Um punhal pela vagina, falhaste o alvo
e rompeste o útero. Perdeste tanto sangue, tiveste tantas dores que ainda hoje não consegues estar

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Sete Nomes

sentada. Para não perderes os clientes, fazes o que as outras não fazem. Sabes qual é a moral da
história? És marcada por um trauma chamado rejeição. Feia. Abandonada. Deserdada. Não
suportas uma mulher bonita, mandas descer até lá em baixo, viola-as e marca-as para serem
rejeitadas. Deviam-te fazer o mesmo.
– Ninguém sabe isso. – fala sentida.
– Houve um homem que te ia tirar desta vida, mas trocou-te por uma colega de trabalho, se
considerar isto uma profissão. Vais acabar por morrer aqui, lá em baixo na cave, envenenada pelo
álcool e o ópio. Continua a ser uma sombra.
Carmen engole o brio e baixa o rosto. As demais olham para o ato, ninguém conseguia rebaixá-
la, nem os ministros que a condenavam por não pagar as dívidas.
– Quem procuras? – pergunta quase em sussurro.
– O vosso banqueiro, Donald Noah.
A prostituta olha ligeiramente para os lados, faz sinal para continuarem a trabalhar.
– Ele ainda não chegou. É melhor esperar junto ao balcão. Sinta-se em casa.
Abana o leque e sorri.
– Tua casa, esta nunca será a minha. – caminha para o balcão.
Carmen enrola o colar no dedo e trinca algumas pérolas. Desmoralizada e desmascarada. Uma
coisa era saber das verdades, outras era os de fora contarem como funcionava o negócio. A
estranha conseguiu o que queria, derrubar quem parecia estar no topo.
Que ajuda preciosa, Louisiana se estivesse viva, levaria um valente beijo no rosto por ter sido
útil. Rachel senta na cadeira e bate no balcão. Antes de ir ali, já tinha a história de vida feita. Só
assim não teria problemas, Carmen costumava ser impulsiva e chegava mesmo a assassinar
prostitutas que tentavam derrubá-la. Rachel, ao não ser uma, usou a sua fraqueza para a
desmoralizar. Às vezes, só falando para chegar a algo.
– Uísque. – a mulher anuncia.
– Se a ouvirem a chorar esta noite, não perguntem o motivo.
– Carmen não chora.
– Hoje vai chorar. – sorri.
– O que lhe falou?
Abana o copo ao fazer sinal com o dedo nos lábios.
– Secret.
A mulher tenta sorrir, na esperança de não sobrar para elas as consequências.
De volta ao passado, Phill entra pela porta que invocava palavras da bíblia. Que estranho, em
nenhuma parte do livro havia atributos às prostitutas que, segundo o antigo testamento, fizeram
uma cidade ser queimada pelas chamas. A cidade do pecado, quem olhasse para atrás, teria o
mesmo destino. As prostitutas sonhavam com o paraíso e esqueciam-se que já estavam no inferno.
Nada as privava de sonhar, pois não?
Ajeita as mangas do casaco, entra lentamente pelo espaço iluminado por candelabros elétricos.
Tinham dinheiro para a eletricidade? Que ninguém duvidasse, cobravam sessenta xelins à hora e
faziam de tudo para o relógio passar rapidamente. Basta olhar para as velhas conhecidas do
pugilista correrem e oferecerem a mercadoria. Phill sorri, conta que já estava servido e tenta se
libertar das mãos macias. Por entre elas, olha para a mulher sentada no balcão. Rachel. Sozinha,
no meio de tanta mercadoria por leiloar. Abre caminho, pega numa garrafa deixada na mesa e
bebe um pouco. Ajeita as mangas com botões de prata e passa a mão pela perna cruzada.
– É bom que se afaste antes… – levanta.
Não havia antes, só depois. Rachel nem sabia se sorria, se ficava triste, se se perguntava ou
beijava-o. Estava ali, usava o casaco e a camisa do avô, penteou o cabelo e perfumou o rosto
aparado. Se fosse prostituta desesperada, acreditava que se apaixonaria por ele logo na primeira

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noite juntos. Phill tinha algo que ela não conseguia resistir, o olhar, os lábios, o toque quente…
Olha em volta, o pugilista podia ter qualquer mulher, qualquer uma que ali estivesse. E se a
odiava, é bom que fosse atrás de outra mercadoria.
– Estás servido. – comenta ao olhar para o lado.
– Sabes… Acabei de entrar e… – pousa a garrafa no balcão – Estava a ser recebido como um rei.
Mas olhei para aqui e vi uma mulher maravilhosa que bebia sozinha. Perguntei-me… “Deus,
como eu pôde a ter deixado ir sozinha?” Estas mulheres não chegam aos teus pés.
– Pois não, ultrapassam.
– Nenhuma te ultrapassa nem na vida, nem na cama. Continuas a ser a mulher que um dia se
deitou naquele estreito colchão e disse… “Não tenhas medo de ser o meu primeiro.” Marcaste-
me.
Nega ao mexer o copo com uísque.
– Destruí-te a vida.
– Fizeste-me começar do zero, lutar por outros objetivos e ver que… Nem sempre se pode andar
pelos caminhos traçados no mato. Cortar trilha também é bom.
– Phill, não tentes dar a volta à situação. Tu preferias que estivesse morta então… Deixa-me
morrer. – pousa os xelins no balcão e levanta.
O pugilista agarra no braço, puxa o corpo contra o seu peito e encara o olhar cheio de mágoa.
– Eu ia embora, peguei na mala que o teu avô me deu e sai do quarto. Sabes o que levava? Nada,
apenas te levava no coração e na mente a raiva de te amar e não saber como refazer a minha vida.
Mas ia, aguentava bem com a culpa de te ter deixado. O meu pai não quis isso, disse que devia
de ficar por ti. Obrigou-me a ver a realidade, estar nesse lado e não neste.
– Péssima escolha. – fala sentida.
– Não. Vi que se fosse tu, mesmo sem vida, sem família, cheia de sangue nas mãos e nomes
tatuados, desejaria chegar a casa e ter alguém que me ama e faz sorrir, nem que seja por um
segundo. Precisas de mim como eu preciso de ti.
– Deitei abaixo a tua vida! – as lágrimas descem o rosto.
– Deitei abaixo a tua solidão. Não és a mesma Rachel de ontem, nem a mesma mulher rebelde de
Boston. És mais adulta, mais pensativa e astuta. Fizeste-me enfrentar outras batalhas, enfrentar
os meus pesadelos e encontrar outros paraísos. Jamais esquecerei aquele sorriso no dia em que
entraste no Box Dead e viste-me ganhar. Jamais esquecerei o nome que sussurraste ao meu ouvido
na cama. Jamais esquecerei o teu perfume. E isto não é rotina, é amor. Estou apaixonado por ti
como se fosse pela primeira vez. Fica. – encosta a testa à dela.
Stay… A mão enluvada sobe o rosto aparado, não sentia a raiva ou o ódio dele, sentia… Amor.
Beija-o, disse a maior verdade alguma vez contada. Mudou, deixou a solidão dentro da mala e
acordava com esperança de ter um dia ao lado dele, daquele homem que podia nem chegar aos
pés de Elvis, mas se tornou a paixão da Rachel adulta. Agarra os cabelos negros, faz com que os
demais olhassem o gesto. Não se tratava de um cliente com uma prostituta, tratava-se de um casal
que estava no local errado à procura de um condenado.
Carmen sente as lágrimas nos olhos, vê o que nunca viu ali, no meio do pecado. Verdadeiro amor,
um beijo dado por a amar e não por obrigação. Desata a correr para as escadas, odiava quem tinha
a sorte de ser amada de verdade e casar assim, contra as leis da sociedade.
Descolam os lábios lentamente e abraçam-se.
– Jason não vai gostar de saber que, além de usar a sua roupa, não vou embora.
– Sabes o que ele disse?
– Que sou um príncipe bastardo vagabundo?
– Não, que mando em qualquer lado e, se te quero lá em casa, então ele não te vai colocar para
fora. O problema é que não podes ser um fora da lei, por isso que implica contigo.

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Sete Nomes

Faz um som de estar admirado, afinal o avozinho estava só a fingir odiá-lo. Teria que ter uma
boa conversa de homem para homem velho, ditar um pouco as regras do jogo.
– Se Abie estivesse viva e soubesse da verdade, diria que… Não morreu em vão, morreu para nos
unir e ela queria isso, unir-nos.
Rachel recua.
– Fizemos a sua última vontade.
– Sim. Agora… – pega na garrafa – Como mais bela mulher aqui presente, temos que fingir que
somos estranhos. Ou Noah vai dar conta que isto é teatro. Então… – bebe um pouco – Como
pugilista, quero ser agradado. Consegues?
Retira as luvas e empurra-o contra a cadeira mesmo atrás de si. Afastando o cabelo para trás do
ombro, abre as pernas e senta-se o colo dele. Aproxima os lábios vermelhos ao ouvido.
– Tu nem imaginas a fera que sou.
– Imagino no momento em que domei a quimera.
Sorri ao faz sinal para colocarem um copo na mesa, o pugilista ainda não viu nada.

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Sete Nomes

Capítulo 49
O violinista chegou tarde, mas conseguiu tocar a melodia a tempo. A ele se juntou o pianista, no
pequeno palco no lado direito, contra a entrada da porta. Ao som da música, dançava, as
acompanhantes que faziam os homens levantar, rir ou devorar com o olhar a mercadoria. De mesa
em mesa, chegava uma slut com a lista. A tal hora, subia tal casal. Tinham três horas, mais que
isso, eram expulsos do quarto, quer vestidos, quer por vestir. Depois, marcavam para o dia
seguinte ou para a outra semana.
Chegam à mesa onde a mulher de vestido negro, sentada no colo do popular pugilista, causava
assobios e suspiros.
– Sir Smith, marcou hora?
– Não. O que nos arranja?
– Tenho o quarto três vago… Se Noah chegar, ficam sem a vaga. Se forem rápidos, não haverá
problema.
O quarto do banqueiro que ambos queriam. Rachel debruça-se na mesa, revela a nádega que Phill
coloca a mão e pisca o olho ao homem da frente que olhava com desejo.
– Quem é a menina que o vai atender?
– Kimmy. Mas parece um pouco indisposta hoje.
– Troca por Lacen.
– Quem? – olha-a.
– Eu.
– E o Sir Smith?
– Dou uma rápida com ele e depois, dou outra rápida com Noah.
Fica com os olhos arregalados.
– Aguenta dois homens na mesma noite?
– Nasci para o prazer.
Assente admirada, dessa não estava há espera. Escreve o nome na folha.
– Vão para o quarto que o Sir Noah deve estar a chegar.
– Ouviste Spectrum? – levanta – Vamos que a cama vai ficar partida.
– Partida? – Phill envolve-a nos braços – Tu és demais, Lacen.
– Quarto três, a chave está na porta, vinho na mesa e janela trancada. Se fumarem, digam. Se
sujarem, limpem.
– Que organização, pensei que era tudo ao molho e fé em Deus.
– Lacen, não somos prostitutas da rua e se mantermos a ordem, as coisas funcionam bem.
Entendido?
Assente ao agarrar na mão do pugilista e guiá-lo por entre os outros. Que sorte, que golpe de
mestre, que tiro certeiro. Irem para o quarto onde Noah ia estar era pedir muito. Sobem as escadas
e entram no corredor estreito. Portas fechadas, gritos de prazer, suspiros violentos, algumas camas
rangiam, outros usavam chicotes para atiçar mais o ambiente. Abrem a porta do quarto três.
Pequeno, uma cama, uma cómoda e uma cadeira. Janela virada para a rua, vidros pintados de
negro para os mais curiosos não espreitarem para o interior.
Rachel puxa os cobertores para trás e fica repugnada ao ver o que foi deixado no lençol.
– Ainda bem que eu não sou um cliente e tu uma prostituta. – Phill comenta.
– Uma virgem com um masturbador compulsivo, nem sei o que é pior. – tapa o serviço deixado.
– Talvez um velho com uma jovem que não sabe como o ajudar.
Olha-o, o mundo da prostituição era tão sujo quanto a guerra, se uns davam aos canhões a carne,
outros não tinham limites na hora de usar e deitar fora.

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Sete Nomes

– E agora?
– Vamos esperar… – caminha para a cadeira – Noah deve estar muito necessitado.
Phill até se sentava, se uma mulher não tivesse feito com a boca o que se faz com a vagina. Volta
para a porta e fica por lá, o único local seguro.
– Nem nós somos assim.
Rachel ri, que nem comparasse aquele quarto ao deles. Podiam não levar a relação sexual até ao
fim, mas jamais sujaram a cama a qual compartilhavam. E se sujassem, limpavam na hora.
– E o ar? Tresanda a corpos soados.
– A janela não abre.
– Rachel, tenho vontade de vomitar. Nem o som de fundo ajuda.
– Estamos num bordel.
Infelizmente, estavam na casa dos perdidos sem modos. Apostava que as prostitutas na rua eram
mais bem-educadas. Abrem a porta e espreitam para o outro quarto, a subchefe foi chamada ao
quarto quatro.
– Elis, ela não me sabe satisfazer. Quero outra puta. – o homem comenta.
– Tamys sempre soube fazer bem o serviço.
– Notasse! Até agora, o pau não levantou! Quero outra.
Phill fecha a porta e abraça Rachel, estava assustado com o ambiente em volta.
– Calma. Quando Noah entrar, falamos e vamos embora.
– Mas… Sinto-me mal por ser homem e ver outros homem a fazer isto sem um pingo de dó.
Beija-lhe o rosto, já muito fazia ao estar ali. A subchefe bate à porta.
– Sir Smith, é bom que já tenha acabado.
O pugilista sai dos braços dela e abre a porta.
– O quarto está tão porco que não tenho vontade de fazer nada. Onde está a organização?
Elis entra e olha em volta.
– Não encontro o problema.
– A cama. – puxa os cobertores – O que aconteceu aqui?
– Foi a estreia de uma virgem.
– E porque não trocaram os lençóis?
– Porque bastava arrancá-los e fazer o que tinham a fazer.
– E a cadeira? Está nojenta, nem dá para sentar com Lacen e experimentar algo. Quero reclamar
com a dona.
Bem, Carmen estava na cave a chorar e quem ficava no lugar dela era aquela mulher que, fazia
os possíveis para confortar os clientes.
– O Sir Noah está ali. Se o senhor não quer, deixe a menina Lacen fazer o que tem a fazer.
O pugilista vira o rosto para Rachel. Indo a ela, agarra o braço e empurra contra a cama.
– Mande o banqueiro entrar, vai ser sexo a três. – despe o casaco.
– Não sei se aceita.
– Não sabe como se viola uma prostituta que nega o serviço? Usasse e deita-se fora. Lacen não
tem escolha. Vamos, eu é que pago! – grita.
Elis assente ao sair e encostar a porta. Phill veste o casaco e estende a mão a Rachel, jamais a
violaria com outro homem.
– Se caísse sobre aquele sangue com… Ias ver o que te fazia. – abre o leque.
– Desculpa, mas tinha que parecer real.
Conseguiu encenar bem, até ela ficou com receio do que lhe iriam fazer. A porta abre novamente.
Noah. Entra e tranca à chave. Retira a cartola que pousa no cabide e vira-se.
Rachel fecha o leque e olha o rosto do quinto homem que matou o pai. Donald Noah, dias antes
de Cristian decidir ir passear, deixou sobre a mesa um contrato que vincava que, o navio, Royal

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Sete Nomes

Sean, passava para a Companhia das Índias. Sem ler, e confiando no amigo, o jovem empresário
assinou e só depois de ler, viu que perdeu o seu bem precioso para a coroa inglesa. Revoltado,
queimou o contrato e despediu o diplomata que tratava dos negócios. Em troca, Noah prometeu
vingar-se de Cristian, por nunca ter pago um centavo pela ajuda.
Os mesmos olhos azuis, o mesmo bigode cinzento sobre o lábio. Estava mais velho, gordo da
velhice, rugas vincadas no rosto que ainda tinha a marca de ter sofrido de escorbuto em jovem.
– Boa noite. – desaperta os botões da camisa branca – Sou o Sir Donald Noah e soube que o Sir
Smith quer violar esta mulher. Boa escolha.
Phill repara no olhar vidrado de Rachel, revivia qualquer memória passada. Então era assim,
sempre que encontrava um dos nomes, a mente rebuscava o que aconteceu.
– Lacen não vale o ar que respira.
– Nenhuma puta vale. – despe a camisa – Quer ser o senhor o primeiro ou faço as honras?
O pugilista despe o casaco, faz a cama e deita Rachel sobre as cobertas. Mesmo sabendo que ela
ainda não encarava a realidade, abre a camisa e começa a beijar-lhe o pescoço.
– O que faz, Sir Smith?
Desaperta os botões do vestido negro.
– Ex-pugilista amador.
– Boa profissão. – Noah vai à janela.
– Rachel… – murmura ao ouvido – Acorda, não te posso violar.
Mas ela fecha os olhos, rebusca na memória o dia em que o pai morreu. Braços de Chester a
gritar e Noah, onde estava ele?
Sem alternativa, Phill abre-lhe o vestido e beija a pele macia.
– Está a demorar muito. Sabe como se viola uma mulher?
Levanta o tronco e encara o banqueiro. Noah casou muito tarde com uma jovem de dezoito anos.
Teve um filho que vendeu por nascer negro. Por outras palavras, a esposa teve um caso com o
escravo que comprou. Não se separou dela, pelo contrário, usava-a sempre que queria, violava,
batia e arrastava escada abaixo. Mesmo assim, a jovem que hoje tinha vinte e três anos, não ia
embora porque um banqueiro divorciado era mau visto na sociedade. Phill olha para Rachel com
os olhos abertos, todos aqueles que lhe mataram o pai, eram homem que no fundo, não valia nada.
Mereciam a morte, mereciam morrer violentamente.
Assente, já se lembrava onde estava Noah na manhã trágica. A assassinar os cavalos parados na
trilha, só para parecer que foi mesmo um assalto violento. Mas isso, Rachel não deu importância
porque era o pai que via a morrer.
– Sabe, perdi a vontade de a violar. – fecha-lhe o vestido.
– Vai desperdiçar uma mulher dessas? Recue que faço as honras…
Phill levanta e encara o homem. Tocava nela e sujeitava-se a perder os dentes que comprou no
mercado negro.
– Não entendo.
– Eu resolvia isto na boa… – aproxima o rosto – Mas a vingança é dela.
Vingança? Noah olha para Rachel a levantar da cama e baixar o vestido para revelar as costas
tatuadas. No fundo, o nome que a denunciava. Clarel. Recua até ao vidro pintado, puxa da
algibeira a arma e aponta.
– Rachel, és mesmo tu?
Puxa o vestido e fecha-o. Quem mais se lembraria de vingar um passado? Virando-se, Noah abre
a boca ao rever bem o rosto. Era ela, conhecia aqueles olhos, aqueles lábios… Semelhante a
Angellyne. Olha para Phill e aponta a arma, e ele? Quem era? O pugilista levanta as mãos, ali só
estava uma vingadora.

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Sete Nomes

– Mataste Chester! Mataste Carter! Logan bem que me avisou que irias atrás de mim. Pensei que
não.
– Devias ter dado ouvidos ao teu amigo.
– Não vim sozinho. Basta um disparo para invadirem isto e matarem-te. Achas que sou assim tão
fácil?
Um disparo… Dá um pontapé no braço dele e Phill baixa-se para não levar com a bala de chumbo.
Depois, bate-lhe no tronco nu com força. Noah empurra-a para trás. O pugilista ergue-se, aperta
o pescoço dele com as mãos e prende-o contra a parede.
– Mata-o Rachel! – pede.
Não, antes precisava do motivo que o levou a matar o pai.
– Rachel! – grita.
A porta abre, Phill distraísse com a entrada de Elis e Noah empurra-o contra a cómoda antes de
sair a correr do quarto.
– O que aconteceu aqui?
Rachel descalça-se a corre atrás do banqueiro.
– Tem pistolas? – Phill pergunta.
– Na gaveta.
– Obrigado. – remexe as gavetas da cómoda.
Se ela não o matava, o pugilista fazia as honras.
O disparo assustou alguns dos clientes, o bordel não tinha confusões desse tipo. Mas a música
prosseguiu, talvez um homem tivesse matado uma prostituta. Noah desce as escadas a correr, não
ia ter o mesmo destino dos outros. A filha de Cristian… Deviam-na ter violado e vendido para
escravatura. Mas Chester quis algo pior. Se ele estivesse vivo, ouviria deles um valente sermão.
Invés de correr para a porta, corre em direção à cozinha. Abre caminho por entre as prostitutas
que dançavam, empurra mesas e cadeiras. Olha para trás, Rachel caminhava lentamente.
– Saíam! – grita.
Não o ouvem, preferiam o som do violino e do piano. Com receio, pega na arma de um cliente e
dispara contra o candelabro.
Phill vira o rosto para a porta ao ouvir um som tremendo de algo cair. Depois, a luz apaga-se.
– O que está a acontecer?! – Elis grita com receio.
Sentindo a arma na mão, Phill fecha a gaveta.
– Uma vingança. – sai pela porta.
A prostituta encosta-se contra a parede e encara a escuridão, uma vingança, não podiam ter
escolhido outro lugar? Quem vingava quem?
Sem luz, Rachel segue a claridade das velas da cozinha. Tenta escapar aos encontrões das
silhuetas que, apavoradas, saíam para a rua. Tropeça numa cadeira e cai no chão. Como o mataria
se não o conseguia ver? No dia em que inventaram a eletricidade, deviam ter-se lembrado que,
basta uma lâmpada fundida para deitar o quadro abaixo. Não se lembraram, nem todos tinham a
magia dos interruptores.
– Boston! – Phill grita ao se guiar com o tato.
Vira o rosto para trás, vê a silhueta que descia as escadas.
– Boston!
Afasta a cadeira e gatinha pelo chão.
– Phill, ele está na cozinha! – grita.
Indo ao altar na entrada da porta, pega na vela que ardia ao pé do santo e volta a entrar. Salão
vazio, mortos debaixo do candelabro que, no cabo, libertava faíscas de a eletricidade não ter sido
cortada. Bastava um choque para matar um homem, alguém comentou isso no Box Dead.
– Boston. – caminha pelo salão.

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Sete Nomes

Rachel conseguia guiar-se pela fraca luz da vela, mas não levantava, se Noah não estava sozinho,
então era melhor nem dar as caras.
A cabeça do pugilista vira para a entrada. Homens armados com espingardas entravam
enfardados. Guardas da rainha. Para os outros eram, mas para o amigo da monarca, não passavam
de pessoas disfarçadas que queriam proteger o cliente que os contratou.
– Boa noite. – aproxima-se.
– Somos a ordem da realeza. Ouvimos o disparo, o que aconteceu?
– Olhe, nem eu sei. Estava com uma rameira e quando desço, vejo isto. A Majestade mandou-
vos?
Assente ao olhar em volta a falta de luz.
– Uau, ela é mesmo uma grande rainha. Quem é o vosso Capitão?
O homem encara-o, certas perguntas não deviam de ser feitas.
Levantado sorrateiramente, Rachel entra na cozinha com passos leves. Ali, a luz não falhou
porque as velas é que iluminavam. Escadas para as caves e porta dos fundos enferrujada que não
abria tão facilmente. Noah fugiu? Espreita para as escadas, não, apenas se escondeu. Indo à mesa,
pega no facão limado, talvez aquele tenha a mesma morte dos outros.
– Então, o vosso Capitão?
– Saia do caminho.
– Porquê?
– Porque viemos defender um homem. – empurra-o para o lado.
Não, ser empurrado… Não, Phill aguentava muita coisa, menos isso, tirarem-no do caminho
como se fossem da monarquia.
– Ó grandessíssimo filho da mãe, nunca te ensinaram a pedir por favor?
O homem Para e olha para trás, o que o chamou?
Desce em bicos de pés as escadas sem iluminação. Porta encostada, foi para ali que Carmen fugiu
a chorar. Espreita, mais velas acesas. No chão, morta. De pé, Noah. Matou-a, de certeza que ia
gritar por ajuda e assim, muda, o banqueiro escapava.
Sentindo-se observado, vira-se para a porta e mostra a espada que esteve presa na parede. Rachel
sente-se tentada a entrar, aprendeu esgrima.
– Devias ter fugido. – comenta ao trancar a porta.
– Nem devias ter descido. – começa a andar.
– É o que dá ser muito teimosa.
Mal se vira e o facão trapa o golpe direto ao pescoço. Que mal-educado, nem lhe dava tempo de
se preparar.
– Repete. – o homem pede.
Phill pousa a vela na mesa e encara-o.
– Grandessíssimo filho da mãe.
Ri, faz os restantes rirem e coloca a mão no ombro do pugilista.
– Irmão, não devias ter dito isso.
O olhar encara aquele gesto. Mão no… Nega, aquele nunca esteve no Box Dead. Agarrando o
pulso, vira o corpo para a esquerda, torce o braço contra as costas. Os demais, disparam e ele
esconde-se atrás do homem que é morto acidentalmente. Espreita na recarga, dispara contra um e
depois, larga a pistola e tenta desarmar outro com a espingarda.
Mobília e luta entre espada e facão. A vida não estava facilitada para Rachel, as mangas quase
estavam por um fio, tal como a vida dela. Desviava, travava e mesmo assim, a lâmina da espada
rompia a pele sem dó. De joelhos no chão, crava o facão na madeira e cospe o sangue da boca,
ainda faltava os murros que levava, os empurrões, o cabelo puxado até ao limite… Olha para
Noah a limpar o sangue da facada que levou na perna. Bem que Logan disse que os últimos eram

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Sete Nomes

os piores. Não acreditou muito, pois o último pior tinha sido Merle. O banqueiro pareceu um
frangote. Agora parecia um urso preste a matar a corsa que o desafiou.
Levanta e arranca o facão da madeira, viva ou morta, tinha que o matar à mesma. Noah dá o nó
no tecido da perna e pega na espada. Teimosia de diamante.
– Admiro a tua força.
– Admiro a forma como lutas.
– Fui o melhor esgrimista de Londres na juventude. – passa a mão pela lâmina – Pensavas que
essa faquinha fazia milagres?
No momento de se agarrar à vida, qualquer coisa servia como tábua de salvação.
– Pelo menos já fiz estragos nesse tronco nu.
Noah baixa o rosto, ela ia pagar pelo sangue que jorrava. Avança rapidamente, levanta a espada
que é travada novamente. Empurrando-a para trás, a ponta da lâmina rasga o tecido do vestido,
passa de raspão na pele que abre. Aproveitando a lentidão, crava a espada nela. O rosto fica ao
lado do ombro direito, a boca deixa o sangue escorrer pelos queixos.
– Mereces o inferno.
Nega a sorrir e abre o braço. Falhou. A lâmina perfurou o vazio, e ela, para parecer derrotada,
colou o braço junto ao tronco. Crava a faca na barriga. A esquerda toma o cabo da espada e atira-
a para longe.
– Acabou. – recua.
Noah cai de joelhos e aproveitando o virar de costas dela, arranca a faca e atira-a. O corpo move-
se para o lado ao som da lâmina a romper o ar. Fica cravada na madeira da porta. Do nada, levanta,
move o corpo contra Rachel. Parte a porta da cave, a cabeça dela bate contra a parede e acaba por
cair no chão. Vivo… Levanta a vista para o banqueiro que colocava a mão sobre o ferimento.
– Isto não acabou.
Resistente à dor, se Jason lhe tivesse dito isso, teria facilitado o assunto. Cerra os dentes, levanta
e correr escada acima.
– Rachel! – vai atrás dela.
Não olha para trás, Para ao pé da mesa e coloca a mão no braço. Sangue, o direito estava pior
que o esquerdo. Já nem colocava a mão na barriga que também estava ensanguentada, foi de
raspão.
Ao sentir Noah aproximar-se, pega na frigideira e bate-lhe na cabeça. O banqueiro fica zonzo e
cai sobre a mesa.
Phill vira o rosto ao ouvir o grito de Rachel na cozinha. Não podia ir ajudar, estava preso pelos
braços de um impostor. Já matou três, mas a tarefa não estava fácil. Investe numa cotovelada no
abdómen e baixando o tronco violentamente, vira o homem que cai sobre os cabos de eletricidade.
Tapa os ouvidos aos gritos violentos, afinal morrer eletrocutado era terrível. Olha para a cozinha
e caminha para lá. Uma cadeira é partida nas costas. Volta o rosto, ainda faltava um.
– Desculpa Rachel.
Limpa o canto da boca com sangue e grita ao ir contra ele.
Vidro… A mão tenta chegar à garrafa partida que foi cravada no fundo das costas, mesmo ao
lado dos ossos da coluna. Sentindo o vidro, arranca de uma só vez o atormento.
– Isto vai sair caro. – comenta.
Ia a ela. Noah agarra no pescoço dela e deita-a sobre a mesa para a esganar. Rachel toca o rosto
dele, tenta levantar o queixo ao máximo para o desestabilizar. As pernas dele prendem as dela, a
traqueia começava a tapar o ar que queria entrar ou sair.
Um forte encontrão faz o banqueiro cair no chão. Rachel tose com força ao voltar a respirar.
– Estou farto disto! – Phill comenta zonzo.
– Então mata-me de uma vez. – pede ao levantar.

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Sete Nomes

Avança, mas as mãos de Rachel impedem o pugilista de descarregar a raiva nele.


– Porque mataste o meu pai? – fala quase sem voz.
– Cristian merecia morrer, aquele maldito barco fazia falta ao Comércio das Índias. Ia lucrar muito
ao registá-lo, mas teimoso… Sempre a dar ouvidos a Angellyne.
Todos diziam o mesmo, que a culpa era da esposa dele. Levanta da mesa e apoia-se no braço de
Phill, a mãe sempre soube apanhar aqueles bandidos que queriam destruir o jovem empresário.
Ainda subestimavam a mulher do campo que morreu de doença? Se estivesse viva, apoiaria a
filha naquela demanda, ou faria vingança com as próprias mãos.
Cerrando os dentes, pega na bacia com azeite e atira sobre ele. Depois, empurra o corpo contra a
lareira. O banqueiro não cai sobre as chamas, apoia-se no parapeito de madeira. O azeite pinga
para as brasas, acende o rastilho que leva as chamas a consumirem o tecido das calças.
– Morre! Acabou!
Noah grita, tenta apagar as chamas que se alastram para os braços, o tronco, o pescoço, o rosto e
a cabeça. Corre na direção dela, mesmo assim, matá-la-ia.
Desvia-se… Phill aponta a arma e dá um tiro nas costas. O banqueiro cai para o lado, rola escada
abaixo e Para ao pé da porta de madeira. O fogo não se apaga, consume o corpo que morria
lentamente, fervilhava as veias com sangue que evaporava no calor.
Rachel apoia-se na mesa, tenta agarrar a mão do pugilista, mas estava sem forças.
– Temos que ir embora ou fazer isto parecer um acidente.
Assente zonza. Phill abre as pipas de brandy ao pé da parede, atira ao chão o óleo de baleia e o
azeite. Depois, pega na vela e deixa-a cair sobre o líquido, incendiando a cozinha.
– Vamos.
Os pés tentam andar, mas o corpo vai direto ao chão. Phill pega nela ao colo e sai a correr da
cozinha.
À entrada do bordel, Para em frente à imagem de Saint Jude, o padroeiro das causas perdidas.
Afinal, nunca deu conta que ali não havia espaço para Deus ou Cristo, nunca encontrariam um
rumo ou caminho para saírem da miséria. Elas perderam tudo antes mesmo de começar. Rachel
toca com a mão ensanguentada o santo e agradece a ajuda, perdida, encontrou o que queria.

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Sete Nomes

Capítulo 50
Abre a porta e olha para quem estava à espera de entrar. Rachel, cheia de sangue, pálida, com a
mão sobre a barriga… Olha para Phill, quase intacto, a segurar no corpo que queria cair no chão.
– O que aconteceu?
– Matei Noah.
– Não, eu matei Noah. – Phill comenta.
– Ele já ia morrer e já.
Assente, morreria lentamente.
– Phill, entra por favor.
O pugilista beija o rosto de Rachel antes de entrar. Olha para a mala sobre a mesa e ao virar-se,
leva um valente murro.
– Avô!
O advogado ajeita o casaco, mereceu. Porquê? Simples, no momento em que ele quis entrar na
vingança, Jason teve esperança de que o pugilista pudesse evitar o pior. Ou seja, evitar que a neta
chegasse a casa numa lástima, cheia de sangue, com nódoas negras que demorariam dias a passar.
Mas não, Phill não fez nada em relação ao assunto.
– Eu sei, mereci. – o pugilista comenta ao abrir e fechar o maxilar.
– Já viste como ela está?! – aponta.
Sim, sabia bem. Não era a primeira vez e não seria a última. Não conseguiu, tentou e falhou.
– Vou preparar a banheira… – aproxima-se da neta – Depois limpo as tuas feridas.
– Não, quero que Phill as limpe.
– Este homem deixou que levasses uma sova e ainda pedes para as limpar?
Assente, nem pedia, exigia. Porque desde o inicio que ele a ajudou a riscar os nomes mais difíceis
da lista. Mesmo que não tenha estado presente no momento em que apanhou, Phill fazia parte da
sua vida.
– A casa é minha, avô. – caminha para a casa de banho.
Assente levemente ao virar o rosto para o pugilista que perde o sorriso. Quando lhe deu a mala,
teve esperança de o ver ir embora e nunca mais voltar. Nada contra, mas no momento em que a
neta chorava, o assunto tinha outro tom e… Ela chorou na casa de banho.
– Meteste a coragem pelo cu acima? – cruza os braços.
– Está a falar da minha viagem?
– Que outra merda exige coragem?
Bem, lutar, matar, enfrentar, roubar, berrar… Limpa a lista da cabeça, para Jason, homem que é
homem, mete as coisas na mala e vai embora. Pena que Phill era outro tipo de homem.
– Não tinha nada para levar.
– Pediste-me esse casaco esfarrapado ou a camisa sem metade dos botões de prata?
Coça a cabeça molhada. O avozinho estava rabugento.
– Desconte no pequeno-almoço.
Mira-o, estava a gozar?
– É a última vez que a minha neta chega deste estado a casa. É a última vez que vais dar banho
com ela. Entendido?
Levanta as mãos, casa dele, suas regras. Mas, não garantia nada porque Rachel sempre pedia o
colo do pugilista, não o do avô.
– Vou fazer o jantar. Ai de ti que faças amor com ela aqui! Capo-te!
– Porque não?

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Sete Nomes

– Porque ainda não estão casados. Casa-te e mudo as regras.


Faz um som de ser absurdo o pedido, ainda não podiam casar, a lista não estava concluída ainda.
– Capisci?
– Sì, signore.
Caminha lentamente para a cozinha, não ia mesmo com a cara dele. Pugilista só de garganta,
enquanto não o visse em ação, não mudava a péssima ideia que tinha dele. Phill deita a língua de
fora, como odiava aquele advogado que fazia a vida negra de propósito. Qualquer dia… Trocava
a maionese de ovos por caca de pombo. De certeza que seria a última vez que o infernizava.
Viva. Sorte? Não, daquela vez não foi sorte. E o plano traçado? Correu tudo ao contrário, o
suposto era matar Noah no banco e não no bordel. Se não tivesse vidrado no quarto, de certeza
que teria feito o que pensou. O vestido desce os braços, o sangue pinga para o chão. Vira as costas
e repara nos cacos lá espetados. As tatuagens estavam intactas, pelo menos isso. Fecha a torneira
da água quente e senta na beira da banheira. Mais um morto. Mais uma vez ia morrendo nas mãos
de um assassino. Se Phill não tivesse entrado, Noah tê-la-ia matado, partido a traqueia como se
fosse um ganho por entres os dedos.
O corpo estreme ao som da porta abrir.
– O teu avô caminho… Não tenho nada contra, tu sabes… – despe o casaco e abre os botões
restantes da camisa – Mas ele odeia-me, odeia-me tanto que é capaz de deitar mostarda na minha
água para morrer intoxicado. Achas que vou perdoar este murro no queixo? Ou os insultos? –
olha-se ao espelho – Que homem mais louco. Como ele voltou a casar? Se fosse mulher…
Rachel não o conseguia ouvir. Puff, desligou o interruptor e agora focava o vazio. A mão deixa
de sentir a porcelana da banheira.
– Maddey gosta dele ou casou por dinheiro? – desce as calças – Deve ter uns olhos bem gordos,
porque Jason não parece ter sentimentos. Ele… – vai ao armário – Parece o meu pai aos sábados,
só está disponível para um chá e nada mais.
A cabeça vira quando ouve o corpo cair na água.
– Rachel! – corre para a banheira.
Não respirava, deixava a água entrar pela boca, pelo nariz, pelos ouvidos… Umas mãos puxam
o tronco para cima e o violento som do ar ser sugado ecoa. Phill fecha a torneira da água e entra
na banheira, agarrando-a para não voltar a cair.
– Estás bem? – pega na toalha e passa no rosto.
Nega ao se abraçar. A água estava vermelha, o sangue não parava de sair dos ferimentos e
escorrer pela pele.
– Noah já está, não temos mais com que nos preocupar.
– Não me sinto bem.
– Claro que não, voltaste a apanhar. A culpa é minha, o teu avô tem razão, se quero ajudar, tenho
que prevenir que te batam.
As mãos puxam os braços dele, aninha o corpo no seu peito e segura com força o colar dele.
– Temos que fechar as feridas, estás muito ensanguentada.
Não, as dores que sentia aguentava bem, mas o vazio não.
– Não estás feliz por o matar?
Foi um alivio para a alma. Não estava feliz com o resto, com as pessoas que morreram por sua
causa. Mais uma prostituta morta, uma amiga de Louisiana que… No dia anterior morreu
queimada. Não conseguia estar bem, tentava e não conseguia. Desata a chorar. Phill beija a nuca,
talvez os remorsos explicassem o que estava a acontecer.
– Eu entendo, às vezes matar alguém é mais difícil do que parece. Mas ele devia de morrer, fez
por isso.

346
Sete Nomes

Merecia, vistos que maltratava a própria mulher, jovem e sem culpa da vida a castigar dessa
maneira.
– Queres descrever a tua tristeza?
Nega, nada descreveria naquele momento frio que invadia a consciência, consumia os
pensamentos e ecoava a infinita voz de que ia contra a maré. Phill suspira, um momento calado
bastaria para recompor as ideias.

Não ia comer o que o avô fez, apenas cozeu as feridas e vestiu o robe. Deitou na cama e pediu
para Phill ir jantar algo antes de lhe fazer companhia. Que vontade de sentar à mesa com Jason…
Até perdeu a fome.
Limpa a cabeça com a toalha e entra na cozinha para se servir de brandy. Lá estava o advogado,
na sua lida doméstica a limpar um prato acabado de lavar. Pelo olhar dele, andar em toalha na
cintura era pecado. Se nem ali tinha liberdade, onde teria? Bebe num gole e bate o copo na mesa.
– Rachel devia comer algo. Não é saudável ir deitar de estômago vazio, vistos que perdeu muito
sangue e está fraca.
Como Phill teria obrigado aquela mulher com os olhos em lágrimas a sentar na mesa e engolir a
reles comida que o avô fazia? Depois da água da banheira ficar vermelha de tanto sangue perdido
e de conter os gritos para não preocupar Jason, o mínimo que fez por ela foi deitar na cama,
aconchegar as mantas ao corpo e beijar-lhe a testa, garantindo que estava em casa, segura e que
mais ninguém a ia magoar.
– Viu o rosto da sua neta quando saiu da casa de banho? – olha-o.
O advogado pousa o prato e limpa as mãos húmidas. Não, não viu o rosto dela. Teria visto se não
tivesse escolhido o amante.
– Chorou, rezou a cada ponto que dei, agarrou com força a minha perna e cravou as unhas para
suportar a vontade de gritar. Exausta, deitou no meu peito e pediu num murmuro “Deita-me na
cama, Phillipe.” Acha que tinha coragem de a obrigar a vir comer a sua comida de dar a volta ao
estômago?
– Comida que ela adora.
Suspira e abana a cabeça, não valia apena.
– Antes de entrares na vida dela, Phill, eu já tratava das suas feridas.
– Claro, entrava na banheira e cozinha com o coração na mão os nomes que a assombram. Ou
lavava o sangue com tanto carinho e delicadeza para a dor não a massacrar mais. É o avô, nada
mais. – pega na garrafa.
– O primeiro homem que matou em Boston, eu, eu… – bate no peito – É que cozi o nome que lhe
rasguei nas costas. Pedi para sentar na cadeira e trincar com força a rolha de cortiça. “Calma
Rachel, um já vai para a cova.” Eu é que sentava na cama e apertava a mão dela, na esperança de
ver remorsos no olhar. Tu és só um amante que vai ficar esquecido. Já eu, família, vai segui-la
por ter mais valor e ser mais importante.
Bate a garrafa, não queria ir por essa via, mas não tinha alternativa.
– Com todo o respeito que tenho por si, não compare as situações.
– Comparo sim. Estás a mais Phill, deste cabo da minha neta.
– Eu?! O homem que a tenta mudar?! O senhor é que cuidou mal dela e eu é que levo com as
culpas?!
– Tentei cuidar bem dela…
– Notasse! Cuidou tão bem dela que é uma assassina!
– Preferias que fosse uma bêbeda que bebia até cair?
347
Sete Nomes

– Preferia qualquer coisa curável, tudo menos a porcaria de uma vingança que lhe rouba a
felicidade! Onde estava quando ela chegou aqui e matou numa semana quatro homens? Onde
estava quando Chester a espancou, ou Merle, que quase a violou? Onde estava?! Sentado, lá em
Boston, no sofá a ler o maldito jornal do dia anterior! E eu, aqui, com a vida destruída a cuidar da
única mulher que amo! A curar todas as feridas que trazia para casa. Deitava na minha cama e
mimava-lhe a cabeça até amanhecer. Dava forças para não desistir, porque pela vontade dela, esta
maldita vingança já tinha acabado. É um mau avô, como foi mau pai!
Jason puxa a mão atrás, queria tanto lhe bater no rosto, espancá-lo até saltarem os dentes todos.
Passa os dedos por entre o cabelo e caminha para a sala. Os olhos em lágrimas sabiam disso, não
cuidou bem da neta, sempre a deixou ir por maus caminhos e deixou a vida dela nas mãos de
Deus. Não a podia educar à sua maneira, não podia sentar na cama e dizer que era seu avô. Não,
a menina rebelde tinha que continuar a pensar que estava sozinha no mundo, aos cuidados do
advogado do pai. Tudo teria sido diferente se tivesse dito a verdade? Claro, Rachel não teria tido
a necessidade de se vingar ou pensar nisso. Sozinha… O coração não pediu outra coisa.
– Sai desta casa, não há espaço para dois homens.
– Está a perder a importância e isso o deixa desconfortável. Podia admitir a merda dos ciúmes!
– Ciúmes? – vira-se – Rachel antes não tinha esse sentimento de culpa, matava e pronto. Agora,
com amor no coração, mata e chora até cair. Por tua culpa, deste-lhe amor a mais!
– Dei o que ninguém lhe deu. Casa, comida, roupa lavada, uma cama cara, um homem que a
mima… Ao pé de si não tinha nada.
– Phill, Rachel manda lá em casa, o dinheiro é dela, o pequeno-almoço, almoço, jantar… É ela
que decide. Eu não tenho poder algum. Achas que ela gosta de Londres? Está mortinha para voltar
a Boston, voltar para a amiga, para as ruas, beber na taberna onde cresceu e suspirar por algum
homem que admire. Tu não és nada e nunca serás.
– Sim, o nada que ainda há pouco a deitou na cama…
– Sabes, tu és igual ao teu pai, rostinho lavado, roupinha arrumada… No fundo, ambos querem
fazer amor e ir embora. Antes, Rachel estava sozinha em Londres. Agora, o verdadeiro homem
na vida dela está aqui. Eu cuidarei da minha neta, não preciso mais de ti para isso.
O pugilista já tinha dado conta disso, Jason sentia ciúmes, raiva de a neta dar mais importância a
ele do que ao homem que lhe deu uma vida. Claro, a birra estava aí, na preferência. Uma coisa
não tinha nada haver com a outra, mas o advogado não queria saber. É como se fosse pai. E aquele
futuro genro não estava aprovado.
– Ganhou. – caminha para a porta da cozinha – Fique com Rachel, mas lhe garanto, aqui, ou na
rua, eu amá-la-ei com todo o meu coração. Desisti da minha vida por ela, e continuo a dizer que
se é para morrer, morremos juntos, na mesma cova, no mesmo inferno. Não encontrará um homem
que a ame mais do que eu e quando encontrar, vai ver um defeito chamado give up. Sabe porquê?
Porque a sua neta dá a volta à cabeça e só quem a conhece bem é que entende a sua dor. Eu
entendo e por isso que todas as vezes que a vejo ir, rezo para que volte. É metade de mim, um
órgão que necessito para viver. Quando ela acordar, diga-lhe a verdade. Colocou-me na rua por
ciúmes. Não vou desistir dela e isto é uma ameaça.
– Que medo.
Aproxima o rosto ao dele e encara-o.
– Se fosse a si, tremia as pernas e segurava a urina na bexiga. Nunca se sabe quando perderei a
cabeça e matá-lo-ei ao virar na esquina. Tirem-me o meu ouro e verão a minha fúria. Leve a sério
que não brinco.
Não, o olhar não tremia, nem as mãos, nem a voz. Estava a falar a verdade, um homem magoado
que estava capaz de matar o outro por lhe roubarem o que mais amava. Perder Rachel para o avô

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Sete Nomes

devia de ser uma traição dura de aceitar. Ela nem tinha culpa, ambos os homens lavaram a roupa
na rua e penduraram no estendal. Que azar, a chuva chegou e um deles ficou sem espaço.
Dá um encontrão ao ir para a porta do quarto. Pega na mala que tanto queria ir embora vazia.
Fazer a vontade ao advogado… Se William estivesse ali, diria que os sogros tinham sempre mais
poder que os genros. Naquele caso, os ciúmes de um avô tinham mais poder que o amor da neta.
Ainda queria ver o rosto de Rachel ao acordar e ver que o pugilista não dormiu em casa. Culpa?
Jason. Porquê? Estava a mais. O que vez? Amou-a demais. E não devia de amar? Devia de
esquecer de vez em quando.
Atira a toalha ao chão e olha para ela a dormir. Como custava ir e deixá-la ali. Ainda nem passou
pela porta e já sentia saudades. Para onde ia? Será que a rainha dava abrigo, às onze da noite, ao
herói? Tetos de vidro, como os mendigos diziam.

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Sete Nomes

Capítulo 51
Vestido com longas mangas, o seu favorito nos momentos em que acordava confusa e os dentes
trincavam o tecido de algodão. Caminha pela casa, vai de porta em porta, passa pelas escadas no
lado de fora, anda pela ruela de pedra, olha para o interior da fábrica abandonada… Volta a casa,
olha pela janela e senta no sofá, abanando a perna. Bufa, confirma as horas. Nove da manhã.
Talvez tenha ido comprar pão, Phill não gostava de ovos com maionese ou bacon. É isso, tentava
enganar-se em relação ao assunto.
– Bom dia Rachel. – Jason fala ao abrir a porta do seu quarto.
Acena com a mão e o advogado dá conta que a perna abanava. Nervosa, aos anos que não via
aquilo.
– Queres ovos com açúcar? – beija a nuca dela.
– Sim.
– E as dores?
Dá de ombros, tinha mais pontos que o habitual. Phill limpou bem os cacos que ficaram cravados
na carne. Cozeu com tanta meiguice que nem sentiu a agulha a perfurar. Se sentisse muitas dores,
ia ao Eyes e pedia algo.
– Vou ficar bem.
– O avô vai fazer, depois quero ver as feridas.
Assente. Então levanta do sofá e trinca o tecido.
– Sabes dele?
O advogado não Para para responder, coloca o avental na cintura e pega na cesta de ovos.
– Avô, o Phill?
Finge não ouvir. Ele bem que avisou que ela o procuraria. Teve esperanças de isso não acontecer.
– O Phillipe? – insiste.
– Não sei Rachel, não o vi.
– Perguntei aos teus seguranças, eles disseram que partiu ontem à noite. Porquê?
Pega numa pinha para acender o fogão. Porquê? Porque discutiram, olharam-se como homens e
deram conta que a casa não se governava com ambos.
– Talvez se tenha cansado de nós. Ele não ia embora?
– Desistiu, porque me ama.
– Rachel… – encosta-se ao fogão e pousa a pinha – Phill deve andar à procura de um motivo para
recomeçar. Viu que não existia aqui motivo algum e foi embora. Melhor assim, não achas?
Nega, estava em dívida com ele. Phill abriu-lhe a porta, deu-lhe um lugar para ficar. Estava na
hora de abrir a sua. Recompensá-lo por tudo.
– Lembraste das nossas manhãs em Bell Street? Da nossa casa… – acende um fósforo – O cheiro
a pudim a percorrer a sala… O gato malhado da vizinha que miava por comida à nossa janela…
Não sentes saudades disso?
Pela primeira vez da vida, dava graças por estar longe de casa, longe da pequena rua que era Bell
Street. Nunca se sentiu tão bem em Londres como estava a sentir, até se habituou aos dias de calor
e frio.
– E Maddey que chegava com aquele cabaz de doces, dado pela loja do John? Lembraste? Se
fechares os olhos, vais vê-la chegar.
Fecha… Não vê a avó a chegar à sala, vê a cozinha do Box Dead. Manhã fria de fevereiro, Phill
na ponta a comer a sopa que arrefecia com o ar morno, Yves a rir da piada que mal apanhou e
Abie, a devorar o pão duro. E ela, na outra ponta, a sorrir para o pugilista que passou a manhã na

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Sete Nomes

rua à procura de clientes para a luta. Did you feel this house, Rachel? As lágrimas descem o rosto,
família, saudade deles, da voz, das manhãs e dos jantes animados. Os seus animais selvagens sem
modos, que lhe preenchia o coração, ensinavam a viver no meio da pobreza, aqueciam os rostos
pálidos. Um dia… Alguém levou para longe essa alegria que agora, não passava de uma memória
do passado.
– É bom, não é?
– Nem imaginas, avô.
– Vamos voltar, não tarda.
Abre os olhos, a casa ruiu, não havia como voltar. Reerguer o Box Dead era como ressuscitar os
seus fantasmas. Não se podia fazer isso, quem partiu merecia paz, quem ficou devia de continuar
a vida, quer para esquecer, quer para relembrar. Rachel não se via mais em Boston, estava longe
de voltar a ter a sua rotina. Habituou-se à velha cidade oprimida e sentia-se bem a viver assim.
– Vai colocando a mesa que não tarda os ovos estão feitos.
Assente com uma enorme tristeza no olhar. Jason tenta esconder a verdade dela, se soubesse que
foi por sua culpa que o pugilista partiu… Perdia o amor dela num ápice. Teve que os separar,
Rachel tem que ser mais forte que antes. Só esperava que a verdade não chegasse naquele dia.
As manhãs do palácio eram tão glamorosas que chegavam a ser aborrecidas. Talvez não estivesse
mais habituado àquilo, ou nunca irá se habituar ao som do violino que invocava Mozart. Deviam
de ter assassinado esse compositor antes mesmo de começar a criar pautas. Por que a rainha
gostava tanto dele? Não podia ouvir outra coisa? Não, mandou chamar o músico com as pautas
do hino da alegria. Era cedo demais para a cabeça começar a doer. Como se não bastasse, comida
a mais na mesa para o estômago embrulhado. Nem reclama dos risos dos demais que se sentaram
para comer com a rainha. Parecia o circo cheio de pequenos bobos que não alegravam o dia.
Morria, a paciência estava a cair sobre a toalha de seda e escorregava para o chão, onde cães de
cauda a abanar, pediam mimo.
William serve a comida ao filho que faz sinal de não ter fome. Entendia a falta de apetite, Jason
foi mesmo cruel ao ponto de o expulsar de casa. Devia de ser pai, ir lá, esmurrar a porta, ameaçar
que lhe batia e explicar que todos os homens livres tinham o direito de amar uma mulher. Mas…
Como pai ausente, aceitava algo que não o envolvia.
– Vais ver que Rachel vai vir atrás de ti.
O pugilista estava com outra opinião acerca do assunto. O advogado ia dar-lhe a volta, convencer
que aquele homem não prestava. Se o amasse de verdade, ia. Se fosse só uma ilusão, não ia.
– Sem fome, Sir Orange? – a rainha pergunta ao limpar a boca.
– Sim.
– Impossível, vós comeis esta mesa e outra. Estais doente?
Nega, estava com o coração partido.
– Vossa Majestade, o meu filho apenas está satisfeito com o bolo que comeu.
– Dieta?
– Não creio.
– Explicai.
O príncipe limpa a boca e pousa o pano.
– Phillipe… Está de dieta.
Victoria fixa o pugilista, tal como os restantes. Até os príncipes estavam surpresos, os homens
não faziam dieta. Phill olha para o pai, não podia ter inventado outra coisa? Talvez um enjoo, uma
cólica, um pequeno mau estar… Dieta não, ninguém em Londres fazia dieta, a menos que fosse
um barril a precisar de usar um vestido elegante. Pega no copo com vinho, disfarça o que lhe ia
na mente e tenta não se engasgar com os olhares curiosos.
– É… – pousa o copo – Dieta.

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Sete Nomes

– Estou dilacerada, Sir. Pensei que vós éreis um homem que não ligava a esse culto. Tendes uma
boa aparência.
Sorri, nem sabia se agradecia ou se vendia uma mentira.
– Hoje… – a rainha levanta da mesa – Quereria ficar na vossa companhia, mas terei que ir à
estação de Windsor batizar um comboio. Quer fazer-me companhia, Sir?
Phill ergue o rosto, ir dar um nome a uma locomotiva movida a carvão? Numa estação remota,
cheia de pessoas abastadas que adoravam pedinchar? Nega levemente, odiava comboios, desde
que andou num que parou no quilometro dezoito e foi a pé para Londres, nunca mais pagou uma
passagem para embarcar. Preferia os cavalos, as diligências que cobravam muito, mas deixavam
à porta de casa.
– Ainda bem que aceitais. Sir William, prepare o seu filho. – caminha para a porta.
– Também irei, vossa Majestade? – levanta com os restantes da mesa.
– Infelizmente, sim.
O príncipe coloca a mão no ombro do filho, mais um passo na diplomacia inglesa, caminho até
às reuniões da câmara dos Lordes ia. Phill suspira, lá se foi o dia trancado no quarto a olhar o
vazio. Péssima ideia ir pedir refugiu à casa da rainha que, nem por um segundo, parava.
Os ovos com açúcar não tinham sabor, parecia que alguém deitou leite azedo no prato e depois,
misturou algo doce para amenizar o horrível sabor. Remexe a mistela com o garfo, estava sem
fome.
Jason limpa a boca e dobra o pano sobre a mesa. Nunca pensou voltar a rever a Rachel de
dezanove anos, proibida de sair de casa para não ir beber, isolada no quarto que só saía para
comer. Usava o vestido com as mangas longas a semana toda e depois, quando finalmente
ganhava coragem para sair à rua, vestia calças negras e uma camisa folhada, com um manto até
aos pés e um chapéu baixo a tapar o rosto. Os vizinhos comentavam que a duquesa Clarel não
tinha boa aparência. Deixou de ter no dia em que o trauma bateu à porta.
Levanta, pega no prato e vai para a cozinha. Tinha que ser o maldito pugilista a fazer-lhe aquilo.
Culpa sua, agora via o erro de o mandar porta fora. Pega no brandy, abre a gaveta com algodão e
caminha para o sofá.
– Anda que o avô limpa as feridas.
Sem vontade, Rachel levanta e senta no sofá. Jason baixa o vestido, revela as costas aos raios
fracos do sol e repara do estado que estava. Mais cicatrizes para a coleção. As mais antigas quase
nem se notavam, as mais recentes desapareciam com o tempo. Molha o algodão no brandy e com
algum cuidado, passa sobre os pontos que riscavam o nome de Noah. Phill cozia bem, os restantes
nomes não tinham um pedaço de carne saído da pele, apenas uma fina linha que cortava a
tatuagem negra, se tocasse, mal a sentiria.
Rachel grunhe ao sentir o ardor do álcool. Morde o tecido com força e sente as lágrimas nos
olhos.
– Tenho que admitir, ele sabe cozer. – comenta ao derramar brandy sobre os pontos.
Claro que sabia, estava habituado a sarar as feridas do aprendiz.
– Conta, como tu o mataste?
Dá de ombros, gostava de contar ao pugilista como os matava, não ao avô que ia condenar.
– Foi difícil? – desce as costas até aos outros ferimentos.
Nem imaginava o que era lutar contra um homem com o dobro do peso, tamanho e astúcia.
Sobrevivia, mas por vezes, devia de morrer.
– O Wood disse que a única maneira de recuperares a mansão Clarel era provares que Logan não
é quem diz ser. Ambos sabemos que isso é impossível. Então pedi para recorrer ao tribunal de
New York e tentar saber sobre Cristian Clarel, o assassinato, a filha raptada… Desmascarar
Logan.

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Sete Nomes

A boca deixa de morder o tecido, o olhar abre-se um pouco mais. Boum… Explodiu a bomba
sobre o chão de vidro.
– O avô pediu o quê?
– Para provar a morte de Cristian. Só assim conseguimos deter Logan.
Rachel levanta do sofá e caminha até à janela. Jason estava a brincar com o fogo? Foi ameaçada
que se abria a boca, teria a cabeça sobre a escadaria do palácio. Pior, matariam Phill antes mesmo
de saber de tudo.
– Tu queres tramar-me?
– Não, jamais faria isso.
– Então porque pediu isso ao Wood?
– Até ele ter as provas todas, tu já tens morto Logan. Além disso, nada é apresentado sem a minha
autorização.
– Agiu pelas minhas costas, isso é traição!
– Avisei que ia saber como recuperar a tua casa.
– Não, foi lá arranjar uma maneira de Logan me matar. Minha casa, minhas regras! Não lhe
perdoo isso!
– Rachel… – levanta.
– Está proibido de se meter nesta vingança. Não quero saber se é meu avô, tutor, pai… Eu comecei
isto e levarei até ao fim, quer queira, quer não.
– Não estou contra ti.
– Está, expulsou Phill daqui por se sentir desvalorizado. Não é dessa maneira que ganha o meu
amor, apenas arranca de mim o ódio.
Ela sabia da verdade, desde que acordou que viu algo no seu olhar.
– Aquele pugilista está a amolecer o teu coração. Precisas de ser mais dura, não sentir remorsos
destas pessoas que destruíram a tua vida.
– Sinto culpa das pessoas que morreram sem ser pelas minhas mãos. Abie, Louisiana, aquelas
pessoas no hotel… Tu não sabes o que é isso porque nunca mataste alguém. Ainda me falas em
remorsos? Sim, muitos, por condenar pessoas inocentes!
– Se queres condenar alguém, condena quem matou os teus pais.
– Não te reconheço Jason, sempre estiveste contra a minha vingança, dizias que era uma luta inútil
e que alguém faria justiça. Agora pedes para os matar? O que fizeste estes anos todos? Escondias-
te do problema, deixaste que matassem ambos os filhos.
– Não podia vingar-me Rachel, era arriscado desde o inicio, desde que desafiei Logan a um duelo
lá… – fecha a boca.
Ela levanta a mão, aponta o dedo e aproxima-se. Um duelo? Que duelo?
– Fala!
O advogado caminha para a cozinha.
– Fala! – grita bem alto – Eu exijo que fales! Quero saber o motivo que levou Logan a odiar a
nossa família!
Jason atira tudo o que estava sobre a mesa ao chão. A verdade estava em falta, o que levou aquele
homem a ganhar um inimigo continuava por contar à família.
– Avô? O que estás a esconder-me?
Vira-se com a vista em lágrimas.
– Eu matei o filho dele. Foi um engano, estava a obedecer o que a rainha tinha pedido. Logan
desafiou-me para um duelo até à morte. Disse que poderia ficar com tudo, a minha herança, casa,
título… As pistolas não estavam carregadas e quando disparamos… Nenhum de nós morreu. O
Capitão chegou e disse que o duelo era ilegal. Fui reportado para o palácio, expliquei à rainha o
que tinha acontecido e ela apenas disse que… – passa a mão pelo cabelo – Uma vida não era paga

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com um duelo. Fugi para Cambridge, casei e fiz uma vida. Nunca pensei que aquele homem fosse
longe na vingança.
Um acerto de contas por culpa dele… Rachel senta no sofá e olha para a janela. Aquela matança
começou por causa de Jason, Cristian e Charles foram assassinados injustamente por causa do
irresponsável pai que começou uma guerra no passado. No fundo, Logan só herdava o seu lugar,
vingou a memória do filho por viver anos e anos na dor. E Rachel, sem saber de nada, vingava o
pai por sentir o mesmo que ele sentiu.
– Rachel, eu tinha vinte anos, era espião inglês, tentava encontrar quem conspirava contra a
rainha. Nunca quis matar o filho bebé de Logan, foi um acidente, peguei fogo à casa errada, à
família errada… Enganaram-me!
– Tu condenaste-nos.
– Não… – ajoelha-se no chão – Na altura, Logan ficou revoltado comigo, era um jovem de
dezasseis anos que não entendia a guerra entre Inglaterra e América. Morreram muitas pessoas
inocentes por conta da coroa, muitas pessoas denunciadas por conspirarem. Expliquei mais de mil
vezes o que aconteceu, tentei ajudá-lo a reconstruir a vida, enterrei o filho…
– E a mulher dele?
– Não tinha, ela morreu no parto. Logan, depois daquele duelo, acalmou, mudou-se para
Manchester e quis começar do zero. Mas… As ameaças surgiram mais tarde, a minha esposa é
morta em Edimburgo, tive que desaparecer com Charles e educar Cristian para se defender dos
inimigos. Eu sabia que Logan voltaria para se vingar, eu sabia.
– O meu pai morreu por sua culpa! – grita.
– Jamais quis isto para a minha família. Acredita em mim Rachel, eu nunca quis ter matado o
filho dele e ter ditado a morte dos meus filhos.
– Devia ter pensado nas consequências. Não sabe que a vingança destrói qualquer mente, corpo
ou alma. Mas resistir a essa maldição é pior que lhe colocar um fim. Nem imagina a glória que é
matar alguém que nos destruiu a vida, ver o sangue deles nas mãos… Sentir o seu calor antes que
esfrie. Ganhei gosto em matar, virei uma assassina. E sabe o que acontece depois de matar? Tenho
vontade de chorar, gritar bem alto que não devia ter feito aquilo. Logan vingou-se do filho que
lhe tiraste, da vida que lhe roubaste. Merecias apodrecer aqui! Sentir na pele o que é dormir e
rever o rosto de quem se viu a morrer. Não te perdoo Jason! – levanta – Tu não és o meu avô,
nunca serás.
– Rachel… – agarra a mão dela.
Recua o corpo, os dedos escapam do pedido simples. Foi enganada, iludida, sentia-se traída.
Caminha para o quarto, o avô começou aquela guerra e Logan, para se sentir aliviado, vingou o
filho. E agora? Ia matar o homem que fez justiça com as suas próprias mãos? Deixar quem errou
ali, a comandar? Bate a porta do quarto, tranca à chave e chora. No dia em que decidiu começar
a sua jornada, devia ter tentado saber a verdade toda, os motivos, o passado do pai ou dos avós
mortos. Se tivesse sabido, pensaria nos prós e contras, tentava entender o que aconteceu,
procuraria uma solução… Esquecimento e perdão. Não fez isso, iniciou por contra própria uma
vingança que no fundo, foi justiça. Quem devia ter morrido nas mãos de Logan era Jason. Quem
devia ter ficado no meio da floresta com um tiro no peito era Jason. Não Cristian, não Charles em
Berlim, não Angellyne em Boston.
Cai de joelhos no chão, usava-a como escudo e esquecia-se que a maior revolta começava
debaixo de um teto, não num campo de batalha.

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Sete Nomes

Victoria era conhecida como a mãe dos caminhos de ferro. Grã-Bretanha tinha mais comboios a
circular do que qualquer outro país europeu. E os outros países invejavam isso, como o atrasado
Portugal que, no reinado de Maria II, recebeu uma valente critica da monarca inglesa acerca do
enorme atraso. Então, a rainha lá arregaçou as mangas, deixou os projetos nas mãos do ministro
Fontes Pereira de Melo na esperança de que a distância entre o norte e o sul fosse mínima. Que
desgraça, o dinheiro foi-se gastando e pouco se fez. Agora, com o reinado de Carlos, o pequeno
reino ao lado da Espanha continuava atrasado, preferiam cavalos a locomotivas.
Inglaterra não, desde que a máquina a vapor saiu da fábrica que a moda não se resumia a outra
coisa. Os comboios iam desde Liverpool até a Edimburgo, desde a fábrica mais reles ao palácio
mais luxuoso. E as pessoas agradeciam, aconteciam menos assaltos, iam em segurança e conforto,
evitavam as estradas esburacadas e as carruagens que se tornavam lentas. Lado mau, pagar o luxo
não era tarefa fácil.
A rainha adorava comboios, apesar de em jovem ser amante dos cavalos. Mas, não se podia
comparar o seu amor à locomotiva movida a carvão. Até se entendia, a estação estava à porta do
castelo, não precisava de esperar pela diligência e levar um exército para defender. A família real
também apreciava aquele pequeno luxo, apesar de pouco o usufruírem. Porquê? O vagão da
monarquia tinha que ser pedido com máxima antecedência. Então, passavam um telegrama à
central e pediam o comboio da realeza, com quatro vagões luxuosos. Limpavam a linha e naquele
dia, mais nenhuma locomotiva circulava no sentido Windsor-Londres. Para Buckingham era
diferente, já tinham que pedir a carruagem novamente e preparar a escolta para ir em segurança.
Sempre que uma locomotiva nova saía da fábrica, a rainha era convidada a batizar. Diziam que
dava sorte e o povo gostava de saber que Victoria se importava.
Lá estão os passageiros com as malas na mão, recebendo a monarca com um enorme aplauso.
Saindo da carruagem com a bandeira da casa real, Victoria dá a mão ao cocheiro e ajeita o chapéu
pequeno em forma de coroa. Olha para trás, alguns ministros começavam a sair das diligências.
William decidiu ir a cavalo, tal como Edward, um dos filhos da rainha, e Phill.
Sendo assim, erguendo o bosto real e segurando bem nas mãos as saias do vestido que nem tocava
o chão, caminha para as escadas da estação.
O príncipe inglês ajuda o príncipe bastardo a descer do lusitano preto. Pediu um cavalo baixo,
mas os mordomos deviam ter enfiado o pedido nas luvas brancas e fizeram sinal para o que havia
no estábulo. Edward ajeita bem o casaco de Phill. Velhos amigos? Então, aquele era o tal príncipe
que foi jogar ao Box Dead e passou a mão na slut. O bom homem que o pugilista descreveu, que
por acaso já era casado e tinha filhos.
– Porta-te bem… – sacode o pó dos ombros dele – Não sei o que a minha Majestade viu em vós,
mas creio que é passageiro.
– Eu não fiz olhos à tua mãe.
– Falei isso? Não, Phillipe de Orange. Apenas está fraca e qualquer pessoa a pode influenciar. Se
fizer isso, mato-vos.
– Victoria está mais forte que nunca, ninguém move aquela mente de diamante e eu, muito menos,
farei com que ela perca a cabeça. Só quero ter um quarto onde ficar, não a pedi em casamento. –
caminha para a estação.
Pois não, mas o príncipe ouviu rumores de que alguém andava a conspirar contra a rainha e todo
o cuidado era pouco. William acena com a mão aos admiradores. Só por acaso, eles não
conheciam o príncipe austríaco. Enfim, ter fama naquele país era complicado.
– O que o enjoado príncipe Edward queria? – sussurra-lhe.
– Pensa que vou ser o seu futuro padrasto. Como se eu quisesse ser marido da rainha.
O príncipe ri levemente.
– Aquele rapaz sempre teve ciúmes de a mãe ter amigos.

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Sete Nomes

– Ciúmes? Acho que quer é que lhe pague a dívida do póquer. Ou gosta de me irritar.
– Phillipe, ele é assim comigo. Quando joguei cricket com a Majestade, avisou que se a mãe não
estava a horas pronta para o jantar, levaria com as consequências. O que eu tenho haver se vossa
Majestade demora mais no banho? O meu sogro chegava atrasado ao jantar e ninguém reclamava.
– Não gostas mesmo dele. – passa pela porta.
– Do meu sogro? No meu casamento, cravou-me o alfinete no peito e disse que se fazia algo
absurdo, nadaria no Danúbio sem cabeça. Imagina eu, perder a cabeça no palácio de Schönbrunn
e deitarem o meu corpo ao rio.
O pugilista Para de andar e vira o rosto para o pai. Que raio de nome que o palácio tinha.
– Isso é em que língua?
– Húngaro.
– Fala Húngaro?
William sorri ao ajeitar bem o casaco.
– Filho, sou um diplomata austríaco, falo muitas línguas.
Assente surpreso, e a pensar que já era internacional por saber um pouco de italiano. Afinal, o
pai conseguia ser superior a dobrar.
Parado na estação, estava o comboio que receberia o nome que a rainha quisesse. Que besta, a
caldeira fumegava o vapor. Vermelho, com carruagens negras. Um intenso cheiro a carvão
intoxicava o ar estagnado debaixo do tejadilho em ferro. O arquiteto da estação? Não seria francês.
Ao pé da bilheteira, convidados que tinham o privilégio de darem a primeira volta. Amigos da
coroa, nobres e burgueses. Atrás, aldeões curiosos esticavam os pescoços para ver a amada rainha
que só viam nas moedas ou no jornal. As crianças metiam as cabeças por entre os corpos parados
e espreitavam o que jamais esqueceriam.
No outro lado, de vista para o fim do estrado, estava a rainha, a falar com o maquinista que, vestiu
o melhor fato para se apresentar à monarca. Aproximava-se o fotógrafo, registavam o momento
que era memorável. Mais um, no meio de tantos outros momentos que ninguém esquecia até o
dia seguinte.
Phill coloca as mãos atrás das costas, tenta imitar o pai que não estava surpreso com a besta. De
certeza que Viena tinha comboios e de certeza que muitos foram batizados pela realeza. Olha de
esguelha para o lado. Edward. Volta a mirar o comboio, que azar. Dia cinzento, só faltava a música
triste de fundo. Não queria estar ali, preferia ter acordado agora, beijado o rosto de Rachel e
murmurado ao ouvido que já era dia. Depois, preparava o pequeno-almoço, aquecia os pães de
leite ao lume e derretia a manteiga. O resto das horas? Sentava no sofá e agarrava Rachel nos
braços, ouvi-la-ia até os ouvidos verterem sangue e beijava-lhe a nuca as vezes que fossem
precisas.
Invés disso, estava ali na estação cheia de pessoas que sorriam por obrigação, no apertado fato
que nem lhe servia, com fome de não ter comido e uma vontade de vomitar. Malditos chás que a
cozinha real fazia, davam sempre a volta ao estômago.
– Alguma vez andou num desses?
Ambos os príncipes viram o rosto para o herdeiro inglês. Quem? Qual dos Orange?
– Já. – Phill responde – Tive que ir a pé para Londres porque a caldeira sobreaqueceu e ia explodir.
Ri.
– Que piada, morreriam quarenta pessoas, mas tem piada.
– Prince Phillipe, todos sabem que a caldeira não arrebenta se parar de aquecer água.
Começa a bater palmas e os demais olham.
– Que lógica, se estudasse em Oxford, tirava nota máxima, Lorde. Já deu conta que os cabides
são para os casacos e não para os sapatos?

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Sete Nomes

Edward vira o rosto. O olhar estava sério, parecia uma criança chata a pedir um abraço e
esqueceu-se que se tratava de um príncipe.
– A sua estupidez dava para tirar de miséria dezena de súbditos.
– A sua falta de lógica dava para cultivar batatas debaixo da cama.
Com receio de uma possível discussão, William agarra no braço do filho e arrasta-o para perto
da bilheteira. Phill ainda mira o príncipe, estava com vontade de lhe bater, até porque merecia.
– Controla-te. – pede com a voz baixa.
– Eu tento, mas ele provoca-me. – encosta-se à porta.
– Ou estás sem paciência?
Suspira ao assentir, estava no local errado.
– Um caramelo, por favor. – William pede ao homem com um carinho de madeira parado.
– Dez cêntimos.
– Estou sem dinheiro, meu bom homem, mas somos da realeza e sabe… – olha para o lado – A
rainha gosta de caramelos. Não pode ponderar um pouco a sua oferta?
O vendedor finta a monarca a falar com o maquinista. Bem, vender um doce à realeza era um
luxo. Ainda mais, se oferecesse a custo zero. Faz um cone com o papel do jornal e mete dentro os
caramelos. William dá pancadinhas no ombro dele.
– Que Deus o abençoe por esta boa ação.
O vendedor sorri, não custou nada.
– Caramelo? – oferece ao filho.
Phill nega.
– Lá em Viena, o meu sobrinho estava sempre a pedir que comprasse caramelos. Mandava parar
a carruagem no meio da rua para comprar. Uma vez… – mete um à boca – Atravessei uma
multidão em fúria por causa de um caramelo. Os guardas abriram alas para me proteger e essa
manhã foi violenta. Só me lembro de Francisco reclamar que era um irresponsável. Que novidade,
eu sei disso.
O pugilista sorri.
– Mas Albert é terrível, mal coloquei lá os pés e quis que fosse com ele treinar esgrima. Também
tenho uma vida, não se nota?
– Um pouco.
O príncipe mete uma mão ao bolso e olha a locomotiva.
– Nem sei porque estamos aqui.
– Por minha causa.
– Devias de enfrentar Jason. És um pugilista, bate-lhe, dá uns murros… – simula com a mão –
Mostra quem manda.
Olha para o lado, falar era fácil. Phill não podia chegar lá e espancá-lo, se fizesse isso, Rachel
jamais o perdoaria.
– Porque não faz isso com o seu sogro?
William encosta-se à parede e come outro caramelo.
– Sabes o que me faziam se batesse no rei? Ou fuzilavam-me, ou guilhotinavam, ou enforcavam…
Francisco merecia, às vezes devia fazer-lhe engolir os papeis que me dá para assinar. Mas, penso
sempre… “Sou viúvo, não quero saber disto para nada. Tenho o meu filho em Londres e mesmo
que fique deserdado, não perco o amor dele.” Então, como tu dizes, cago para o assunto.
– Também queria cagar para o meu.
– Se a amas, ela te ama… Enfrenta Jason. Já perdeste o que tinhas a perder.
Talvez o pai tivesse razão, quanto mais fugia ao assunto, mais ele se complicava. Pega num
caramelo e mete na boca, o advogado tinha os dias contados.
– Sir Orange…

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Sete Nomes

Ambos viram-se.
– Venha que quero ensiná-lo a batizar. – a rainha pede.
– Vossa Majestade, não sou pastor para batizar. – Phill começa a andar.
– Hora essa, não pedia para encarnar ninguém. Escolha um nome.
Um nome? Olha para o comboio, porque raio teria que ter um? Não bastava ser só comboio?
Repara que os demais se juntavam para ver o momento, queriam ouvir a voz da rainha, queriam
saber que denominação ela escolheu. Os bebés que nascessem no dia seguinte, teriam o mesmo
nome que a locomotiva, fariam lenços com a primeira letra, escreveriam canções em sua
homenagem, inventariam uma personagem para um romance…
As mulheres abanam os leques, os homens prendem por entre os dedos as cartolas negras,
espreitam os pobres pela janela da bilheteira, aguardam os passageiros embarque. E Phill, mudo,
nem um maldito nome na cabeça. Saliva o caramelo na boca, sentia-se pequeno, o perfeito doce
da rainha meteu por entre os dentes e contemplava com o paladar.
Ela faz sinal para falar.
– O seu nome.
Ouvem-se alguns suspiros… Rapaz, diz algo útil, pensariam eles certamente. Estavam fartos do
nome Victoria em tudo o que era monumento, loja, fábrica, sabões, leite, chá… Até os cigarros
ingleses não escapavam à regra.
– Prince Orange, seja criativo. – quase sussurra.
– Mas nunca escrevi um livro para ter criatividade.
A rainha pega na medalha que ia dar ao maquinista e olha para príncipe William. Que raio de
filho que teve, nem conseguia dar um simples nome. Ele dá de ombros, não tinha culpa, a mãe é
que o fez mal.
– Em nome da família real… – começa a discursar – Eu, Victoria, rainha de Inglaterra e Escócia,
escolho o nome para esta locomotiva, dirigida pelo o maquinista Johnny McGraan, de…
– Thomas.
Os rostos viram-se para o pugilista. Thomas? Phill não encontrava o problema de o comboio ter
esse nome. A rainha fintava-o fixamente.
– Vai dizer-me que ele é ela? Então escolho Eva.
O murmúrio começa, cochichavam uns com os outros que aquele novo membro da corte da rainha
era pior que a própria monarca. Olhem como falava… Olhem como pensava… Que insulto, se
fosse outra pessoa, tinha que se exilar do país. Mas ele, protegido do príncipe de Viena, falava
como se bebesse.
– Thomas. – a rainha repete – Gosto do nome. Sir McGraan, é com muita honra que lhe dou esta
medalha de mérito por sempre ter sido um dos meus maquinistas favoritos nesta linha.
– Obrigado, vossa Majestade. – beija-lhe a mão.
– Agora, faria o gosto de nos levar a Londres no Thomas?
– Com certeza, por aqui… – guia.
Victoria pede o leque e olha para o pugilista. Thomas… Com tantos nomes ingleses, escolheu o
que era mais reles.
– Que imaginação, Sir.
– Pensei no génio que inventou a lâmpada. Thomas Edison. Quem é o génio da lâmpada?
A rainha desata a rir ao caminhar para a porta do comboio, lâmpada… Essa piada iria durar anos
e anos a dirigir.
– Deu há luz, Sir Orange. – comenta ao subir as escadas.
Os nobres riam da piada que não apanharam, os burgueses imitavam os outros, os pobres estavam
confusos de quem seria esse homem. O príncipe Edward tose para a mão e olha para o pugilista.
Perfeito inútil da casa Orange, era o que achava.

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Sete Nomes

– Porque não mete esse olhar por um buraco que tem atrás do rabo?
– Não retiro o que disse, a sua estupidez dava para tirar muitas pessoas da miséria.
– Sabes, vou encarar isso como elogio. Não copies a minha estupidez, tem direitos editoriais. Se
quiseres uma ideia de génio, pede-me com jeitinho. – compõe a faixa vermelha dele – Mas só
com jeitinho.
O príncipe agarra nos pulsos dele e recua as mãos. Ergue a cabeça e caminha para o comboio,
aquele bastardo ganhava cada vez mais inimigos.
William abraça o filho, estava tão orgulhoso de ele ter batizado um comboio pela primeira vez.
Começava a dar passos na realeza, ainda podia sonhar com o futuro dele na casa Orange.
– Thomas, és um génio.
– Pai, pensei alto demais.
– Como assim?
– Pensei na lâmpada e dei à luz.
Ri ao coloca o braço nos ombros dele, que pequeno génio que nasceu em Londres.

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Sete Nomes

Capítulo 52
Que dia de festa, nunca se cansou tanto de uma viagem. Depois de chegarem a Londres, voltaram
a Windsor, seguiu-se um almoço animado, jogo de cricket nos jardins, exibição dos cães reais e
baile no salão principal. Nove da noite. Phill cai sobre a cama e estica bem as pernas, nunca mais
voltava a dançar com a princesa mais nova, ela parecia ter comido um cabo elétrico, estava com
energia capaz de levar um homem ao extremo cansaço. Conseguiu livrar-se dela após pedir para
ir à casa de banho. Má educação, mas enfim, livrou-se dela. Se no dia seguinte fosse batizar outro
comboio, avisaria que a agenda estava cheia, só no ano que vinha é que podia ir.
Olha para a mesinha de cabeceira e levanta a cabeça. O relógio parado de Rachel. Nem hesita em
pegar nele e pôr-se a pé.
– Rachel.
Procura-a pelo quarto, vai à casa de banho… Coça a cabeça ao olhar em volta. Era o relógio de
Cristian, prata manchada pelo sangue, as montanhas da Patagónia, a mensagem em espanhol…
Se ela não estava no quarto, como o relógio chegou ali? Fecha-o na mão e aproxima à boca, a
menos que Logan a tenha apanhado e aquilo fosse um recado.
Desata a correr para a pistola dentro da gaveta, pega no casaco azul com as medalhas e corre para
a porta, ia salvá-la antes que fosse tarde demais, ia…
Equilibra-se no aro. Rachel. Abraça-a com força, quase pega no corpo partido e eleva no ar.
– Estás aqui. – beija-lhe o rosto sem parar.
– Não tinha para onde ir. – sorri.
– Por momentos pensei que Logan tinha-te apanhado. – puxa-a para dentro e fecha a porta – Tu
nunca abandonaste este relógio. Onde foste?
– Alertar alguém da realeza da minha presença, não queria parecer penetra. – senta na cama.
– A rainha não se ia importar, és a minha futura esposa e ela libera qualquer coisa se for eu a
pedir.
Nunca pensou ver o pugilista condenado tão amigo da monarca. Que mudança drástica, antes
nem a podia ver à frente e agora, pareciam unha e carne.
– Jason sabes que estás aqui?
Nega ao baixar o rosto. Despois da discussão de manhã, recusou abrir-lhe a porta, comer ou beber
o quer que fosse. Não o perdoava do que fez, manchou o nome da família antes mesmo de ela
existir. Aproveitou a sua saída para fugir.
– Rachel… – ajoelha-se no chão e toca as mãos dela – Não quero que fiques contra o teu avô por
minha causa, a nossa discussão foi fútil. Ele ama-te e só quer proteger.
– Não sabes do resto. Se soubesses, verias que ele não merece nada de mim.
– Claro que merece, cuidou de ti, protegeu-te, garantiu que não passarias fome… Foi o teu pai.
Abana a cabeça.
– O que aconteceu? Se é por causa da minha expulsão, fica descansada, estou na boa com ele.
Abraça-o, Phill falava demais e lia muito pouco. Envolve-a nos braços, deita no chão e mima a
nuca despenteada. O que aconteceu? A pergunta ecoava na mente. O que Jason lhe fez? Não sabia,
mas se tivesse sido algo mau, partiria os dentes do advogado e venderia na rua. Será que lhe
berrou? Será que discutiram feio por sua culpa? Ergue o rosto em lágrimas e tenta ler o fraco
olhar. Não… Foi algo mais profundo, um segredo antigo. Imperdoável… Por isso que fugiu para
ali, só para se sentir segura.
– Fica o tempo que for preciso.
– Sabes que não posso dormir contigo aqui, é contra a sociedade.
– No meu quarto, as regras não entram.

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Sete Nomes

– O castelo não é teu.


– Não quero saber, não te vou deixar dormir num quarto sozinha com esse sofrimento.
– Não provoques a rainha.
– Vou contra todas as regras para te ter… – aproxima a testa e fecha os olhos – Fica, ela nem
saberá da verdade, trancarei a porta.
Beija-lhe os lábios e nega.
– Precisas de mim, não me peças para dar voltas na cama para saber como estás.
– Aqui, sou uma Clarel com regras.
– Deito as regras pela janela.
– Ficas mal visto.
– Já estou queimado pela corte. Tenho inimigos por toda a parte, só porque sou um ninguém que
tocou o coração da rainha. Não achas que me querem morto? Até o príncipe Edward me quer
morto.
– Sempre foste o homem mais doce que conheci. – sorri ao colocar o queixo sobre as mãos.
Fica corado ao olhar para o teto, Rachel estava a seduzir.
– Dancei com a filha mais nova da rainha. Ela ia dando cabo de mim.
– Dança mal?
– Não, simplesmente não pode ouvir um ritmo mais acelerado. Dei por mim a tossir vinho e
brandy ao mesmo tempo. O que a realeza come? Nem te contei a melhor. Batizei um comboio.
Faz um som de estar surpresa, nunca pensou que ele tivesse ar de pastor.
– Que nome deste?
– Rachel, fiz a piada do ano lá na estação. Dei à luz a maior estupidez alguma vez pensada. O
comboio chama-se Thomas. Entendes a ligação? – faz um gesto com os dedos para ver se pensava
sobre o assunto.
A cabeça abana, ou não estava para aquilo, ou realmente não via a piada.
– Então, o americano que fez a lâmpada chamasse… – faz uma pausa e arregala os olhos.
– Frank?
A cabeça cai para trás e o ar sai com violência.
– Tens a certeza que és americana? Thomas Edison, o tipo da luz. Será que só a rainha viu a
piada?
Assente com um rosto de que nem morta veria a piada. Talvez a rainha tivesse um faro apurado
para as ligações mais absurdas, ou a velhice levava a sua inteligência aos poucos. Jamais teria
feito essa lógica na cabeça, Thomas e lâmpadas… Não, nem bêbeda.
– Uma duquesa disse que o seu filho teria esse nome. Um escritor contou que a sua próxima
personagem seria Thomas, o cão do barão… O novo lusitano… Até os lenços terão a primeira
consoante lá bordada. Revolucionei Londres e criei uma moda. Porque não disse Phill? – pensa
alto – Já pensaste… Ver uma enorme parede com o meu nome lá pintado? Phill, o Spectrum, o
melhor pugilista londrino…
Rachel via que o ego dele continua intacto e continuava a sonhar mais alto que o salto. Depois
aterrava de queixo e culpava Deus.
– Trouxeste a mala ou é só por uma noite?
– Tenho a mala.
Dá um assobio, a discussão foi mesmo séria.
– É temporário ou para sempre?
– Porquê “para sempre”?
– Não sei… – coloca as mãos atrás da cabeça – Como herói da coroa inglesa, Cavaleiro Real do
império… Príncipe de Netherland… E Itália… E Londres… Poderíamos viver aqui até a monarca
morrer e sermos expulsos por Edward. Tens planos para amanhã?

361
Sete Nomes

– Achas que viveria aqui?


– Não gostas do luxo? Podes ter umas quatrocentas bonecas de porcelana, todas diferentes.
– Só tu é que terias felicidade, eu não. – levanta do chão.
Sim, empregados a toda a hora, comida até dizer chega, estalar os dedos para os sapatos estarem
limpos, roupa à medida, ouro na mão… Pessoas a curvarem-se na sua passagem. Não podia pedir
mais que isso, o paraíso na terra.
– Entrando no pesadelo… – ergue o tronco – O que aconteceu? Não me contes se for chocante,
apenas diz… Jason fez merda no passado?
Caminha com passos lentos para a janela, cruza os braços e olha para o jardim sereno. Muda,
porque ele também deveria ler o que os olhos escondiam.
– Entendo. Mesmo assim vais em frente?
– Sim.
– Morremos juntos?
Vira o rosto, começava a acreditar naquele pedido. Talvez o destino os levasse juntos para a
mesma cova.
– Podes limpar com o teu jeitinho meigo os pontos? Senti a tua falta nisso.
Levanta do chão.
– Claro que sentiste, só eu sei como fazer. – pega na garrafa – Deita na cama.
– Nua?
– Ai… E a sociedade, Rachel? Não sabes que a Vicki gosta de respeito? Sim… De preferência.
Sorri, onde ele estava quando acordou a precisar daquele humor? Longe, Jason fê-lo ir embora
só para roubar da neta a alegria de viver. Desaperta o casaco longo, não se cansava de Phill, a sua
luz quente que aquecia o escuro quarto. Não podia beber, não podia sentar contra a parede fria e
chorar sem parar a dor que sentia. Ele. Simplesmente isso, a sua cura para a ressaca, a sua
felicidade separada pelo mar.
Deita na cama e confia-lhe o corpo. Phill passa a perna sobre a dela, molha o pano de seda e
baixa o tronco para limpar cada ponto dado no nome.
Rachel fecha os olhos, o corpo arrepia de ternura ao sentir a mão que tocava a pele. De manhã,
quase gritou com a rudez de Jason, ali, não sentia dor alguma, apenas um calor agradável a
acalmar o coração acelerado.
– Esta manhã quis estar dentro de um quarto, sentado à janela e pensar em ti. Mal comi, a rainha
arrastou-me para a estação e fiz um sacrifício para não perder a cabeça. O meu pai disse que devia
enfrentar o teu avô, lutar por ti. Mas… Não quero destruir a vossa ligação, amor de neta, gratidão
por estes anos todos terem sido maus e um de vós não ter perdido a cabeça.
Essa ligação começava a falhar, é como se tivessem sido cortados os cabos e a eletricidade
deixasse de acender os candeeiros do corredor escuro. Então, Rachel voltava a encontrar um
estranho dentro de casa, o misterioso homem que a acolheu.
– Não sei o que te fez, nem de tão perto entenderei. Mas… Se aprendi algo com o ódio e com o
julgamento… É que no fundo, as pessoas que nos amam não nos querem magoar. Pensam que
podem ajudar com as suas soluções, falham, erram e nós não entendemos, ficamos revoltados
com a vida e queremos partir em dois o mundo. Pensei tão mal do meu pai sem o conhecer, sem
saber da sua história, sem entender os motivos… Não o perdoo de ter matado a minha mãe, mas
também não me imagino longe dele. Porque amo, por mais que tenha errado no passado.
– Achas que devia de perdoar o meu avô do que fez?
Molha o tecido outra vez e desce as costas.
– Acho que devias de te colocar no lugar dele. Ou pensar que, se fez, não fez com intensão. Se
magoou, é porque se enganou ao magoar. Tens que ver que, apesar disso, há coisas boas. Ele

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Sete Nomes

cuidou de ti, deu-te uma enorme liberdade que possivelmente o teu pai não daria. É duro? Tem
que ser, tens que ter limites.
– E se o que ele fez despertou revolta e uma sede de vingança, condenando um futuro por
completo?
Bebe um pouco para pensar. Talvez Jason a tenha magoado com algo que fez e que alterou o
rumo dela.
– O que o levou a fazer isso?
– Um erro.
Volta a limpar com meiguice.
– Nunca erraste ao pensar que fazias o certo?
A cabeça levanta, o rosto vira-se e o olhar passa sobre o ombro esquerdo. Phill assente levemente,
todos erravam ao pensar que faziam o certo. Mas, Rachel nem sequer pensou nisso, só focou o
erro como se fosse o mote para as mortes injustas. E era, apesar de ela também já ter matado
injustamente a pensar que fazia o bem. A quem? A si, não aos outros, não há família daquela
pessoa que procuraria também a vingança. Deita novamente a cabeça, Phill tinha razão, não podia
julgar o avô no momento em que seguiu quase as mesmas pisadas. Segundo ele, foi enganado,
deram a morada errada. Muitas pessoas morreram injustamente naquela época, calhou Logan ser
uma das vítimas. Vingou a morte do filho, teve a sua oportunidade. Agora, era a vez de Rachel
vingar a família e sentir o mesmo que ele sentiu, um alívio na alma.
– Obrigado.
– Já vais resolver o assunto?
Assente, colocou-se no lado oposto e sentiu a mesma dor. Jason errou e, desse erro, nasceu uma
vingança nova. As guerras começam por tão pouco às vezes…
A porta abre repentinamente e ambos olham para quem entrava sem bater. William. Phill pega
numa almofada e tapa as costas nuas de Rachel. E se tivesse sido alguém da realeza? Uma dama?
Ou um príncipe enjoado do novo membro da corte? De certeza que a mulher nua sobre a cama
nunca mais entrava no palácio de Windsor.
– A… – o príncipe tose – Se soubesse que estavam a… Tinha batido.
– Convinha bater sempre, pai. – arregala os olhos para fazer sinal.
– Pois. – coça a cabeça – Como vieste embora com tanta pressa, pensei que precisasses de mim.
Como estás, MiLady Clarel?
Viva ainda. Acena com a mão, não estava nem um pouco feliz por o ver.
– A rainha anda à tua procura.
– À minha? – Phill fica baralhado.
– Sim. Disse que queria que contasses aquela piada novamente.
Faz sinal com a mão, agora não ia lugar algum. William assente ao pegar na maçaneta da porta
e sair lentamente. Nua… Abana a mão contra o rosto, ele não resistia àquela futura nora, nem
sabia como o filho aguentava o furacão.
– A rainha que espere. – o pugilista pega na garrafa.
– Ela não gosta disso.
– Passa a gostar. – despe a túnica aplumada.
Rachel passa a vista pelo ombro e dá conta que o pugilista levantava da cama. O que ia fazer?
Despia-se, não daria banho de certeza. Segue-o, perguntava-se o que estava a acontecer. Então,
Phill senta numa cadeira ao pé da janela, encosta a mão na cabeça e fica mais mudo que um morto.
A pensar… A pensar no que ia na alma. Sobre o quê? Qual quer coisa que pesava na mente, um
passado, um presente… Um futuro…
Move o corpo lentamente, agarra na túnica ainda quente e veste-a. Dá leves passos para a cadeira
negra com almofada floral. A mão passa pelo ombro musculado, senta no braço desconfortável e

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Sete Nomes

agarra-se ao pescoço dele. Queria ler o olhar, sentir o que ia na alma e concluir algo. Ou também
não queria, já chegava a sua vida agitada, cheia de muito e pouco tempo.
– O que tens?
– Estou só cansado.
O dia foi longo para ambos. Se Rachel chorou até cair no chão, Phill sorriu forçadamente para
quem não merecia o esforço. Porquê? Não era com serenidade que se conquistava a monarquia.
– Trancamos a porta do quarto?
Pousa a mão na perna dela e esfrega.
– Achas que sou estúpido? Tipo… – levanta a cabeça para o rosto dela – Tenho alguma estupidez
nos atos? Ou não mereço as oportunidades que me dão?
Os dedos finos percorrem o cabelo quase negro. Estúpido? Não, nunca. Ignorante? Só fechava
os olhos ao que queria. Lunático? Dependia muito dos dias. O que sempre viu nele foi uma força
incansável que a ajudava a pensar, uma corda que ia ao fundo do poço buscar o balde furado.
Desde o primeiro dia que aquele olhar atento no beco lamacento, lhe deu uma luz para se guiar.
Aproxima a testa, toca com os dedos frios os lábios secos. Guerreiro, não estúpido. Amor, não
amante. Homem, não criança. Sofria em silêncio e dava voz ao riso.
– Muitos homens deviam de ter a tua força, não física, mas mental. Aguentar os desafios mais
mortais e dar a mão a quem te afunda. Estúpido não, maduro.
– Edward fez-me sentir mal o dia todo. Eu sei que ele quer proteger a mãe dos aproveitadores,
mas eu jamais pensei usar a rainha para o quer que fosse. Não sou igual aos outros nobres da corte
dela, só estou aqui porque não tenho para onde ir.
– Se tivesse dinheiro… Alugávamos algo.
– Vivo sempre às tuas custas. – vira o rosto.
– Não trabalhas nem por nada.
– Porque me dedico a ti. Se não dedicasse, eu trabalhava como qualquer homem livre.
Vira o rosto dele e olha bem fundo no olhar. Phill engole com dificuldades, era difícil mentir a
Rachel no momento em que aqueles olhos castanhos liam o que a alma queria esconder.
– Talvez não arranje nada que me agrade. Sou pugilista, não operário de fábrica que soa o dia
inteiro e chega a casa com fome.
– É que em pugilista não soavas e tinhas sempre fome.
– Mas… Eu preciso de engordar para ter musculo. Achas que este peito esculpido nasceu assim?
Treinei anos e anos, muitas madrugadas a correr, carregar baldes de areia nas mãos e flexões quer
na barra, quer no chão. Se sou assim, é porque trabalhei para ser.
– Desde de novo que querias ser um deus no ringue? – senta no colo.
– Não… Ficava com medo quando via os combates. Vi muitos pugilistas morrerem antes do
último assalto, arrastavam para as portas dos fundos e davam à família os corpos partidos. Ia para
casa a chorar e a minha avó dizia que, homens fracos de emoção, não deviam de ver as crueldades
da sociedade. Um dia, Kayo atirou uma moeda ao chão após lavá-lo e disse… “Tens cara de quem
dará muito orgulho. Queres ser pugilista profissional?” Neguei, não queria morrer como os outros.
– O que te fez mudar de ideias?
Fica vidrado a olhar para a janela. Tal como aquele olhar que revive o passado ao ver o rosto que
a assombrou, Phill revia a manhã trágica que marcou o seu destino. Perdeu quem amava, perdeu
a sua segunda mãe e quem pensou ser a avó de sangue. No dia em que ela morreu, foi o dia em
que Phill ficou sem chão, desemparado e sozinho no enorme mundo cheio de ameaças. Não teve
alternativas, pegou na toalha de mesa, meteu lá algumas roupas e seguiu caminho para o Box
Dead, pedindo ao diabo um futuro. E deu-lhe, ensinou tudo e fez dele um deus. Mas… A sorte
dura muito pouco para quem não a aproveita.

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Sete Nomes

– “Never stop Phill, your mother always will love you, here or in the sky. Believe in you and go
on.” – as lágrimas descem o rosto – Fiz o que me pediu pela última vez.
Entrelaça os dedos nos dele, entendia aquele sentimento de que fez o que a pessoa amada pediu
antes de partir. Rachel tentou fazer o que a mãe pediu, ficou com Jason e tentou recomeçar a vida.
Claro que pensar é diferente do fazer e, ela nunca conseguiu acabar o pedido escrito no papel.
Nunca a recomeçou, faltava um pilar para ter um telhado. Enquanto não o tinha, continuava a
viver debaixo dos tetos de vidro.
– No dia em que perdi a minha avó, foi o dia mais triste da minha vida. Não tive dinheiro para a
enterrar… Vendi o corpo à morgue por dez xelins… – o choro surge – Ela não merecia aquilo.
Rachel abraça-o com força, então era aquela culpa que o coração remoía no peito.
– Fui um mau neto, um ingrato… – fala por entre os soluços.
– Não, eras uma criança sem saber o que fazer.
Nega ao se agarrar ao corpo dela com força. Devia ter vendido algo, devia ter negado o que fez,
enterrado num buraco, colocado uma cruz de madeira e rezado pela alma que cuidou dele. Não
fez isso, desvalorizou quem um dia chamou de avó amada, partiu com o dinheiro na mão e olhos
em lágrimas. Arrependia-se disso, nunca teve a quem decorrer para contar a vida, nem a mãe teve
uma campa e se foi enterrada, não sabia onde. Tentou mudar isso quando Abie morreu, gastou o
dinheiro todo, mas enterrou-a como uma rainha. Era a ela que ia pedir ajuda, era a ela que rezava
nas horas de maior aperto. E a mãe? E a avó? Pedia perdão todos os dias e não parecia suficiente.
– O meu pai não teve um enterro. A minha mãe não aguentou vê-lo morto, chorou tanto que ficou
sentada no chão, mesmo ao lado do caixão. Jason disse que ele foi queimado e as cinzas lançadas
ao mar. Quando voltei, pedi para me levarem lá, só para ver o lugar magnifico que a minha mãe
o deixou. Fiz-lhe o mesmo, mandei queimar o corpo e lancei lá, ao vento, as cinzas. Não quero o
mesmo, quero ser enterrada na terra, no local onde o meu pai morreu. Foi nesse que a minha vida
parou.
Phill não podia escolher a campa, mas se pudesse, ficaria lado a lado com Abie. Levanta o rosto
e limpa as lágrimas quentes.
– E se morrermos juntos?
– Bem… Ambos seremos reduzidos a cinzas e lançados ao mar. Ou na Patagónia.
Sorri, iriam virar flocos de neve.
– Quem nos leva lá?
– Alguém.
Respira fundo ao pensar. Patagónia, onde o tesouro do pirata espanhol estava. Não era mau
pensado, um local calmo para um descanso eterno.
– Não quero morrer, Rachel. Não quero.
– Queres ser um príncipe em Viena?
– Não, quero casar contigo, ter um filho e ser pugilista.
Ri, esse futuro era surreal demais.
– Se não casarmos, quero seguir-te. Se não tivemos filhos, quero ter-te. Se não for pugilista, quero
alimentar-te à mesma. Posso não ser o teu primeiro amor, nem a tua primeira escolha. Posso ter
sido aquele que entrou pela porta dos fundos e deitou ao lado da cama. Posso ter falhado mais
vezes que acertado e ter-te feito sofrer. Mas amo-te, aprendi a amar-te e entender. Entrei na tua
vida e não quero sair dela. Não morras.
– Eu não sei nada do futuro…
Levanta, senta-a na cadeira e ajoelha-se aos pés. Pega nas mãos, finta o seu olhar e tenta implorar
com a alma.
– Rachel, se Logan te apanhar, nem por um segundo desistas da tua vida. Podes não dar valor e
viver só para vingar. Mas lembra-te, precisas de viver, precisas de estar aqui ao pé de mim. Perdi

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Sete Nomes

tudo, abdiquei começar do zero por ti. Abie uniu-nos, Yves não nos separou e o destino ajunta-
nos de várias maneiras. Se não vives pela tua vida, vive por mim.
Retira as mãos e percorre o rosto. A vontade de partir era menor, talvez em janeiro estivesse
pronta para ir ter com os pais e, agora, essa viagem fosse adiada. Encosta a testa, por si, pelo seu
coração, partiam para longe, iam para Cavour começar do zero, ou para qualquer outro reino
europeu. Mas, a mente tinha que ficar limpa do passado violento e só a vingança é que a libertava.
– Logan é mais forte que eu…
– Não desistas de viver, não desistas Rachel! – pede em choro.
Limpa as lágrimas dele.
– Um homem não chora.
– Choro quantas vezes for preciso, mas não desistas da tua vida.
Abraça-o, agarra-se ao peito dele com tanto sofrimento que desata a chorar. Nunca ganhou nada
na vida, herdou dos pais a fortuna e dos outros, o trauma e sofrimento. Ali, em Londres, conseguiu
descrever o significado de casa, aprendeu a amar e saiu do quarto escuro para as ruas sinuosas.
Não se imaginava mais em Boston, nem a viver novamente com o avô. Queria estar com Phill,
queria ser igual àquelas raparigas da Hope Street, aquelas que vestiam vestidos coloridos e
acenavam aos futuros maridos sentados na gelataria do Chorn. Invejou-as saberem viver, invejou-
as saberem namorar. Mesmo que aquele reino proíba isso e façam contratos condenatórios, Rachel
queria ter mais que um caso com Phill, mais que fazer amor ou partilhar uma banheira. Mais que
uma casa ou repartição de problemas. Estava na hora de começar a viver.
– Não morrerei nas mãos dele, juro.
O pugilista fecha os olhos e começa a orar aos céus. Deus não era seu melhor amigo, mas se o
ouvi, que estenda a mão. Em troca da sua vida, que a dela fosse protegida. E se um deles se fosse,
que não tenha piedade em levar o outro também. Qualquer coisa, menos viver na solidão.

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Sete Nomes

Capítulo 53
Fecha o robe vermelho e ajeita o cabelo no espelho ao pé da porta. Roda a chave e abre a quem
batia com violência. Que azar o seu, coloca a mão no aro e tenta entender que mal fez a Deus para
o ter ali novamente. Será que era sexta-feira treze? Não, quarta, vinte e cinco de abril de mil
oitocentos e oitenta e quatro. Nunca mais acabava o ano para Jason dizer que o seguinte era
melhor. Ou talvez o século, vistos que aquele estava esgotado.
– Bom dia, avozinho. – Phill entra sem permissão.
E sem modos, como sempre. Jason fecha a porta e cruza os braços. Até adivinhava, Rachel não
estava no castelo. Então, como bom samaritano, vestiu um fato negro, colocou cartola, pegou na
bengala do pai e deslocou-se até à torre. Que perda de tempo, nem ali ela estava.
– Vieste à procura de comida?
– Não… – senta no sofá, coloca os braços nas costas deste e cruza a perna – Vim dar um recado.
– Que informação dramática. – pega na caixa de prata com os cigarros – Conta lá, a rainha
mandou-te aqui desalojar-me?
– Não, nem a vi hoje. Disseram que está com uma pequena depressão e passará o dia no quarto.
Londres tem sempre príncipes chatos a governar. Enfim, vim aqui ter uma conversa de homem
para homem mais velho.
Outra? Fica a olhar para ele, até a chama do palito começava a chegar às pontas dos dedos.
– O que não entendeste da outra conversa?
– Bem… Que A mais B é BA. Rachel é sua neta e minha amante, futura mulher, namorada…
Chame o que quiser, menos mulher a dias. Eu gosto dela, ela gosta de mim e é então que faz
sentido A mais B. A mais B mais C, não dá, a menos que fique BAC. Ou CAB. Sou bom a contas
de somar, mas entendeu isto?
Acende o cigarro e abana o palito, entendeu que ele bebeu demais logo pela manhã e agora estava
ali a desconversar. Sopra o fumo e mete uma mão ao bolso.
– Phill, estás a pedir a mão da minha neta?
– Não, para isso pedia a ela, não a si.
Ri levemente, sempre com um humor impossível.
– Estou a mais... – conclui.
– Viu, entendeu a matemática de letras. Bem que o meu pai me obrigou a entender e não entendi
nada… – levanta – É o avô dela, o único que tem e terá… – pega no cigarro e mete à boca, sugando
o fumo.
Perto demais, a usar o que o outro usava… Só homens com pastas negras e mãos nos bolsos é
que faziam isso, homens seguros de si, prestes a mandar à lama alguém e a desafiar a autoridade.
Fecha os olhos ao fumo soprado.
– Se voltar a separar-me da sua neta, serei o primeiro a dar-lhe um murro no rosto. E Rachel?
Depende do que contar, depende do que ouvir. Serei o marido de sonho dela, será a mulher mais
feliz do mundo. Para não ser o tipo de família que só é chamada no natal… É bom que mude.
Pega no cigarro e apaga-o no vidro.
– Sou bom homem até um certo ponto. Pela minha neta, faço tudo, já matei e irei voltar a matar.
Podes ter tomates, mas nunca serás superior a mim, nem me farás borrar as calças. Quem já
assassinou quarenta pessoas na grande perseguição londrina, assassina mais um em dois
segundos. Não tenho medo de ti, podes ser pugilista, mas não passas de um medricas. O teu pai
não sabe fazer um discurso bonito, pois não?
Sorri ao coçar o queixo aparado. Jason jamais deixará intimidar-se. Velhos lobos do mar,
habituados a grandes tubarões.

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Sete Nomes

– Estamos conversados. – caminha para a cozinha.


– Admiro-o.
– Feitio americano. – pega na frigideira – Ovos?
– Sem caca de pombo?
– És mesmo um reles britânico. – coloca mais lenha no fogão.
– Nasci aqui. – atira a cartola ao sofá.
– Quem fez o fato jeitoso? – deita água ardente à frigideira.
Phill tenta encontrar a etiqueta com o nome da loja.
– Sinceramente, alguém o fez à minha medida. Nem gosto dele, pareço muito burguês.
Ri, um príncipe a pensar que era da burguesia. Parte os ovos para o líquido que fervilhava.
– Rachel mandou um “Olá”.
O olhar do advogado vira-se. Estava com ele, afinal não se perdeu numa estalagem londrina.
Deve ter aprendido a lição depois de explodir com um quarto e fugido de um hotel.
– Ficou vidrada a olhar para a janela no pequeno-almoço?
– Não, até porque sentou April na mesa e deu comida. Nunca a vi uma mulher gostar tanto de
uma boneca.
– O que a fez mudar de ideias? – pega no açúcar.
Abre os braços.
– O deus do Box Dead.
– Antes de fazerem amor ou depois?
– Só pensa nisso em relação a ela?
Dá de ombros, conhecia bem a neta e sabia que ela não mudava da noite para o dia.
– Falei mansinho e disse para te perdoar do passado. Fiz mal?
Mexe a mistela que começava a ficar dourada, pega nas natas dentro da lata e derrama na
frigideira.
– Fiz mal? – insiste.
Jason suspira.
– Não.
– Acho que Rachel não o tinha perdoado. Falei umas verdades, mansinho… – aproxima-se – Se
não fosse eu, nunca mais a veria.
Bate a colher de pau no alumínio e vira o rosto.
– Não está aqui, pois não?
– Não veio porque quis tratar de uns assuntos.
– Que assuntos?
– Não contou.
– E não achas estranho?
Achou, mas ia prendê-la dentro do quarto? Não, nem podia, gritaria até o palácio cair.
– Essa coisa é comestível ou vou vomitar aos seus pés?
Volta a mexer os ovos e sorri, não sentia no ar o aroma doce? No ponto, prova um pouco e leva
a frigideira para a banca de madeira. Pega em dois pratos de porcelana, garfos e um pano. Divide
a mistela torrada e dá ao convidado. Phill passa as narinas pelo vapor e nega, quem é que
cozinhava com água ardente? Ou natas?
– Isto, meu caro, é o que se come em Boston. – comenta ao se encostar à banca.
– Ovos com… – mexe com o garfo – Nem é caca de pombo, parece mais o que vi no bordel.
– Invés de pigarreares, porque não provas?
Perdeu a fome, também já tinha comido. Dá uma garfada e mete à boca. Jason espera a reação
que estava a demorar. O maxilar mexia-se, a língua salivava e a cabeça assentia. Então e as
palavras que faziam do pintor um poeta? Faz sinal com a mão, queria ouvir.

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Sete Nomes

O pugilista faz uns sons estranhos, sons que nem os mais inteligentes entenderiam. Por fim, a
mão junta-se ao pé da boca e a comida vai goela abaixo.
– É bom.
O advogado esperava ouvir um… Amazing! Brilliant! Bom… Só isso? Pousa o prato na pia e
cruza os braços, que caso perdido.
– Não vai comer? – fala com a boca cheia.
– Filho, perdi a fome. – caminha para a sala.
Phill pensa um pouco, seria por sua culpa? Dá outra garfada e nega, Jason é que perdeu mesmo
a fome. E aquilo? Londres devia de abrir um restaurante americano invés de um francês. Aquilo
era melhor que ovos crus com açúcar, ou ovos de avestruz com mel. Não sabia de onde vinha as
ideias, mas era cada uma melhor que a outra.

Mansão Clarel, os anos pouco passaram pela pedra infestada de musgo. Reconstruída, Cristian
não tinha uma estufa de vidro, ou um lago com cisnes. Nem um portão dourado, arbustos altos
para a privacidade e pedrinhas brancas na entrada. A verdade, é que aquela mansão sempre foi
maltratada, desde o dia em que esta foi deixada pelo príncipe George. Antes de um inglês passar
a lá viver, esta pertenceu a uma francesa expulsa de Londres. Depois de anos a mudar as raízes,
ela nunca foi bela, nem por dentro, nem por fora. Então, quando Victoria subiu ao poder e a
reforma imobiliária começou, a casa ficou pior. Parecia o cemitério, negra, paredes sem cor e
mobília preta. Cristian e Angellyne nunca gostaram de viver lá, diziam que a casa tinha vida,
rangia muito de noite e o jardim jamais seria belo. Durante anos e anos, viveram com o primo
Walter, porque a casa dele era mesmo de Jason Clarel, não a mansão de Fredy Clarel, o
antepassado da família.
Rachel mal se recordava dela, abandonou-a aos quatro anos e só voltou para fazer as malas que
iam para Boston. Também não a queria, por mais bela que estivesse agora. Que loucura, comentou
isso a April, estava louca ao ir ali falar com Selena e Hilda. Logan? Saiu, tal como a filha mais
nova que, ia conhecer o noivo.
Ajeita o chapeuzinho sobre a cabeça e bate à porta. Se Phill soubesse que estava ali… Diria que
procurou a morte mais cedo. Não cortava caminho, apenas ia conhecer os solos de vidro.
A porta abre, mordomo.
– Bom dia, MiLady. Precisa de algo?
– Falar com a Lady Clarel. É possível?
– Um momento. – fecha a porta.
E a educação, ficou no bolso? Jamais se batia a porta na cara dessa maneira, mandavam sempre
entrar e esperar na entrada. Se estivesse em Boston, nem perguntava, entrava e gritava pela pessoa.
Pelo menos, já lhe fizeram isso.
A cabeça levanta ao abrir repentino. Uma mulher. A esposa. Pelo olhar, não a esperava, espreitou
pela janela o andar lento e receou a convidada por convidar. Cabelo castanho claro e olhos verdes,
ainda jovem, trinta e seis anos, ligeiras rugas vincadas ao pé da boca. Colar de pérolas no pescoço,
dado no dia em que se casou. Livre vontade? Não, obrigada, arrancaram-na da cama, sentaram na
mesa e leu o contrato. Casava com um homem que, pela história, era viúvo. Duas filhas apenas e
muitas depressões pelo caminho. Aprendeu a controlar-se, cuidava da casa e das festas, erguia o
bosto nos serões no teatro ou nas idas ao castelo. Logan não a amava, só usava.
– O que procura, MiLady?
– Sou florista. Soube que a sua filha mais velha vai-se casar. Vim falar sobre isso.

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Sete Nomes

– Não pedi a nenhuma florista os arranjos ainda. Selena rompeu o compromisso, agora só Meredit
é que vai casar.
– Perdão, pensei. Vou sempre de porta em porta à procura de um bom negócio. Não precisa
mesmo de um ramo de flores para a sua sala?
Hilda baixa o rosto e pensa um pouco, Cristian não gostava de flores. Dá um passo para o lado,
sinal de que podia entrar.
Os anos não passaram por ali, Rachel conseguia rever a sua infância quase toda só com aquelas
escadas de soalho negro. Ouvir o riso… De inundar a banheira e descer a correr os degraus.
Angellyne gritava a Cristian que ela não podia descer assim, ainda era pequena. O empresário
agarra na menina de vestido rosa e erguendo no ar, diz que iria longe se continuasse a correr.
– Eu corro, pai. – murmura.
Corria por ele, em sua memória, em sua justiça. Os olhos enchem-se de lágrimas que não podiam
descer o rosto.
– Por aqui. – Hilda pede ao guiar.
As paredes foram pintadas de amarelo, enormes quadros tiravam o lugar aos candeeiros
dourados. Um enorme tapete azul de uma ponta da porta, até à outra. Um altar para honrar a
rainha, algumas estátuas em bronze a marcar presença. Entra na sala virada para o lago que, antes,
não passava de um pequeno carreiro de água a passar por debaixo de um chorão.
– O que acha que combina com esta sala de estar? – pergunta.
O rosto vira-se para o lado e os dedos apertam com força a bolsa de renda. Logan não modificou
aquela sala, estava igual, estava intacta, estava… Passa a mão pelo rosto e limpa rapidamente a
lágrima. Conseguia ver o pai sentado na poltrona vermelha ao pé da lareira, a mãe cozia um dos
vestidos rasgados e ela, a pequena Rachel, tentava fazer um barco de papel com o jornal. My dear,
what do you try doing? Um barco para colocar na cabeça. Como pai apaixonado, senta no chão e
refaz o que estava errado. De vez em quando, piscava o olho a Angellyne que, rasgava um enorme
sorriso. E no fim, quando o barco já podia navegar, aninhava a filha nos braços e contava uma
pequena história sobre o mar.
Mais lágrima surgem, uma enorme vontade de chorar aparece.
– Sente-se bem? – Hilda aproxima-se.
– Preciso de ar. Posso ir ao vosso jardim? – abana a mão contra o rosto.
– Claro… – abre a porta de vidro – Por favor.
Rachel sai a correr, desce as escadas da varanda e chora ao pé do lago. Queria o pai, queria a
mãe, queria a vida de volta. A mão tremule limpa o rosto, porquê que Logan lhe tirou a felicidade?
Pior, porquê que lhe tirou a casa, roubou-lhe a vida? Não podia ter comprado outra mansão,
demolido aquela ou redecorado de ponta a ponta? Perdeu ambos em criança, ninguém lhe podia
pedir para ser forte se, no fundo, revivia a dor todos os dias.
– Quer um chá, MiLady? – Hilda pergunta.
Assente sem se voltar.
– Estou com cólicas. Sabe… – limpa bem o rosto – Aquelas dores fortes de barriga que temos.
– Camomila fará bem. Um momento, por favor. – volta a entrar.
Naquele momento, nem chá com água benta fazia um milagre. A cabeça fica fixa ao sentir algo
se aproximar. Pólvora… Uma caçadeira acabada de ser carregada e pronta a disparar. Quem
pegava nela? Selena, a filha primogénita de Logan, talvez a favorita.
– Fica onde está, não dê nem um passo.
Pai assassino, filha… Assassina. Olha de esguelha a rapariga de treze anos e com corpo dezasseis.
Ia casar assim tão nova? Se aquela tinha treze, a outra tinha dez. Assente ligeiramente, Logan
estava a mentir, não ia preparar o matrimónio delas, preparava-as para serem o que ele foi, um
assassino. E os homens que lá em casa apareciam, eram os conspiradores contra a rainha. Se Hilda

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soubesse e, mesmo que desconfiasse, mentiria aos vizinhos a dizer que era o matrimónio, mentia
até na idade delas.
– Nós já conversamos…
– Eu sei bem quem é, Rachel Clarel.
– Então baixa a arma.
Nega. E lê no olhar assustado… Logan chamou ambas as filhas ao quarto e contou meia verdade.
Contou que sobreviveu ao assassinato de Boston e, que a verdadeira filha, foi criada por um
homem que o quer matar. Resumidamente, Rachel era inimiga independentemente de parecer boa
ou má. Selena preparava-se para proteger o pai, mesmo sem saber que aquela era vítima. Cabelo
negro encaracolado apertado na nuca, olhos castanhos revoltados e lábios carnudos secos de
pouca água beber. Um metro e sessenta e um, três centímetros a menos que Rachel. Sabia disparar,
atirar com a faca, usar uma espada, espionar e bater. Sabia receber os convidados, falava francês
e praticava violino. O que não sabia era a verdade.
– Selena, baixa a arma. – Hilda pede na varanda.
A mão aperta bem o cabo da espingarda. Ia matá-la e dar ao pai o corpo. Receberia o elogio dele,
o seu trofeu.
– Deixa a MiLady… – fica séria – Não disse o seu nome quando entrou.
– Minha mãe, entre e deixe-me tratar do assunto. – Selena pede.
Hilda, mesmo um pouco contrariada, obedece.
Então, o jardim fica pequeno demais para duas mulheres de idades diferente. Uma adulta
sobrevivente contra uma criança ambiciosa. Revoltado, Deus abre a torneira e a chuva, que caía
ligeiramente há minutos atrás, tornasse torrencial. Bem que o cocheiro avisou que choveria.
Não ia arredar pé, Selena queria a cabeça dela. Rachel também não daria o seu maior desejo, não
estavam no natal. A bolsa cai na lama e o chapeuzinho no lago.
– Baixa a espingarda.
– Não!
– De perto, a bala entra e sai, consigo mover-me para apertar-te o pescoço.
– Recarrego.
– Demoras dez segundos a recarregar, cinco a entrar e procurar balas. Vinte a pensar…
Aproxima a culatra e dá sinais de disparar a qualquer momento.
– Tal pai, tal filha. Ambos gostam de assassinar com balas de chumbo.
– Tu queres matar o nosso pai. Não deixarei isso acontecer!
Nosso? Gira ligeiramente a cabeça e faz um som de não ter entendido bem. Nosso? Abana o dedo
indicador.
– Cristian de Londres não é nada a mim. Cristian de Boston é.
– Sobreviveu! Vieste matá-lo!
Estava com vontade de contar a verdade, mas… Se o amado pai não contou, é porque sabia que
a realidade faria com que a confiança se partisse. Baixa para apanhar a bolsa.
– Não vais sair daqui com vida! – aponta a culatra à testa.
Paciência com limites e a menina de fralda estava a ir longe demais.
– Nunca te ensinaram a temer os estranhos?
Selena deixa de fazer mira… A mãe direita empurra o cano para fora, o dedo prime o gatinho e
a bala de chumbo entra no lago. Rachel dá com o cotovelo na anca dela, ganha a espingarda, roda
para a esquerda e bate o cano no corpo de Selena. A rapariga cai de joelhos no chão.
– Pequena conspiradora fraca… – atira a arma ao lago – Como queres matar a rainha se nem uma
mulher de vinte e quatro anos consegues derrotar?
Ergue o rosto, os dentes cerrados demonstravam a raiva que sentia.
– Anda… – pede com as mãos.

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Selena puxa o travesso do penteado e, o cabelo descai pelos ombros. Rodando por entre os dedos,
levanta e aponta aquela arma que, à vista desarmada, não passava de um acessório de moda.
Rachel até se sentia ofendida por estar com o penteado feito. Desaperta o travesso dourado e lança
ao chão. Abana a cabeça para espalhar o cabelo castanho quase negro.
Sem avisar, tenta perfurá-la, investe na rapidez e nos passos largos. Rachel desviava-se, usava as
mãos para afastar o pulso direito. Baixa, ergue os braços consoante levanta, afasta o golpe para
fora e depois, empurra para trás. Como Phill ensinou, fecha a mão e dá um violento murro na
barriga que estremece o copo.
A rapariga abre a boca ao baixar o tronco para a frente. Rachel agarra no pulso direito, roda o
corpo fragilizado, passa o braço pelo pescoço e prende-a contra o ombro. Os joelhos obrigam os
dela perderem a rigidez e fica de saliências no chão. A mão direita arranca dos dedos a arma
curiosa e aproxima-a do pescoço que escorria as gotas da chuva.
– Selena… Aos treze anos, eu ainda chorava dentro do quarto, rejeitava comer ou entender o
porquê de matarem o meu pai. Não sabes a verdade, ainda és muito nova para compreender que,
mesmo debaixo do nosso teto, existem pessoas que nos traem constantemente.
O corpo começa a mexer-se no momento que o braço aperta o pescoço.
– Lutas bem, mas precisas de mais treino. Aprendi com um pugilista os golpes, aprendi sozinha
a usar uma arma, aprendi com a vida a defender-me. Voltas a apontar-me algo e a nossa conversa
vai ser muito azeda. Entendido?
Assente ao colocar as mãos no braço dela.
– Uma palavra ao nosso paizinho e será a última vez que verás o céu nublado. Acredita em mim,
quem sobreviveu a mãos pesadas, sobrevive a qualquer coisa. Não me desafies. – larga-a.
Selena cai no chão e tose com violência.
As mãos voltam a pegar na bolsa de renda, ia embora antes de ser desafiada.
Ao grito violento, vira-se e leva com um pau no lado direito do rosto. O corpo gira ligeiramente
e acaba por se desequilibrar.
– Eu disse que não ias embora! – repete com a voz quase ausente.
Teimosa… Rachel abre a boca para o sangue escorrer. Persistente… Ainda bem que não
enfrentou os filhos dos outros assassinos, ou teria morrido ao tentar.
– Avisei a bem… Mas queres a mal. – ergue a cabeça e afasta o cabelo.
A visão estava turva, a pancada foi forte.
Selena mete o pau debaixo dos queixos dela e puxa contra o seu corpo o pescoço. Agora, quem
ia morrer sufocada era Rachel. Forte, tinha força de uma mulher de vinte.
– Não acredito numa única palavra tua!
Devia. Rachel roda o travesso pontiagudo para norte e crava na perna dela. O grito sai, o pau cai.
Selena recua e vê o que estava cravado na carne.
– Nunca te ensinaram a ouvir… – tenta levantar do chão – À primeira?
Respirando fundo, a mão agarra no travesso e puxa de uma vez. Encosta à parede após o grito e
os dedos comprimem o tecido do vestido contra o sangue. Rachel usa o pau como muleta e fica
em pé.
– Vai embora. – Selena pede ao mancar para a varanda.
Nega, não pediu para ficar?
– Pirralha.
A cabeça vira-se e… O pau bate com força. O corpo cai no chão, os dedos cravam-se na relva
lamacenta.
– Estás mais que avisada! – larga o que segurava – Volta a desafiar-me e ficas sem vida!
– Selena! – Hilda grita ao descer as escadas.
– A sua filha é que provocou. – pega na bolsa – Eu avisei.

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A mulher toca no rosto da rapariga, passa a mão pelo sangue e chora de preocupação.
– Que mal ela lhe vos fez?! – grita.
Caminha para o portão, aquela família dava a volta à cabeça.
– Decidiu seguir as pisadas do pai! – abre a porta da casa.
Hilda abraça a filha que mal conseguia falar. E chora, porque não entendia o que estava a
acontecer.
Sala negra… Era esse o nome que o pai lhe deu. Black Room, sem vida, sem cor, sem alegria.
Por isso que ele ia para lá, para aquecer o espaço em volta e criar uma planta no meio das cinzas.
Rachel pousa a mão na poltrona que, se fechasse os olhos, ainda estava quente. My dear, what do
you try doing?
– Revenge your soul.
Beija os dedos e coloca-os sobre a poltrona.
– Descansa em paz. – caminha para a porta da sala.
É bom que descansasse, porque no inferno continuaria ela.

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Capítulo 54
Goela abaixo, a garrafa não podia ficar cheia. Coloca a mão no vidro e respira fundo. O dia
passou tão rápido que nem teve tempo de sentar e pensar. Logan deve ter regressado a casa, visto
a filha com sangue e perguntado quem lá esteve. Das duas, uma, ou Selena contou a verdade e,
nesse caso, Logan vingar-se-ia. Ou mentiu e ele não fez nada ainda. Bebe mais um pouco. Como
se não bastasse, o parlamento mandou um mandato de captura ao novo inspetor para deter o
assassino que, desde de fevereiro, andava em Londres a matar. Já falavam que era um homem de
cartola e casaco negro. Nome? Jack, o sanguinário. Outros contavam que era uma mulher que não
estava satisfeita com a morte do marido e, matava homens que violavam e assassinavam as
esposas.
Em nenhuma delas Rachel acreditava, até porque era a culpada do que estava a acontecer. O
mandato apareceu no momento em que o banqueiro Noah foi dado como desaparecido e, os
médicos da morgue, entenderam que o corpo carbonizado era dele. Que espertos, se mais ninguém
morreu no bordel, é porque era ele. E quem o matou? Isso ninguém viu.
Recua e olha para a boneca sentada sobre a cama. Voltou a casa de Jason, deu um bom banho
para lavar a chuva e devorou o resto do arroz com atum seco. Onde estava o avô? Saiu antes
mesmo de chegar. E Phill? Se não estava no castelo, estava no cemitério.
Senta na cama e pousa a garrafa.
– Acho que não devia ter saído do quarto. Devíamos ter feito a festa do chá.
Pelo menos descobriu que a filha de Logan não era tão santa como parecia. E o outro pequeno
demónio? Nem a queria desafiar, chegou uma para a experiência.
– Onde anda o Phill… – levanta – Tenho que encontrar o próximo da lista. – despe o longo robe
branco e olha-se ao espelho – Bronwen Daniel. Tem nome de bêbedo.
A cabeça vira-se para a porta, alguém batia com muita força. Sai do quarto, roda a chave a puxa
a madeira.
Crava as unhas ao ver um rosto bem nojento para a hora.
– Gwenny, vens para o jantar?
O sorriso cínico demolia qualquer castelo de cartas.
– Simpáticos os teus amigos… – entra lentamente.
Rachel espreita para as escadas e dá conta que os seguranças do avô estavam mortos. Morde o
dedo, a prima estava ali para ver com quem ela estava a trabalhar para deter Logan. Ia dar-se mal,
ninguém a convidou.
– Vai direto ao ponto que odeio pessoas que falam muito. – bate a porta.
A bolsinha pousa na mesa, o olhar analisa o espaço peculiar. Não lia porque não sabia. Apenas
procurava a terceira pessoa que tanto o amigo queria.
– Queres ver se há pó? Phill ainda não sabe limpar.
– O teu pugilista ou a outra pessoa que vive aqui?
– Outra? Só se for Deus. – cruza os braços – Parece viver aqui outra pessoa?
Percorre a casa, vai de porta em porta para tirar a cisma. Sossegada, Rachel não tinha nada a
esconder. As roupas do quarto do avô? Phill as usava. Duas camas? Variavam as relações sexuais.
Quem cozinhava? Ela mesmo. A mala debaixo da cama? Não podia ter uma?
Gwenny fica à porta da casa de banho, continuava a olhar em volta, procurava… O que não
existia. A menos que ela estivesse a esconder em algum lado. Ou não existia mesmo uma terceira
pessoa. Coloca um dedo ao pé do canto do lábio e finta a prima de costas. Não fazia sentido serem
só dois indivíduos a matar, Rachel não conseguia ter assim tanta informação.
Os passos lentos ecoam, o olhar já não procurava.

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Sete Nomes

– Dois quartos?
– Priminha… Não sabes que quando se compra uma casa, ela vem sempre com dois quartos? Vê-
se mesmo que nunca estiveste na rua.
– A menos que Walter tenha voltado e durma naquele… – aponta para a porta fechada – Isso
explica a roupa.
– Eu sei que sentes a falta dele. Mas, acredita em mim, ele está bem, bem, bem… – aproxima –
Longe daqui. As roupas são do príncipe William, costuma vir aqui passar as noites.
– E as malas?
– Valha-me Deus, é proibido ter malas? Estás a ficar muito esquisita priminha, será falta de cama?
O olhar fica sério, a sociedade inglesa não gostava desse tipo de assunto, principalmente mulheres
honestas que construíam família.
– Logan mandou comprimentos… – caminha lentamente para o sofá – A filha dele ficou uma
lástima. Vai ter que usar bengala por uns tempos. Ah! Muda também, a pencada foi bem forte.
Faz um som de ser curiosa a informação.
– O que te leva achar que fui eu?
– Hilda fez uma boa descrição tua. Alta… – usa a mão para definir a altura – Cabelo castanho
escuro, muito eloquente, vestido negro e chorona. Custou muito voltar a casa?
Sorri ao se encostar ao pilar de ferro. Com tantas mulheres londrinas com essa descrição, foi logo
apontado o dedo à inimiga. E, invés de ir ali como homem, mandou a amante. Assente
surpreendida, aprendia muito com ele.
– Vieste trazer veneno ou recado?
– Ambas. Não penses que o que fizeste a Selena vai ficar… Esquecido. Aviso já que acabaste de
iniciar a guerra.
– Querida priminha, já a iniciei no dia em que cá pôs os pés. Será que a Clarel falsificada contou
que me desafiou?
Gwenny vira o rosto. Rachel sorri ao ver que estava surpresa com a informação. Claro que não
contou, além de muda, mentia.
– Pois é, aquela pirralha apontou-me uma arma e disse que ia ser o banquete do pai. Fui lá na boa,
em missão de paz. Ela é que desafiou. Sabes o que é mais engraçado? Tal pai, tal filha. Se a
derrotei, derroto-o.
Logan estava com raiva dela sem saber sequer que a filha a desafiou. Gwenny vira
repentinamente para a porta da cozinha, Selena estava a piorar a situação, Rachel não podia ser
morta antes dele. O que realmente queria do assassino do primo era livrar-se dos outros, as
testemunhas do dia trágico, depois matava Rachel e herdava a fortuna quando o matasse. Teria
que contar a verdade antes que fosse tarde.
– Posso saber o que estás a rezar virada para a cozinha? Meca é para o outro lado e as pragas não
pegam em solo americano.
Passa a mão pelo cabelo e vira-se para pegar na bolsa.
– Quando Walter volta? – retira o rouge.
– No dia em que morreres. Até lá, goza a mansão.
Vê no pequeno espelho o rosto da prima.
– Quem me matará?
– Eu mesma.
A mão baixa lentamente, um sabor amargo surge na boca. Sente, a subir o corpo, um arrepio
gelado… Receio. Condenada. Grito no ouvido e som da bala entrar no peito. Seria essa a sua
morte, sentada na cadeira, com o leque a abanar contra o rosto quente. Arruma o rouge, não havia
maneira de escapar. A menos que a matasse antes de Logan.
– Não me matarás.

375
Sete Nomes

– Se fosse a ti, pagava o teu lugar no céu, virava boa pessoa e ajudava quem precisa, porque não
terei dó quando de te matar.
– Que mal te fiz?! – grita ao virar-se.
– Estás a gozar, certo? Que mal? Mataste Abie, mandaste matar o meu pai, atiraste o meu irmão
aos cães… Ajudas Logan a matar-me… Que mal me fizeste? Nenhum, embirrei contigo.
– Aquele bebé morreu por causa do teu pai, rejeitou-o afirmando que o seu coração só podia amar
a filha primogénita.
– Engravidaste de propósito. Esperavas o quê? Que ficasse contigo?
– Eu sempre o amei. E quem escolhe? Aquela campónia de um raio vinda de Linford. Nem último
nome tinha a miserável! Fizemos tudo e ela sempre esteve contra nós, que estávamos a enganar
Cristian e queríamos que se separassem. Ficou com ela só porque a cortejou naquela noite em que
a carruagem ficou presa na estrada? Escolheu-a porque cozinhava bem e não sabia usar sapatos
de saltos?
Aproxima-se, os dentes trincavam a unha do dedo indicador.
– O meu pai escolheu-a… Por ser humilde, mulher, ver o mundo podre e fedorento dos ricos,
querer dar uma educação humana aos filhos, curvar perante a rainha sem questionar e estar
indiferente ao que os outros falam. Se tivesse-te escolhido, viveria tristemente na mansão.
– Mentira!
– És uma mal-amada, a que ficou com os restos…
– Mentira! – grita.
– Olha bem no meu rosto, priminha.
Gwenny nega, vira a cabeça para o lado e aperta com força a madeira da mesa.
– Olha bem para mim. – agarra no queixo dela e vira-o – Estás a ver em mim Angellyne, a mesma
força dela, a mesma petulância. Também vês Cristian no sorriso, no olhar atento ao que o rodeia,
o amor pelo mar, a vontade de fazer justiça. Sabes o que não vês?
Bate no braço dela com força e Rachel aperta mais.
– Não vês que às vezes, não sou nenhum dos dois. Fiquei sem alma, fiquei sem amor e infância.
Revivo todos os dias a morte do meu pai. Então penso… “Rachel, não precisas de ser filha dele
no momento em que matas, podes ser qualquer pessoa.” Custou-me estar na minha casa porque o
vi lá, sentado, a perguntar o que raio estava a fazer! Matarei todos o que o mataram.
– És igual a ela! – fala quase em choro.
– Não. – recua – Serei quando crescer. Por agora, não sou nada. Pega nas tuas coisas e sai antes
que Phill apareça e mande-te pela janela.
O ódio estava no olhar, as mãos mal conseguiam encontrar a bolsa.
– Esqueceste do que sou capaz, Rachel.
– Aprendi ultimamente que cão que ladra, não morde. Neste caso, cadela mal-amada, não me
ofende ou intimida. Olha só… Fiquei com a maldição dos meus pais, tenho um homem que me
ama. Já tu… Só Logan. Amante… Ficas sempre com as sobras.
– Esse amor vai-te sair caro! – caminha para a porta.
– Já saiu, estou completamente apaixonada por ele. Toca em Phill com um dedo que seja e a tua
comida será envenenada, não terás água a qual beber, as tuas roupas ficaram infestadas e morrerás
sufocada na tua enorme cama vazia.
Abre a porta e dá de caras com o pugilista. Rachel vira-se e sorri, chegava sempre na hora certa.
– Priminha… Como vai a solidão? – Phill pergunta ao colocar o cotovelo no aro.
Entrada bloqueada, não ia longe.
– Sai da minha frente!
– Desculpa, mas a nossa casa… Minha e Rachel, não costuma aceitar mulheres com dores de
dentes. Entraste, não foi, quem te garante que sais com esse dente?

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Sete Nomes

Gwenny recua, entendeu a ameaça. Ouviu rumores que aquele pugilista matou oito homens nos
combates do Box Dead. Além de forte, por vezes, parecia não ter sentimentos. E na hora de
defender quem gostava, ficava cego.
– Mataste a Abie… Talvez sejam três dentes. – estala os dedos.
A mão vai direta ao queixo, não ter dentes era uma vergonha, sinal de doença.
– Incomodaste a minha amada? Já são sete.
– Nem te atrevas! – mostras as mãos.
– Pegaste fogo à casa da Lou… Essa dor vai ficar resolvida num instante.
O corpo bate no de Rachel, foi à toca errada espalhar veneno.
– Basta pedir para ficares resumida a ossos partidos. Phill é profissional em bater, torturar… –
fala ao ouvido da prima – A raiva que ele tem de ti é mais que suficiente para arrumar o assunto
na gaveta. Será… Que devo fazer sinal?
Nega, o suor chegava à testa, escorria pela face e encharcava o vestido negro. Nunca teve tanto
medo em toda a sua vida. Homens violentos não entravam em casa, e os que procurava, fazia uma
aliança financeira para se unirem. Estar perante um que não cedia a um negócio… Era motivo
mais que suficiente para começar a rezar.
– Devo levantar a mão…
– Não! Eu paro! Juro que paro. – cai de joelhos – Juro por Deus que paro.
Palavras ditas por dizer, ambos sabiam o que ela queria. O pugilista mete as mãos aos bolsos e
dá um passo para o lado. Não era correto saltar um nome da lista, principalmente, quando
definiram que aquela seria a última. Vê-la no chão a humilhar-se servia.
– Vai!
– Obrigado. – levanta do chão e desata a correr.
Não olha para trás, não tropeça nos degraus, não ajeita o cabelo. Gwenny estava apavorada, se
tivesse um buraco a qual se enfiar, ela não pensaria duas vezes.
Rachel nem teve tempo de a ameaçar direito. Cruza os braços e finta o pugilista. Faz um som de
ofendido, o que fez de mal? O olhar arregala, queria mais tempo. A mão aponta para a saída, ela
estava com pressa para o jantar.
Desatam a rir ao se abraçarem, pelo menos, aquela prima não descobriu Jason ou que existia
alguém ali.
– Por onde andaste?
– Business. E tu, resolveste o assunto?
Caminha para o quarto ao assobiar.
– Rachel.
– Juro que não quis. – vira-se – Tentei controlar-me e ser uma boa menina.
– Nunca és. – despe o casaco.
Os lábios trincam as mangas do robe e o pugilista pega-a ao colo.
– Tens cinco segundos para contar o que fizeste.
Nega com um sorriso infantil. Se tivesse sido coisa boa, contava.
– Um… Dois… Três…
Continua a abanar a cabeça.
– Quatro…
Ri ao negar. Dá um grito ao cair na cama e sentir o rosto dele perto do seu.
– Terei de ler?
– Tenta. – pede com voz infantil.
Phill ergue o tronco e olha-a. O sorriso perdia-se ao ver, que no lado direito da face, um pau bateu
com violência. Um cajado de pastor, casa do campo certamente. Ficou zonza, esganada com a

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Sete Nomes

madeira que, era forçada a esmagar. Lutou, a mão estava ligeiramente mais escura. A vítima
também sofreu.
– Em quem é que tu bateste? – cruza os braços.
– Em quem pediu.
– Isso não é resposta. Saíste a dizer que ias tratar de assuntos. Se bem que me lembro, os únicos
assuntos pendentes… Eram todos os de Jason. A menos que tenhas ido saber algo mais, ou
perdido a cabeça. Só espero que não tenha sido em casa de Logan.
– Devias de ser bruxo.
Claro, com tanto que fazer, foi logo a casa do inimigo. Mas não estava de certeza absoluta, ou
não estaria ali, sobre a cama, viva.
– A esposa dele ou a filha?
– Touché. Selena. Aquela rapariga não tem dezasseis anos, nem vai casar. É uma das
conspiradoras da rainha, anda lá infiltrada para a matar. E mais… Adora desafiar.
– Tu foste lá duelar com ela?! – quase grita.
– Na verdade, eu queria ver a minha casa. Mudou, a mansão não é mais a mesma. Mas… Selena
ficou com a mente envenenada e apontou-me uma espingarda. Se lutei, foi para sair com vida.
Phill nunca viu paz no olhar dela, só gritos de guerra para fazer a serenidade. Não podia ter pedido
com gentileza? Não, era doloroso demais. Sai de cima das pernas e caminha para a janela. Cabeça
quente, tanto estavam calmos, como enraivecidos, tanto acordavam na paz, como no atormento.
E se a alegria chegava rápido demais, também desaparecia.
– Sabes o que Logan te vai fazer, não sabes?
Encara o teto. Se a filha lhe mentiu, talvez saísse empune do que aconteceu. Se pedisse vingança,
atacaria com o que tinha. Não foi lá para andar aos murros, nem desafiar ninguém, apenas foi lá
para rever a casa ou descobrir o que Hilda sabia. A rapariga é que pediu para levar.
– Não aguentas estar quieta, pois não?
– Phill…
– Logan tem que ser o último, certo? – vira-se – Então não faças com que seja o penúltimo.
– Selena estava a pedi-las. Peguei na bolsa para sair a bem, ela é que insistiu que sairia morta.
Então defendi-me!
– E em que estado ficou ela?
Os lábios entortam-se e trinca o dedo. Bem, ficaria melhor daqui a uns meses, esperava.
– Talvez tenha exagerado um pouco… – fala devagarinho.
– Um pouco como?
Vira o tronco e coloca a cabeça sobre a mão.
– Manca, muda e se a pancada não tiver afetado nada, volta ao normal daqui a uns dias. Se tiver…
Vai ficar assim para sempre.
O pugilista avança para a cama com as mãos a simular o estrangular.
– Rachel! – grita bem alto.
– Ela deu-me com o pau no rosto e sobrevivi.
– Ela tem treze anos, não vinte e quatro! – berra – Nem tem culpa desta guerra!
– Sem culpa, certo. Então porque segue as pisadas do pai?
– Porque é o seu pai, o seu ídolo supostamente. Fará de tudo para o proteger e orgulhar. Não
pensaste em nada quando lhe bateste?
Pensou em voltar a casa e dar um banho. O resto… Não, as pessoas quando desafiam sabem que
podem sair a perder ou com sequelas. Se Selena desafiou, é porque sabia o que ia acontecer.
– Nunca pensei que fosses tão irresponsável.
– Calma o cavalo que o assunto não é bem esse… – levanta da cama – Fui lá em paz, ia só rever
a casa, falar calmamente… A miúda é que me apontou a arma e não deixou sair. Quando a ataquei

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Sete Nomes

à primeira, ameacei, não lhe fiz nada. Ela é que insistiu em lutar e eu respondi. Seria melhor estar
morta com uma bala de chumbo na cabeça?
– Não…
– Então? Como saía de lá com vida?
A cabeça vira-se e o respirar fundo sai. Podia ter feito tudo, menos deixar-lhe a filha incapacitada.
As pessoas com deficiência não eram aceites pela sociedade, os malucos viviam nos hospícios até
morrer, presos a correntes, a gritar dia e noite. Os cegos andavam pela casa, tateavam as paredes
e usavam a audição para guiar. Não casavam e viviam dependentes da família para não morrerem
nas ruas agitadas. Os mudos não conseguiam trabalho, mendigavam, estendiam as mãos para o
simples pedido do olhar. Os surdos vivam de dentro do quarto, não sabiam comunicar nem
entendiam os outros. E os restantes? A sociedade excluía qualquer um, bastava uma criança dar
sinais de ser diferente para ser abandonada na roda, olhada de lado, ignorada… Invisível. Nem de
maneira especial é tratada. Ter um filho diferente era sinónimo de pobreza e dependência. O que
iam fazer com uma mulher cega? Ou que não podia andar? Nenhum homem a iria querer, nem
sequer a família iria lá estar.
Os pobres lidavam bem com o assunto, cuidavam, matavam ou deixavam na roda. Os ricos lá
davam a volta ao assunto, trancavam dentro de casa e pagavam aos médicos para encontrar uma
solução. Quando não havia esperança, rezavam para a morte chegar rapidamente, ter uma sombra
a deambular sem rumo e sem futuro, atrasava qualquer família.
Phill sempre respeitou os mendigos da rua que, por vezes, nasciam sem dedos, ou colocavam um
farrapo em volta dos olhos e pediam aos mais novos que fossem comprar comida. O que ele via,
os burgueses e nobres não viam. Passavam por lá com o olhar fixo no horizonte, surdos e cegos
para o que era feio ou estranho. Os operários, aqueles que sabe Deus para ter pão, lá deixavam
uma moedinha nos copos de lata, ou um pão duro do dia anterior. Esses viam, porque eles lidavam
com o problema, porque eles cuidavam dos filhos como os pais cuidaram. Porque eles tinham
esperança.
– Sabes o que é ser deficiente em Londres?
Ali não, mas Rachel conheceu muitas raparigas de Bell Street que estavam proibidas de sair à
rua. Algumas, eram fracas demais e andavam numa cadeira de rodas. Depois, não falavam, ou
estavam cegas de um olho ou surda de um ouvido. Eram tão pálidas que se notava a doença. No
recenseamento, escreviam que eram especiais e dependentes. Casaram, por mais estranho que
tivesse sido o matrimónio. Os restantes, os que viviam na rua, mal conhecia a história.
– Ela vai voltar a falar e andar. – Rachel fala.
– Não sabes. Os pais preferem que os filhos nasçam mortos, colocam na roda dos rejeitados ou
abandonam na rua. Os burgueses trancam no quarto ou casam para resolver o assunto. Os nobres
internam nos hospitais e raramente lá vão. Estatuto civil? Deficiente. Rendimento? Nenhum. Vai
à rua e vê quantas crianças com problemas são abandonadas! Vai! – aponta para a porta.
– Phill, eu não fiz de propósito.
– Toda a minha vida vi essas pessoas serem tratadas como animais. Proibidas de entrar numa loja
ou restaurante. Sem direito a uma ajuda, a trabalho, a felicidade… Ninguém quer saber deles, só
quando chega o inverno e morrem no passeio é que dizem “Porque o parlamento não fez algo?
Ou vossa Majestade?” Porque eles não querem saber das pessoas que são imperfeitas, não querem
saber dos direitos das mulheres, não querem saber dos pobres! Só os ricos é que têm lugar neste
mundo, só eles é que usam o dinheiro para comprar, vender, esconder… Eles! E nós? Os slum?
Onde estão os nossos direitos?
Não, Phill não estava só revoltado com o que ela fez, era mais que isso. Rachel tenta ler o olhar
em lágrimas, gritava por direitos, porque algo aconteceu.
– O que fizeram à campa da Abie?

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A mão limpa o rosto, esconder-lhe o dia-a-dia tornava-se difícil.


– Venderam aquele pedaço de terra a um maldito burguês que… – tenta conter o choro – Partiu a
pedra em mármore que coloquei, a cruz ficou despedaçada e o caixão foi arrancado da terra! Eu
paguei a campa, paguei ao coveiro que me garantiu que ninguém lhe tocaria. Mas… Malditos
ricos que nem na morte se contentam!
– Onde ela está?
Abana a cabeça.
– Pedi para o padre a colocar na capela que só abre aos sábados. Resposta? “Os escravos não têm
direito ao céu ou à cova.” Benzi, pedi perdão e agarrei o pescoço dele… Exigi que a colocasse lá,
ou partia cada osso que tinha nas mãos. Tentei estar bem Rachel, tentei chegar calmo e pensar
sobre o assunto, mas esse assunto mexeu comigo. Mexeu no momento em que ser londrino
diferente é condenar-se à morte.
Se fosse só ali… Boston tinha uma certa tolerância, lá andava-se como queria, os ricos. Se
aparecesse um índio, um negro ou uma pessoa vinda do far west, a regra já não se aplicava,
porque, regra geral, estavam desintegrados da sociedade. A história dos cemitérios não era nova
nem velha, bastava um rico comprar o lugar da cova ocupada para ter outro dono. Empilhavam
corpos, vendiam a carne, roubavam a roupa, arrancavam os dentes e dos ossos, passavam por
marfim. Phill teve muita sorte de Abie não ter sido uma vítima do negócio obscuro.
– Conheces algum lugar bonito para a enterrar novamente?
Nega ao sentar na cama.
– Nem depois de morta tem descanso. Dá para a enterrar na Patagónia? – olha-a.
Coloca-se de joelhos sobre o colchão e abraça-o.
– O caixão não aguenta até lá. Nem tenho o navio.
– Só queria que fosse enterrada num lugar belo, calmo e longe de Londres.
O que não faltava em volta era longas terras pertencentes a nobres que, viviam em mansões
brasonadas.
– Windsor.
A cabeça levanta. Estava louca, a rainha jamais permitiria que uma pessoa negra fosse enterrada
na sua terra.
– Não.
– Sim, ao pé do lago.
– Não, vão lá caçar e praticar hipismo…
– Não é esse lago… O rio que passa perto, tem lá uma floresta densa que poucas pessoas andam.
Se fosse enterrada e bem tapada pela folhagem, ninguém a encontrava.
– Mesmo assim, é arriscado. São zonas de caça.
– Preferes que o caixão seja lançado ao Tamisa?
Bufa ao encostar a cabeça ao peito dela. O seu medo era que um dos cães da realeza farejasse o
chão e encontrasse o cadáver.
– A cova tem que ser bem funda.
– Sim, tu mesmo podias abrir. Refazemos o funeral, eu e o meu avô. Sem padre, porque eles
odeiam ler as palavras de Deus de graça.
Na última vez, pagou bem pelas palavras abençoadas. Ainda gostava de entender se no tempo de
Jesus, pregar ao povo era sinónimo de enriquecimento, porque ser pastor em Londres era
sinónimo de riqueza.
– Desta vez terá paz?
– Vai ter. – beija-lhe a nuca.
Era o que Phill mais queria, uma nova casa para a filha. Começava a ver que a verdadeira riqueza
da Patagónia era o silêncio e a tranquilidade, longe de uma sociedade fechada, com costumes que

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se alteravam de rei para rei, e ideias desumanas. Se fosse perto, seria lá que queria ser enterrado,
no paraíso esquecido.

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Capítulo 55
Royal Sean, as velas brancas eram recolhidas pelos marinheiros de casaco azul. A acarranca que
abria as ondas, resumia-se a uma senhora com a coroa na cabeça e mão estendida ao horizonte.
Diziam que mulher a bordo dava azar, a menos que fosse um simbolismo. Os piratas rezavam à
deusa do mar de vez em quando. Quem? Os cristãos rejeitavam o culto pagão, e os mais antigos
já nem invocavam Deus. O casco lixado tornava a madeira dourada aos raios de sol, três mastros,
três andares de porão, camarote privado com sala, quarto e cozinha. Na traseira, mil setecentos e
noventa e um. Batizado de Mare Nuestro. O nome mudou quando ficou no leme outro capitão.
Como a Casa do Mar tinha avisado, nos livros alfandegários, o navio vindo do Rio de Janeiro
desembarcava a seis de maio. Tripulação? Vinte homens. Mercadoria? Viagem de negócios.
Capitão? Um dos nomes da longa lista escrita na carne. Bronwen Daniel. Quem diria que o navio
tinha ficado para ele. Por outras palavras, quem é que ia adivinhar que Logan lhe tinha pagado o
lugar na Companhia das Índias.
O olhar que espreitava tenta rever aquele assassino. Não desembarcava do navio, estava de costas
para a rua movimentada e acertava contas com o secretário geral das docas. Devia de seguir a lei
e, quando não a seguia, colocava a mão no bolso dele e deixava as libras.
– É melhor irmos antes que Jason chegue a casa. – a voz sussurra ao ouvido.
– Só mais um pouco. – pede.
Desde os dez anos que não revia aquele majestoso navio. O pai sempre o soube conduzir, sabia
as rotas e evitava as tempestades mais cruéis. Dizia que era Deus a protegê-lo. Onde estava ele
no dia em que morreu?
Phill espreita pelo canto da parede o tal navio que a arrancou da cama mais cedo. Nada de
especial, igual aos outros, grande, monstruoso, difícil de gerir e que parecia que ia virar ao mínimo
balançar. Só de o ver, já sentia os enjoos. Coloca a mão na barriga, agora eram os ovos a fazer-
lhe mal.
– Jason vai chegar e vai ver aquela confusão toda. Depois, a torre vai cair abaixo com os gritos.
Bufa com violência e vira-se.
– Qual o teu problema?
– Levar sermão do avozinho. Sabes como é.
Sabia no momento em que viveu parte da sua vida com ele. Coloca o chapéu na cabeça e dá o
braço para retornarem à torre. Londres estava um caos por causa do aniversário da rainha. As ruas
eram enfeitadas, as pastelarias competiam entre si para ficarem com a preferência para o bolo, os
ateliês de roupa criavam os melhores vestidos para a monarca escolher, a melhor música, os
melhores sapatos, os melhores cavalos… De loucos, todos queriam um pequeno lugar em
Windsor. Os operários manifestavam-se por melhores condições de trabalho, e os afortunados
preocupados com o aniversário fútil. Phill nem ia ao castelo por causa da agitação, ou para não
esbarrar com Edward. Como via o pai? Ele cavalgava para a cidade.
Cruzam a rua e tentam andar contra a multidão. Pequeno grupo de revolucionários com voz na
terra de surdos. Em Boston, fariam o pandemónio, até pedras arrancavam da calçada. Ali,
gritavam com cartazes na mão. Palavras de ordem que os cegos não liam. Rachel olha para trás,
sentia pena deles. Talvez um dia fossem vistos e ouvidos.
– Achas que vai berrar muito?
Se ia? O pugilista ajeita a boina e muda o palito para o outro canto da boca. Ia ser capado.
– Devia ter colocado um fato negro, pareço um operário.
Rachel avisou que estava muito… Phill do começo. Nem tinha ar de príncipe bastardo. Preferiu
voltar a usar roupas mais leves, suspensórios, túnicas quase justas, calças castanhas e botas pelo

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Sete Nomes

tornozelo. E claro, a mítica boina que lhe dava um ar inglês. Sorri, encantou-se por ele assim e
sempre ficou confusa ao vê-lo enfiado num fato justo.
– Critica algo em mim. – pede.
Vira o rosto. A moda feminina naquele século resumia-se a vestidos negros, roxos escuros, verdes
escuros, azuis escuros… Tudo o que era escuro. Rendas negras, bordados dourados, luvas brancas
ou pretas. Chapéu a qualquer ocasião, cabelo apanhado até à hora de deitar na cama.
– Estou habituado.
– Não gostas de me ver em calças? Ou sem espartilho?
– Ou sem roupa? Prefiro, mas a sociedade não prefere. Se a rainha andasse de rosa, talvez essa
fosse a tendência londrina. Como fazem em Boston?
Ajeita a gola fechada e espreita por debaixo do chapéu o céu.
– Depende muito do teu humor, ocasião e moda. Este ano, é a cor do verde.
– Verde? Odeio, lembra-me quando vomitei alface.
Ri.
– Verde esperança, tolo.
– Não sou bom com cores, fazem-me confusão. Que diferença faz usar um laranja ou um negro
num funeral?
– O preto é a cor do luto e laranja… Nem sei.
– Então as mulheres londrinas andam todas de luto?
Nem assente, nem nega. Não entendia o porquê de copiarem o que a realeza fazia.
– Ainda diz a Vicki que ninguém quer saber dela. Fez com que todas as mulheres fizessem luto
conjunto pela alma do rei. Se a esposa de Edward usar vermelho no reinado… Os vestidos ficaram
todos vermelhos na rua?
– Possivelmente.
Faz um som de ficar a pensar sobre o assunto.
– Quero ser rei para ditar uma moda.
– Qual moda?
Para no meio da rua e abre os braços.
– Rachel, não sou o homem mais elegante desta rua? – retira o palito da boca.
Coloca a mão na boca ao desatar a rir, qualquer pessoa diria que aquele homem era um operário
que ganhava setenta pences por mês. Phill dá uma voltinha, faz os demais comentarem em
sussurros a falta de consideração. Não dava conta que havia crianças na rua? Queria vender o
corpo a quem? Mães revoltadas tapam os olhos dos filhos, homens puxam as esposas para não
olharem, velhas de leque criticam que no seu tempo, nem apanhar um papel do chão podiam
porque era sinal de exibir e incentivar os demais a um ato desrespeitoso.
Rachel faz um som com a garganta e o pugilista baixa os braços e Para de andar às voltas. Mete
o palito à boca e acena aos que estavam parados a ver.
– Caminho, nem limpar o nariz posso que é falta de civismo.
– Não numa das ruas mais movimentadas de Londres, cheia de nobres.
Claro, se fosse num slum, podia despir a camisa e trabalhar em tronco nu. Ali, nem que estivesse
a morrer de calor debaixo de um abrasador sol, jamais poderia retirar o casaco. Como dizia, a
sociedade não mudava, evoluía para pior.
A caça ao homem continuava, davam uma grande recompensa a quem apanhasse Jack. Cartazes
eram espalhados, qualquer morte invocava esse nome absurdo. Rachel até se sentia mal por ter
criado um rumor falso, ou revoltada por a estarem a culpar indiretamente. Não matava desde que
matou Noah. Vontade não faltava, apanhava cada pessoa nas lojas que… Trincava o dedo e dizia
que as mãos estavam lavadas para sujar com sangue. Houve uma manhã em que a guarda real e a
policia do estado invadiu a torre. A primeira coisa que Rachel fez foi arrumar a boneca na mala e

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abrir a janela para fugir, não podia ser presa. Inequívoco, iam prender um assaltante que, segundo
o inspetor, deram-lhe a morada errada. Se fosse Walter no poder, esses erros fantasmagóricos não
aconteciam.
Entram na rua da torre, os novos vigias assobiam de boca em boca para alertar que era conhecida.
Se assobiassem duas vezes, perigo. O funeral de Abie correu melhor que da primeira vez. Tiveram
azar foi na carroça que levou o caixão. Partiu a roda num buraco e Phill pediu ao advogado para
ajudar, vistos que o pai não tinha força de braços. Jason reclamou que não era sua conhecida para
o sacrifício. Discutiram por cinco minutos, Rachel gritou que ia dar um tiro no ar e denunciar
onde estavam. Lá deram as mãos e transportaram o caixão. Fez uma cova funda com ajuda deles
e depositaram lá a falecida Abibatu. A cada pétala de rosa, rezou pela alma perturbada. Relembrou
o dia em que se conheceram, as aventuras juntos… Chorou no ombro de Rachel quando Jason leu
as palavras da bíblia. Abraçou o pai ao invocar palavras sentidas em latim.
No fim, colocaram terra por cima e taparam com ramos de árvore. No meio, ficou uma pequena
cruz de madeira. A vista, para o rio calmo que levaria a água ao Tamisa. Sentaram nas margens,
Phill e Rachel deram as mãos e prometeram que só se separavam na morte. Cumpririam a última
vontade de Abie, o pequeno anjo que queria a felicidade deles.
Sobem as escadas da torre…
– Rachel, preparas o chá que vou ali ao fundo comprar o jornal? – Jason fala.
Vira-se e pega no saco de papel com o pão quente. Estava ali? Arregala os olhos…
– Claro, vá lá.
O advogado coloca a cartola outra vez e volta à rua. E agora? Ambos olham e sobem o resto a
correr. O que aconteceu? Abrem a porta, pegam nas peças de roupa espalhadas pela casa, a mesa
que caiu e a louça que se partiu. Lá fica o pão esquecido ao pé da porta.
Como Jason decidiu aceitar o convite de William, um simples jogo de póquer no hotel Cristal,
passou a noite num dos quartos, dando a plena liberdade aos dois hóspedes da torre. Rachel
resolveu sair com Phill, voltar aos velhos tempos de Boston em que bebia e chegava a casa quase
a cair. Bebeu demais, seduziu excessivamente e, bastou passar pela porta para o pugilista despi-
la lentamente. Colidiram contra a mesa, desarrumaram a cómoda, arrancaram os lençóis da cama
e fizeram amor no chão, mesmo ao lado da janela.
Como Jason tinha avisado, nove em ponto estava em casa. Nove e dez e eles não arrumaram
nada. Só podiam ter relações sexuais ali se fossem casados, caso contrário, respeito acima de
qualquer coisa.
O pugilista pega na louça partida e atira para dentro do fogão apagado. Rachel apanha o resto da
roupa e mete dentro da banheira.
– Phill, urinaste no vaso? – pergunta ao levantar a planta ao lado da viga de ferro.
– Era um vaso? – sai pela porta da cozinha.
– Sim.
Coça a cabeça, estava tão embriagado que confundiu.
– Parecia a sanita ontem.
– Levanta a mesa… Varre os cacos… – pede aflita.
– O sofá… – procura um pano.
Não fizeram amor uma vez, repetiram várias vezes durante a noite, em diferentes lugares da casa.
O álcool tinha um poder danado nos jovens.
– Bom dia.
Olham para a porta, era o que faltava.
– Pai. Estamos ocupados, volte mais tarde. – Phill pede ao esfregar as almofadas.
– Estão em limpezas de primavera? – o príncipe faz uma careta ao ver a desarrumação.
Negam.

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– Então?
– Ontem… Foi uma noite muito animada. – Phill usa os pés para arredar os copos esquecidos no
chão.
– Bebemos muito. – Rachel ajeita o quadro.
– E… – faz um gesto repetido no ar – Durante a madrugada.
– O meu avô não deixa enquanto não formos casados. – sobe à cadeira e retira do candelabro uma
meia.
– Mas a tentação foi muita. Quantas vezes fizemos?
Ela olha para baixo e sorri.
– Quatro.
O pugilista começa a comemorar vitória, bateu o seu próprio recorde.
– Isso não é mau porque engravida? – William pergunta.
– Não… – Rachel ajeita as cadeiras – Após o dia vermelho, as mulheres podem fazer sexo porque
não engravidam. Se fosse antes, não fazia.
Nem tinha palavras, não sabia como elas, mulheres cheias de segredos, sabiam tanto. Então era
por esse motivo que a sua primeira esposa não engravidou, sempre que iam tentar ter um filho,
calhava sempre na manhã em que o dia vermelho acabou. E o médico a dizer que resultava…
Devia de ser enforcado por mentir.
– Abençoados dias vermelhos. – o pugilista comenta feliz.
– Acham que o avozinho não vai desconfiar?
– A menos que vá ao quarto ver os lençóis no chão. – Rachel fecha a porta.
– Ou sente neste lado do sofá. – Phill coloca uma almofada sobre o pano que tapava o que não
era limpável.
– São terríveis. No castelo, não conseguiam esconder nada.
– Nem sequer podíamos dormir juntos. – reclamam.
Não, sem anel no dedo, nem sequer podiam estar no mesmo quarto. A porta abre, Rachel puxa o
braço de Phill e ambos sorriam ao acenarem. Jason fica petrificado a olhar para ambos. E aquele
sorriso estranho no rosto? O que aconteceu na sua ausência?
– Bom dia, William. – estende a mão.
– Bom dia. – aperta.
– O chá?
– Avô, acabou.
– Caixinha vazia por completo. – Phill reforça.
O advogado olha em volta, se estavam nervosos, é porque fizeram algo que não deviam. Caminha
para a cozinha.
– Maionese com ovos, William? – pergunta.
– Não! – ambos correm e param na porta.
– Não porquê? – Jason vira-se.
– Porque estão chocos. – Rachel argumenta – Phill quase vomitou.
O pugilista assente ao colocar a mão sobre a barriga, incomestíveis.
– Chocos? – pega nos ovos e cheira – Comprei anteontem.
– O calor estragou-os. – abana a mão contra o rosto.
Calor, meu Deus… Phill até tira o casaco para simular o ar abrasador da torre. O advogado
começa a desconfiar, nem estavam chocos, nem estava calor. Pousa os ovos, coloca as mãos nas
ancas e finta-os. O que escondiam? Dá conta que a neta metia uma unha por entre os dentes e
baixava o rosto. Contra a regra, às vezes acontecia.
– Diz. – pede.
– Eu e Phill…

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Sete Nomes

– Deixaram-me cortejar uma dama cá em casa. – William passa pela porta da cozinha – Lembra
quando disse que ia voltar para o castelo? Então, vim para cá.
Jason olha para eles a assentir, verdade puríssima.
– Eles passaram a noite fora e regressaram só agora. Estiveram a arrumar o que sujei.
Fazia sentido, William saiu por volta das nove do hotel, bem acompanhado por uma dama de
cabelos negros e lábios vermelhos. Viu a neta nas escadas ainda há pouco…
– Porquê a minha casa? – cruza os braços.
– Hora essa, Rachel garantiu que era sua. – olha-a.
– Claro, minhas regras. – coloca as mãos atrás das costas.
– Micheny era doce… Parecia uma santa na terra, grandes curvas. – pisca o olho.
Não, Jason estava bem casado para admirar essa santa.
– Paguei o quarto deles numa pensão e dei a conhecer o cantinho. No palácio… Não dava, a vossa
Majestade jamais permitiria esse tipo de desrespeito. Espero que não o tenha incomodado.
O rosto não dizia outra coisa, estava irritado em saber que naquela casa, esteve duas pessoas sem
respeito algum. Mete as mãos aos bolsos e faz sinal de que queria falar com a neta em privado.
– É a última vez que me obriga a sair de casa para cortejar uma vadia. – salienta ao sair da cozinha.
Ouviram? O príncipe olha para eles, a última vez que inventava o que não fez. Rachel beija o
rosto dele, grande sogro que arranjou.
– Anda. – Jason pede na porta do seu quarto.
– O que lhe devo? – Phill sussurra ao ouvido do pai.
– Um dia no spa.
– É caro?
– Não, duas libras à hora. Doze horas vezes duas libras…
A boca descai, vinte e quatro libras. Essa fortuna ainda não tinha na carteira.
– Podia pensar no seu falido filho.
– E pensei, quando disse que trouxe uma santa. Phillipe, tu não aprendes mesmo, agora até a mim
deves um favor. Faz um chá bem quente que tenho fome.
– Não posso. O fogão tem louça.
Então foi por esse motivo que eles impediram o advogado de fazer chá. Estava ali uma casa bem
arrumada, que não haja dúvidas.
A cama por fazer… Infelizmente não tiveram tempo algum para colocar em ordem o que ficou
desarrumado. Precisavam de uma empregada, uma mulher que encare a lida doméstica com outros
olhos. Rachel não estava pronta, nunca da vida teve que acordar para levantar a mesa ou lavar a
roupa. Os tutores não a quiseram educar assim, investiram noutro tipo de educação.
O advogado abre a janela e espreita para o outro telhado o vapor que o sol elevava no ar. Manhã
quente, a primavera demorava, mas chegava.
– Já sabes de Daniel?
Assente ao cruzar os braços.
– Royal Sean.
– Sim. Ficou com o navio, prenda de Logan por o ter ajudado a roubar a identidade ao teu pai.
Veio de Boston testemunhar em tribunal e exigir uma fortuna ao estado americano. Foi um dos
que… – olha-a – Quis te matar quando se cruzou contigo na galeria de artes.
O homem que esbarrou contra a rapariga de chapéu baixo e velocidade no andar. Nesse dia,
Rachel ainda olhou para trás, desculpando-se de ser mal-educada. Quinze anos apenas e uma
visita inesperada à galeria de artes. Daniel reconheceu o rosto peculiar, perseguiu-a no meio da
multidão para ter a certeza que não era a filha de Cristian. Segundo as freiras, ela morreu afogada.
Na secção egípcia, onde as relíquias encontradas no Vale dos Reis eram expostas para os amantes
da arqueologia, Daniel tapa a boca de Rachel e arrasta-a para trás de um sarcófago. Curtas

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Sete Nomes

palavras… It´s impossible you still life. Atormentada e indefessa, tenta gritar por ajuda. You will
die soon my bitch. Calhou um professor de história aparecer e perguntar o que estava a acontecer.
Desde esse dia que não se viam.
– Desta vez, o encontro terminará de outra maneira. Não sei porquê que nunca me denunciou,
vistos que sabe que estou viva.
– Porque cada um, cada homem que naquele dia matou Cristian… – caminha lentamente – Espera
que os restantes morram para herdar o que Logan tem. Fizeram o pacto naquela noite, o último a
morrer herdava tudo, entregavam as provas de que Cristian morreu, pediam indenização por danos
morais e psicológicos. Daniel sabia que ias-te vingar, por isso que escondeu dos outros.
Levanta a mão, não sabia disso, nunca suspeitou que eles tentavam matar-se para herdar algo.
– Quer dizer que… Noah queria matar Merle, que queria matar Backer, Chester, Carter…
Assente na pausa. Logan estava há espera que o caminho ficasse limpo para fazer o que
combinaram. Com os colegas mortos, podia pegar nos testamentos deixados e ficar com os bens,
porque cada um fez isso, em caso de morte, um dos sete herdava tudo.
– E Gwenny espera que Logan morra para herdar a fortuna dele e dos outros, porque é a única
parente viva, as filhas são menores e a esposa não pode ficar como chefe de família por não ter
título. És a rainha deles.
E o xeque-mate era perfeito. Rachel limpava o caminho do inimigo, andou aquele tempo todo a
vingar o pai sem saber que era uma maneira de enriquecer o último.
– Ainda bem que esse acordo existe. Como herdeira legítima de Cristian, a precisar de reaver o
dinheiro gastado, no último nome, eu reaverei tudo o que perdi. Deixarei as famílias deles na
miséria.
– Ajudar-te-ei a rever o património roubado, mereces isso.
– Nem acredito que eles iam assassinar-se para ficar com tudo.
– Quando mataste Carter, ele estava a planear assassinar Logan por ter-lhe deixado pouco mais
que duzentos mil dólares. Não te contei porque tu só querias vingança. Mas já estava há espera
de se revoltarem, adiaram por muitos anos a vida de sonho.
– Às minhas custas.
– Agora entendes o porquê de ele não te denunciar? Ou Logan não ter dado mínima importância
quando perdeu os amigos?
Apostava que festejava, abria uma garrafa de vinho português e esfregava as mãos à fortuna.
– Pegou fogo à casa de Louisiana com que propósito?
– O mais simples do mundo, fazer-te refugiar na cidade para ter olhos por todos os cantos, vingar-
se de Phill por defender a rainha na conspiração para a matar, fingir que estava revoltado com as
mortes. Vês todos os detalhes, mas esqueces dos que são superficiais.
As jogadas de mestre que faziam os ilusionistas serem comparados a magos. Enquanto Rachel
focava a vingança, Logan focava a herança. Quanto mais ela o tentava matar, mais ele aguardava
as mortes dos restantes. E assim se apostava a vida.
– Na próxima vez, pede ao príncipe William para não ficar com as culpas que não lhe pertencem.
– Do que falas, avô?
– Da tua noitada com Phill. Só tu é que usas brincos de ouro com formato de uma âncora. –
caminha para a porta.
Rachel toca a orelha, perdeu um brinco na noite passada e não o encontrou em lugar algum. Olha
para a cama e dá conta que ele estava debaixo da almofada.
– Posso explicar.
– Claro que podes. – fica na porta – Dei uma regra chamada… Respeito. Aplicaste… Desrespeito.
É a última vez que ele te corteja debaixo do meu teto. Casada, fazes o que quiseres. Solteira,
obedeces-me.

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Sete Nomes

– Mas não nos vamos casar já.


– Então, respeita. – sai.
Como aguentariam o desejo a cada segundo que passava? Cruza os braços ao bufar com
violência, dizia sempre que ela mandava em casa, mas pelos vistos, enquanto um homem com
idade e casado continuasse a viver consigo, o lar tinha outro chefe de família. Sorri, pelo menos
não era preciso inventar algo.
– Rachel Clarel! – grita bem alto – O que é isto na banheira?!
Arregala os olhos, a roupa, metade dos vidros da louça, a urina de Phill do vaso… Mete o dedo
por entre os dentes, ainda precisava de inventar uma boa desculpa.

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Sete Nomes

Capítulo 56
Molha os dedos na água benta e faz uma cruz no cimo da testa. Devoção a Deus, num país onde
o anglicanismo superava o catolicismo. Diziam que os reis eram os representantes divinos de
Deus. No momento em que lá estava uma mulher, preferiam voltar aos outros tempos, rezar a
Jesus Cristo e seu pai. A diferença entre ambas as vias da religião não era muita, os britânicos
acreditavam em alguns santos, os padres podiam casar e construir família, o papa era a rainha
que, dava ordens dentro da igreja e as pessoas tinham direito ao divórcio. Os cristãos acreditavam
nos santos todos, os padres cumpriam celibato, não podiam casar, obedeciam um papa, liam a
bíblia em latim e não se divorciavam.
Um dia, Inglaterra também tinha sido cristã, se um rei não tivesse pedido divórcio e o papa o
houvesse negado. Desde então, quem mandava era o monarca e quem rezava, pensava em quem
rezar. Rachel era devota a Deus, não a quem usava coroa na cabeça. Não ia muitas vezes à igreja
de Boston, desde que uma vela pegou fogo ao espaço que quase ninguém ia lá. Em casa, raramente
se ajoelhou perante a cruz e rezou. Devota à sua maneira, rezava quando devia, pedia ajuda
quando precisava.
Mas, naquela manhã, aquela fiel serva não foi atrás de um milagre, até porque sabia que eles
excecionalmente aconteciam. Entra pelo corredor ao lado do altar, recebeu o bilhete deixado a
um dos vigilantes da rua da torre. Eleven. Church Saint Martin´s. Alone. Não seria Logan, não
poderia ser Daniel… Muito menos Gwenny. Afasta a cortina do confessionário e senta no banco.
Então, vira a cabeça para o lado, a janela cheia de furos pequenos em madeira escondia o pecador
que procurava perdão.
– Pensei que ficarias muda. Pelos vistos, nem muda, nem incapacitada.
– És uma grande adversária, Rachel. – abre a janela – Estou feliz por ter lutado contigo.
Sorri, dessa não estava há espera. Espera ódio na voz, raiva no olhar e sede de vingança. Não
existia isso, apenas uma felicidade por ter estado à altura.
– O que queres, Selena? Se vens ameaçar-me de alguma coisa, é bom saibas que…
– Não. Quero ajudar-te.
Ajudar… O olhar vira-se para a cortina vermelha. Não, impossível aquela rapariga querer ajudá-
la na mortal tarefa. Cilada de Logan, só isso explicaria a súbita conversa.
– Não estou interessada.
– Devias. Continuo muda, mas não surda.
– Explica-te melhor, bastarda.
Selena aproxima a cabeça à janela.
– Ouvi atrás da porta que o meu pai matou o teu. Não falava com a minha mãe, ela não é de
confiança. Ele falava com um homem, comentava que estavas viva e há muito que atormentavas
Londres.
– Quem?
– Bronwen Daniel, um dos amigos do meu pai. Eu sei o que ele planeia.
– Mas… – vira o rosto.
– Em troca de algo, é claro.
Assente, favores desses não se pagavam com um simples obrigado.
– O que queres, Selena?
– Quero que me arranjes um sítio para ficar.
Ri ao negar, que piada de mal gosto. Jamais daria a independência a uma rapariga de treze anos,
bastava sair de casa para ter a cidade toda atrás de si.
– Não. – fecha a janela.

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Sete Nomes

– Teatro. – trava o avanço da madeira – É onde vai ser o atentado. O príncipe William e o seu
filho vão lá estar presente. Tu irás também, és amante dele, segundo ouvi.
– Amante é a tua mãe aos sábados. Não acredito em ti.
– Só porque sou uma criança?
Recua a janela de madeira e encara-a.
– Porque és filha de um assassino. Tanto tu como ele querem-me morta. Qual é a diferença de
saber o que vai acontecer ou não? Terei que lutar à mesma.
– Lutas com trunfos na manga. É melhor que ir às cegas.
– Não achas um pouco descuidado o teu pai ter falado isso ao pé da porta?
– Não, finjo que sou muda desde que me bateste. Só assim é que posso ouvir e pensar.
– Pensar errado.
– Queres a minha ajuda ou não?
Nega, dela, nem água se estivesse a morrer de sede. Fecha a janela, afasta a cortina vermelha e
caminha.
– Rachel, quero sair daquela casa. Todos os dias ouço as escadas rangerem, no canto da sala negra,
alguém chora todas as noites… A minha mãe diz que sou louca, que preciso de ser internada num
hospício. Acho que é a alma do teu pai.
Respira fundo e enche as bochechas com ar. Talvez estivesse mesmo louca para inventar tanta
coisa numa só hora. Vira-se e nota que usava bengala. Afinal, o travesso afiado incapacitou-a de
alguma coisa.
– Isso é a casa a respirar. O choro? A mentes.
– Não estou louca!
– Disse isso? – coloca a mão no peito – Ofendeste-me. Não te darei casa, és menor, tens um pai
que te procuraria no inferno e apontaria o dedo a mim. Aproveita enquanto tiveres um lar, no dia
em que ele não existir, vais dar conta que eras feliz e nem sabias.
– Estou condenada à morte… – segue-a – Ajudo a conspirar contra a rainha, uso o meu corpo
para saber os segredos do parlamento, pertenço ao grupo de pessoas que quer ver Inglaterra
derrotada!
– Blá, blá, blá… Vai para casa.
Selena cai no chão ao acelerar o passo. A bengala rola pelas pedras frias e empoeiradas. A mão
é colocada sobre a perna, não podia esforçar assim tanto o ferimento. Baixa a cabeça e deixa as
lágrimas pingarem dos olhos.
– Ajuda-me, por favor Rachel. Não quero o mesmo destino da minha mãe.
Os passos cessam, Cristo até espreitava para o corredor só para ver o que aquela pecadora ia
fazer. Ouve… O choro contido de uma criança que sofria. Não precisava de ler a alma pesada e
desiludida por ser usada dia após dia. Prostitua? Havia algo pior que ser usada como arma numa
guerra entre súbditos? Acordar e saber que podia ser a última vez que respirava?
Selena tenta esticar os dedos ao máximo para alcançar a bengala de madeira. Levanta a vista ao
ver Rachel a pegá-la.
– Não a partas, por favor.
– Que destino teve a tua mãe? – abaixa-se.
– Obrigaram-na a casar com o meu pai sobre o contrato de que jamais falaria, a menos que seja
pedido para falar. Na noite de núpcias, ficou com o corpo cheio de ferimentos da tortura que
sofreu, só por ter negado usar luvas. No dia em que a minha irmã nasceu, levou tanto, mas tanto
que ficou com o braço partido, devia ter nascido menino e não menina. Ele odeia-nos, comemos
em silêncio, dormimos com a porta trancada. Não pedi para ser conspiradora, fui obrigada. Quero
ser livre.

390
Sete Nomes

Pousa a bengala ao lado do corpo. A novidade não era nova, a cara de Hilda quando a recebeu
foi chocante, parecia que via o motivo para voltar a levar. Logan torturava pessoas na Índia,
prendia-as aos cavalos e arrastava pelo chão. Homens violentos casavam para manter a aparência,
não amavam porque não sabiam amar. Faziam a vida dos outros um inferno e ainda queriam o
céu.
– Comboio para Linford passa às seis e meia. Casa de Angellyne, vive lá o detetive Bogges. Faz
a mala e parte em segredo. Se abrires a boca sobre o meu nome, acredita, estás tramada.
– Obrigado. – beija as mãos dela ao agarrar.
– Onde vão estar os explosivos?
– Debaixo do palco. Quando a cantora lírica subir o tom para si bemol, acenderam o rastilho para
a dinamite explodir. Bronwen Daniel vai tentar apanhar-te.
Vai, nada estava garantido. Levanta e ajeita o chapéu negro. Quem diria, uma aliada onde menos
esperava.
– Eu sei porque queres fugir, não precisavas de inventar isso da tua mãe. Queres fugir porque és
filha bastarda dele, nasceste em Boston quando tinha dez anos. Ele manteve-te em segredo quando
regressou e casou com Hilda. A tua irmã é a primogénita a herdar tudo. Antes que vires um
negócio fútil da família, queres partir para escapar a esse destino. No teu lugar, nem teria nascido.
Mas não escolhemos isso, pois não?
– Como…
– Há muita coisa que não sabes sobre mim. – caminha para o altar.
Mistério… Aquela mulher conseguia ser o maior segredo por revelar.
– Lutas bem, Rachel. Quem me treinou foi o meu pai. Se me derrotaste, vais derrotá-lo.
Sorri vitoriosa com a informação.
– Espero que consigas honrar a memória do teu pai.
Olha para trás. A memória dele… Nunca o esqueceu e jamais faria isso. Baixa o olhar vidrado
na memória.
– Não há um único dia que não o homenageie. É o que se chama… Amar incondicionalmente
aquela pessoa que nos acordava com um enorme sorriso no rosto. E chamava “Rachel, já deste
conta que o sol nasceu para ver esse grandes olhos? Anda, precisas de ver o mundo com eles.”
Selena baixa o rosto, jamais o pai lhe fez aquilo, jamais entrou no quarto e beijou o rosto para
desejar boa noite. Ausente, na rigorosa disciplina em que o homem de negócios não cuidava das
filhas. Nem a madrasta queria saber dela de verdade. Após Rachel sair do jardim, Hilda deu uma
forte bofetada no rosto dela por ter desafiado a estranha. Trancou-a no quarto por não conseguir
andar ou falar. Selena decidiu ficar muda, só para ter uma desculpa para não lhe dirigir as palavras.
Queria fugir da vida que não escolheu, obrigaram.
Olha para o corredor, Rachel já lá não estava. Ainda bem que um dia a desafiou para se aliar.

Pipocas… Pareciam flocos de cereais grandes e brancos, que explodiram dentro da taça com
leite. Nunca comeu, em vinte e cinco anos de existência, nunca pensou sequer que aquilo existia.
Mete à boca e arregala os olhos ao sentir o sabor. Pelos céus, os londrinos não sabiam viver à
grande. Arranca a panela das mãos de Jason e, metendo os dedos, agarra num punhado de pipocas
e mete à boca. O advogado até fica sem palavras, parecia que ele vinha de outro planeta.
– Ainda nem deitei açúcar.
– Leva açúcar? Quero. – estende a panela.

391
Sete Nomes

Limpa as mãos, pega no boião com açúcar cristalizado e polvilha. Phill volta a meter os dedos e
encher a boca. Faz um som tremendo de estar a gostar do que comia. Não sabia como se fazia,
mas sabia que gostava.
– É um génio na cozinha. – fala com a boca cheia.
– Ainda ontem era um reles cozinheiro.
– Ontem, hoje não.
A testa fica enrugada, entender aquele pugilista tornava-se um desafio.
– Avô, qual o nome daquele banqueiro de Boston? O… – Rachel pergunta ao passar a porta da
cozinha.
– Mike Fellins.
– Esse. – regista no caderno pequeno.
A cabeça vira ao ouvir o horrendo som de alguém estar a comer pipocas com a boca aberta. A
panela é estendida, queria? Abana a cabeça, apenas nunca viu um homem a comer aquilo como
se fosse cereais de milho.
– Anda a ver se ele vira americano? – fecha o caderno.
– Não, cozinho o que comemos e ele acha engraçado. – Jason argumenta.
– É a melhor coisa que já comi. O que mais inventaram lá? – Phill pergunta sorridente.
– Os direitos humanos. – pega num punhado e mete uma a uma na boca – Sabes o que é isso?
– Achas que ele sabe alguma coisa? – o advogado retira o avental.
Dá de ombros, maior parte das pessoas sabiam e escondiam. Outra parte não sabia e fingia.
– Vai sair?
– Devo-te satisfações? – ajeita as mangas.
– No momento em que é meu avô, vive na minha casa e é casado… Sim.
O suspiro sai, não gostava nada de dizer que ia a um lado e depois, nem acabava por ir.
– Wood.
– O Wood? Anda de namorico com ele? – Phill sorri.
– Não. Estou a pensar tirar doutoramento em advocacia. Não posso?
– Com essa idade?
Coloca a mão no ombro do pugilista e abana a cabeça, aquele homem não tinha mesmo esperança
nenhuma.
– Foi aos vinte e cinco anos que conheceste o teu pai. Vale mais tarde, que nunca. Um bom final
de tarde. – beija o rosto da neta.
– Ele é que nunca me quis conhecer. – comenta de boca cheia.
– Cuidado. – Rachel pede ao meter a mão na panela.
– Cuida é dele.
Impossível, Phill não precisava de ama, precisava era de uma viagem à terra do amanhã. Nem
mastigava direito, metia as pipocas à boca, uma atrás de outra. Os dedos estavam cheios de açúcar,
os beiços doces pediam um beijo. Rachel ri, os pequenos detalhes é que valiam apena ler.
– O que foi? – fica estranho.
– És engraçado, só isso.
– Pela positiva ou negativa?
– Ambas. – caminha para a sala.
– Quem estava na igreja?
Pousa o caderno no sofá e aproxima-se da janela.
– Selena. Bem que te disse que ia fugir, ela não é burra.
Phill encostasse ao aro da porta. Tal pai, tal filha, se Logan tinha inteligência, ela também teria.
Então deixava de ser uma novidade.
– Para onde?

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Sete Nomes

– Mandei-a para Linford. Bogges pode cuidar dela.


– Ele já tem o filho como dor de cabeça. – lambe os dedos.
– Querias que a deixasse onde?
– No inferno.
Não era mau pensado, mas aos aliados, dava-se sempre algo em troca. Tinha pena dela, pena de
também ter perdido a infância e acabar por ser usada como se fosse carne para canhão. Já tinha
sido corajosa em ir à igreja, o pai descobriria mais cedo ou mais tarde, os olhos estavam em todo
o lado. Esperava que apanhasse o comboio e fosse rumo a Linford, começasse do zero e
escondesse a verdadeira identidade. Seria capaz disso? Dificilmente, o passado chega quando
menos se espera.
Vira o rosto para a porta, alguém batia com força.
– É o teu pai?
– Não, ele ia ter reunião. – enche a boca e depois arregala os olhos – Um intruso.
Assente. Levanta a almofada do sofá e pega pistola. Phill pousa a panela… Enche mais a boca e
fecha as mãos que bateriam no primeiro rosto que aparecesse. Rachel abre a porta lentamente e
aponta a arma…
As mãos levantam e as malas caem ao chão.
– Hm… Ves… – Phill engasga-se.
– Yves. – baixa a arma.
– Boss… – entra e bate nas costas dele – O senhor não pode comer essas coisas.
Coloca uma mão no pilar de ferro e tose com força. Pipocas… Estavam com as horas contadas.
Engole o resto e olha para o aprendiz que partiu há meses. Yves. Tinha bigode, finalmente
cresceu-lhe a barba. Tingiu o cabelo de negro, como sempre, mas estava mais bem tratado. Não
hesita, abraça-o com força. Nem acreditava que ele voltou, que estava ali… As lágrimas de alegria
chegam aos olhos, sempre pensou que o tinha perdido também. Quando soube que abriu uma loja
de sabões, ficou feliz, mas nunca felicíssimo.
Rachel faz sinal aos homens que estavam nas escadas, era família. Olha para as malas… Em
nenhuma delas estava escrito o nome de Floweren. Pensa. Ou não quis ir, ou separaram-se. Nem
queria saber, estava com Yves entalado na garganta.
– És um homem. – Phill recua para ver melhor – E esse bigode? Pareces aqueles estúpidos da
Elegant Bank.
– Cresci boss.
– Boss… Boss… – abraça-o novamente – Que saudades tinha desse nome.
A porta bate com força e o pugilista cerra os dentes. Alto e para o baile. Não estavam no Box
Dead, estavam na casa do avô da Rachel que, por sinal, dava ordens. Vivia às custas dela, comia
a comida dela… Vira-se e caminha com sedução.
Negava, pelo olhar já sabia o que ia pedir e nem pensar.
– Por uma noite só.
– Não!
– Vá lá… – junta as mãos – Pelas alminhas.
– Nem pelo diabo. Yves fora daqui.
– Claro, vou para o Box Dead. Estou mortinho para voltar ao pequeno quarto com Abie. Ainda
se lembra, boss, aquela surra que levei? Era mesmo estúpido na época. Tipo, porque raio andei
com uma pirralha? Tinha razão, não valia nada.
Phill mete as mãos aos bolsos e baixa o rosto. Ele não sabia o que aconteceu, não sabia que a
irmã adotiva morreu ou que a casa foi abaixo. Vira o rosto para o aprendiz e… Nem sabia como
formular as palavras, as tristes novidades que trariam lágrimas.

393
Sete Nomes

– Falem como homens e no fim, rua. – Rachel pega na panela – Nem devias ter voltado, porque
não me esqueço daquela noite.
Jamais poderia, Yves arrependia-se dela todos os dias. Se soubesse o que ia acontecer, nunca
teria desafiado o mestre. Estremece o corpo ao sentir a porta bater com força. Aquela mulher
estava igual, não mudou nem o humor, nem a elegância. Vinte anos, já podia conquistá-la.
– É aqui que ela vive? Fez bem tirá-la de casa, estava a dar-me uns nervos vê-la por lá… Vamos,
quero mostrar-lhe o que trouxe de Edimburgo… – vai para a porta.
As pernas não se movem para dar os desejados passos. O aprendiz olha para trás e dá conta que
permanecia no lugar.
– Não vem, boss? – faz sinal com as mãos.
– Não posso.
– Vá lá, aquela mulher já o controlou por demais. Eu sei que é boa, mas o Box Dead é a nossa
casa. Abie está há nossa espera, deve ter feito aquela sopa de batata que é um mimo. Tenho tantas
novidades a contar que nem sei por onde começar.
As mãos vão para trás da cabeça, dá passos largos no chão de madeira e contém as lágrimas. Que
sonho era esse que queria viver? Todos os dias imaginava a empregada, lá, na cozinha, a lavar
algo como sempre. Queria… Queria chegar ao Box Dead e vê-la, dizer que viveu um pesadelo
tremendo e que jamais voltaria a virar as costas à família de verdade. Mas não dava para acordar
do nada e levantar da cama, entrou no pesadelo que lhe custou uma vida.
– Está zangado comigo, não está? – Yves conclui – Não devia tê-lo desafiado, dei ouvidos àquela
mulher… – fecha as mãos – Livrei-me dela, virou uma slut mal colocou lá os pés. Expulsei-a do
quarto alugado e tive sorte do dono vender sabões, contratou-me. Peço perdão pelo que fiz, estava
cego de amor e iludido em relação à vida. Se quiser, eu posso dormir na casa de banho. Ou no
alpendre.
Nega ao se encostar ao sofá.
– Foste um homem, fizeste-me frente como eu fiz ao meu mestre anos antes. Não te odeio, jamais.
– Então não entendo. Abie fez algo ruim? Perdoa-a, ela por vezes lê muito e tenta fazer igual.
Mas é boa rapariga.
Respira fundo e coloca o punho fechado ao pé da boca.
– Tu não sabes mesmo o que aconteceu, pois não?
– O que aconteceu? Vendeu o Box Dead?! Nem acredito que fez isso! Não acredito! – grita.
As lágrimas descem o rosto. Às vezes também preferia isso, mas não. Desencosta a abraça-o com
força. Agradecia o facto de ele ainda estar em março e relembrar os problemas que o faziam
dormir tranquilamente.
– Boss, estou preocupado.
– Ainda te lembras da cor do vestido dela?
– Qual? – sorri ao sair dos braços dele.
– Aquele que usava nos bailes.
– Rosa. Abie adora aquele vestido, disse que quando estivesse a morrer, usá-lo-ia… – a felicidade
acaba subitamente.
Coloca a mão no ombro dele e assente a chorar.
– Não, é mentira. – Yves sente as lágrimas.
– Eu bem queria que fosse.
– Não. Não, não, não… – pede ao se agarrar à túnica dele e desatar a chorar.
Perde as forças, os joelhos colidem e grita bem alto o que sentia. Mentira, pedia para ouvir que
era mentira. Pedia com a voz rouca isso. Phill agarra-o bem nos braços, o seu maior receio do
retorno estava a acontecer, ter que contar ao segundo filho que perdeu a irmã. Yves adorava Abie,
cresceram juntos, dormiam no mesmo quarto e partilhavam os mesmos segredos. Quando Phill

394
Sete Nomes

berrava, era ela que se colocava à frente e pedia calma. Quando não tinha dinheiro para algo, ela
dava a bolsinha dourada. Nunca o pedia de volta e dizia que a família não precisava dessa coisa
de ricos.
Não, grita isso nos braços do mestre. Pai, como se fosse seu pai e que precisava de ouvir. Tirou
ambos da rua, teve sempre paciência para cuidar dos dois selvagens abandonados.
– Morreu de pneumonia nos meus braços. Chorei durante dias e dias, não conseguia dormir, nem
comer… – fala em soluços – Implorei que me dessem a velha vida de volta, queria ambos nos
meus braços outra vez.
– Abie não. – abana a cabeça com o rosto vermelhos dos gritos.
– Ela está em paz. – passa a manga pela face dele – Ela está no céu… Merece o paraíso por tudo
o que nos fez… – a voz de choro tentava parecer calma – Está num local bonito, calmo e longe
do inferno londrino.
– Por que levou-a a ela? Porquê que Deus não me escolheu?
– Sofreríamos igual.
– Mas Abie não merecia, eu sim. Ela nunca esteve contra si, ela… Ela… – desata a chorar outra
vez.
– Ela era a tua irmã, minha filha. Nunca quis que fosse embora, chorou nos meus braços quando
partiste. Está no céu, está lá.
Assente com uma enorme tristeza no olhar.
– Eu e Rachel… Estamos a cumprir a sua última vontade.
– Qual? – os soluços aumentam.
– Estamos juntos como ela tanto queria. Não sabes, mas houve uma noite em que ela fez um baile
para nós. Rachel foi embora, eu expulsei-a… Abie ficou muito triste e desiludida. Acho que…
Está em paz em saber que nos uniu. Não achas?
Nega ao se aninhar o peito dele, não sabia nada no momento em que estava destruído por dentro.
O coração partiu-se em mil pedacinhos pequenos.
– Além de a perdermos, o Box Dead foi mandado a baixo.
– Não! Não, não, não… – bate no peito.
– Sim. – agarra-o bem – Queriam matar Rachel e explodiram com a nossa casa. Fiquei sem chão
nesse dia, queria que o mundo caísse sobre mim e acabasse com a minha vida de uma vez.
– Odeio-a… Odeio-a!
– Rachel não tem culpa, ela só tenta vingar o passado que perdeu.
– E nós? – levanta o rosto – Olha o que ela nos tirou?! – aponta para a porta – Desde que chegou
que a nossa vida virou um atormento. Se nunca a tivesse levado ao Box Dead, estaríamos todos
lá, vivos, bem, a comer sopa com pão!
– Yves…
– Matou Abie, matou-a no dia em que colocou aquela mulher lá. Matou-a! – levanta do chão –
Matou-a!
– Yves, isso não é verdade…
– Perdemos a nossa casa, perdemos tudo por causa daquela maldição humana!
Nega ao limpar o rosto, o destino é que era cruel na hora de condenar os inocentes. Ninguém
tinha culpa da morte inocente de Abie. Até havia um culpado, mas era melhor nem Yves saber,
ou perderia a cabeça.
– Nunca deverias ter colocados os pés em Londres… – caminha para a porta do quarto.
Phill é obrigado a levantar e agarrar no aprendiz pelo tronco.
– Deixe-me bater-lhe… – tenta libertar-se – Maldita! Odeio-te!
– Rachel não tem culpa de nada.
– Odeio-te! Tu é que devias de morrer, não ela! Assassina! Assassina!

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Sete Nomes

Tapa a boca dele, custava fazer-lhe aquilo, mas não tinha alternativa.
– Controla-te Yves, por amor de Deus, controla-te.
Cai a chorar no chão. Não conseguia descrever a dor que sentia no peito, a vontade de bater sem
parar contra algo duro, ver o sangue pingar dos dedos e gritar bem alto. Perdeu tudo, perdeu a
família e a casa. Nunca pensou um dia ver o Box Dead destruído, ou Abie enterrada. Ponderou,
quando apanhou o comboio, que reveria os rostos que sentia falta. Levava na mala prendas em
forma de compensar a estupidez que fez. Estava bem em Edimburgo, tinha um bom salário e
estava a dar largos passos no comércio. Mas, pelas saudades dolorosas, voltou. O que encontrou?
Nada, nem casa, nem família. Só o mestre, e isso não chegava.
– Não estás pior que eu. – Phill comenta – Eu eduquei-vos, criei como meus filhos. Fiquei
destroçado quando partiste, dilacerado quando Abie morreu, morri no dia em que Box Dead virou
um monte de entulho. Mas não posso parar, não quero recomeçar do zero… Eu sei que ela está
num lugar melhor, sei que está feliz por ver que consegui ultrapassar a dor.
Yves não conseguia controlar o choro. Phill senta no chão e abraça-o novamente.
– Era a ela que ia deixar o que consegui nos combates. Foi com ela para a tumba, cada moeda que
ganhei a vender tudo para lhe pagar o funeral. Todos os dias ouço a sua doce voz a chamar-me.
Ainda a ouves? “Boss… É de manhã!”
O aprendiz conseguia ouvi-la, os olhos fechados viam-na ao pé das escadas a gritar para o
segundo andar. Boss, wake up! E ele não acordava, teimoso como sempre, ficava mais uns
minutos na cama. Partia o presunto sobre a mesa, metade para a boca, outra metade para o prato.
Retirava a água quente do pote e corria escada acima para encher a banheira. Ainda tinha tempo
para varrer a entrada do Box, as pessoas não limpavam os pés no tapete. E quando terminava as
tarefas, sentava à lareira e lia.
– Não nos devemos revoltar, sempre que estávamos de cabeça quente ela pedia para ter calma,
sacudir as mãos e repensar. Não sou feliz como antes, mas… Sigo em frente. Não dá para cozer
o buraco que está no coração, não dá para dizer que não aconteceu. Temos que relembrar, fechar
os olhos de vez em quando e chamá-la.
– Desculpa boss. – fala mais calmo.
Esfrega o braço dele, sempre o mesmo menino que queria conquistar o mundo com as mãos de
ferro. Beija a nuca e repousa a cabeça. Que saudades de ser pai, patrão, dono de uma arena,
devedor de contas e irresponsável.
– Promete-me que não vais fazer nada a Rachel. Ela também sofreu com a morte dela e ainda se
culpa de não ter lá estado quando morreu.
– Não gosto dela.
– Vais contra as leis do meu coração?
– Boss, porque decidiu amá-la?
Não podia responder, os sentimentos nascem com os dias, deixam de ser rotina, passa a haver
uma partilha mútua, uma resposta simples e um começo de sensações fortes. Deixou de procurar
o que o alimentava, enfrentou a tempestade e abriu a porta do quarto para ela entrar. Entregou-se,
deixou-se ir na velha cantiga e apaixonou-se no meio da guerra. Amava Rachel, queria viver com
ela, casar, ter filhos… Não se imaginava com outra mulher, não conseguiria tocar outro corpo.
Cada minuto a seu lado significava risco, um segundo de felicidade, era eterno. O relógio de prata
parou, mas ela não e isso, é o que mais admirava. A força de vontade em fazer justiça, os passos
dados na estrada por identificar e a cabeça erguida.
– Quando um dia amares de verdade, vais ver que não podes arrancar o coração do peito e pedir
para sobreviver.
Levanta o rosto e limpa os olhos.
– É mesmo sério isso?

396
Sete Nomes

Assente com as mãos colocadas nos ombros.


– Respeitas a minha escolha?
As narinas puxam os moncos que escorriam. Assente, sabia que Abie adorava-os ver juntos. Dizia
que o boss era mais meigo com uma mulher que amava por perto. Por ela, ia fazer o terrível
sacrifício.
– Obrigado Yves. – abraça-o.
– Posso ficar cá?
Pela vontade da dona, pontapé no rabo e porta fora. Rachel era mais rancorosa que ele. Yves
errou, como todas as pessoas erram a pensar que fazem o certo. Levanta o rosto, palavras chaves
para abrir a porta.
– Fica.
– E ela? – limpa o nariz à manga.
– Ela… – levanta do chão – Ela vai ter que aceitar. Dormes com Jason.
– Quem é Jason? – fica confuso.
– O meu sogro arrojado. Fica o tempo que for preciso. Minha casa, tua casa. – abre os braços.
O aprendiz olha em volta, nem deu conta quando entrou. Grande, muito espaçosa e com enormes
janelas viradas para Londres. Ergue e admira a madeira pintada de branco, cozinha estranha com
um fogão de lenha, um sofá que não era londrino. Coloca a mão sobre a almofada. Fofo.
– Quem decorou? – a voz um pouco rouca pergunta.
– Se fosse eu… Colocava aqui uma mesa grande. – Phill simula com as mãos – Ali uma lareira.
Nesses sofás, trocava por aqueles com bordas em talha dourada. Tapetes de pelo branco de urso,
candelabros em cristal e ali… – vai para o lado da porta da cozinha – Um enorme armário com
louça da China. No meu quarto, uma cama com colchão de penas, lençóis de seda e cobertas de
cetim. Madeira esculpida e retocada a ouro. Um enorme guarda roupa com três portas e um
espelho grande para ver o meu corpo. Banheira em prata e torneiras a ouro. A cozinha… Tanto
faz.
Yves ri, sentia falta da mania das grandezas.
– Mas, o dono desta torre é Jason e ele não tem gosto nenhum. O sofá é reles.
– E porque não decora?
– Bem. – cruza os braços – Digamos que não ganho dinheiro para ser o chefe da casa. Nem sou o
único a vestir calças.
– Mas é um pugilista. Faça uns combates e aposte alto, como antes.
Os dedos passam pelo cabelo, antes não tinha uma mulher que amava, inimigos capazes de matar
e uma amiga que usava uma coroa. Por outras palavras, o ninguém era alguém bem importante.
– Queres comer?
– Estou esfomeado. – coloca a mão sobre a barriga – Comi um pão no comboio, mas não sabia
nada bem.
– Que comboio vieste? – coça o queixo aparado.
– Hm… Thomas. Que nome estúpido para um comboio.
O olhar fica sério, o que acabou de dizer? Agarra no pescoço dele, baixa o tronco e esfrega a
cabeça com o punho.
– Boss! – abana os braços.
– Volta a dizer que o nome é estúpido e faço-te limpar as escadas da torre!
– Qual é o problema?
– Eu batizei aquela locomotiva. A rainha gostou do nome.
– Desculpe, não sabia. As pessoas todas riram do nome lá na estação. Um até disse que a rainha
estava mesmo velha para batizar.
Esfrega com mais força.

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Sete Nomes

– Está bem, é o nome mais belo que alguma vez deu.


Larga o pescoço dele e sorri. Yves passa a mão pela cabeça e abre a boca ao sentir a dor.
– Como é bom ter-te de volta, aprendiz.
– Se soubesse que ia voltar a bater, nem tinha vindo.
Os olhos arregalam e a mão fechasse.
– Palavras erradas. – desata a correr.
Phill passa por cima do sofá e vai atrás dele. Voltou para atazanar? Rachel abre a porta e sorri ao
vê-los a brincar. Então, um calor bom chega à barriga, um certo alívio por devolver a ele uma das
alegrias de viver. Yves era bem-vindo, não ia julgar o rapaz pelo que fez. Enquanto estivesse por
perto, o pugilista afastava a dor. E não há melhor remédio que um sorriso no rosto.

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Sete Nomes

Capítulo 57
Ovos com maionese, a novidade fez o aprendiz querer vomitar. Mas lá comeu a comida
americana que não fazia sentido. O advogado segurou no queixo dele e revistou o rosto jovem.
Mais um… Os convidados aumentavam e a comida desaparecia. Teve que dormir com ele na
cama. No dia seguinte, comprou um colchão para o jovem pugilista, não queria um homem a seu
lado, era imoral. William torceu o nariz ao ver que o delinquente voltou. Mas, se era filho adotivo
do filho, então era seu neto adotivo e… O príncipe não sabia ser avô. Pediu uns conselhos a Jason
e a resposta não foi das melhores. Be father again! Se nunca foi um, seria agora, outra vez?
Segura nos vestidos que eram lançados aos braços. Uma loja feminina com dois homens? As
mulheres estavam escandalizadas, a impudicícia chegava até ao pronto a vestir. A dona, uma
senhora alta, com cabelos encaracolados e olhos pretos, lá deixou o pugilista entrar, só porque era
o amigo da rainha. E, amigo da monarca, fazia dela sua amiga também.
O que estava a fazer? Phill ainda se perguntava se tinha ali o que procurava. Um vestido bonito
para oferecer a Rachel. Ia haver serão no teatro e, como aquela mulher não tinha paciência para a
moda, ele ofereceu-se.
Pega numa saia negra e com volume.
– Achas que isto combina com aquela túnica plumada dela? – ajusta a saia à anca.
– Não sei nada sobre o assunto, boss.
Moda não era complicado, tudo se tratava de uma questão de concordância. Talvez a saia fosse
má ideia, Rachel dizia que só as americanas é que juntavam peças separadas. As britânicas
preferiam vestidos com gola alta, quanto mais parecido ao da rainha, mais valor tinha.
Phill repara no olhar da dona que, abanava o leque contra o rosto. Baixa o rosto, não, nem por
sombras se interessava por roupa feminina.
– Sabes que mais… – pousa a saia – Vamos embora, Rachel que trate disto.
– Onde pouso os vestidos, boss? – Yves pergunta.
– Aí mesmo. Pagamos o salário dela, então que a dona arrume. – coloca a cartola e faz sinal com
a cabeça.
O aprendiz larga os braços, os vestidos caem no chão e ficam amontoados. Segue o patrão de
queixo erguido, parecia confiante de que os nobres tinham poder. Teriam, dependia muito das
zonas que escolhia frequentar.
– Um momento, Sir Smith. – a mulher chama.
O pé fica ligeiramente no ar. O olhar vira-se para o lado e o suspiro sai. Pois, nem todos
conheciam o novo príncipe de Londres. Ou herói.
– Onde pensa que vai, Sir? Desarrumou a minha loja. – fecha o leque.
– Yves, diz que o prince Orange não está satisfeito. – murmura para o lado.
O aprendiz pergunta a gaguejar se tinha que ser ele a falar. No violento assentir, retira a boina da
cabeça, mete-a por entre as mãos e caminha de rosto baixo para o balcão da mulher alta. Engole
novamente a saliva na boca e tose ligeiramente.
– Lady, vossa alteza não está satisfeita com o serviço.
– Desculpe? – baixa o tronco – Não entendi. Fale mais alto.
Yves ergue um pouco a cabeça.
– Lady, vossa alteza não está satisfeita com o serviço.
Os olhos negros miram o cliente que conhecia muito bem. Abre o leque com violência e abana
com tanta força que, faria um furacão atrás de si. Da realeza? Sai detrás do balcão, tenta intimidar
com o olhar severo. Phill mantém a posse, mãos atrás das costas, cartola alta na cabeça, casaco
negro meio aberto, colete cinzento bem justo e túnica com lenço a descair pelo pescoço. Um

399
Sete Nomes

autêntico príncipe da corte vitoriana. Como o pai diria, um homem por completo a representar
uma grande casa.
– Com que então, o Smith é da realeza? Quer enganar quem?
A mão chama o aprendiz e murmura algo ao ouvido. Yves arregala os olhos, não ia transmitir o
que disse. Empurra-o para o centro do tapete redondo e faz sinal para falar.
– Lady, trata-se de Phillipe de Orange, filho de William Stathouder, príncipe de Viena. – tose
ligeiramente – Peço que fale com estima.
Phill ergue bem o rosto, respeito. As demais mulheres fazem vénias, não sabiam que se tratava
de um príncipe que visitava Londres.
– Esse ladrão quer enganar quem? Andava com a minha falecida irmã na cama e agora chega aqui
a dizer que é príncipe?! Ainda me deve o vestido que lhe comprou!
A irmã de Magaritta… Cerra os dentes e fecha os olhos com força, ela bem que contou que tinha
uma. Como se ia lembrar dela? Aos anos que não a via, nem sabia que estava à frente da loja de
roupa francesa. Aproxima-se e afasta o aprendiz embaraçado.
– Perdona me, Francesca.
Leva uma estalada no rosto. O som ecoa pela loja, as mulheres até colocam a mão na bochecha
e formulam as expressões mais horrendas. Para não transmitirem o desrespeito às filhas, porque
os homens não podiam levar na cara, pegam nas mãos e arrastam para fora da loja. Onde já se viu
o chefe de família ser desrespeitado pela esposa em público? Não, elas deviam de ser submissas
e, antes que outros costumes alterassem aquele, o melhor era preservar as mentes indefessas para
não criarem ideias absurdas.
O leque volta abrir e o olhar severo parecia dar a resposta.
– Como vais? Não nos vemos desde o funeral…
– Desde que a enterraste lá no cemitério, pezzo di merda.
Bem, Francesca nunca gostou lá muito do caso da irmã com o falido pugilista. Ao principio, até
acreditou no homem bem apresentável, musculado e de falinhas mansas. Mas depois, disse que
ele seria a sua ruína, devia a todas as ruas de Londres, devia o que comia e vestia. De facto, o que
pressentiu aconteceu, a irmã foi morta por causa de uma dívida por pagar. Culpa? Aquele pugilista
que passado um ano, trocou-a por outra mulher, fazia-a querer bater-lhe até pingar sangue. Phill
nem ajudou a pagar o funeral, atirou as culpas para outra pessoa e seguiu com a vida.
– Já vai há algum tempo…
– Otto anne. Nem sei como ainda dormes com a consciência tranquila, enterraste mais mulheres
após ela. Devias pedir perdão pelos teus pecados!
– Peço todos os dias. Amava Margaritta. Juro.
– Claro, notava-se no olhar. Amava-te tanto que morreu no teu lugar.
– Um dos problemas do amor, alguém é sacrificado. Como Romeu e Giulieta… Ela morreu e eu
sobrevivi. – sorri um pouco.
Bate-lhe com o leque no braço, como se atrevia a brincar com o que aconteceu? Morreu uma
pessoa inocente, sem culpa das dívidas que aquele homem fazia. Nem devia de invocar a peça de
teatro de Shakespeare, o trágico desfecho marcava as gerações que continuavam a invocar a
fatalidade do amor.
– Faço tripas coração para sustentar a minha nipote.
– Foste buscar a tua sobrinha ao orfanato?
– Chiaro. Esperavas que lá a deixasse?
– É filha acidentada do teu tio… Pensei que a odiavam.
– Tenho mais ódio de ti do que dela! – berra.
Yves tapa os ouvidos com os dedos, os italianos berravam assim tanto? Nem sabia como o mestre
aguentava.

400
Sete Nomes

– Não falemos do passado que passou. Que Magaritta tenha encontrado o céu. – benzesse.
– Perché lei hai trovato inferno con te! – benzesse – Agora, vai arrumar o que desarrumaste que
a minha loja não é a tua arena empilhada lá na rua Stª Martha.
Nega ao ajeitar o casaco, como homem importante da sociedade, não se curvava para limpar o
que fez.
– Não. Sou um nobre, Francesca. Amici della regina, capisci?
– Queres ver o amigo da rainha na tua cara? – abre a mão – Vai já limpar! – aponta – Allora!
Suspira, quando a coroa era outra, o povo não se curvava. Phill faz sinal para Yves ir limpar. Ele
nega, voltou para passar férias, não trabalhar. O mestre arregala os olhos e o aprendiz lá arregaça
as mangas para ir arrumar a confusão. Como sempre… Diria ele mais tarde. Virando a cabeça, o
pugilista revela um enorme sorriso, tentava fazer paz no meio do campo de batalha.
– Tens um commesso?
– O Yves? Meu empregado?
Assente, foi clara demais a falar.
– Não, depende dos dias. Aos domingos é livre. Como príncipe, nomeie-o meu pajem.
– Príncipe? – ri – Sì.
– Não ouviste o meu nome? Phillipe de Orange, príncipe das Netherlands.
O leque aproxima-se aos lábios vermelhos, isso explicava o reles fato negro feito à medida.
– Vero… O que vieste aqui fazer? – cruza os braços.
– Comprar um vestido para a minha prometida.
– Principessa?
– Não, uma mulher comum com um grande coração.
– Mais uma condenada. – murmura.
– Boston condenada? Em sonhos, mia cara. Ela é diferente das outras, é como se diz em Itália…
Bouna Signoria. – junta os dedos da mão e abana-os no ar.
Que piada, Phill nunca lá esteve para saber como era ser italiano de sangue. Nem sabia como
aprendeu aquela língua, poucos eram os ingleses que atinavam com o sotaque. Mas, segundo os
rumores, William de Orange teve um caso com a Duquesa de Cavour, nascendo um bastardo. O
problema é que ninguém sabia dela ou do filho. Se se tratava de Phill, então sim, tinha o direito
de saber a outra metade da raiz, mesmo envergonhando uma pátria dividida em condados. Enfim,
uns nasciam para usar tiara de ouro na cabeça.
Yves tenta dobrar os vestidos, mas não sabia como, eram grandes demais para dar duas dobras e
colocar sobre o armário. Difícil resolução, coça a cabeça e tenta pensar como arrumaria aquilo
sem perder muito tempo. A dona suspira com violência, nomeou um pajem bem estúpido. Então
não dava conta que aquilo não se dobrava?
– Bambino, anda cá.
O aprendiz vira o rosto e caminha para a mulher.
– Quero que ambos saíam daqui antes que me dê algo.
– Pensei que querias que ele arrumasse aquilo.
– No. Vorrei che voi apressate a andare per la...
Desatam a correr para a porta, nem olham para trás, os gritos dela davam para desmoronar o
império inglês.
– E se voltam à minha loja, eu corto-vos a cabeça! – grita na entrada.
Ambos seguram o que tinham na cabeça ao acenarem com a mão. Em resposta, levam com o
dedo do meio.
– Os italianos são todos assim, boss?
Vira o rosto ao encher os pulmões com ar. Boa pergunta, Magaritta tinha um certo temperamento,
mas nada se assemelhava a Francesca, pura italiana de Roma, pouco pavio e mais ação.

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Sete Nomes

– Nem sei como quero lá viver.


– Eu não quero de certeza. Já imaginou irmos na rua e levarmos com baldes de água no rosto?
– Quem te contou isso, Yves? – começa a andar.
– Um italiano que vivia em Edimburgo. Contou que as pessoas em Florença atiram baldes de água
a escaldar aos desertores. Pior, berram com eles até à entrada da cidade.
Para para pensar no assunto. Não se imaginava a ser corrido a berros de um país. Nunca pensou
que os italianos fossem assim tão malucos. Sabia que alguns tinham rigor, mas não extremo rigor.
Pareciam um povo tão pacífico… Se a mãe tinha um censo de independência aos dezasseis anos,
o que teriam os outros?
– Acho melhor pensar ir para a América.
– Boston?
– Isso. – volta a andar.
– E é melhor?
– Se Rachel é de lá, então deve ser.
– Ainda me confunde esse nome. Rachel… Prefiro Boston.
Sorri, o coitado nem sabia da metade, do que ela fazia e o que fez enquanto ainda era uma hóspede
do Box Dead.
– Melhor que Floweren.
– Nem me fale dessa… Não fale apenas. Só em saber que me usou para sair da casa do pai, tenho
até nojo de ter estado na mesma cama que a dela. Sabia que ela não era virgem?
Ri ao meter as mãos aos bolsos, desde o dia em que fizeram o maldito jantar. Viu-se logo no
rosto que na casa de Tech, ser virgem não era um bom sinal. Se não engravidou, foi pura sorte.
– Finalmente conheci uma boa menina. Pelos céus, é linda de morrer e pura.
– Como sabes? – cruza a rua.
– Falei com o pai dela. Chamasse Elisan e tem dezoito anos. Nunca estive tão apaixonado. –
suspira.
Phill estava admirado, quem o viu e quem o via. Antes, Yves não queria saber do amor, perder a
virgindade era uma prioridade, ter uma casa e casar tornou-se a primazia seguinte. Bastou virar
homem, ser expulso e mudar-se para longe para ganhar juízo e ver os erros que fez.
– Já lhe pediste a mão?
– Não, sou tímido demais. A última vez que a vi perto de mim, foi no outro lado da rua e mijei as
calças todas. Morri de vergonha.
Desata a rir, pobre coitado, o seu primeiro friozinho na barriga, suor na testa e urina nas calças.
Coloca o braço nos ombros dele, agora tinha todo o orgulho do mundo de ser pai daquele rapaz.
– Vou-te ensinar como se sussurra ao ouvido de uma mulher.
– Como fez com Rachel?
– Ela foi diferente… Um convite e um beijo prometido. Mas tu, como és mais novo, começas
pela base.
– Qual?
– Um simples convite para passear pela cidade.
Nega por completo, nunca conseguiu sequer acenar-lhe. Sempre que a rapariga de sardas e cabelo
louro aparecia à rua, Yves quase atirava-se para dentro da loja. E quando ia lá comprar sabões,
escondia-se atrás do balcão.
– Boss, não sou capaz.
– Tenho que ir lá falar com ela? Dizer que és um grande menino, um filho de ouro e prata…
– Não consigo falar-lhe. – Para – Gaguejo, tremo todo, o coração parece que quer sair pela boca.
Nunca senti isso. Nem sei se me aceita como pugilista ou comerciante.
Coloca a mão no ombro dele e baixa o rosto.

402
Sete Nomes

– Isso chamasse amor. Tu gostas dela e não sabes como começar essa história de amor. Tem que
ser com um simples… “Olá. Sou o Yves, o rapaz que fica todo atrapalhado quando olha nesse
olhar de princesa. Queres sair por aí? Peço ao teu pai permissão e explico que são as melhores
intenções do mundo. Se não podes, só de ouvir a tua voz já valeu apena cruzar a rua.” É simples.
A boca estava ligeiramente aberta, jamais pensaria num discurso desses. Nunca namoriscou ou
piscou o olho a alguma rapariga. Floweren atirou-se de cabeça sem ser no mínimo romântica.
Nem ela sabia o que era amar, pensava que manipular e marcar casamento já significava esse
sentimento. Como falaria com a tal menina doce se não pensava como homem?
– Sou um desastre. – lamenta de cabeça baixa.
– Yves, namorei três mulheres e das três não fiquei profundamente apaixonado ao ponto de
acordar todas as manhãs e beijar o rosto delicado que se deitou ao meu lado. Rachel é a mulher
da minha vida, apaixonei-me, entrei na vida dela, ganhei coragem, enfrentei os meus medos…
Aprendi a lutar e superar a dor. Valeu apena? Vale todos os dias. Quando entro em casa e vejo-a
lá, enfiada naquelas calças castanhas e túnica larga, sentada no sofá e com o sorriso de “Ainda
bem que chegaste…” Vale apena enfrentar um exército. Amo-a.
– Espero um dia amá-la como o senhor a ama.
– Vais amar, vou-te ensinar.
– Não treinarei mais boxe?
– Não, a tua luta é outra. Agora, tenta vencer-lhe o coração e pegar a recompensa sem verter
sangue ou ficar com um olho negro. – guia-o pela rua – Chega de corpo a corpo por dinheiro.
Agora, a tua luta chamasse vida, casa e família. Começa por aí e vais ver que não queres outra
coisa.
A vida dos adultos… Yves um dia sonhou entrar nela, mas quando entrou, deu conta que não
estava preparado. Preferia ser aprendiz, lutar na arena e ouvir aplausos, receber o dinheiro
contadinho ao final do mês quer tenha trabalhado, quer não. Uma casa farta sem fazer por isso e
treinar. Os adultos… Não eram felizes na sua luta, nada era simulado e não havia assim tantas
recompensas.
– Não sente falta do boxe?
Suspira. Não havia nada que não sentisse falta. Mas, a vida não anda para trás, aprendeu a seguir
em frente sem esperar pelos outros.
– Sinto. Continuo-o a lutar.
– Pela vida?
Ri ao retirar a boina e despentear o cabelo negro.
– Não. Luto até verter sangue, sem combates pagos, contra adversário mais fortes. Há muita coisa
que não sabes sobre a minha nova vida e é melhor não sabes.
– É mau?
Assente com algum pesar. Matar é sempre mau, quer seja inocente, quer não.
– Vamos comer qualquer coisa?
– Podemos ir àquela pastelaria fina com bolinhos de açúcar e cereja?
– Na conta do meu pai, não é? Porque continuo-o falido. Já viste, sou considerado rico, vivo com
ricos, sou filho de um rico e não tenho dinheiro em lado algum. Juro que tento entender, mas não
vale apena.
Yves dá de ombros, os pobres nunca tinham sorte a nada. Abraça-o, estava mortinho para voltar
a ter as manhãs mais agitadas e as conversas mais estranhas. É como se nunca tivesse ido embora,
apenas foi passar tempo ao final da rua e voltou a casa. Só faltava Abie para a sua felicidade ser
plena.
– Obrigado, pai.

403
Sete Nomes

O pugilista sente lágrimas nos olhos. Chamou-o de pai, após tantos anos a ouvir boss… Agarra-
o com força nos braços, desde os catorze anos, Yves jamais viu um pai nele, ou se viu, nunca teve
coragem de chamar por não distinguir o patrão do dever paternal. Antes tarde do que nunca, como
Jason dizia. E não existia felicidade maior que uma simples palavra vinda do coração.

O banco devia de abrir aos domingos, colocar no altar o proprietário e esperar que os devedores
entrem, façam a bênção e deixem na cesta o que deviam. Tal e qual a uma igreja, o deus dos
homens chamava-se dinheiro e as rezas resumiam-se a mãos juntas à boca, olhos em lágrima e
um pedido de adiamanto do juízo final. A bíblia era o código penal e os milagres… Só se fosse
amigo do amigo do amigo do dono do banco. Ou se a oferenda agradasse o santo da receção.
Quando não havia mais milagres, o diabo surgia do submundo, despejavam uma família e
vendiam os bens. O deus ficava feliz nas mãos do enviado divino.
Como não abria aos domingos e a igreja não reconhecia aquela instituição como local sagrado, o
banco apenas se podia de chamar de Casa do Roubo ou Desespero. Roubo, porque estavam ricos
a roubar os pobres. Desespero, porque todas as famílias perdiam a esperança quando viam um
banqueiro à porta. Nem a rainha tinha o direito de ordenar o encerramento de um banco, o dinheiro
tornava-os o deus da cidade.
Lá estavam os desesperados à porta de vidro, em fila, no lento passo de um a um. Até a porta dos
fundos na fila dos rejeitados era mais rápida. O padre dava o pão duro e mandava Deus ir com
eles. Ali, vai com calma que os milagres não acontecem.
Rachel ainda se lembrava no dia em que Phill se meteu naquela fila. Descobriu que tinha um
enorme nome, uma mãe duquesa e que as dívidas estavam saldadas. Quem diria, eles sabiam a
vida de todos, de quem eram filhos, quando se casaram, o que compraram… Nem os próprios
clientes sabiam assim tanto de si mesmos.
E eles? Saberiam a vida dela? Os dedos estalam sobre o balcão de madeira. A seu lado, Jason,
com uma peruca loura e roupas de mendigo. Olhos na cidade… Logan estava mortinho para saber
quem era a terceira pessoa. O advogado conseguia ser mais inteligente que o rival.
– MiLady… – pergunta ao procurar o estrato bancário dela.
– Rachel Clarel.
Faz sinal para entrar pela outra porta.
– Fale com o Sir Carmeron. Diga seu nome e faça seu levantamento.
Faz um gesto com a cabeça e dá o braço ao mendigo de bigode negro.
– Em Boston, bastavas entrar para te passarem o cheque. – comenta com o tronco curvado e mão
nas costas.
– Porque lá, tinha amigos. Aqui, nem que diga que sou futura esposa de um príncipe me atende
como deve ser. – abre a porta.
Sorri, os londrinos eram desconfiados. Queriam um papel assinado, documentos a provar cada
passo dado e criar mais dividas para afundar o nome escrito à máquina. Outra maneira de roubar,
diriam os americanos.
Caminham pelo corredor, procuram a porta com o tal nome. Carmeron… Soava a duque. Talvez
fosse aquele que geria o dinheiro e a despesa. Governanta da enorme casa de deus. Confusão, não
se tratava de uma igreja.
Param em frente à porta com o letreiro. Sir Carmeron. Rachel não tinha dúvidas, letras a ouro e
polidas com um lenço de seda.
Aproxima o ouvido e bate com o indicador fechado. Come in! Roda a maçaneta da porta e espreita
para o interior. Um enorme escritório, com estatuetas em mármore expostas. Quadros caros em
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Sete Nomes

molduras de ouro, um enorme tapete a pelo negro e no fundo, ao pé da parede, a secretária em


madeira da Índia. Armário branco cheio de pastas desorganizadas, medalhas, algumas fotografias
sobre a mesa e um intenso aroma a charuto.
Entra com passo lento, lia cada detalhe do escritório. Sofás verdes, mas sem esperança. Copos
em cristal, alguém sem dinheiro para uma dívida gorda. Candelabro com lâmpadas, parecia feio
um banco andar à luz da vela.
– MiLady, que honra recebê-la. – o homem levanta.
Honra seria pedir o nome e ler as dívidas. Acompanha os passos do homem magro. Setenta anos,
ex-contabilista do parlamento. Esquerdino, usava a direita para escrever e a letra horrível não era
lida pelos clientes. Três filhas casadas com homens dali, pessoas que andariam debaixo dos pés
do sogro. Divorciado, a esposa não aguentou a pobreza que vivia na mansão. Cabelo branco
escovado para trás. Peruca. Bigode sobre o lábio. Falso. Um dente de ouro no sorriso forçado.
Roubou a alguém morto.
O homem pega na mão com luvas de renda e beija.
– Tendes nome?
Ignorava os pobres, desde que entrou que aquele olhar só focava a elegância feminina. Não viu
o mendigo que retirou o chapéu da cabeça? Não, caridade era lá fora, ali, só pessoas de negócio
é que tinham direito a altar.
– Rachel Clarel.
Carmeron recua com as mãos atrás das costas. Surpresa, tratava-se de uma Clarel. O nome era
bem conhecido, talvez fosse amigo de alguém com o mesmo apelido. Ou conhecia a verdade
ausente.
– Sente-se… – faz um gesto de cortesia.
– E o meu amigo? Hubs também é filho de Deus.
O banqueiro olha para o mendigo que fedia a vinho vinagrado.
– Como está, Sir? – fala com algum desdém.
– Muito bem. – pega na mão dele e abana com velocidade – É uma honra estar aqui com vós, na
sua grande casa. Sabia que a minha caixa de bananas cabia aqui umas mil vezes?
– Curioso. – aproxima a mão ao pescoço e segura no tecido do lenço.
– É onde eu moro. Cabo lá, sabe Deus como eu cabo. – continua a abanar – Sabia que sou pai? A
minha gata teve sete pequenos gatinhos. Que amor de esposa.
Recua a mão e pega num lenço para limpar os dedos. Quem deixou aquele mendigo entrar?
Estava imundo, rosto cheio de borras de carvão, dentes negros, mãos cheias de terra, roupa
lamacenta e botas rotas. Fedia a vinho, estrume e vómito. Imundo. Aquelas pessoas deviam de
morrer na hora de pensar em sair à rua. Como viviam lá, já deviam de estar mortas.
– Porque trouxe o seu simpático… – olha para a mulher – Amigo, MiLady?
– Espero que não o tenha incomodado. Hubs é um amor de pessoa. Ajudou-me a sair da carruagem
e em troca, decidi dar-lhe algum dinheiro. O meu coração é grande demais para não sentir dó, não
acha? – sorri.
Mulheres daquele tipo casavam com homens que lhe punham rédeas e juízo. Coloca o braço no
ombro dela e caminha para a cadeira.
– Sem ofensa, mas estas pessoas são falsas. Já deu conta do estado dele? Deve ser doente. Vossa
Majestade pediu para não se falar com os mendigos ou deixar entrar em espaços públicos com
nobres, eles são um foco de doença e discórdia. Já reparou que tem uma gata como esposa? Que
homem se casa com um animal?
Olha para trás, se aquele indivíduo soubesse que aquele mendigo, aquele que batia na cabeça e
sorria, se tratava de Jason Clarel, duque de Cambridge e Liverpool, parente bastardo de George

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Sete Nomes

IV, desaparecido e com medalhas da rainha Vitoria ao peito… Jamais o olharia daquela maneira.
A aparência contava muito em Londres, mais que em Boston.
– Vim tratar de assuntos pendentes. – senta na cadeira – Sir, preciso levantar cem libras, setecentos
penny e quatrocentos xelins.
Carmeron senta na poltrona dourada e entrelaça os dedos sobre a mesa.
– A que propósito, MiLady?
– Sem ofensa, mas não lhe devo satisfações desse tipo. Tenho aqui o número da minha conta
americana… – abre a bolsa e pega no papel carimbado – É uma transferência de dólares para
libras. Como pode ler, poderei pedir qualquer dinheiro que é descontado em Boston.
O homem não pega no papel para ler. Não, parecia que o pedido nem sequer foi feito.
– Podia confirmar, Sir?
– MiLady Rachel, a sua conta foi cancelada em solo inglês. Pedido de seu pai, Sir Cristian Clarel.
– Desculpe?
– Repito. Seu pai, Sir Cristian Clarel, contou-me que a sua situação é lamentável. Uma mulher
que foge de casa não tem direito a sustento. Como tal, por ser seu pai e quem manda em vós, sua
conta foi encerrada em solo inglês, tal como as transferências vindas de Boston.
Aperta com força a bolsa. Logan cancelou-lhe as contas? Aquele assassino teve a coragem de
fazer o que um inspetor com ordem real deveria de fazer? Como conseguiria pagar as contas sem
dinheiro? Se Jason estivesse em Boston, mandaria os cheques que levantava ali. Nem precisava
de pedir o estrato da conta porque estava assinado, carimbado e com pedido de cambio para libras.
E eles não podiam negar por ser de outro país o pedido. Mas Rachel tinha uma conta dela ali, o
advogado mandou abrir quando fez quinze anos, vistos que era londrina com direitos e, se um dia
quisesse mudar-se para lá, levantava as duzentas libras deixadas.
Vira o rosto para trás. Jason baixa a face, se soubesse que aquilo ia acontecer, jamais teria
embarcado para Londres.
– O meu tutor… – olha o banqueiro – Sir Dylan… Tenho levantado cheques em seu nome. Poderia
fazer de conta que foi passado um cheque e levantar esse dinheiro?
– Lamento, seu pai proibiu qualquer transferência ou acesso à conta. Não devia de ter fugido de
casa.
– Sou uma americana com direitos! – levanta – Terei que ir ao consolado e pedir uma justificação
clara do que está a acontecer?!
– Acalme-se, MiLady. – pede.
– Estou calma, não se nota? Não fugi de casa, fui abandonada em Boston por aquele maldito pai
que agora quer que morra à fome! Como conseguiu a minha assinatura para fechar a conta? Com
que direito fez isso?!
– É o seu pai, tem total direito sobre si. Se for casada, essa questão mudasse no momento em que
chefe de família é outro.
– Casada, eu? Não, sou solteira e feliz por ser uma. É vergonhoso o que esta sociedade faz!
Mandarei aqui um advogado revogar o que fez. E se possível, demiti-lo!
– Não sei se consegue tanto.
– Acredite… – coloca as mãos sobre a mesa – Sou uma mulher capaz de qualquer coisa.
Carmeron aconchega o lenço ao pescoço e engole com dificuldades, aquele olhar ameaçador
parecia não estar para brincadeiras.
– Angellyne. – Jason tose para a mão após murmurar.
Claro, a mãe de Rachel tinha uma conta ali, Cristian abriu-lhe para guardar algum dinheiro para
a filha. Após a morte dele, Angellyne fez uma enorme transferência para uma conta londrina, a
sua herança caso a filha fosse encontrada e precisasse de emparo.

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Sete Nomes

– Levante esse rabo gordo e vá à conta de Angellyne Linford Clarel buscar quatrocentos dólares
dos mil que lá estão.
– Lady Angellyne Clarel? – fica surpreso.
– Não sabia que minha mãe tinha deixado aqui uma conta? Como está morta e sendo a única
herdeira no seu testamento, tenho o direito a ter acesso a esse dinheiro. Deve dar pouco mais que
duzentas libras e quarenta xelins. Vá!
O banqueiro respira fundo ao levantar e caminhar para a porta. Rachel senta na cadeira, conta
encerrada… Se não podia ter acesso aos dólares de Boston ou às duzentas libras ali deixadas,
como teria dinheiro para comer? Jamais pensou usar a conta da mãe, só em caso extremo é que
recorreria. Pelos vistos, estava mesmo no vermelho do estrato bancário.
Sente as mãos de Jason nos ombros.
– Se não matar Logan o quanto antes, jamais poderei rever o meu património, dinheiro que foi
gasto à toa e roubado da sua herança. Não me importo de ser pobre, temo é não conseguir arranjar
trabalho.
– Rachel, as damas não trabalham.
– Sim, em fábricas, ateliês… Não sei fazer nada, só beber e matar.
– Não vais chegar a esse extremo, não te esqueças que tenho dinheiro nas minhas poupanças em
Boston.
– Mas não se pode apresentar como é.
Isso não podia, se soubessem que aquele era Jason Clarel… Ia ser caçado dia e noite pelo rival.
– Phill não está pobre? Então, nós teremos dinheiro para comer, pelo menos isso.
– Ou começo a fazer dívidas. Logan vai pagar isto, não tinha direito algum de me encerrar a conta.
– Está a atacar-te… – levanta o rosto dela – Quer que tu fiques fraca. Pensa que vai afetar-te, mas
és mais forte que isto, não és?
De vez em quando, as facadas doíam mais do que o costume e não sabia até quando sobreviveria.
– Vá, um sorriso para o mendigo que sabe encenar bem o papel.
Agarra-se ao tronco dele. O que seria dela se o avô não estivesse por perto? Fecha os olhos ao
sentir os dedos na nuca. Logan tentava, fechava-lhe as portas todas na esperança de a encurralar.
Não ia conseguir, a sua astúcia superava a do assassino. Podia estragar-lhe a vida, deixá-la na
lama. O que não conseguiria era destruí-la, isso nem o homem mais poderoso do mundo
conseguiria.

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Sete Nomes

Capítulo 58
Como bom samaritano, fez uma carta à rainha. Pediu, com muito jeitinho, que a peça de teatro
fosse no palácio, na sala do trono, reservada aos mais próximos e com os convidados revistados.
Prenda de aniversário. Ps: Para seu bem e para não correr o risco de sofrer mais um atentado.
Claro que a monarca leu, rasgou de ponta a ponta e alertou o príncipe William que o seu filho
estava a ir longe demais nos pedidos. Uma coisa era ser amigo, outra era começar a dar ordens.
Quem disse que iria lá estar nessa noite? Reservava lugar, enganava os nobres que iam e no fim,
nem saía da cama para ver o recital. Velho truque que os reis faziam, eventos fantasmas e negócio
de bilheteira.
Phill suspirou de alívio em saber que não ia lá estar. No entanto… Se não ia, continuariam com
o plano de explodir com o teatro? Vira o pão sobre a grelha de ferro e coloca o pano ao ombro.
Não entendia os opositores, tramavam cada coisa que nem o diabo perceberia.
Vira a cabeça para a porta, Rachel não sorriu quando entrou em casa, nem quis falar muito sobre
o assunto delicado. Contas encerradas… Só tinha um estrato bancário. O banco fez tantos
levantamentos para pagar as dívidas que, deixou de ter lá dinheiro. Mal por mal, ficava pobre em
casa, não na rua.
Pega na colher com mel e lambe, a coitada não sabia o que era pegar no que se gostava, vender
numa loja e com esse dinheiro, comprar comida. Os pobres sabiam e já começavam a ignorar,
chamava-se rotina.
– Yves foi acompanhar o teu avô à missa em honra às vítimas de Edimburgo. Não quis, mas
puxei-lhe a orelha e disse que o avozinho não gostava de andar sozinho.
Rachel sabia, avisou-a que ia rezar pela falecida esposa.
– O jantar vai ser pão com carne e… Mel.
Vira o rosto, só isso?
– E vinho. – mete a colher à boca.
– Se não sabes cozinhar, pedias-me que fazia o comer.
– Ovos estranhos com arroz esquisito e maionese? Há dias que faço diarreia e acho que são os
comeres americanos.
– O teu estômago é que é feito de vidro. – entra na cozinha.
Nega com os beiços cheios de mel, as coisas que faziam é que não eram boas para a saúde.
Acompanha a agitação dela, a forma como pegava nas panelas de latão, procurava no armário a
carne que comprou no talho, a cebola na caixa, o azeite na garrafa de vidro… Deixa cair no chão
as colheres de pão, da prateleira, cai o saco de farinha, telintam os copos que tremem com a
violência das panelas a pousar… O corpo estremece quando as coisas voam para o fundo da
cozinha.
Cerra os dentes ao mergulhar a colher no mel e meter à boca, a mente dela estava igual às
caldeiras das locomotivas. Ou parava, ou rebentava na linha de ferro. Aproxima-se do corpo
encostado à bancada, retira da boca a colher de prata e beija-lhe os lábios.
– Pão com carne, mel e vinho. É uma boa sugestão, não achas?
Que remédio, estava sem paciência para a culinária. Sente o mel escorrer para os lábios. E depois,
Phill mordisca e passa a língua para saborear o doce. Rachel nega ao limpar a boca à túnica, não
queria jogos de sedução.
– Às vezes, és muito azeda. – pega no frasco de mel – Come algo com açúcar. – pede ao dar a
colher.
– Phill… O pão está a esturricar.
– Não, a tua mente é que vai explodir se não meteres água fria na caldeira.

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Sete Nomes

Pega no frasco e na colher.


– O pão! – berra.
O pugilista vira-se e vê o fumo que saía pela chapa do fogão. Vai lá, pega com as mãos e ressalta
ao se queimar. Retira o pano do ombro, sacode o pão que cai no chão. Suspira de alívio ao ver
que o fumo parava de sair. O problema é que deixou a côdea negra.
– Bem… Um pedaço de pão e duas bifanas com mel e vinho. Ainda bem que Jason vai jantar
fora.
Ainda bem mesmo, porque Rachel seria incapaz de planear o jantar. Mete o dedo no mel e lambe.
– Conta lá… Que vestido vais levar para o teatro?
– Estou a pensar em ficar por cá nessa noite.
– Por cá? – encosta-se e mete o dedo no frasco.
– Se Daniel vai enfrentar-me… Não estou pronta.
– Estou eu. – ergue a cabeça e abre a boca para os fios dourados caíam na língua.
– Phill, é a minha vingança, não a tua. Mataste Noah sem a minha autorização.
Nega ao meter o dedo na boca, ele já estava morto, só lhe deu um tiro para prevenir que acordasse.
– Mas devíamos ir.
– Melhor matá-lo na doca. Ali seria culpada. Quero ir ao Royal Sean amanhã.
– Como se vais ser reconhecida?
Ainda estava a pensar sobre o assunto. O navio estava lá aportado, mas não significava que Daniel
dormia no camarote ou sequer vivia lá quando pisava solo londrino. Se conseguisse pintar o
cabelo de outra cor e usar roupas mais largas… Talvez não fosse reconhecida por Daniel.
Dificilmente conseguiria. O cabelo era castanho quase negro, se fosse loura ou ruiva, daria para
tingir. Então, só poderia usar uma peruca. Mas como faria a trança ficar justa à nuca? Fica com o
dedo por entre os lábios, até se disfarçar era um problema.
– O que a rainha disse da carta?
– William levou um grande sermão. “Sir Orange está a aborrecer-me muito com os seus pedidos.
Salvou a minha vida e agora pensa que vai fazer o que quer no meu palácio. É bom que o eduque
bem, porque jamais aceitarei esse tipo de mendigo.” Bem… – mergulha o dedo – Faço uma boa
ação e recebo um não na cara. Sinceramente, nem sei porque lhe escrevi. Talvez não tenha
nenhuma veia poética.
Nem todos nasciam escritores. E se nasciam, raramente iam longe.
– Gostavas de ter? – Rachel fala com a colher na boca.
– Sim, escrever o romance chamado… Seven Names. Em homenagem a Rachel Clarel, a minha
best friend.
Ri e pousa o frasco no balcão.
– O que escreverias lá?
– Tudo, a tua história inteira na minha perspetiva. Não ia mentir em nenhum facto.
Abana a cabeça com ironia. Mentir… Não, só deveria de mudar muitas vírgulas, pontos…
Palavras… Talvez tudo e mais alguma coisa.
– Como ias começar o romance? – senta no balcão.
– Bem… – vira-se, abre-lhe as pernas e aproxima o rosto – “Once upon a time… Uma mulher
americana pisou o solo inglês na terrível madrugada de fevereiro. Um furacão abalava a cidade
quando esta avançou para a estalagem. Depois… Boum! Matou um homem de pala e perna de
pau.”
O riso percorre a cozinha, as mãos agarravam os braços dele e a alma aliviava o peso do dia
longo.
– “Em sete horas, já tinha morto dez pessoas. Sem alma, aquela mulher desceu as escadas para a
arena do Box Dead, onde viu um deus a lutar, um homem lindo de morrer, muito musculado,

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Sete Nomes

elegante… Lutava como Hércules em Roma e Posídeon na Espanha. Seu nome era Spectrum.
Então, a mulher estendeu-lhe a mão, e gritou! ‘Ó deus do meu Olimpo, salva-me deste inferno!’
Num beijo arrebatador, arrancou-lhe o coração por completo. ‘És minha, baby.’
– E depois? – abana a mão contra o rosto.
– “Em sete dias, como Deus fez a terra, matou esses sete nomes tatuados nas costas. E voaram…
Voaram em direção a Patagónia, tiveram nove filhos semideuses e viveram felizes para sempre.”
Fim. – fala com convicção – Achas que venderia esse livro?
Pelo riso e abanar da cabeça, nem valia apena começar a escrever.
– Vá lá Rachel, colabora. Não é um bom enredo? Não vicia? Fiquei viciado mal comecei a falar.
Nunca da vida aquele livro seria um sucesso em Londres. As pessoas queriam romances fortes,
com costumes que ensinavam e valorizavam o ideal inglês. Histórias como Orgulho e Preconceito,
pouco apreciado por uns, mas obra de eleição por outros. Livros com enredos míticos e épicos…
Nem eram escritos à máquina para paginar e vender.
Pelo esforço absurdo de a fazer rir, beija-lhe os lábios com carinho.
– Obrigado.
– Estavas a precisar. Quando mandaste as panelas para o fundo… Temi a minha vida.
– Achas que te mataria?
– Não duvido nem um pouco.
Sorri ao abraçar. Precisava dele, do absurdo que iluminava a vida. Se continuasse sozinha na
enorme cidade, àquela hora, estaria trancada no quarto, a murmurar, na tortura, palavras antigas
vindas dos pais. Ou beberia, longe de Boston poderia fazer qualquer coisa.
– Achas que Yves vai gostar de comer comida chique? Ele nunca esteve num restaurante.
Dá de ombros, o avô não costumava sentar num restaurante fino e pedir o mais caro. Preferia
comer em casa, beber um bom copo de vinho e estar com a esposa e neta. Os restaurantes
americanos não eram grande coisa, prometiam comida estrangeira e depois, comiam o mesmo
frango cozinho com batatas, mudava o nome, mas não a confeição. E pagavam um balúrdio pelo
nome inventado, mais nada.
– Jason vai pedir sopa de cenoura e frango com couve.
Phill faz uma careta, ir a um restaurante para comer isso? Então nem saía de casa, ficava mais
barato.
– Não gosta de outras coisas? Como… Camarão com… Batata doce e molho francês?
– Não, porque em Boston, comida a sério custa cem dólares. Além de que os ricos nem comem
no restaurante.
– Aqui, todos os dias os burgueses vestem a melhor roupa para ir jantar fora.
– Porque Londres vive de aparência, Boston vive cada um por si.
Nem discordava, os londrinos meteram na cabeça que ser melhor que o outro significava usar
roupas caras, viver numa mansão, ter uma carruagem brasonada e jantar em grandes restaurantes.
Esqueciam-se que o dinheiro saía, ficavam pobres e continuavam a ter a mesma rotina, porque
descer socialmente significava desvalorização e desmoralização.
– A carne… – corre para o forno do fogão.
Abrindo a porta, o fumo negro sai, intoxica o ar por completo e faz com que se tussa com força.
Rachel abre a janela para a nuvem irrespirável sair. O pugilista coloca sobre o fogão a carne negra,
queimada por completo e possivelmente dura. Bate o pano no chão, lá se foi o jantar arrojado.
– Ainda temos mel. – levanta o frasco.
Phill sorri, o jantar mais pobre que aquela torre poderia ter. Melhor que nada.
– Há nozes e… – abre o armário – E… Leite.
– Bem, é tarde para descer e comprar algo. Ficamos por aí. – caminha para a sala.
– Vou morrer de fome!

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Sete Nomes

– Vai ao castelo jantar e traz as sobras.


Faz um som de não ser uma má ideia. A mesa era tão grande e tão cheia de nobres que ninguém
daria conta da presença daquele homem. Só se começasse a comer feito um lobo.
– Welcome the slum.
Se ficassem sem dinheiro, nem mel, nem leite teriam para a dor que surgiria no estômago. Ainda
bem que havia algo a qual salivar.

Levanta o tronco ao sentir um som violento, é como se estivessem a assassinar alguém


violentamente. A respiração acelerada tenta recuperar o fôlego, parece que acabou de acordar de
um pesadelo. Parecia reviver a noite em que Louisiana perdeu a vida e a casa pegava fogo. Passa
a mão pelo rosto e respira fundo, o corpo tremulo sugava-lhe as forças. Não foi nada, tentava
enganar-se para suportar melhor o receio. Volta a deitar, passa o braço por cima do tronco de Phill
e aninha-se no calor ternurento. Teria sido um pesadelo? Possivelmente, às vezes nem sabia
distinguir realidade de um sonho.
– Rachel… Rachel…
Ergue um pouco o tronco para a porta e repara na luz que passava por debaixo da porta.
– Avô? – fica receosa.
A porta abre.
– Rápido, temos que sair daqui!
– O que aconteceu?
– Estão na rua. Querem matar-te pelo desaparecimento de Selena. – abre a janela – Temos que
saltar e correr o quanto antes.
Novamente em fuga… O medo aumentava, a ansiedade misturava-se e a mente não agia. Sempre
a fugir, desde que Logan soube que estava ali que a vida não se resumia a outra coisa. Ainda bem
que não retirou da mala as restantes coisas, temia voltar a ver aquilo acontecer.
– Anda! – Jason pede.
Fugir… Selena… Porque a ajudou? Aquela pirralha mimada conseguiu o que queria, colocar o
pai à caça da rival. Ali, a vingança chamava-se mágoa. Magoado de a filha não estar em casa,
cego de saber que partiu para longe. Ou, ela a matou e desapareceu com o corpo, havia essa
alternativa mais violenta. E para lavar as mãos sujas, jorrava sangue de alguém inocente.
Abana o corpo de Phill com força.
– Temos que fugir! – levanta da cama.
O pugilista boceja ao abrir os olhos.
– O quê? – pergunta sonolento.
– Fugir! – calça as botas e apertas os cordões – Estão na rua!
– Boss… – Yves surge à porta – Estamos a ser invadidos!
Phill levanta o tronco e olha para Rachel a meter a boneca na mala. Ouviu bem? Acordar para
fugir outra vez? Queriam matá-lo do coração.
– Porquê? – tenta entender.
– Selena deve ter sido apanhada a fugir… – veste o longo casaco – Ou Logan pensa que eu a
raptei e matei.
As mãos vão para o rosto. Não, outra vez não. Agora nem um mês conseguiam estar numa casa
ou dormir sossegado. Logan tinha que os invadir naquela noite? Não podia esperar pelo
amanhecer? Se fosse à luz dia, seriam presos, considerados culpados dos outros possíveis crimes.
Ao luar, matavam, estripavam e deixavam na rua porque ninguém viu. Péssima noite para matar,

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Sete Nomes

estava esfomeado e sem vontade de correr. Levanta, veste a túnica, pega no casaco azul de
cavaleiro real e mete os pés nas botas.
– Yves, vai buscar a tua mala.
– Não há tempo para malas, toca a ir para a janela. – Jason avisa ao entrar – Está um armário na
porta que não vai aguentar. Na rua… Lewison tenta empatá-los. Rachel, vai primeiro. – pede.
Aperta bem os botões do casaco, ata o laço ao cabelo e depois pega na mala. Olha para Phill
novamente, aquele olhar acabado de acordar e a se perguntar que mal fez a Deus para ser
amaldiçoado dessa maneira.
– Não demores, Phill. – pede ao passar a perna pelo parapeito.
Se tivesse uma mala como a dela, cheia de pertences, teria que parar o tempo para arrumar tudo.
Mas, prevenida como era ao ponto de não tirar o que ia voltar a arrumar, pedia pressa. Ainda bem
que as medalhas já iam lá dentro, ou teria que as meter ao bolso. E depois? Perdia-as e Victoria
reclamaria que aquele herói medalhado não tinha mérito. Vida de nobre… Até eles iam mal.
A mala voa para o outro telhado. Agarra-se ao parapeito e faz impulso para trás.
– Yves, vai. – Jason pede ao dar-lhe uma bolsa.
– O que tem, Sir? – pega.
– Os meus documentos, rapaz. Um dia, nunca vás longe sem eles. O dinheiro arranjasse, mas os
documentos nunca. Vai!
O aprendiz passa a alça pelo ombro e assente com a lição. O pobre coitado não tinha nada, partiu
do Box Dead com a roupa no corpo. Quando fizesse novamente os documentos, guardá-lo-ias
com a vida. Passa a perna pelo parapeito e salta pela janela.
– Vamos Phill. – Jason faz sinal.
Ir já? Nega, nem devia de obedecer. Olha para a porta, Logan tinha sempre a mania de deixar as
casas deles numa lástima. A hospedagem nunca mais os quis, a casa de Louisiana foi pelos ares…
Não era justo ser sempre ele a ser o mau da fita ou o terrorista. Baixa o olhar…
– Custaram muito os seus fatos?
O advogado fica estranho com a pergunta.
– Não, fui buscá-los à mansão de Liverpool. Porquê?
Teve uma maravilhosa ideia de génio. Deu à luz, como a rainha dizia. Como Thomas Edison
dizia, estava na hora de iluminar a escuridão. Faz sinal para o seguir.
– Não há tempo!
– Há sempre tempo para grandes motivos.
Suspira com violência, que homem mais chato. Não podia simplesmente saltar da janela e correr?
Não, só para irritar mais um pouco, contrariava como sempre. Caminha para a sala, abria e fechava
as mãos. Ai que nervos…
– Que grande motivo priva o filho bastardo de William a saltar? É preciso um escadote? –
pergunta ao acompanhar a agitação na cozinha.
Vira o rosto. A sério? Pousa a caixa na banca de madeira e abre a tampa. A luz da sua vida,
brandy e óleo de baleia. As pessoas não sabiam o perigo que era ter aquilo em casa, explodia tão
violentamente que se assemelhava a pólvora ou dinamite. Em grandes quantidades, deitava abaixo
uma casa, como aconteceu na de Louisiana, ela vendia aquilo na cavalariça. Jason cruza os braços
e pensa um pouco. Com que então, queria levar aquilo para colocar na porta e mandar pelos ares
os invasores… Louco, louquinho por completo. Mas um génio, porque o fogo iria empatar a
perseguição.
Descruza os braços e pega na outra caixa. Phill sorri, para bom entendedor, meia palavra basta.
– O sofá vai para ali… – pousa as caixas no chão da sala.
– Custou dez libras. – reclama.
– Quer pagar o funeral da sua neta?

412
Sete Nomes

As garrafas tilintam com a violência que foi pousá-las. Estava a esticar muito a corda para comer
no outro lameiro. Se Rachel morresse, Jason matava Logan, morria a tentar pelo menos vingar o
nome da neta. E depois, matava o pugilista por o ter feito perder a paciência.
– Vai lá buscar os fatos! – comenta ao arrastar o sofá.
Invade o quarto, arranca das cruzetas os casacos negros vindos de Itália. Depois, espalha-os pelo
chão até à janela. Jason começa a regar o tecido que seria o rastilho para as caixas por baixo do
sofá, mesmo contra o armário. Ideia de génio, tinha de admitir.
Porque demoravam tanto? Rachel colocava-se em bicos de pé, tentava encontrar a chama da vela
para entende o que estava a acontecer. Será que discutiam? Estavam a lutar para se defender?
Ou… O dedo sobe até aos lábios e os dentes trincam a unha. Se demoravam, é porque algo os
empatava de fugirem. Dá um passo em frente e Yves agarra no braço dela.
– Larga-me! – pede.
– Para seu bem. – puxa-a.
Estava louco, não sabia que uma mulher desesperada era capaz de tudo. Tenta não andar, puxa o
corpo para o lado contrário. Não queria saber de si, queria saber deles, do avô, do homem que
amava… Olha para a janela ao ceder o andar, se não os ajudasse, perdia-os também. Mete o pé
por entre o andar dele, puxa a perna para o lado e faz o aprendiz tropeçar e cair.
– Nada contra ti, mas certas coisas não se deixam para trás. – corre para a parede.
– Volte aqui! – pede ao colocar a mão sobre o joelho.
Desistir de algo era coisa de Rachel de Boston, não de Rachel de Londres. Corre para ganhar
balanço e, colocando o pé no cano da água, ganha impulso para subir. Jamais escalou algo, era
perita em saltar da janela e fugir. Mete os dedos nas fendas e cerra os dentes para não cair, não ia
desistir deles.
Lavar a roupa com óleo de baleia e brandy… Que luxo tão burguês, nem eles faziam isso por ser
muito caro e perigoso, além de o óleo ter um horrível aroma. Bebe um pouco da garrafa e olha
para a barulheira que surgia à porta. Queriam invadir a todo o custo, assassina-los enquanto
dormiam… Naquele caso, com o descuidado, faziam é os condenados fugirem o quanto antes.
Nem para matar silenciosamente serviam. Se fosse Logan, escolhia bem os assassinos, é que era
cada um pior que o outro. Nem ele próprio sabia fazer as coisas.
– Vamos. – Jason grita ao se aproximar da janela e atirar a garrafa ao chão.
Bebe mais um pouco, atira o resto contra a porta e caminha para perto do advogado. Hora de
acender a lâmpada mágica…
– Rachel! – Yves grita bem alto.
O rosto vira-se para a janela, via Yves de braços no ar a fazer sinal para algo. Apoia-se no
parapeito e espreita para baixo. Que mulher decidida a não baixar os braços, tentava escalar a
torre.
– A sua neta é mesmo um anjo da morte. – comenta sorridente.
Jason espreita e tapa a boca.
– Diz algo ou vai morrer debaixo da explosão.
– Vai para perto dele, Rachel! – pede ao apontar – Não subas!
A cabeça ergue-se e nota que eles ainda estavam vivos, juntos, à janela. Bate na pedra, não estava
a entender a demora, o que raio planeavam sem ajuda dela? Salta para o telhado e recua.
– O que está a acontecer?
– Vamos lavar a roupa.
A mente paralisa o corpo. O que queria dizer com aquilo de lavar a roupa? Repara no sorriso
dele, metaforicamente falando, algo grande ia acontecer. Assente ao recuar, começava a gostar
das ideias dele.
Jason passa a perna pela janela e dá a mão a Phill para se apoiar.

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Sete Nomes

– Sabes, se morreres, prometo que Rachel regressará a casa.


– Está bem.
– E direi ao seu pai que foi o pior namorado dela.
– Porquê?
– Deu uma enorme despesa chamada arrependimento. Pelo vosso amor, vale apena o sacrifício
humano. Vai em paz.
– Avozinho, eu não vou morrer.
– A esperança é a minha constante. Espero que lá em cima, encontres a paz que roubas na terra.
– Começo a acreditar que me quer mesmo ver pelas costas.
O advogado bate na mão dele em forma de conforto, só deu conta disso agora? Salta para o
telhado e ajeita o casado. Phill enruga a testa, adorava entender aquele homem, mas sinceramente,
desistia por completo. Nada contra, e depois atacava de forma violenta. Se fosse pai dela… Até
entendia, as meninas costumavam ser as mais protegidas da família, e as primeiras a serem
deserdada quando se tratava de desonra. Mas, tratando-se do avô, não entendia. Talvez achasse
que era pai. Absurdo à mesma, nem William protegia-o assim tanto. Nunca o protegeu sequer.
Olha para a porta, partiam a madeira com machados. Forçam a porta com o armário, entravam a
matar. Acende o palito e sorri ao ver o rasto do brandy no chão.
A força arrebenta com a madeira, o armário é puxado para o lado e, homens de negro, com
pistolas em punho, invadem desordenadamente.
– Ali! – um aponta.
Phill atira o palito ao chão e salta para o lado ao som do disparo. Gritam que era uma armadilha,
tentam apagar o rastilho com os pés… Batem os casacos no chão de madeira… O pugilista arrasta-
se para a janela e passa a perna pelo parapeito.
– Phillipe! – Rachel grita desesperada.
A chama alcança as caixas abertas…
O abalo faz tremer a carruagem parada ao fundo da rua. Os olhares nervosos movem-se,
perguntam mudamente o que estava a acontecer. Logan move a cortina da janela e repara na luz
alaranjada que iluminava a escuridão. Pegando na pistola, abre a porta e vira-se para o fundo da
rua. They dead! They dead in the explosion! Levanta a mão para o interior da carruagem. Mortos…
A torre em chamas cai sobre o resto da fábrica. Mortos… Vira o rosto para os outros e sorri.
– Morreram. – comenta sorridente.
Gwenny tapa o enorme sorriso que a boca revela. Morta, finalmente estava livre da maldita prima.
Coloca a mão sobre Daniel e assente ao confuso olhar dele.
– Finalmente Rachel morreu. – comenta chocado.
– Mereceu. – entra na carruagem e fecha a porta – Não queria ter o paizinho de volta? Então,
agora já vai poder estar com ele… – acende o cachimbo – No inferno. – ri.
Daniel não ri, não conseguia digerir bem o assunto. Sorri para fazer com que Gwenny não
desconfiasse de algo.
– Sendo assim, poderemos reclamar a casa em Boston.
– Vai com calma Gwen… – Logan pede – Selena desapareceu e ainda quero saber onde aquela
se escondeu.
– Sem ofensa, mas educaste-a mal. Está contra ti invés de te apoiar.
– Devia ter-lhe batido quando esteve nua no meu quarto… Nem sei onde aprendeu a satisfazer
um homem, não consegue aguentar nada. – Daniel fala.
– É só uma miúda de treze anos que pensa que me pode desafiar. Enquanto estiver vivo, vai fazer
o que quero. Quando morrer, que vire uma vagabunda de rua.
– O que faremos à rainha?

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– Nada… Não vai ao teatro. Quero ficar um pouco de fora da oposição, acabei de alargar o meu
horizonte… – ri.
Com Rachel morta, podia matar Daniel e Gwenny. E depois? Rico, não precisava mais de planear
atentados ou atender aos pedidos dos outros nobres desesperados. Queria a mansão de Boston,
queria o maldito segredo do navio e a fortuna do pirata. Viveria como rei lá, poderia fundar um
partido novo e chegar a presidente. América era um país seminovo, precisava de uma mente
visionária como a dele. Nada melhor que ir à procura de novos mares e perder-se na maré.

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Capítulo 59
Turvo… Dores… Os olhos não conseguiam entender o que via. Um teto colorido, estranho,
como se as imagens se mexessem a cada pestanejar. E se ficasse fixo, elas moviam-se ainda mais.
Levanta a cabeça e abre a boca ao sentir a dor aguda a subir o pescoço. O que aconteceu?
Lembrava-se de ser expelido para trás. O resto… Vira o rosto para o som peculiar. Grandes olhos
fixos e bigodes felpudos alinhados na pequena face. Um gato malhado a amarelo, sentado sobre
uma cadeira azul com um olho desenhado.
Recua até às costas da cama, não gostava de gatos, pareciam animais fofos e calmos, mas no
fundo, atacavam violentamente. Se aquele estava ali sentado, é porque o ia atacar mal fechasse os
olhos novamente. Puxa-se para o lado, a cama era estreita demais para um pugilista espaçoso.
Coloca com calma o pé no chão, tateia o colchão à procura da túnica e, olhar fixo no gato que
girava ligeiramente a cabeça. Sente o tecido e ergue as mãos no ar em forma de paz.
– Paz e amor… Paz e amor… – caminha devagarinho para a porta – Seremos grandes amigos se
não saíres desse lindo lugar. Entendes?
Um miar suave sai e Phill passa pela porta. Bate-a com força. Suspira de alívio, sobreviveu à
terrível quimera. Veste a túnica e vira-se… Onde raio estava? Casa em madeira, cheia de velharias
georgianas, indianas e chinesas. Do teto, lâmpadas com velas no interior aromatizavam o lugar.
Nas paredes, tecidos coloridos, joias douradas, anéis, chapéus… Um enorme tapete no chão com
várias cores e, no centro, um enorme olho aberto. Nos armários, bonecas de porcelana sem metade
do corpo, figuras partidas, cestos com penas, bolinhas de vidro, missangas, pulseiras… Um frasco
com olhos de madeira caso fosse preciso.
Espreita pela outra porta. Uma banheira pequena e mais tecidos coloridos. Recua e espreita pela
outra. Um corredor. Segue-o, coloca as mãos nas paredes para se equilibrar. Outro quarto cheio
de tralha, uma cama estreita com máscaras de baile penduradas. Vira o rosto para a outra porta,
uma cama grande com bonecas de vidro sentadas sobre a manta com um olho.
Será que morreu e chegou ao inferno? A casa parecia um labirinto, as janelas nem conseguiam
trespassar os raios de sol. Volta à sala e caminha confuso para a outra porta. Ergue a mão contra
a forte claridade que cegava… O intenso barulho invade os tímpanos… O cheiro a tinta queimada
intoxicava…
Passa a porta e baixa a mão para a movimentada rua. Estava num slum, após tanto reclamar que
pertencia a ele, finalmente alguém o colocou lá. Agarra-se ao aro da porta, a antiga fábrica de
tecidos ao pé do rio. A este de Londres, o local mais pobre do reino e que ninguém queria visitar.
– Não. – murmura.
Ali, mais de mil pessoas viviam em pequenas casas de madeira, tijolos vermelhos, caixas de
peixe, barracas de lona… Amontados, em fila, quer na rua, quer ao pé do alto muro, quer dentro
da fábrica que faliu. Os pobres dos pobres. Maior parte não trabalhava porque ninguém os queria,
prostituíam-se, mendigavam, vendiam o que roubavam, negociavam entre si o que comer no dia
seguinte e cavavam a própria cova. Quem trabalhava, aproveitava o único local onde o estado não
cobrava impostos, construíam uma casa com tijolos vermelhos ou montava ao alto paredes de
tábuas abandonadas no cais. Dentro de uma simples casa, podiam viver mais de dez pessoas,
desde da primeira geração até à quarta. E os que não tinham lugar, dormiam ao pé do muro que,
no outro lado, tinha mais casas pequenas e sem condições.
Sem esgotos, sem eletricidade, sem água. Nasciam no verão, sobreviviam ao outono e morriam
no inverno. Slum… A casa dos sem nome, os esquecidos de Deus, da rainha e do mundo. O
terceiro estado, os ratos negros da peste e aqueles que tinham esperança no olhar. Amavam a
monarca, mesmo que ela nunca tenha feito algo por eles. Amavam Deus, mesmo que nunca

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tenham entrado numa igreja para orar a ele. Amavam a vida, mesmo que morressem sem a
aproveitar.
– Acordou.
Vira o rosto para uma mulher negra com muitas tranças coloridas a descer do rabo de cavalo.
– Conheço-a?
– Amarys… Deves ter dores de cabeça. – entra na casa.
Tinha, nem aguentava estar em pé. Depois, alguém devia de estar a queimar roupa e o intoxicante
aroma penetrava nas narinas, causando mais tonturas.
– Senta aqui. – pede ao entrar por uma porta com cortina.
– Deve ser um engano. – comenta ao andar.
– És o Phill, certo?
Encosta-se ao aro de madeira e assente.
– Então não é engano algum. – pega no pilão e mói as folhas secas no almofariz – Gostas do
Amon?
– Quem? – pergunta confuso.
– O gato. Esteve a guardar-te.
Devia ter muita fome, porque aquele olhar quase o devorou.
– O que raio é esse olho? Estou enjoado de o ver em todo o lado. Parece que me suga as energias
e… Sinto-me observado. Estou mal. – coloca a mão sobre a barriga.
Amarys vira o rosto para o desenho sobre a porta do armário.
– Conheces a lenda de Udjat? – derrama água nas folhas moídas.
Nem conhecia o nome. Lendas… Se os episódios da bíblia contavam, então conhecia.
– É algum santo?
Ri ao mexer o que estava no copo. Depois, junta um pó amarelo e fala umas palavras estranhas.
Phill estava cada vez mais confuso. Sentia-se… Preso, sufocado, dentro um enorme caixão.
Desaperta o botão da túnica e abana a mão contra o rosto. Bruxaria… Isso era um mito, a magia
não existia e os ilusionistas enganavam. Mas, quando se travava de pessoas vindas de fora, tudo
podia ser repensado.
– Udjat, ou Hórus… Conta a lenda que o seu tio, Set, o deus do deserto e natureza selvagem, mata
o irmão, Osíris. Surge uma luta entre ambos para ficarem reis de todo o Egito. – caminha para a
mesa da sala estreita – Set é o caos, Hórus a reestruturação. Esse olho espalhado pela casa é o
poder da lua e do sol, regressam sempre intactos após uma luta. Regeneração, o mal perde sempre.
Lesão e cura.
O pugilista senta numa cadeira e olha para o copo com um líquido amarelado. Dores, a cabeça
só não andava à roda porque estava agarrada ao pescoço. Coloca a mão na testa e sente o aroma.
Cidreira. Sorri, e a pensar que aquilo era bruxaria.
– Parece a história de uma amiga que tenho. Ela tenta vingar a morte do pai, luta pela justiça.
Magoa-se, mas regenera de uma maneira… É uma grande mulher.
– Gostas dela, tens um brilho no olhar quando pensas no seu nome.
Pega no copo e bebe. Gostar é pouco. Amava-a.
– Não és de cá, pois não?
Amarys abana a cabeça e os acessórios no cabelo tilintam.
– Vim de Amarna, Egito.
Da colónia independente de Inglaterra… Um certo sentimento abala o seu coração. Abie nasceu
lá, numa pequena aldeia arredores do Cairo. Depois foi vendida em pequena para a Cidade do
Cabo. Aprendeu tanto com o seu pouco saber que sempre quis conhecer a tal cidade dos grandes
senhores do ouro. Pousa o copo, o destino era mesmo cruel.
– O que fazes cá?

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– Um inglês trouxe-me, era boa cozinheira. Inglaterra explora aquela terra como se fosse minas
de ouro. Invadem a uadi, acordam do sono os mortos e perturbam o equilíbrio da terra. Vi ser
retirado de dentro da montanha homens que dormiam eternamente no seu descanso.
– Aqui é igual, vão aos cemitérios, abrem os caixões e roubam tudo.
– Não entendes. São homens do meu passado, meus reis. Aqueles que perturbarem o seu eterno
descanso, sofreram com as consequências. O Egito não é o paraíso e muito menos a mina de ouro
destes reles ingleses. Neb cheperu Re.
– O que isso significa?
– “Ré é o senhor das transformações.” Ele vai castigar estas pessoas que não veem o mal que
fazem. Ainda veremos um faraó renascer para se vingar.
Um arrepio gelado percorre a coluna. Não gostava de conhecer pessoas que falavam outra língua,
podiam insultar, rugar pragas e confundir a mente dos que estavam habituados ao comum. Egito…
Ouviu na corte que aquela terra tinha muito a dar. Vários nobres pediam a pessoas estudadas que
descobrissem os segredos escondidos, decifravam os desenhos enigmáticos pintados nas paredes
e tentavam entender como eram os reis de lá, antes de Roma invadir. Falavam em múmias, mortos
enfaixados em ligaduras brancas, colocados dentro de enormes caixas com rostos estranhos.
Cemitério? Enormes pirâmides no meio de deserto, carregadas de ouro e estátuas preciosas.
Qualquer inglês queria ser explorador, arqueólogo ou dirigir uma escavação. A própria rainha
gostava das histórias que vinham de lá, os enigmas que colocavam qualquer mente a andar à roda.
Phill não queria saber daquela terra. Só o nome dava-lhe arrepios.
– Não conheces a lenda de Jesus Cristo?
Amarys faz um gesto com a mão, não estava virada para essa religião.
– Os meus deuses são outros. Amon, é para ele que oro.
– Prefiro Deus e seu filho, ao menos não cultivam mortos no deserto.
– E eles ajudam-te?
Nem assente, nem nega, os milagres chegavam quando era preciso chegar.
– A minha filha nasceu no Cairo e não falava uma língua… Estranha. Nem tinha esses deuses.
– Não nasceu em Amarna, ou saberia que há saberes que são passados de mãe para filha, de
geração em geração. Sua esposa não contou como é viver no Egito?
– Abibatu é filha adotiva, eu nunca casei ou vivi lá. Porque estou a falar isto? – levanta – Obrigado
pelo chá, mas tenho que voltar. Se foi Logan que me abandonou aqui, digo desde de já que ele
quer que eu morra. Seria possível não comentar que fui embora?
A mulher encostasse às costas da cadeira e coloca as mãos sobre as pernas. Perdido, o olhar dele
não transmitia nada mais que isso. Acordou ali e sentia-se longe de Londres, um mundo à parte.
O problema, é que não ia correr para muito longe.
– Podes ir…
O pugilista sorri e caminha para a porta.
– Mas direi a Rachel que foste embora. Depois, se berrar, berra contigo, não comigo.
Cerra os dentes ao parar subitamente. Abana a cabeça, ela não podia ter ido para ali, não. Como
americana, devia de estar habituada a grandes cidades, lugares muito frequentados, labirintos sem
metade da solução. O slum… A menos que estivesse louca da cabeça.
– Rachel… Quem? – vira-se.
– A tua amiga. Trouxe-te… Ela não, Jason trouxe-te nos braços. Pedi para entrar, fiz um ritual
ancestral para que ficasses bem. Se quiseres ir, vai. És livre. – enrola uma trança no dedo.
No colo do advogado, nem acreditava nisso, Jason queria-o morto e enterrado. Mas, a única
Rachel que conhecia com um avô reles e em advocacia, era ela. Então, talvez tenha escolhido o
slum para ficar a viver.
– E onde anda essa Rachel? – tose para a mão.

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– Ao pé do rio. Foi espairecer a mente. Precisa disso, a alma dela está muito pesada. Sofre. Devia
de orar um pouco a Path, o deus da sabedoria.
– Ela devia é colocar velas na igreja e rezar a Deus, o omnipotente, o único nosso pai. Orar a um
deus que nem existe, é como ver e fingir ser cego.
– Tens um coração muito fechado. Quando te abrires mais, vais ver a luz dos nossos ancestrais.
– Vou é ser mais odiado por Ele do que já sou. Fica lá com a tua religião que eu, vou atrás da
minha santa. Esta casa tem olhos a mais para o meu gosto… – comenta antes de sair.
Uma egípcia a pensar que ainda vivia no ano de Cleópatra. Ela devia de acordar para a realidade,
estava no século XIX, ano industrial, ano cheio de revoluções, uma Grã-Bretanha a lutar por um
estatuto no mundo. Ali, ou se é a Deus e à rainha, ou não se é nada.
Caminha pela rua, nem sabia para que lado ficava o rio. Estava enjoado, o cheiro forte mudava
de casa para casa, de pessoa para pessoa. Se lá trás sentiu o cheiro de tecido queimado, ali sentia
a madeira ser regada com petróleo, dentro de enormes barris de latão. O chão lamacento fedia a
dejetos atirados à porta, papeis com rostos de desaparecidos e procurados. Recompensas a quem
encontrar e receios de quem sabe que pode deixar de ver a luz ofusca do dia.
Passo a passo, a miséria de quem sobrevivia. Crianças corriam quase sem roupa, brincavam no
chão por onde todos os dias, cães baldios urinavam para marcar território. Mulheres lavavam a
roupa que iam pendurar nas cordas ao pé do muro. Sabão… Cebo de reco com cinza. Mendigos
lutavam por um pedaço negro de couve, encontraram perdida na rua. Homens com perucas
encaracoladas passavam de mão em mão as beatas dos cigarros que os nobres atiraram pela janela
da carruagem, sustentavam o vicio que os mataria. Miséria… Uma mulher dava o seio a uma
criança de dois anos, na esperança de viver mais uns dias. Miséria… Pombos serem mortos e o
sangue ingerido como se fosse água por raparigas de doze anos, enroladas nos casacos masculinos
e lábios cheios de ferimentos.
Para ao ver um menino com uma enorme camisola, descalço, um olho fechado e o corpo sujo.
Miséria era nascer num pedaço de terra abandonado por Deus, sobreviver todos os dias e pedir
que a morte chegasse antes da fome.
Estende a mãozinha sem um dedo. Uma esmola, o olho direito pedia com a alma. Phill não tinha
nada, os bolsos estavam vazios. Sente as lágrimas a descer a face, os nobres não sabiam daquilo.
Se soubessem, saberiam que ser pobre numa cidade de ricos era uma maldição. Ser um desgraçado
doía no coração de qualquer pessoa. Ser uma criança abandonada por todos seria pior que chegar
à mesa e não ter os ovos cozidos com açúcar.
Segue o passo, limpa o rosto e culpasse de ignorá-lo. Jamais. Jamais passaria por um mendigo
sem lhe olhar nos olhos e dizer… You deserve survive. Odiava ser londrino, odiava a pátria que
se tornava cega no momento em que a miséria estava à vista de todos.
Repara na margem do rio que Amarys referiu. Lá, de costas para as barracas de madeira, com a
vista posta nos barcos no outro lado, estava Rachel, de braços cruzados e pensamentos afogados
na água negra.
Passa por entre os homens que enchiam baldes de lama, tenta não pisar a roupa que era lavada
por raparigas em tronco nu. Agarra-se ao corpo voltado com força e contem os soluços.
Rachel toca as mãos dele e olha de esguelha. Acordou. Pelo estado, preferia estar a dormir e a
pensar que estava longe de um slum.
– Phill.
– Vamos embora, por amor de Deus, vamos sair daqui.
– Não posso…
– Podemos. Peço ao meu pai um cantinho no castelo, imploro à rainha, faço qualquer coisa. Não
quero viver aqui, estar numa casa com uma mulher estranha e ver esta miséria na rua. Por favor,
Rachel, por favor. – pede desesperado.

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Respira fundo, também não gostava daquele lugar, mas estava sem escolha alguma. Logan
pensava que eles morreram, o rumor espalhou-se pela cidade. Rachel Clarel, filha de Cristian,
morreu no terrível incêndio que explodiu com a torre. Ele próprio pediu um minuto de silêncio
na capela de Windsor, levou a terrível notícia à corte e ao príncipe.
Phill ficou inconsciente após a explosão, e desesperada, implorou a Yves um lugar para ficarem.
O aprendiz disse que tinha uma amiga que vivia na zona este da cidade, na terra de ninguém.
Então, Jason carregou o pugilista nos braços e seguiu o rapaz.
Ali, seriam invisíveis, Logan ou outro espião jamais se daria ao trabalho de ir explorar aquela
miserável fábrica, nem quem trabalhava para o parlamento ia lá para desalojar quem já vivia na
rua.
Claro, Amarys não era uma mulher qualquer, deu conta no momento em que a ouviu falar em
outros deuses e alternativas à solidão. Mas era simpática, abriu a porta de casa para três
desconhecidos e disse que não havia problema algum em ficarem. A vista não era das melhores,
e a realidade chocava.
– Temos que aguentar.
– Aguentar? Rachel… – vira-a – São pessoas que sofrem, o olhar resignado pede clemência. Aqui,
nascem todos os dias crianças que sentiram fome nos primeiros meses. Morrem no inverno e são
lançadas ao rio por não haver dinheiro ou lugar para enterrar. Mulheres vendem-se, vendem o que
roubam, vendem os filhos às fábricas que usam como querem e bem entendem. Homens
mendigam todos os dias na rua, sentam ao pé das portas das igrejas, tribunais, restaurantes…
Pedem para a família que não se governa. Até os ratos comem aqui! Como me podes pedir para
aguentar?
Verdade pura e não desmentia. Mas melhor que pagar três quartos numa pensão sem direito a
refeição incluída. E quando fossem descobertos, voltavam a ter que fugir.
– É por entre eles que seremos invisíveis. Não tenho dinheiro para alojar todos numa pensão ou
hotel.
– Pede à tua avó em Boston, lembrei-me ontem que ainda a tens.
– Não sabes a regra da sociedade? Mulheres casadas não podem levantar dinheiro sem que os
maridos assinem o papel do banco. Sem Jason, não pode sequer ir a bailes ou frequentar lugares
que exijam o marido.
– Disseste que havia liberdade lá, todos tinham direitos!
– E deveres. Maddey tem o dinheiro que foi deixado pelo meu avô para as despesas. E quando
acabar, vai ter que pedir cá para poder ter lá. A sociedade é mais aberta, mas continua a ser a
mesma.
Coloca as mãos atrás da cabeça e bufa com força. Estava desesperado, não queria viver ali nem
que fosse a última cidade da terra. Não merecia, disse que pertencia àquele mundo, mas acordar
nele… Dava conta que estava longe de ser um pobre sem nada, sempre teve um teto e comida,
higiene e roupa boa.
– Ele concordou em ficar aqui?
– Com algum pesar, mas concordou.
– Vamos para Liverpool, ele tem uma mansão…
– A mansão Clarel foi vendida a Cristian após a morte de Jason. Sabes o que isso significa.
Assente, estava nas mãos de Logan, tudo estava nas mãos dele, até a própria vida.
– Não teremos que pagar renda, comida… Voltar a fugir para longe… Por mais que não goste, é
aqui que quero ficar e colocar fim à minha lista.
– Quem te indicou este lugar?
– Yves.

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Dá um pontapé numa cesta perdida e grita na margem do rio. Rachel olha para os rostos que se
levantavam, a multidão que passava pela margem… Parava para ver a raiva dele, o ódio e o choro
desesperado. Não era o único a querer desaparecer do planeta.
Entendia aquela revolta, Yves viveu ali por dois anos, depois andou até Londres e passou a viver
numa enorme manilha de esgoto. Por isso que conhecia Amarys. E Phill, magoado por completo,
feria-se facilmente com a miséria alheia. Sentia-se… Incapaz, imundo de ser humano e não ajudar
todos.
Coloca a mão no ombro dele e volta a olhar para os pequenos barcos que subiram o Tamisa.
– Nunca somos felizes a viver a infelicidade dos outros.
As lágrimas pingam para a água negra.
– Não pertenço aqui.
– Ninguém quer pertencer. Mas é onde se vive.
– Sou Phillipe Stathouder, príncipe de Orange, Cavaleiro do Império britânico… Não pertenço a
este slum.
A mão recua, a dor dele não era ver a miséria dos outros, o problema dele era ser da realeza e
viver em condições desumanas. Só porque usava fatinho lavado. Só porque tinha botas polidas.
Só porque o título não permitia. Só porque se habituou ao luxo. E o outro Phillipe, aquele que
nasceu na miséria e lutou para ganhar uma casa? Onde ele estava? O homem por qual se
apaixonou, sonhava com a grandeza e vivia num enorme barracão de madeira com dois andares,
sem eletricidade, com canos de esgotos enferrujados e água quente aquecida à lareira. Onde ele
estava? Onde?
– Gostava mais de ti quando eras Phill Smith, pugilista amador do Box Dead, habituado à pouca
comida, à rua lamacenta, aos mendigos que davas uma moeda, às histórias que vendias aos olhares
perdidos. Preferia-o! Tirou duas pessoas da rua, negava o ouro do maldito pai que lhe matou a
mãe! Onde está o Phill que queria ajudar-me sem receio de nada? Aquele que não podia ouvir
falar em reis, devia a metade de Londres e dizia que um dia ia vingar-se!
Levanta do chão e ergue o rosto para o horizonte. E a cabeça assente sem ler o rosto. Mudou.
Deitou pobre e acordou rico. Cresceu, ganhou um pai amado e uma amiga de ouro. Adorava vestir
roupas elegantes, comer o que era bom e do melhor. Afeiçoados nobres, conversa nova sobre
outros mares. E dizia, de olhar vazio, que queria mudar-se para longe do inferno londrino, ser
enterrado na Patagónia e passar o resto dos seus dias na tranquilidade.
Phill era Phillipe, não o pugilista, mas sim o cavaleiro da rainha. Como a dura realidade doía.
– Podes voltar para Windsor, não preciso de ti, Phillipe. – recua.
O olhar em lágrimas passa sobre o ombro direito.
– Queres mesmo isso?
– Não és mais quem eu pensava que fosses. Devia ter dado conta naquele dia em que o teu pai
pediu uma oportunidade. Mas enganei, decidi iludir-me que estavas igual. E não, mudaram-te.
– Estás errada. – limpa o rosto – Continuo a ser o mesmo homem que conheceste. Eu amo-te
como se fosse ontem.
– Até a ti tu enganas. – as lágrimas descem o rosto – Ficas como Phill ou vais como Phillipe de
Orange? – aponta para trás.
O que Rachel pedia não fazia sentido. Não podia esquecer o que era e a maravilhosa oportunidade
que tinha de ser um príncipe.
– Eu mereço o que estou a receber. Vivi anos da minha vida no esquecimento do meu pai, comia
tão pouco que pesava menos que trinta e dois quilos aos treze anos. Kayo cuidou de mim e agora
está na hora de William dar-me o merecido lugar! Tu és duquesa, uma bisneta bastarda de George
IV…

421
Sete Nomes

– George não teve filhos. O meu bisavô é filho de uma empregada que disse que estava grávida
do príncipe. Iludido, deu a ela dinheiro e um título para desaparecer com a criança. No fundo, não
sou nobre, sou uma qualquer a qual descende de uma família falida que roubou. Aqui, o único
com sangue real és tu. Não somos primos nem diretos, nem afastados.
O rosto baixa-se, afinal, ela não era duquesa legítima.
– Jason não tem um título?
– O pai dele ganhou um no passado e foi com esse título que ficou nobre. A minha avó era duquesa
de New Castel, Scothland. O pai dela sim descendia de uma longa família nobre e com muitos
bens. São esses bens que Jason deixou aos filhos, esses e os que o príncipe quis deixar
secretamente ao pensar que era pai. Legalmente, não sou nada à rainha. Socialmente, sou. Estás
chocado?
– Tu mentiste-me.
– Não, contei o que me contaram a vida toda, o que o meu pai pensava ser verdade… Jason é que
escondeu isso de nós, para não pensarmos que eramos uma farsa. E que diferença faz saber a
verdade ou a mentira? A vingança continua.
– A diferença é que não consegues ser minha esposa um dia. És uma duquesa fantasma…
– O que a minha condição interfere na tua? Ninguém sabe a verdade, só nós.
– Nenhum príncipe se casa uma empregada ou plebeia. Sabes as regras da corte!
– Tu não pertences a corte alguma.
– Pertenço à da rainha e sou um príncipe da casa Orange!
– Nunca atravessaste o mar para lá por os pés e reconhecerem-te como um. És bastardo! – grita.
– O mais importante príncipe bastardo da Holanda por ter a rainha como amiga. Sempre tiveste
ciúmes de passar mais tempo no castelo do que contigo.
– Eu?
– Sim. Reclamavas que chegava tarde, que dava muita importância àqueles nobres… É a minha
função, agradar os outros, ser educado porque ser um animal ofende-te muito.
As mãos fecham-se e o ódio invade o olhar.
– Não querias um cavalheiro, um homem que sabe estar à mesa? Obrigavas-me a vestir fatos,
querias uma cama fofa… – aproxima-se – “Tu és um príncipe, mesmo bastardo, tu és. Devias no
mínimo ter modos, não seres um animal selvagem.” Lembraste?
Baixa o olhar ao se lembrar das palavras duras que lhe disse à mesa. Comiam com as mãos.
Quando tentaram comer com os talheres, a comida saltou toda dos pratos. Animals! Gritou bem
alto e com revolta.
– “O teu pai gosta de broa? É pouco nobre para esse gosto tão plebeu.” Ou… “Tu és livre para
fazeres da tua vida o enredo que quiseres.” Sempre pediste para fazer o que quisesse. Estou a
ser… – abre os braços – Quero ser Phillipe de Orange, quero ser o orgulho do meu pai e finalmente
ter a minha vida de sonho. Lamento Rachel, mas há muito tempo que adio o meu recomeço.
– Isso quer dizer…
– Que vou para Orange. Se é para ficar aqui, então prefiro partir o quanto antes. Tens razão,
mudei.
Assente com os olhos cheios de lágrimas, empatava a vida dele, a sua pedra do sapato de cristal.
Não podia ficar com os pobres, parecia muito mal para um príncipe bastardo que nasceu no meio
deles. Foi um e agora, que tinha tudo o que queria, negava voltar atrás no tempo. Sai do caminho,
o obstáculo estava passado.
– Obrigado por tudo, por teres dado casa, comida, amor… – fala com uma enorme tristeza no
peito – Por ajudares a ter coragem e matado Noah, ou prevenido a minha morte. É hora de seres
feliz como tanto queres.
– Serei. – caminha para a rua.

422
Sete Nomes

Rachel fecha os olhos e ergue o rosto.


– “Não troco os meus pesadelos por sonhos manipulados. Estes eu sei as consequências. No outro,
ando de olhos vendados.”
A cabeça de Phill vira-se para a mulher a qual o sentimento ia com a corrente do rio. Disse,
salientou isso na sua mente. Mas foi um homem sonhador a sonhar alto demais. Agora, sabia que
podia, nada o ia impedir de cumprir o seu verdadeiro destino.
– De vez em quando, é preciso enfrentar os pesadelos para viver o verdadeiro sonho. Já sofri
demais para continuar nesta vida, numa luta que não é minha. Tu vais conseguir, eu quero que
consigas. Mas não contes comigo.
A dor invade o corpo, o sofrimento dilacerante fazia-a cair de joelhos sobre a lama. Foi por esse
motivo que nunca amou? Foi por saber que a qualquer momento, tanto somos de alguém como
não? Chora, devia ter aprendido na primeira discussão, nas vezes todas em que saiu pela porta do
Box Dead e prometeu não voltar. Mas… Retornava, porque acreditava no sentimento que nasceu
no fundo do seu coração e desbrochou como uma flor. Para quê? Arrancam as raízes, deixam ao
sol e as pétalas secam.
Os restantes que presenciaram a discussão, colocam as mãos nos ombros dela, baixam os rostos
esfomeados para ajudarem a suportar a dor. Uma criança até se atreve a abraçar a estranha que
chorava.
A brisa desprende as lágrimas que se penduram nas pestanas posteriores. E olhar volta a focar os
barcos que subiram o rio. Segura, no meio da desordem. Preenchida, no meio da solidão. Que
fosse, que encontrasse o sonho e depois, que veja o pesadelo. Homens seguros remam contra a
maré e sempre morrem nela.

423
Sete Nomes

Capítulo 60
Farta, até a bebida começava a dar náuseas. Cansada, aquele olho observava dia e noite, minuto
a hora. Não pestanejava, nem se fechava para descansar. Porque olhava tanto para ela? Talvez
quisesse ler a sua vida, os detalhes conseguiam contar qualquer história. O vidro repousa nos
lábios, ergue a ponta e o líquido gelado entra pela boca, passa pela língua e desce a goela. Não lia
a vida, guardava o que espionava com a permissão dos hóspedes.
Vira o rosto para o lado. Amon, sentado na cadeira azul, a abanar a felpuda cauda riscada de
amarelo. Outro espião que via e calava-se. Pelo menos, aquecia o lugar ausente na cama. Pousa a
garrafa no chão, vira o corpo para a outra parede e suspira. Nove planos para matar um simples
homem, dois meses a tentar e nada. Daniel escapava-lhe por entre os dedos, uma sombra à luz da
vela da igreja. Desistiu dele, dedicava-se ao álcool, à solidão e ao abandono. Jason viajou com
urgência para Boston, queriam vender a casa de Rachel a Logan. Jamais deixaria isso acontecer,
seria preciso provar que a dona estava morta e lerem o testamento feito. Sem provas, a casa não
seria passada a outra pessoa.
Voltaria, com dinheiro e força. Ela ainda o esperava, apesar de não o querer por perto. Quando
aquele homem visse que a neta voltou ao álcool e aos dias solitários dentro do quarto… Berraria
com a vida e a alma.
Levanta da cama, nem deitada conseguia estar. O que fazer? Coloca as mãos na cabeça e anda
de um lado para o outro. A cabeça doía, parecia que ia explodir. Grita ao abaixar. Não aguentava
mais estar em Londres, precisava de voltar a casa, fechar-se no quarto e ler as frases todas que
escreveu na parede.
A voz cessa ao levantar a cabeça para a garrafa ao lado da cama. Go on…Go on Rachel. Não
precisava de ir longe, podia escrever ali também. Gatinha para o brandy e bebe mais um pouco.
Depois, abre a gaveta da mesinha colorida, vasculha no meio da roupa a navalha. I need my voice.
Sente o cabo, puxa o braço e revela a lâmina ao gato.
– Preciso. – ergue-se e olha para as paredes – Preciso de… De uma porta.
Amon mia antes de saltar para o chão e esconder-se debaixo da baixa cama. Até ele conseguia
ver que Rachel não estava em si. Não… Arranca os tecidos das paredes de madeira, afasta a tralha
que privava circular. Pousa as mãos e fecha os olhos. Murmura, palavras que murmurava a meio
da noite quando bebia muito. Puxava pela memória a tragédia do pai, os últimos dias com ele e
sem a sua presença.
Rasga a madeira, começa a escrever consoante murmurava. Revenge your soul… Forgive me
father. Everything I have did was just another way to scream your name. I made a map, I could
find my way back. So I started in the darkness with you. I can never let go…
O gato sai pela porta, estava no local errado. A luz da vela apagasse ao ligeiro sopro, nem Deus
queria estar naquele quarto.
Nem sempre recebia homens em casa, não costumava abrir o seu coração a rufias que pagavam
pelos serviços. Mas, em certas ocasiões, convidava a um copo e trancava a porta do aposento. Sai
de cima do homem e deita o magro corpo no colchão. Amarys era uma amante do prazer,
principalmente quando invocava nomes no momento em que gritava. A colega de quarto não se
ia incomodar de certeza, ela só bebia e dormia. Melhor assim.
– Quando voltas a estar disponível?
– Para ti, semana que vem. – passa a mão pelo peito peludo – E a tua esposa, Rasth?
Os olhos azuis fecham-se assim que limpa o suor da testa.
– Ela não precisa de saber. – afasta os cobertores.

424
Sete Nomes

Rasth era um fidalgo da rua High Holborn, dono de uma loja de botões e alfinetes de costura.
Todas as semanas ia ali purificar a alma com Amarys. Gostava dela, por esse motivo que
atravessava as ruas miseráveis para se deitar naquela cama e satisfazer a necessidade. Não pagava
o serviço, ela não era uma prostituta.
Cabelo louro, barba nas bochechas e corpo com musculatura. Vestia fatos elegantes, falava
francês e antes de ficar sem fortuna, andou de carruagem real em Windsor. Casou com vinte anos,
já era pai de três filhos e esperava o quarto. A mulher cuidava da costura no pequeno ateliê perto
da ponte. Não a amava, como todos os casamentos feitos por contrato.
– Amon nem apareceu por cá. – veste as calças – Ele costuma ver o que fazemos.
– Deve estar com a outra. – acende o cigarro.
– Qual o nome dela? – senta na cama.
– Rachel. Está cá há dois meses, abandonada. Ela é que precisa de orar muito aos meus deuses,
bebe quase de manhã à noite. Ainda bem que paga as garrafas de brandy.
Raths ri, Amarys tinha dinheiro para sair dali, mas enquanto parecesse pobre, não pagava
impostos absurdos.
– Coloca-a na rua.
– Não, tenho pena. Até é útil, tem limpado a casa e guardado a porta. Assim posso tratar de outros
negócios.
Passa a mão por entre os seios dela e beija-lhe o rosto com malicia.
– Espero que não seja o contrabando. Quase te apanharam em janeiro.
Abre a boca para o suspiro sair. A mão direita agarra-se às costas dele com força.
– Desta vez não falho. – fala quase sem voz.
Monta as pernas dela, era cedo demais para ir embora já. Amon passa pela porta entre aberta,
sobe à cama e mia. Raths vira o rosto e sorri.
– Olha quem chegou atrasado.
– Duas horas desaparecido… – mete o cigarro na boca e suga o fumo.
– Deve andar à procura de namorada. – pega no gato.
– Tem uma carrada de filhos espalhados pelas casas. Mais de trinta e dois, segundo Gone.
A testa enruga, tantos assim? Ainda bem que os homens não eram como os animais.
– Estou preocupada… – levanta o tronco – Rachel costuma colocar a mesa às duas da tarde. São
três e ela ainda não saiu do quarto.
– Talvez esteja a dormir.
Abana a cabeça ao bater as cinzas no copo. Conhecia-a com o tempo, pontualidade de primeira
e teimosia sem limites. Faça chuva, faça sol, ela sempre saía do quarto para colocar os dois pratos
na mesa. Olha para Raths e sopra o fumo, quando uma rotina é quebrada, é porque algo aconteceu.
– Vou ver o que tem. – enterra o cigarro no copo.
– É mesmo necessário? Ainda tenho uns minutos…
– Desconta na próxima vez. – puxa as pernas e pousa os pés no chão – Vai ser a semana do Atum.
Sabes como é. – pega no robe.
Assente ao beijar o gato, gritaria o nome dele, passaria o dedo com sangue no peito e desenharia
os símbolos do deus. Depois, pedia para ser penetrada com violência enquanto orava. Rituais a
qual se habituou.
Amarys abre a porta, atravessa a sala e repara que nenhum prato estava na mesa.
– Rachel. – chama.
Não dormia de dia, a menos que entrasse em sono profundo por causa do brandy. Abre a porta
do quarto e arregala os olhos ao vê-la sentada no centro do chão.
– Raths. – grita.
Rachel levanta a cabeça, a vista em lágrimas estava exausta.

425
Sete Nomes

– O que aconteceu? – pergunta ao chegar ao aro de madeira.


Ela aponta o dedo para a parede e Raths abre a boca. Frases, a violenta letra contava o sofrimento
da alma. Cada palavra era como se fosse um grito desesperado. A parede, a bela madeira escura
polida parecia um livro escrito no momento em que a dor apareceu. Baixa a vista para a tal Rachel.
Nunca viu uma mulher tão destruída como aquela.
– Acho que precisa de um bom ritual. – murmura ao ouvido.
Amarys assente, Set deve ter entrado no corpo dela. Estava uma selvagem rendida ao álcool, algo
que não acontecia com frequência.
– Tens algo a dizer sobre a parede? – cruza os braços.
– Eu pago. – a voz rouca pronuncia-se.
Pagava… Claro, devia de nadar em dinheiro.
– Fazes-me um favor… – vira-se para o fidalgo – Arranjas-me um vestido elegante?
– Que tamanho queres?
– O dela. Está na hora de sair um pouco daqui. Ou vai dar em louca.
O homem olha para Rachel, tenta tirar a olho as medidas. Um número baixo, às vezes só por
medida. Beija a amante antes de sair do quarto.
– Onde vamos?
– Tu, vais para a banheira. Tens sorte de gostar de higiene, ou ias imunda. – alerta ao fechar a
porta.
Ia aonde? Não estava com vontade de sair do quarto. Queria dormir, colocar o relógio ao pé do
ouvido e ouvir o ponteiro a bater nas oito infinitas vezes. Coloca a cabeça sobre os joelhos,
Amarys podia achar estranho, mas aquilo já aconteceu em Boston. Bebeu duas garrafas numa
noite, pegou no carvão e escreveu na parede pintada de branco as mesmas palavras que estavam
ali. Quando amanheceu, foi encontrada sobre a cruz de madeira, com os olhos abertos e o dedo
indicador a bater no chão. A avó gritou por ajuda, o avô subiu a mão à boca e leu o nome que se
destacava por entre os outros. Logan need die.
Vira o rosto para a parede. Ali, escreveu algo completamente diferente. I need find my way or I
will die soon. É, a alma estava ferida e a mente demente. Beber conseguia atenuar essas vozes
que surgiam à cabeça. A consciência a falar e com razão, demorava a se libertar da dor.
Cinzento, como o céu carregado de nuvens. Julho, ar quente, seco e sufocante. A indústria piorava
o clima, as pessoas ficavam com a boca seca, o fumo das fábricas e dos barcos a vapor ardia nas
narinas e o fedor das ruas tornava-se insuportável. As pessoas andavam de sombrinha debaixo do
braço, não sabiam se ia chover ou se o sol espreitaria. E quando Deus descarregava a raiva, a água
sujava as ruas, a roupa que secava ficava cheia de terra e as pessoas, corriam para proteger os
trajes caros. Londres industrial, a rainha pedia ferro e fogo, e os londrinos recebiam a resposta da
natureza.
E nem assim, encontrava o caminho que tanto queria. Caminhava com o olhar baixo, mãos
descaídas e passos fúnebres. A tranca na nuca, enfeitada com flores de vidro, é que lhe dava um
ar jovem, porque pelo rosto, parecia uma senhora que teve dez filhos e estava cansada de
engravidar. Amarys puxa o corpo antes que a carruagem passasse por cima.
Retira da bolsa o chapéu com véu e coloca-lhe sobre a cabeça. Coração da cidade, se tinha ali
inimigos, era bom que se escondesse deles.
– Dá para colocar um sorriso no rosto? – dá um nó no laço debaixo do queixo.
– Podes sorrir à vontade. Não obrigues os outros a fazerem o que não querem.
– Deste um bom banho, devias estar mais aliviada após beber feito uma louca.
Que alivio de alma, estava com vontade de sentar num beco e ficar lá o dia todo.
– Queres rezar ao teu Deus? – compõe-lhe a gola de renda.
– Ele deve estar ocupado com outras pessoas. Abandonou-me.

426
Sete Nomes

Amarys suspira, Yves antes de ir, pediu paciência com ela, nuns dias estava bem, noutros o
mundo não prestava.
– Para se lembrar de ti, vamos à igreja orar juntas.
– Pensei que o teu era Amon.
– E é, mas tu precisas de uma muleta. – dá o braço e arrasta-a pela rua.
O corpo movesse contra a vontade. Será que não via que estava nas tintas para a sua vida, Deus,
igreja… Se procurasse um milagre, passava a viver num convento e não numa casa que nem era
sua.
St. Martins, até essa catedral trazia-lhe más recordações. Estava cheia, missa de quarto dia a
quem quisesse orar pelas almas perdidas. O padre, com batina negra, estava ajoelhado no altar,
com as mãos no alto. Invocava Deus e seu filho em latim. O pai nosso. E as pessoas, ajoelhadas
sobre a madeira, rezavam para as mãos juntas ao pé dos lábios. Os terços desprendiam-se e os
olhares alheios focavam ou não o que estava em volta. No final, a cesta passaria para darem às
almas. O problema, é que elas não precisavam de dinheiro, nem se alimentavam disso. Fosse para
onde fosse, o deus dos homens era outro. Por esse motivo que Ele não lhes dava resposta, por
mais missas que rezassem.
Passam com sorrateiríssimo a lateral do altar, entram no corredor e sobem as escadas. Por vezes,
as pessoas em Amarna achavam que a única forma de estarem mais próximo do seu deus, era
subindo o mais alto possível para o ouvirem. Então, faziam uma peregrinação ao monte que
pertencia aos faraós, curvavam-se no chão e pousavam as oferendas sobre as areias cristalinas.
Depois, silêncio e tranquilidade do deserto, sinal de que Amon e Ré estavam satisfeitos.
Abre a porta que dava acesso aos sinos e encaminha Rachel por entre eles. Se o deus dela estava
a ser requisitado lá em baixo, talvez no alto a ouvisse.
Senta na beira e olha a paisagem. Londres às vezes, só vista de cima para ser bela.
– Reza a ele. – pede.
A mão toca a pedra da parede, o olhar perdia-se, o corpo sentia a gravidade a puxar para baixo.
– Senta. – puxa os dedos dela.
O rosto mira-a e assente, era melhor, ou ia cair. Desfaz o nó do chapéu e sente a brisa no rosto.
– Eu sei porque estás assim. – abana as pernas – É por causa de Phill. Certo?
Phill… Foi e nunca mais voltou ou voltava. Cruzou o mar que tanto sonhava conhecer,
desembarcou em Nápoles, depois conheceu a terra da mãe. Duas semanas mais tarde, partiu para
Orange, passou por Viena, viu Berlim… Feliz da vida, a viver o que merecia por direito, longe
de problemas, pessoas tristes e perdidas, com histórias difíceis e traumas incuráveis. Por vezes,
sonhava com ele, sentado no Box Dead, a fumar no cachimbo. Come Rachel, sit there and drink
with me. E os olhos abriam para a ilusão acabar. Raramente o chamava, raramente o desejava ver.
– As pessoas pensam que por vezes, a nossa dor tem um nome. “É culpa do amor…” Nem sempre.
Às vezes, isolamo-nos de nós mesmo, fechamos as portas, as janelas… Expulsamos a luz e
procuramos a escuridão para esconder a dor. É no silêncio que nos sentimos bem, a murmurar o
peso da nossa alma ferida.
A mão de Amarys toca a sua, ela deu conta disso desde o dia em que a conheceu,
– Phill não é o culpado da minha dor, cortou um pouco mais a linha para a carne abrir e sangrar.
Mas eu já sangrava antes de pisar Londres, já me isolava no quarto e pedia ajuda a quem não me
ouvia. Meus tutores sempre pensaram que precisava de um exorcista, ou ser internada. Eles não
viam que eu só queria estar no meu canto… – as lágrimas escorre pelo rosto – As pessoas pensam
que podem ajudar, mas não ajudam, elas enterram-nos vivas dentro do caixão, sufocam com ideias
e soluções. Só quero estar sozinha.
– Mas elas querem estar contigo.
A cabeça vira lentamente.

427
Sete Nomes

– Porquê? Se não trago a felicidade, só o sofrimento, porque elas querem estar comigo?
– Tens algo no olhar… Esperança. Pedes ajuda mudamente, não estendes a mão, mas usas as
lágrimas. Não te conheço bem, e sei que sofres há muitos anos.
Sofria, a morte por vingar. A promessa que parecia em vão e os nomes tatuados que perdiam o
seu peso. Estava fraca demais para continuar a lista, o corpo também tinha limites.
– Por vezes, é no prazer que nós nos libertamos, porque a vida delimita tudo à nossa volta. Só
gritando algo inconsciente é que realmente revela o nosso bem-estar.
– Sugeres que faça amor com alguém e grite?
– Eu sei que a sociedade é muito fechada, mas há rituais ancestrais que ajudavam a ultrapassar os
problemas. Conheço alguém que pode ajudar-te.
Nega ao olhar para a paisagem.
– Não me deito com mais nenhum homem.
– Porquê?
– Porque só me entreguei quando senti confiança. Podia confiar em Phill, podia confiar em
Elvis… Não posso confiar nos outros que não me conhecem, fazem perguntas sem respostas e
esperam ter o que querem. Encontra outra solução que não essa.
Pelos vistos, a vida amorosa de Rachel era limitadíssima.
– Não sei como te ajudar. Não oras aos meus deuses, não falas a minha língua, não vens da minha
terra… Que adiante fazer-te renascer, se a tua alma está fechada? Gastaria as minhas forças.
– Não quero renascer, quero morrer.
– Então salta. O que tens a perder? Nada. Já estás morta para algumas pessoas, então salta.
O tronco inclinasse para a frente, os olhos fecham-se…
– Não! – Amarys coloca o braço à frente – Estava a brincar. Estás pior do que pensava.
Só deu conta disso agora? As palavras que escreveu já revelavam o que a alma sentia. É como se
a enorme caixa negra tivesse sido aberta, as ideias profundas saíam sem controlo, comandavam,
obrigavam a chorar e gritar. O medo privava o corpo fraco, surgiam os pesadelos, as vozes que
não estavam lá. E os sussurros ao ouvido… Se podes ir, vai. Se queres falhar, falha… Qualquer
mente se envenenava com a própria dor. Por algum motivo as depressões são profundas e
dilacerantes.
– Vamos… Passear pelas ruas, sempre é melhor.
– Quero estar um pouco sozinha, é possível?
Não, nem pensar. Se estava preste a suicidar-se, é porque precisava mesmo de vigilância. Rachel
coloca a mão sobre a dela e pede, com o olhar, para levantar e sair. Não ia saltar, nem mesmo que
a mente quisesse. Amarys assente, talvez as alturas aliviassem a alma. Agarra no chapéu dela e
levanta.
– Pensa nas pessoas que sentiram a tua falta. E que sentirão.
O olhar voltasse para Londres. Aquela cidade, aquela, a qual a mãe amou por ser bela. E odiou,
por os expulsar. Lá estava a brisa quente, intoxicante, mas quente. Desprendia as lágrimas, soltava
da mente as amarras que prendiam o corpo. Queria gritar, ficar rouca de tanto fazer a sua voz
ecoar. Contudo, muda. Rachel, my dear… Fecha os olhos e agarra com força as pedras do chão.
Many things you don’t know about us. Respira fundo para aguentar o que passava pela mente.
Cristal de diamante, onde ela já ouviu isso?

“Rachel, minha querida,


Foste levada de mim, arrancaram-te dos meus braços. Tento aguentar a tua ausência, mas não
consigo. Há muitas coisas que não sabes sobre nós, temos segredos, como todas as pessoas
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Sete Nomes

grandes têm. Todos os dias, penso neles, é como aquelas histórias que te conto… O final feliz
depende da perspetiva. Como sabes, o teu pai, o meu amado esposo, descende de uma família
real. É um nobre, sobrinho bastardo de George, que Deus o tenha. Os bastardos nunca ganham
nada, são esquecidos. Calhou Fredy não o ser.
Eu não sou nada, nasci no campo e morrerei a olhar para a janela. As minhas forças são poucas,
mas a esperança de te encontrar, está intacta.
É Abril, o teu aniversário. Por momentos, ouvi-te a correr pela casa e gritar pelo pai. Dir-te-ia
que teria ido comprar aquelas camélias que adoras cheirar. Ele saiu contigo, meu amor, levou-
te e até hoje, não voltastes. Mal consigo comer, o nosso advogado quase me obriga a abrir a
boca e a engolir a sopa. Não te lembras dele, eras muito pequena quando sorriste para o seu
rosto. Ah… Que saudades de Londres, das ruas majestosas e da exuberância. Mas, o que sinto
mais falta, é de Linford, aquele campo que vai ficar florido assim que o calor surgir.
Dizem que morrerei sem te ver, se vives, estás longe, se estás morta, eu empato a minha viagem.
Eu sei que estás viva, respiras todos os dias e ouso-te… Quer onde estejas, ouso-te. Não chores
com raiva a morte de Cristian, não te revoltes com a vida sem antes a viver com dignidade.
Roubaram-lhe tudo, não roubarão mais, porque tu sempre foste a peça chave desta família.
Nasceste com muito amor e por causa desse amor que todos se revoltam contra nós. Aqueles
homens que o mataram, são pessoas mal-amadas, que mancharam as mãos dezenas de vezes e
que quererão fazer-te mal. Tens que ser forte, perdoar, porque os homens de Deus pecam
constantemente.
Vás para onde fores, não abandones o relógio de Cristian. Ele fez para ti, pensou nos
pormenores todos. O Royal Sean deve continuar a navegar, e se parar, não te esqueças de
amainar a velas.
Se um dia voltares a Londres e não teres ninguém à tua espera, procura Mathilde, a minha prima
afastada. Ela dar-te-á toda a força que precisas, vai-te fazer relembrar a tua infância como se
tivesse sido ontem que aconteceu. Mathilde vive na chocolateira mais doce da cidade. E como és
gulosa, vais encontrá-la.
Ama Rachel, ama como nunca amaste ninguém e não tenhas receio de entregar o coração a
quem o queira. Jamais te cases por obrigação, quebra a fútil sociedade que está errada nas suas
regras. Sê tu, em todos os momentos. Sê um pedaço de nós no teu coração. Se um dia voltares e
eu cá não estiver, quero que saibas que foste o meu maior orgulho. Faria tudo novamente para
te ter nos meus braços e só desistirei de ti quando morrer. Vou até os meus limites, vou enfrentar
quem pensa que me pode domar. Grita nas coisas erradas, grita bem alto para seres ouvida e
não te percas na dor.
És uma mulher, a mais bela que nasceu hoje. Não pares o tempo no teu coração. Estarei lá em
cima a ver-te correr…
Com amor, Angellyne Linford Clarel”

Sugar Flower, era lá que comprava as caixas de chocolate, aquelas que em pequena, devorava
em segundos. Mathilde. Nem se lembraria da filha dela. E se não estivesse viva? Andou à toa
pelas ruas, fugiu de Amarys para nada e agora, estava à chuva sem motivos. Beija o colar da mãe,
custava relembrar as palavras escritas na carta. É como se a visse a chorar no quarto, sobre a
cama. E isso partia-lhe o coração por completo. Fazia o que pedia, seguia em frente e amava aos
poucos. Perdoar não, eles não mereciam o perdão dela.
Uma carruagem passa e ressalta a água para o corpo imóvel. O cabelo desfeito começa a pingar
as gotas com lama. Verão? Enganaram-se na estação, parecia inverno.

429
Sete Nomes

Sobe as escadas da porta de madeira e abre-a. Entra sem olhar para os lados e só Para quando
bate contra o balcão cheio de caixas coloridas. Os clientes ficam abismados com aquela mulher,
estava imunda. Uma mendiga que ia pedinchar, pensava que aquela loja era diferente das outras.
Uma empregada de vestido rosa aproxima-se da jovem.
– Precisa de alguma coisa, MiLady? – fala um pouco baixo.
– Mathilde.
Sorri para os lados e aproxima o rosto.
– Que Mathilde?
Boa pergunta, a família da mãe não tinha sobrenome, nunca se incomodaram a criar um.
– De Linford.
– Não temos aqui nenhuma mulher com esse nome. Pode sair? É que não está apresentável. – faz
sinal com os olhos.
Rachel vira o rosto e dá conta que estavam mais de quinze pessoas na loja.
– Auh…
De facto, estava encharcada, com lama até aos joelhos. Não tinha dinheiro para um guarda-chuva
ou capa impermeável.
– Que Mathilde tem por cá? – olha a empregada.
– A Lady Hook, Johnson, Timeslin, Keymore…
– Tantas assim?
– São seis. – comenta aos mostrar os dedos – Às vezes, nem sabemos qual chamar.
Estava admirada, a loja era tão pequena para seis Mathilde. Mas, a mãe disse que ela vivia numa
loja e, a única que vendia chocolates era aquela, até se lembrava de guardar o papelzinho prateado
a pensar que era papel de ouro.
– Quer que fale com elas, MiLady?
– Ela conhece-me, eu é que não a conheço. É prima da minha mãe, ambas nasceram no campo.
Como ela morreu, pensei que podia encontrar esta parente. Pelos vistos… – começa a recuar – As
portas que se fecham à chave não se abrem com bateres.
– Espere. Se for uma mulher que veio de uma aldeia pequena… E usa leite para o cacau ser melhor
batido, talvez se trate de Mathilde Royal. Nesse caso, vai ter que esperar por ela, foi ao castelo
receber o pedido real. Sabe como é, vossa Majestade adora mimar os netos.
Deixou de saber no momento em que o amante de Windsor se mudou para Orange.
– Onde vive?
– Sai pela porta, caminha até ao final da rua e entra por entre a estreita parede. Depois para quando
ver…
– Folhas de louro penduradas na porta. É ela. Obrigado.
– De nada. Volte sempre, mas com melhor aparência.
Sorri, claro, não queria ser corrida à vassourada da loja.
Sai a correr, agarra nas saias e corre para a tal parede estreita. Um rosto conhecido, um porto
seguro a qual atracar… Passa pelas caixas com o selo das Índias, salta sobre os cães baldios e ao
ver a tal porta, sorri de alegria.
Para e estica a mão às folhas de louro penduradas. A mãe também as pendurava atrás da porta,
para dar sorte e livrar o mal.
– Encontrei-a mãe, eu encontrei-a. – murmura ao olhar o céu nublado.
Abre os braços para a chuva. Que caísse e lavasse a alma. E se ficasse doente? Pior do que já
estava seria impossível.

430
Sete Nomes

Capítulo 61
Os dedos passam pelo rosto frio. Aconchega melhor o tronco e ajoelha-se no chão. Quem era?
Gisele disse que a rapariga entrou desesperada para a encontrar, a mãe morreu e ela era a única
parente viva. Bem, só se fosse a filha de Angellyna, não tinha mais ninguém que a procurasse.
Mas, Rachel desapareceu aos anos, deram-na como morta em Londres. Se estivesse viva, alguém
se lembraria de avisar. Ou não se lembraram.
Coloca o dedo nos lábios e pede silêncio ao filho que limpava a mesa.
Os olhos abrem-se para a claridade. Dia ou noite? Repara na janela. Dia. Então dormiu na rua, à
chuva… A vista movesse e encontra o rosto sorridente. Mathilde. Sim, só podia ser ela. E se não
era? Levanta o tronco em sobressalto e a respiração acelera.
– És a Rachel?
Assente com algum receio.
– Isaac, é a prima Rachel.
O jovem corre para a porta e olha-a. Que bela prima que tinha, dela só conhecia a história,
pessoalmente mudava tudo.
– Como tens a certeza que sou a Rachel que pensas que sou? – pergunta.
– Bem… – pega no colocar dela – Trevo de quatro folhas, Cristian mandou fazer um colar em
ouro para que Angellyne o pudesse usar todos os dias. Se não és a filha desaparecida dela, não sei
quem és.
Desaparecida… Não estava morta para eles. Abraça a prima afastada, desata a chorar como se
fosse uma criança pequena a querer colo. As mãos ásperas tocam o cabelo despenteado, pobre
menina, não era mais a cachopa Rachel, mas até os grandes sofrem.
– Estás em casa.
Assente, até o cheiro dela parecia o da mãe. Fecha os olhos, consegui senti-la. Aos anos que
precisou de a voltar a ter, pedia, com os olhos vazios, um mimo semelhante a Maddey. Ela tentava,
esforçava-se, mas não tinha o toque natural que só a mãe tinha. Não se podia substituir a pessoa
que nos dá à luz, cuida dia e noite e pega-nos nos braços com tanto mimo que, dá vontade de lá
passar a vida.
– Queres contar-me quando voltaste?
Sai dos braços e limpa o nariz à manga do vestido. Senta no sofá e baixa o rosto. Meses, a primeira
coisa que fez quando voltou foi matar, não se limitou a procurar ajuda ou os parentes vivos.
Porquê? Pensou estar sozinha na sua busca pela justiça, não quis relembrar as palavras da mãe e
chegar a um caminho com luz. Depois de enfrentar a escuridão, teve coragem de recomeçar.
– Cheguei em fevereiro.
– Ena, há seis meses. Que aventura. – sorri.
Os olhos reparam bem no rosto de Mathilde. Quarenta e nove anos, ligeiras rugas no rosto
cuidado, olhos castanhos e cabelo apanhado à nuca. Casou muito tarde e ficou viúva muito cedo.
Teve apenas um filho, Isaac, de vinte e seis anos. Fazia chocolate, mudou-se para ali para aprender
e produzir. Melhor amiga de Angellyne, apostava que sabia tudo de tudo, os segredos e as
preocupações. Sempre bem-recebida, e aquela que representou a prima no casamento. Um dia, a
mansão Clarel fechou as portas e Mathilde deixou de puder entrar.
– Desculpa.
– Pelo quê? Eu é que te devo desculpa, devia ter tentado saber se estavas viva de verdade, porque
em Londres, nos registos, estás morta.
– Recentemente estou.

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Sete Nomes

– Não, quando Logan voltou com a identidade do teu pai, ele mandou registar que estavas morta.
Mandou até fazerem-te uma campa e um caixão vazio. Angel ficou destroçada com a crueldade
dele, matou o marido e enterrou uma criança viva. Rachel, o que aconteceu contigo?
Todos os dias perguntava-se se realmente tomou as decisões certas. Não, seguiu os caminhos
errados para chegar a uma porta fechada.
– Chester deixou-me num orfanato. Só consegui fugir aos doze… – as lágrimas escorrem –
Cheguei tarde a casa, a minha mãe tinha morrido no dia anterior. Cresci aos cuidados de Jason, o
meu avô paterno. E andei por caminhos errados. – desata a chorar outra vez.
Mathilde faz sinal para Isaac trazer água, ela ia precisar. Abraça-a, pobrezinha, sem pai e sem
mãe, claro que não ia conseguir refazer a vida da mesma maneira. Mas se estava ali, é porque um
dos caminhos que seguiu, valeu apena arriscar.
– Desabafa o que te pesa, Rachel, podes confiar em mim.
Agarra com força o tronco dela, nem imaginava como precisava de ser ouvida por quem a
conhecia bem. Confidente da mãe, e agora, passava a ser sua.
A chama aquecia o leite na enorme panela. No outro lado, a fervilhar, o cacau com água derretia
fazia pequenas bolhas de ar que arrebentavam. A casa não tinha outro aroma, desde a cave até ao
sótão, só existia espaço para o doce aroma do chocolate. O segredo vinha de longe, Zurique,
Suíça. E como chegou? O marido de Mathilde foi chocolateiro lá, transmitiu à apaixonada aluna
os truques todos. Pena que morreu intoxicado com o pó do cacau.
A enorme colher mexe o leite. Isaac seguia os passos do pai, queria ser tão bom quanto ele. Não
pensava em família, a sua ambição era fundar uma marca que andasse na boca das pessoas. Ter
uma fábrica enorme e exportar para os quatro continentes. Sonhos, a fortuna não era muita e não
havia margem para bancar a despesa. Por enquanto, o seu pequeno negócio vivia na cozinha e
saía para a loja. Nada mau, melhor que esperar que chova dinheiro.
Sorri para a prima de olhos fixos no chocolate já feito.
– Qual é que gostas?
Vira o rosto e limpa a boca suja. Isaac ri, ela não resistia.
– Desculpa, sou completamente viciada em Chocolate.
– Ninguém resiste.
Rachel mete outro bombom à boca e senta na cadeira.
– Gostas desta vida?
– Adoro… É difícil arranjar uma mulher que goste. Elas preferem a caixa cheia, não a vazia.
É verdade, as londrinas queriam homens com grandes empregos e visões, sonhadores não tinham
lugar nem no parlamento.
– Talvez alguma goste tanto de fazer como comer.
– Como tu?
Nem assente, nem nega.
– Comer, gosto mais.
– Lamento a tua história de vida. Deve ser complicado querer matar sete pessoas e elas escaparem
sempre.
O que mais custava numa vingança era ter nervos de aço para assassinar uma pessoa. Se a mente
não fosse forte o suficiente, os remorsos assombrariam dia e noite, não conseguiria dormir ou
comer sem pensar sobre o assunto. Reveria, mal fechasse os olhos, o rosto de quem perdeu a vida.
Com o tempo e com a consumação do erro, custava menos ver ou fazer.
– Preferia ser uma chocolateira e não uma assassina.
– Entendo.
– Rachel, podes ficar no quarto… – Mathilde entra na cozinha – Já está prontinho.

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Sete Nomes

– Obrigado prima, mas quero continuar a viver por entre os pobres. Lá ninguém me vai encontrar
e estou segura.
– Tu é que sabes. – levanta a tampa da panela com cacau e água – Então esse príncipe nunca mais
vai voltar?
Não entendia o porquê de todas as pessoas tocarem nesse assunto. Phill não era assim tão
importante para ser relembrado todos os dias. Vira o rosto ao cruzar a perna, negava-se a falar
sobre ele.
A prima sorri ao fazer sinal para o filho, um coração cheio de saudades.
– Aposto que pensa em ti todos os dias.
– Não, segundo soube, anda de namorico com uma princesa. Que seja feliz na sua decisão.
– E tu serás? Quem te garante que não é mentira?
O olhar move-se. A pessoa que lhe contou era de confiança, um parente que por lá vivia. Ou Phill
mandou Walter escrever aquilo para a deixar cheia de ciúmes. Deu a resposta certa, “Que seja
muito feliz com ela e se possível, que não fale dele.” Até agora as cartas não chegaram à nova
morada.
– Serei.
– As mulheres da nossa família amam intensamente, não sabem o que é viver sem amor.
– Posso ser diferente.
– Rachel, és Angellyne por completo. Se ele arranja outra mulher, o teu coração vai-se partir.
Pega na caixa e desata a comer. Não, se Phill a amasse de verdade, não andava a namorar com
uma princesa linda, de uma grande família europeia. O que ele viu nela? Porque a trocou?
– Acham que deixei de ser boa para ele? Quer dizer… Viver num slum não é assim tão mau. Não
o devia ter mandado embora. Não! Fiz a coisa certa.
Ambos desatam a rir, ela agia feito uma adolescente a falar à mãe o amor da sua vida. Ciúmes,
comia para os esconder.
– A princesa Yerne tem o quê a mais? Um castelo? Um cavalo? Um vestido de seda? Não entendo!
Disse que me amava com todo o coração e trocou-me. – fala com a boca cheia – Sinto a falta dele.
– conclui ao ver a caixa vazia.
– Ainda bem que não vives aqui, estaríamos falidos.
Desata a rir ao passar a mão pelo cabelo. Realmente, não sentia necessidade de beber, apenas de
comer chocolate. Suspira, um riso que não dava há meses. Amar e ser amada, tarefa difícil se não
lutar por ela.
– Acho que… – Mathilde limpa os dedos – Se ele te amar e sentir falta, acredita em mim, não vai
aguentar por muito tempo o sacrifício.
– De coração prima, eu quero que Phill seja feliz nas suas escolhas. Deixei de me apegar tanto
aos sentimentos que nos destroem. Amei Elvis e perdi-o, amo Phill e estou a perdê-lo. A vida
escolhe os dados, nós lançamos e vemos a casa que nos calha. Ele jogou e ganhou, agora que viva
sem amanhã a sua felicidade.
– E qual é o homem que é feliz longe de quem ama?
– Aquele que volta a amar e aprende a enterrar os desgostos que encontra. Ele fez o mesmo com
as ex-namoradas quando me conheceu, colocou-as num canto do coração para entrar. Yerne é a
sua nova razão de viver, lá irei encontrar a minha.
– Enfim, nunca me engano, mas tu és igual à tua mãe. Teimosia impossível de quebrar. – abre
uma caixa.
O rosto vira-se para o sorrisinho que se escondia atrás da mão.
– Rachel. – chama.
– Eram de avelãs, eu amo chocolate com avelãs.

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Sete Nomes

Isaac coloca a mão na barriga, não consiga aguentar o riso. A prima suspira ao colocar a mão na
testa, que Clarel mais gulosa.

Atira a espinha da sardinha a Amon e lambe os dedos gordurosos. Estava preocupada, mas
conseguiu dormir bem à noite. Porquê? Ali, na pequena cidade dos pobres, as pessoas apareciam
e desapareciam, mais ninguém andava à procura delas. Se estavam vivas, voltavam, se estavam
mortas, Deus já as levava para casa. O que não sabia era o que fazia com aquele quarto cheio de
palavras escritas na madeira. Teria que esconder aquilo com tecidos coloridos. Ou colar papel de
parede. Qualquer coisa que não assustasse o gato sensível, podia ser um animal, mas tinha
sentimentos.
Limpa a mão a um pano e derrama mais vinho no copo de cobre. Tinha que reparar o telhado, a
madeira seca estalava assim que a água infiltrava. Depois, invés de uma casa confortável, tinha
um aquário.
Vira o rosto para o gato, que pai ele era, nunca alimentou os filhos que fazia. Nem Amarys se
responsabilizava, os animais lá sabiam da sua vida. O corpo estremece ao som violento. O olhar
foca a caixa com laço colocada na mesa.
Levanta a vista, admirada, daquela não estava há espera.
– Pensei que tinhas morrido.
– Só se morre uma vez na vida. Tenho sete vidas.
Pega na caixa, desfaz o laço azul e vê o que abria o apetite.
– Isto não paga o que fizeste no quarto.
– A ideia não é pagar, apenas adoçar o teu paladar.
Diferente, algum milagre aconteceu. Fecha a caixa e entrelaça os dedos sobre a mesa.
– Chegou uma carta de Boston.
– Dinheiro? – entra na cozinha.
– Não abri.
Pega num copo, derrama o brandy e bebe. Pelo menos, existia ali respeito de privacidade. Maior
parte das pessoas não aguentavam ver uma carta fechada, principalmente quando o carteiro se
engava na casa e dava a um estranho a correspondência. Os segredos criavam rumores por algum
motivo.
– Podes preparar-me a pistola que tens na gaveta?
– Depende do uso que darás. Sabes usar um revolver?
Encosta o copo aos lábios. Estava decidida a tentar assassinar um nome. Recuperou a coragem e
devia aproveitá-la antes que a solidão invadisse o coração. Daniel tinha as horas contadas, a menos
que o seu relógio também tenha parado no tempo.
– As balas servem para matar. Então, não as deixemos que fiquem com ferrugem. – pousa o copo.
Ação… Amarys olha para o olho desenhado no chão, a alma dela regenerou após ser ferida. Sorri,
levanta da cadeira e caminha para o quarto, os seus deuses faziam milagres.
Boston. A mão pega na carta sobre um livro de conduta. Jason. Rachel, I don´t have good news.
Encostasse à parede e lê as novidades. A mansão estava por um fio, não havia como provar que
Rachel estava morta, mas também não comparecia ao tribunal para calar as vozes que se
levantavam. Em última estância, pediu ao juiz um tempo, pois a dona estava viva e se encontrava
em Londres a tratar de assuntos. Já nem invocavam o nome de Cristian Clarel, para eles, saber
que estava vivo, traria uma grande contestação.
Abre a gaveta, pega nas folhas brancas e na tinta para o estilete. Provas? Senta na cadeira e ajeita
o braço para escrever.
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Sete Nomes

“Jason,
A única maneira de provar que estou viva é enviando uma foto minha ao tribunal. Porém, como
ambos sabemos, essa ideia não está tão bem difundida. Faz os possíveis que farei o mesmo cá.
Falarei com Wood, ele tem sempre uma resposta na ponta da língua. Matarei Daniel o quanto
antes e se não der resposta, é porque morri a tentar. Não demores a voltar, preciso de ti.

Tua neta, Rachel Clarel”

Os olhos erguem-se para o gato que espreitava para a folha. Pousa o estilete no copo com tinta,
sacode a escrita para secar. O olhar continua a focar o do animal. O que quereria? Não bastava a
maldita retira azulada a ver tudo, como aquele gato cusco queria ler os segredos.
– Se tens fome, vai comer à cozinha.
Desata a mimar, deita na mesa e mexe as patas.
– Mimo? Não, estou ocupada. – pousa a folha – Tenho uma vida, ao contrário de ti. Se fosse gato,
dormiria dia e noite após comer.
Amon mexe as orelhas e a cauda felpuda. Rachel mira-o, é como se aquele olhar penetrasse a
alma e fosse mais fundo na questão existencial. Hipnotizada, nem se conseguia mover para tapar
aquele rosto felino…
Estremece ao ouvir o revolver bater na mesa.
– É muito diferente da uma pistola de pólvora. As balas estão na caixa. Só leva cinco. Aproveita-
as bem.
Rachel estica a mão para a arma. Já usou revolver em Boston, não esperava é ver Londres ter
aquele brinquedo à venda.
– Onde o vais matar?
– Na doca. Alguma sugestão?
– Algumas… – senta na cadeira – Costumamos amordaçar em Amarna. Se Anubis faz-nos a
sentença lá em cima, se não tivermos voz, não poderemos pedir o retorno.
Aqueles deuses do deserto faziam qualquer pessoa repensar a religião. Ainda bem que não era
devota a cem por cento.
– Envia estar carta ao meu avô, a morada está na outra. – levanta.
– Walter também mandou. Essa eu abri, porque já estava aberta.
A cabeça vira-se para trás. Aberta? Os carteiros não abriam a correspondência, era um crime
punível. A menos que alguém tenha apanhado a carta, aberto, lido e colocado no marco de correio.
– O que dizia a carta? – aproxima-se.
– Stayci está em Londres, Walter ficou em Orange. Só isso.
Nega ao ver que o olhar escondia mais alguma coisa.
– Phill e Yerne. – conclui.
– Não sei de nada.
– Se a minha prima está, corre perigo de vida. – entra no quarto.
– Achas? – Armys espreita.
Não havia certeza maior que essa. Se fosse uma inocente carta relativa a saudades, jamais seria
aberta e colocada no marco de correio. Veste as calças ao baixar as saias. Gwenny ia matá-la,
acusar alguém de sua morte. Levanta a vista, os dedos param de apertar os botões. Morta, Rachel
estava morta há dois meses. Se a prima a visse, denunciara-a a Logan, seria caçada dia e noite.
Senta na cama ao abanar a cabeça, Stayci corria perigo, mas se surgisse à luz do dia, ambas
morreriam.
– Tu podes salvá-la.

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Sete Nomes

– Nem a conheço.
– O facto de ninguém te conhecer, já é um trunfo. Preciso que lhe entregues um bilhete.
– É de loucos…
– Stayci está na mansão Clarel, Windsor. Gwenny vai receber-te… – ergue-se – Quando
encontrares uma mulher de cabelo louro, é ela.
– Apareço lá assim, do nada e entro?
– Não. – pensa um pouco – Os pobres têm o poder de serem invisíveis. Vais tentar vender-lhe um
gato.
– O Amon?
Abana a cabeça.
– Arranja gatos pequenos, mete numa grande cesta e veste algo elegante. Depois, dizes que
ouviste de um nome que Gwenny Clarel estava interessada em comprar. Dir-te-á que é engano,
então argumentas que foi um príncipe. Vai deixar-te entrar, é uma mulher muito vaidosa. Tenta
vender e entrega o bilhete a Stayci.
O dedo tenta enrolar a trança, fez o plano ali, sem deitar na cama e pensar sobre o assunto. Sem
palavras, poucos conseguiam ser tão calculistas ao ponta de saberem o que os outros iam dizer.
– E se não estiver lá?
– Estará num hotel. Phill deve-lhe ter dito onde estava a viver.
– Acho que ainda não destes conta de uma coisa, a pessoa que leu a carta, não procura a tua prima,
procura-te.
– Como me procuraria… – cessa a voz.
Entra na sala e pega na carta vinda de Orange. A morada. A rua onde estava a viver. Não tinha o
número da casa, mas tinha a maldita localização. Claro… Logan esperou o carteiro nos correios,
explicou que estava à procura da filha e pediu ajuda para a localizar. Rachel Clarel. Simples
demais no momento em que o remetente estava lá e, o selo holandês, colocava a cereja no topo
do bolo.
– A que horas chegou isto?
– Há cerca de dez minutos.
Dez… Em uma hora o inimigo estaria ali a vasculhar. Se Rachel estivesse morta, as cartas
paravam de chegar. Se estivesse enterrada, o primo não dizia que sentia a sua falta e que tivesse
cuidado em matar o próximo. Não apanhava as cartas vindas de Boston porque o remetente tinha
outro nome, se fosse lida, veriam que se tratava de um desabafo. Encontrada… Pega no papel que
escreveu, na carta do avô e entra no quarto.
– Vais embora? – Amarys pergunta.
– Logan vai chegar daqui a nada. – pousa a mala na cama e abre-a – Não posso ser encontrada ou
tu denunciada.
– Porquê?
– Porque odeio ver morrer quem entra na minha vida. – atira as restantes cartas para dentro – Já
ajudaste muito para correr riscos.
– Onde vais ficar?
Dá de ombros, veste o casaco longo e acaba de arrumar as suas coisas espalhadas.
– Se desaparecer por umas horas, talvez ele desista de mim. Ou terei mesmo que partir.
– Gostas de subterrâneos?
Vira o rosto.
– Depende.
– Conheço um contrabandista que vive numa antiga estação de metro, na outra margem do rio.
Ele é muito procurado pelos policias, mas ainda ninguém o encontrou. Se quiseres, encontra-o na
antiga capela, ao pé de um prédio abandonado. Fala que vens da minha parte.

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Sete Nomes

Não entendia aquela caridade, aqueles estenderes de mãos no momento de aperto. Havia
humanidade nas pessoas, tinha que encontrar as certas para entender que no meio do caos, pode
haver sempre uma porta que se abre.
– Obrigado Amarys.
– Antes de ires… – desaperta um colar do pescoço – Quero que leves isto contigo…
– Por favor…
– Sim. É um escaravelho pequeno em ouro. Foi graças a ele que sobrevivi ao afogamento do Nilo,
sempre me protegeu. – dá duas voltas ao pescoço e prende a corrente em ouro – Está abençoado
pela minha antiga religião, banhado pela águas sagradas da mais velha sabedoria. Quero que
consigas o que tanto precisas.
Os dedos sentem o pequeno escaravelho que ficaria ao lado do trevo de quatro folhas. Um
centímetro, não teria mais que isso.
– Não sei o que dizer, a última vez que uma amiga me deu força, eu perdia-a.
– As pessoas morrem pelas outras no momento em que as amam. Não te amo nem és a minha
melhor amiga, mas sinto que por vezes, deves encontrar outra maneira de lutar. Usa com sabedoria
as tuas decisões e lembra-te, uma boa vingança é aquela que se sobrevive para relembrar. Que
Amon vá contigo.
Abraça-a, estava tão agradecida pelo apoio que, nem tinha vontade de ir embora.
– Anda, vais sair pela porta dos fundos.
Rachel pega na mala, arruma o revolver no bolso e segue. Acena para Amon sentado na mesa,
teria saudades daquele gato. Amarys abre a pequena porta traseira, mesmo ao pé da parede de
tijolos vermelhos.
Dá-lhe a mão antes de pousar a mala no outro lado.
– Manda comprimentos…
A cabeça vira-se ao som do violento disparo. Empara o corpo de Amarys, sente o sangue nas
mãos e levanta a vista para o corredor. Logan. Ali. Com a pistola na mão.
– Eu sabia que não tinhas morrido! – comenta ao baixar o braço.
Rachel toca no rosto de Amarys, um tiro na cabeça, nem a deixou pedir a última vontade. Sente
as lágrimas nos olhos, nega ao sentir uma enorme culpa a invadir o peito. Não, não podia morrer
assim, tão jovem e cheia de esperança. Não. Injusto, ela não entrava naquela disputa, levou o tiro
que seria para si.
– Matas todos que me ajudam, porquê Logan? – crava as unhas na terra.
– Tu é que tens culpa destas mortes… – caminha lentamente – Não te entregas, adias a tua
sentença e condenas os restantes.
Que mal fez aquela mulher a ele? Apenas abriu a porta a uma estranha problemática, orou por
sua alma e no final, deu um caminho a qual percorrer. Quem era bom, tinha sempre o mesmo final
cruel.
– Rachel… – abaixa-se e toca-lhe a pele.
O rosto vira para o lado e as lágrimas descem.
– Onde está Selena? Hm? Onde anda ela? Deves saber, Gewn garantiu que ambas se confessaram
lá na igreja. Não te quero fazer mal, se quisesse, ter-te-ia morto.
Ainda essa história… Se ainda não foi encontrada, é porque se escondeu em Linford, como pediu.
– Rachel… – murmura ao ouvido – Onde está a minha filha, Rachel? Sabes qual é a dor de se
ficar sem pais, sem amigos, sem aliados… Até o pugilista te abandonou. Já deste conta de algo?
Hm? Que estás sozinha nesta vingança, como sempre estiveste ao longo destes anos todos.
Exatamente como o teu pai esteve há treze anos atrás. Primeiro, Cristian se isolou dos amigos,
fugiu de todos, cancelou festas, bailes, reuniões… Depois, limitou a entrada de pessoas na sua

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Sete Nomes

casa. Viajou para longe a pensar que o problema estava resolvido. Sozinho. Deves lembrar-te do
tiro certeiro ao coração. Tic-tac… Parou em dois segundos. Lembraste?
Não existia um único dia que não revivesse essa injusta morte, o acerto de contas que agora ela
queria acertar. Os mesmos passos do pai, o mesmo destino fatal. Aperta com força a mão de
Amarys, estava com medo, muito medo do que pudesse acontecer naquele momento.
– Tu foges… Foges… Deves ter corrido Londres de este a oeste. Nos slum… Jamais teria pensado
neste nojento lugar infestado de ratos. Mas lembrei-me, assim, por momento… William partiu
para Nápoles no dia a seguir ao da explosão da torre. Aquele príncipe teria chorado pela morte do
filho. Então, bateu certo. Tu não morreste, apenas te escondeste. Ainda bem que uso a cabeça.
Claro, as cartas. Não procurava uma parente dela, procurava-a.
– Podes ter um destino diferente de Cristian. Se contares onde Selena está, eu repenso o teu difícil
caso. Acho que ambos temos a ganhar se nos unirmos.
Vira o rosto, é que não entendeu bem o que pediu.
– O que ela te fez para a caçares como se fosse um animal?
– Digamos que aquela menina guarda muitos segredos que me podem condenar, muitos crimes
contra vossa Majestade, Londres… Atentados… Sustos dados a pessoas que não se movem com
o dinheiro… Neste momento, estou mais focado em apanhá-la, do que em te apanhar para matar.
Eu entendo a tua revolta contra mim, passei pelo mesmo quando perdi o meu filho. Mas… Há
maneiras de perdoar, não achas?
Forgive… You are the key. As palavras da mãe surgem à mente. A chave da família. Perdoar
Logan, entender a sua dor. Larga a mão de Amarys e assente aos pensamentos. Sim, não podia
viver naquela dor para sempre. Se podia recomeçar, como Phill recomeçou, devia de tentar.
Levanta e abre os braços.
Um enorme sorriso surge no rosto dele, tinham finalmente um acordo. Ergue-se e aproxima o
tronco… Rachel não lhe toca, não envolve os braços no corpo como realmente queria. Os lábios
achegam-se ao ouvido esquerdo.
– Sabe quando o irei perdoar? Quando estiver morto, enterrado debaixo de terra e no inferno a
arder. Custa ver os monstros que se cria, não custa? Selena não me disse para onde ia, e mesmo
que dissesse, eu jamais abriria a boca. Merece viver com a vida nas mãos. Sabe, entendo-o por
completo, só faço o que fez pela alma do seu filho, justiça. Matou Louisiana, matou Amarys e
Abie… Não se preocupe que o seu fim está perto. Vale mais sozinha que mal-acompanhada, mal-
amado. – recua a cabeça.
O olhar de Logan estava obscuro. Ódio. Raiva. Tal pai, tal filha, a mesma teimosia em dizer não,
a mesma forma de dizer que ia em frente para a morte e só no fim é que desistia se não visse
alternativa.
Rachel agarra na alça na mala.
– Desta, eu não esqueço. Mais do que nunca, estou com vontade de o matar. Eu sei da vossa
jogada de mestre, espera que mate Daniel para herdar a fortuna toda. Achas que não saberia disso
mais cedo ou mais tarde?
Levanta a mão e agarra-lhe o pescoço, empurrando o corpo contra a parede de tijolos.
– Quem te contou isso? – grita.
– Deus. Já te contei que falo com Deus há noite? – sorri – Se queres que o teu amigo viva, mata-
me agora.
Vontade não faltava, aperta o pescoço com força, aquela traqueia partiria… Larga e recua as
mãos. Rachel ri ao assentir, claro, tudo se tratava de uma questão de perspetiva. Negócios, até a
vida dos outros era um estúpido negócio.
Volta a pegar na alça da mala e caminha para fora da estreita rua lamacenta.
– Prepare os advogados, Daniel morrerá ainda esta semana.

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Sete Nomes

Não a segue com o olhar, a pergunta ecoava na mente vezes sem conta. Como sabia da existência
desse papel assinado por todos? A terceira pessoa misteriosa, aquele Deus com qual ela falava.
Daria qualquer coisa para descobrir quem era, qualquer coisa.

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Sete Nomes

Capítulo 62
Contrabandista de livros, procurado por todas as bibliotecas da cidade. Teria, debaixo do túnel
subterrâneo, mais de dez mil, em caixas e prateleiras altas que tocavam as abóbadas em arco. E o
tal homem? Era um velho magro, com óculos pequenos ao pé dos olhos vesgos. Vestia roupa
larga e folgada, bebia vinho e comia ovos todos os dias, a qualquer hora. De manhã, escovava o
cabelo até ao ombro cem vezes, depois colocava os dentes falsos na boca e lia um livro. Casado?
Depende da personagem que tenha lido. A favorita era Julieta de Verona. Odiava Romeu por ter
sido tão cruel ao ponto de a fazer morrer. Um lunático viciado em ficção.
Rachel esperou de tudo, um traficante de carne, crianças, dinheiro… Contrabandeava até os
dentes dos mortos ou os ossos passados por marfim. Quando entrou naquele túnel, ficou confusa
por completo. Então, ele roubava livros? Um ladrão de histórias? Encontrava cada pessoa naquela
cidade.
Parte o ovo cozido na panela de cobre e olha para o tal. Chamava-se Khamero e o sotaque era
meio afrancesado. Um metro e oitenta, raridade por completo. Mete o ovo à boca, melhor que
dormir na rua, comer restos e pensar do porquê de se ser tão miserável. Tinha uma cama, lá trás,
na última parede, cheia de livros sobre o antepassado dos grandes impérios. Que azar, o Egito
estava lá enfiado.
Casa de banho debaixo das escadas para a porta fechada às sete chaves. Uma estreita banheira e
penico, porque não havia canalização. A água tinha que ser aquecida na panela de cobre, sobre a
braseira que fumegava para um cano largo. Dois sofás de madeira, uma mesa e velas em todo o
lado. Segundo ele, aquele túnel iria ser alargado, passar por debaixo do Tamisa e unir ambas as
margens. Não passou de um esboço. Se seguisse o corredor para as restantes portas de embarque,
veria que mais pessoas como ele viviam assim, debaixo de terra, sem condições, luz do sol ou
barrulho da rua. Calhou Khamero ficar com aquele pequeno espaço, para lá da parede de tábuas,
vivia outra pessoa.
Desaperta o colar com o escaravelho. Amarys não merecia aquela morte, aquele tiro no crânio.
Aperta com força e junta aos lábios. Sorry. Forgive me Amon.
– Ele deu-te o seu kha.
Vira o rosto para o contrabandista.
– O quê?
– Kha. Coração em egípcio. Ahnk é vida. Juntas, antes de partir, Amarys deu-te a vida.
O olhar estava vidrado. Não entendeu nada, apenas se sentia culpada por a ver morrer. Mais uma
na sua longa lista de pessoas que ajudaram e morreram.
– Criança, Londres é assim, uns vivem, outros morrem. Olha hoje, perdeste uma amiga, mas o
povo ganhou direito ao voto. Finalmente os operários podem votar. Isso não é maravilhoso?
A democracia não tinha nenhum lado bom. O estado possuía sempre duas caras, a dos ricos e a
dos pobres. O problema é que quando a moeda é lançada ao ar, quem tudo tem, ganha e quem
nada tem, é obrigado a pagar. Que adiantava ter direito ao voto se as leis não são aprovadas? Se
os representantes só ganham um lugar lá, e continuam a ser mudos? Se é para viver no
absolutismo, então que a monarquia vire a politica, porque o estado já sufocava muito os de
sempre.
– Gostas de ler?
Rachel dá de ombros, há três anos que não lia um livro.
– Não andei na escola. Tudo o que sei veio dos livros que lia da grande biblioteca de Boston. O
senhor deve ser viciado em letras.
Khamero revela o sorriso, limpa os restos para as brasas e cruza a perna.

440
Sete Nomes

– Digamos que… Cresci na corte de Paris. Mon papa, grande homem de letras, foi responsável
pelo que Napoleão Bonaparte roubava aos outros países. Que imperador mais soberbo…
Magnifique. Trazia de Roma quadros jamais vistos, obras primas. E livros, grandes filosofias,
grandes histórias narradas naquela terra. O meu primeiro romance chamava-se Rosa Nero. Rosa
Negra. Intenso, chocante e marcante. Caiu Napoleão, e os outros reis fizeram questão de reclamar
o que era deles. Com isso, grandes livros foram roubados, empilhados, queimados… Esta rainha
não foi a culpada, mas George IV não teve dó nem piedade dos franceses.
Um revoltado, mais um que não estava contente com o passado e o presente.
– O que fazes aqui?
– Ah… Vim para cá por engano, disseram que contratavam limpadores de sapatos para Saboia,
vim parar a Londres e nem dei conta da travessia. Virei mendigo e perito em roubar.
– Confesso que quando Amarys o referiu, pensei que se tratava de um perigoso contrabandista.
Afinal, já vi pior.
– Rachel… – pega num livro – Só pego o que nós, povo, paga ao parlamento. Além disso, cada
um alimenta a sua vida de maneira diferente. Um dia, alguém vai pegar neles e queimar. É assim
que as pessoas olham para a cultura, não param na rua para ver, seguem caminho.
Não havia tempo para futilidades, ninguém acreditava que o teatro podia encher a carteira ao
final do mês. Por algum motivo só os burgueses e os nobres é que se davam ao trabalho de ir lá,
os operários não tinham tempo nem para urinar.
– Quantas línguas falas?
– Porquê?
– Não perguntas o que falo em francês. – abre o livro.
– Falo as necessárias para sobreviver. – levanta da mesa.
– Vais sair?
Pega no casaco e veste. Ia. Viu algo pelo caminho e queria ter a certeza. Pega numa chave e sobe
as escadas.
– Tem cuidado.
Nem dá resposta, viver em Londres já era um descuidado tremendo. Passa pela porta e tranca
novamente à chave. Túneis… Até ali os sem casa construíam uma, colocavam no chão farrapos
que serviam de cama, caixas baixas como almofada e a roupa do corpo bastava como aconchego.
O ar quente fedia a sopa, legumes comprados ou roubados, com carne incerta e estômagos
esfomeados para o jantar. Melhor que nada, os pobres aprenderam a contentar-se com tudo o que
conseguiam.
Mete as mãos aos bolsos. Habituou-se ao forte cheiro a falta de higiene, às toses descuidadas que
se espalhavam, aos olhares cintilantes que morriam lentamente. Miséria de vida, injustiça de
Deus. Não se entendia, os hipócritas tinham o altíssimo a seu lado, os crentes perdiam-no. Sobe
as escadas para a rua. Sete da tarde, a luz do sol a pôr-se escondia-se por detrás das nuvens que
ficavam pintadas de rosa e amarelo alaranjado. Belo quadro, os londrinos não olhavam para cima,
preferiam focar os pés.
Candeeiros a óleo eram acessos, homens de escadote andavam de poste em poste, com a caixa
de fósforo na mão. E a eletricidade? Pioneira por completo, que desenganasse quem pensava que
aquele luxo chegava às ruas. Para isso acontecer era preciso rasgar o chão e meter os cabos
elétricos por debaixo da terra. Ninguém no parlamento aprovou essa ideia, então, o óleo continua
a iluminar as ruas.
As pessoas voltavam a casa, olhavam para as montras iluminadas e pensavam se podiam comprar.
A damas afortunadas enchiam a carruagem com caixas coloridas, vestidos vindos de Paris, modas
de outra sociedade mais ou menos problemática. Os que viviam com bolsos vazios, contavam o

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Sete Nomes

salário ganho. Um aniversário com direito a um bolo. Um mimo à família que vivia com a corda
da forca no pescoço.
As carruagens não se alinhavam para circular, umas para cá, outras para lá. Pessoas no meio a
atravessar… Descuidado no olhar focado em outras coisas. Se uns riam, outros gritavam pelos
direitos. Listen us… MiLady, you need listen. Não ouviam, a sociedade surda andava com os
olhares fixos no horizonte. Mas a mulher gritava com a lata na mão. Coitada, viúva e mãe de
filhos esfomeados. Procurava ali, na multidão, alguém que lhe desse ajuda. Uma moeda colocada
lá, e a bênção é dada.
Boston estava longe de ser uma Londres, àquela hora, Bell Street começava a ficar desértica, as
empregadas fechavam as janelas das casas, compunham as cortinas e serviam o jantar. As lojas
faziam as contas. Os mendigos levavam debaixo do braço o papelão e dormiam nos cantos de
uma casa com escadas. E quem quisesse caminhar, no meio, com a luz do candeeiro, podia. Jamais
ouviria gritos daqueles, agitação e confusão. Só naquela rua, porque bastava ir para outras para
se ver uma sociedade em ascensão, pessoas que gostavam de um bom teatro, recital, jantar fora
ou passar tempo nos cafés. Dançavam o tango do México e fumavam o cubano da Jamaica. Havia
lugar para mais um estranho, apostavam os dólares na mesa e riam das damas que se casavam
com os impensáveis.
Saudades de casa, Rachel sempre se sentiu excluída daquela sociedade. Calças na rua? Nem
ligava para as mulheres que murmuravam para o companheiro, ou por detrás do leque. Que falem,
que vejam outra forma de ser mulher naquele século negro. Mãos nos bolsos e passos lentos, a
vida não estava fácil, mas complicá-la não era solução.
Como suspeitou, como tanto previu. Carruagem real na Picadilly Circus, num restaurante francês.
Não se tratava de um príncipe herdeiro, ou de uma princesa. Encostasse ao poste de iluminação.
Phill voltou. Trouxe com ele a futura esposa para, possivelmente, conhecer a amiga que usava a
coroa. Um restaurante… Que voltas aquele homem deu.
Ia não ia, ficava, desaparecia. Tantas decisões a tomar em apenas segundos. Deixa viver quem
fez a sua escolha. Quis ir, queria ser feliz na sua fortuna, numa família que o ia aceitar. Para quê
envolvê-lo novamente numa vingança?
Vira-se, perdeu o seu tempo ao ir ali… Olha para trás. Mas o amor superava qualquer dor.
Caminha para o restaurante, desaperta o cabelo e ajeita o casaco. Coragem, se teve até agora, não
ia fraquejar. Sobe as escadas, coloca a mão na porta de vidro… Para. Não valia apena. Lá dentro,
vestido como um verdadeiro príncipe, estava Phillipe de Orange, a rir consoante falava, a comer
corretamente com faca e garfo, acompanhado de uma mulher de cabelo castanho quase dourado
e vestido rosa. Bela, jovem, sem uma vingança na mala, tatuagens nas costas e cicatrizes absurdas.
As lágrimas chegam aos olhos, descem sem permissão a pele. Recua a mão do vidro… Príncipes
não se casavam com mulheres sem dote, sem família ou dinheiro. O amor era só um fútil
pormenor.
– Vai entrar, MiLady? – um homem pergunta.
Nega ao descer as escadas.
– Temos uma mesa disponível.
Não olha para trás, o choro aparece no peito e os soluços aumentam. Trocada, pensou que ainda
tinha chance. Perdeu-o, como Elvis se perdeu no oceano Atlântico.
– Rachel.
Passa por William sem parar.
– O que aconteceu, Rachel? – o príncipe segue-a.
Perdeu Phill de vez, perdeu o seu amor, queria dor maior que essa? Desata a correr, afasta as
pessoas e corre, corre… Como o pai sempre disse. Corre com o choro, sentindo o coração a partir-
se e uma vontade de cair no chão. Não podia parar, recuar era fraquejar.

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Sete Nomes

William desiste. Olha para o restaurante, será? Não, Phill jamais dir-lhe-ia algo ofensivo. A
menos que o tenha visto a jantar com a noiva. Suspira com algum pesar, então foi isso, viu-os.
Pobrezinha, amaram-se tão intensamente que separados, um deles ia sofrer. Não podia fazer nada,
Phill fez a sua escolha e respeitava. Era melhor nem referir que a viu, o casamento estava breve e
não queria levar com o irmão a dizer que aquele príncipe desonrou a casa Orange.
Coloca as mãos atrás das costas e caminha para a carruagem, certos segredos existiam para
proteger os mais fracos.

Impossível pensar em dormir, com aquele som de fundo, até os mortos levantavam da tumba.
Afasta os cobertores, pousa o livro no chão, enfia os pés nos chinelos, pega na lamparina e
caminha por entre as estantes. Ajeita os óculos no nariz e ilumina a criatura que chorava há horas.
Não havia álcool, ela pediu, mas Khamero não bebia.
Pousa a lamparina numa prateleira e senta na cama improvisada.
– Que bicho te mordeu?
Um chamado desilusão. Limpa o rosto com as mangas do casaco e abafa os fortes soluços.
– Precisas assim tanto de brandy?
Não sabia o que lhe ia tirar a dor. Talvez nada, apenas o tempo.
– Queres falar o que aconteceu?
Abana a cabeça.
– Preciso de dormir, os olhos ardem-me. Podes fazer menos barulho?
Assente, ia tentar. Khamero levanta, pega novamente na lamparina e caminha para a sua cama.
A luz dissipava-se, a escuridão invadia o corpo sentado no chão. Amar e ser amado, por quem
não nos ama ou quer amar. Parecia simples pedir algo no leito de morte, mas quando se sentia na
pele a dilacerante dor, não se aconselhava a ninguém.
Sente o revolver por entre a mão. Cinco balas lá colocadas, um nome pendente nas costas. Fecha
os olhos… Respira… Levanta.
– Vou sair. – comenta ao passar por entre os livros.
– Para onde? – Khamero desiste em apagar a vela.
– Vou morrer longe. Se não voltar, é porque alguém me matou. – sobe as escadas.
– Queres que vá contigo?
– Não, quero que entregue a minha mala a Phillipe de Orange caso o sol nasça e eu não esteja cá.
– bate a porta.
Fica fixo a olhar para cima, aquela mulher era louca. Abana a cabeça, apaga a vela e deita,
personagens daquelas já leu em muitos livros. Era só mais uma a ser heroína.
Royal Sean, balançava com o movimento das águas. A velas amainadas não o fazia navegar pelo
rio que levava ao mar. Tanta história aquele barco tinha para contar, doze batalhas no Atlântico,
duas no Índico e uma no Pacífico. Esteve no Mediterrânio, mar Negro, porto de Constantinopla,
Alexandria, Mónaco, Barcelona, Lisboa, Madeira… Transportou de tudo, desde mercadorias a
escravos. E sempre com esplendor, aquele navio subia o Tamisa, aportava na doca e descansava.
Se fosse leiloado, valeria trezentas mil libras puras, além de conter o segredo do pirata.
Daniel não tinha queixas algumas, o navio aguentava as tempestades, a mercadoria e as batalhas.
Uma fortaleza em pleno mar, Cristian não podia ter herdado coisa melhor. Pousa a garrafa na
mesa e pisca o olho à prostituta que estava nos braços de outro. A próxima viagem estava
agendada para vinte de julho. Destino? São Tomé e Príncipe. Com que propósito? Um negócio
obscuro que a coroa não saberia, mas que a Companhia das Índias autorizou. Ia transportar
escravos, crianças de treze e doze anos que seriam vendidas ao Egito. Uma fortuna por cada. A
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escravatura foi abolida por completo, transportar pessoas para esse fim era crime, mas o quê que
a Companhia não conseguia às sombras da lei?
Faz sinal para mais uma garrafa, estava com sede. Levanta a cabeça ao ver quem se senta na
mesa. Arregala os olhos, impossível, a menos que seja um fantasma.
– Rachel?
– Bronwen Daniel, o sexto homem da minha lista. Bebe, porque vais para a cova hoje.
Faz sinal para os homens que se levantam. Que corajosa, chegou, sentou e deu a sentença. Os
olhos inchados. Chorou. Por quem? Alguém, não importa quem.
– Queres beber um pouco para afogar essa dor?
– Que dor?
– Essa. Os teus olhos… – aponta com o dedo – Estão uma lástima. Rum! – pede ao homem do
balcão.
– Não tenho sede.
– Mas precisas.
Assim que a garrafa é pousada, Rachel arranca a rolha e bebe sem parar. Álcool, não devia ter
saído do túnel, viu o que já sabia que a ia atirar para a escuridão. Ofega ao bater o vidro na mesa,
nem sabia como aguentava aquela sede toda ao longo dos dias.
– Melhor?
Assente com a cabeça baixa.
– Os milagres que o rum faz. Estou admirado, Logan cantou de galo a tua morte. – acende o
cigarro – Mas tu não morres, deves ter sido amaldiçoada com a vida, porque por mais que se tente,
não morres! – abre a boca para o fumo sair – Eu sei onde Selena está. Linford. Por amar aquela
rapariga, não conto ao pai dela onde está, é muito nova para morrer.
Sentimentos… Daniel nasceu com eles, apesar de não parecer ter. Como sabia que estava lá?
Alguém lhe deve ter contado.
– Sabes se morro, Logan vai ficar com tudo. Queres mesmo isso? É que tu não o conheces bem…
Matar o teu pai foi só uma maneira de lhe dar o poder do vasto património, além de ser uma
vingança antiga. Angellyne sabia tudo… Tudo. Não sei como, mas ela tinha algo naquele olhar…
Tu também tens, é por isso que eu te admiro.
Rachel mal o ouvia, bebia da garrafa, começava a ficar com a visão turva e uma enorme vontade
de vomitar.
– Ela ameaçou-me “Se o teu amigo faz alguma coisa ao meu marido, eu juro por Deus que vos
mato.” Tive receio, acredita em mim que tive… – suga o fumo e expulsa pelas narinas – Gostava
de Cristian, bom homem, pagou o tratamento do meu filho no porto de Philadelphia. Mas Logan
conseguiu dar-nos a volta. Nenhum de nós, nenhum dos outros quis assassinar o teu pai, ele dava-
nos tudo, férias, dinheiro, palavras amigas… Um patrão sem igual. O problema é quando alguém
tem uma ambição e condena os restantes.
Tenta pousar a garrafa na mesa, mas não encontrava a madeira. Larga-a no chão e olha para
Daniel.
– Eu quis adotar-te, levar-te para casa e explicar a Angellyne que Logan fez todos ficarem de
costas voltadas contra ti. Lá em Boston, quando te vi, não ia matar, queria falar contigo a bem.
– Falaste aquilo… “Vou matar-te!”
– Sim, sim… Porque estava em choque. Rachel, eu estava apaixonado pela tua mãe, sabia que
não a podia ter, mas amava-a mesmo assim. Achas que quis vê-la morrer numa cama? Por Deus,
preferia qualquer coisa, menos isso.
Fica confusa, abana a cabeça, passa a mão pelos lábios e tenta pensar.
– Não a viste… Morrer… Não…

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Sete Nomes

– Eu andei à tua procura Rachel, menti ao teu avô acerca daquele dia. Eu sei que ele te tem
ajudado. Estou nos dois lados desta guerra, no teu, no de Logan… Quero viver, não morrer.
Levanta ao negar, não acreditava numa única palavra que dizia. Daniel esteve lá, não se opôs à
violenta morte. Não, escreveu uma cruel carta a Cristian a dizer que o odiava por tudo. Apoia a
mão na mesa e sente a cabeça andar à roda.
– Posso-te ajudar a matar Logan. Conheço todos os pontos fracos…
– Tu queres a fortuna dele! – grita – Todos ficaram ricos às minhas custas. Não acredito em uma
única palavra tua, se amasses a minha mãe, terias ido buscar-me ao orfanato, todos sabiam onde
eu estava!
– Rachel… – olha em volta.
– Esta vingança sempre foi um negócio, cada um dos sete esperou que eu sobrevivesse para vingar
e cumprirem o maldito testamento!
– Não é verdade…
– É! – grita bem alto – Estou farta disto.
A música da concertina acaba, as prostitutas deixam de agradar os homens que colocavam na
mesa as armas. No bar, os olhares focavam a mulher problemática que se metia com o capitão.
– Acalma-te. – pede quase a sussurrar.
– Vim aqui para te matar… – retira do bolso o revolver – É o que farei.
Daniel ergue-se e levanta as mãos, os demais apontam as pistolas, cercam a louca que não sabia
onde se estava a meter.
– Baixa a arma. – um pede.
Homens de Logan. Daniel fala isso com a voz muda, mexe os lábios e alerta que aquele tempo
todo, esteve vigiado, cercado por ser o mais fraco da lista, aquele que se opôs desde o inicio ao
acerto de contas.
Olha de esguelha, então, o que disse era verdade? Até a vida dele foi colada no jogo de xadrez
para tentar chegar ao trono? As lágrimas chegam aos olhos, um assassino por obrigação, não por
opção.
– Disse para baixar a arma… – a culatra toca a cabeça dela.
Encurralada, sozinha na toca do lobo. Atira o revolver ao chão.
– Agora, caminha para a porta.
– Kim, por favor, deixa-a ir embora. – Daniel pede.
– Temos ordens para a matar.
Naquele momento, o pedido era para sobreviver e matar o outro da lista. Mas, a verdade foi
contada e, aquele homem não parecia mais merecer a morte. Vira-se, usa a mão para afastar a
caçadeira para fora. Daniel surge atrás, dá um murro em Kim, agarra no pulso dela e arrasta-a
para fora da taberna.
– O que esperam? – o homem pergunta ao limpar o canto da boca – Vão atrás deles!
Os demais tentam sair, mas a desordem atrasa-os.
E corriam, pelas docas desérticas. Rachel nem acreditava no que estava a acontecer. Daniel
puxava-a, olhava para trás e gritava que tinham que se despachar. Teatro? Tentava-a enganar para
depois matar? Não. Queria mesmo ajudar, porque um dia amou a mãe e agora, sentia-se obrigado
a ajudá-la.
Arromba uma porta, puxa-a para dentro e bate a madeira. Ofega com as mãos nos joelhos.
– Perdoa-me Rachel… – pede quase sem voz – Perdoa-me.
– Eu não posso. Estavas lá quando o meu pai morreu. Prometi a mim mesma que vingaria, mataria
todos os que o mataram…

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– Eu entendo. – coloca as mãos no rosto dela – Eu sei que sofres, sei que vives com esse trauma
por causa do que viste. Se te quisesse morta, teria ido à tua casa, lá em Boston, ou ido à torre. Não
quero que morras, em nome da tua mãe, não quero que morras.
– Estavas lá… – desata a chorar.
– Sim, Logan obrigou-me a participar naquela violenta morte. Não gastei um único centavo do
teu pai, uso o navio para não ser destruído. Assim que morrer, o resto da herança vai para ti, é tua
Rachel.
Nega ao recuar.
– Rachel, és o orgulho da tua mãe, quem ela mais amou. Se te magoei, se a fiz sofrer, peço perdão.
Sou um homem fraco e facilmente manipulado.
– Não me faças isto Daniel, eu quero odiar-te.
– Este tempo todo, aqueles homens… – aponta para a porta – Kim é quem faz os negócios. Ele é
que obriga a fazer todas as coisas erradas. Eu sabia que Selena estava a ouvir atrás da porta, quis
falar sobre o assunto para a fazer abrir os olhos e fugir.
Os soluços aumentam, a mente confusa andava à roda.
– A terceira pessoa é Jason, vi-o cá em Londres, no hotel. Se o quisesse morto, achas que não
tinha dito a Gwenny ou Logan? Só te quero proteger. – aproxima-se.
– Não, por favor…
– Rachel. – puxa-a para os braços – Perdoa e ama, Angellyne pediu-te isso.
Bate no peito dele, mas acaba por ceder. O que estava a acontecer? É como se até a vingança
tivesse sido manipulada. Daniel não era mau, não. Rachel lembrava-se dele lá em casa. O filho,
George, esteve muito doente, não conseguia andar e precisava de um bom médico. Angellyne e
Cristian, com pena, pagaram tudo. Porquê que se esqueceu disso? Porquê? Rachel, it´s your
name? I am Bronwen Daniel, friend your parents. We will be big friends; my boy will love meet
you. What you say?
A dor e o ódio tomaram conta das memórias e dos sentimentos. Cegaram-na para não ver a
verdade, vendaram os olhos, trancaram as memórias dentro de uma caixa e obrigaram-na e ir por
aquele caminho cruel. A mãe pediu para perdoar, porque no meio de tantos pecadores, existia um
que não queria ter pecado.
– Desculpa. – pede.
– Estás ferida Rachel, soube que tens uma lista tatuadas nas costas com o nome de todos.
Assente ao recuar.
– Eu sou o próximo?
Confirma com os olhos vermelhos do choro.
– Então faz o certo e mata-me. Não te vou odiar por isso.
Nega, agora, não conseguia olhá-lo dessa maneira.
– Faz o que tem de ser feito para chegares a Logan. Quanto mais empatares isto, mais sofres.
– Como queres que te mate após teres-me contado isso? Como?
– Devias de saber a verdade, saber que nem todos são maus. Fomos apenas homens que quiseram
seguir alguém. – puxa a pistola da algibeira – Faz justiça Rachel, faz o que a tua mãe ia fazer se
tivesse forças.
Recua, vira-se e nega.
– Anda lá… – vira-a e coloca a mão dela no cabo – Não vivas mais com isso. Mata-me antes que
Logan descubra a verdade e me torture. Tenho medo disso, medo do que ele possa fazer-me por
te estar a ajudar.
– Não.
– Vamos Rachel.
– Não!

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– Sê mulher…
– Não porque és meu amigo. – grita a chorar – Eu não mato os meus amigos. Perdoo-te, perdoo-
te do que aconteceu.
Daniel sente as lágrimas nos olhos, toca o rosto dela com tanto carinho que podia ver Angellyne
mesmo à sua frente. Encosta a cabeça à testa, pobre menina, sofreu aqueles anos todos, criou ódio
no coração e agora que encontrava um ombro a qual chorar, negava-se.
– Promete-me que vais matar Logan. Sabes a monstruosidade que fez ao meu filho? – mima o
rosto – Partiu as pernas de George quando descobriu que ainda estava em Boston, a ajudar
Angellyne na busca por ti. Partiu… – chora – Ele já andava, e fez isso ao pobre menino de onze
anos. Pedi ao médico para acabar com o sofrimento dele, pedi para George morrer sem dor.
Rachel olha nos olhos dele, a sua maior tristeza era essa, relembrar que perdeu o filho por fazer
o certo após errar.
– Lamento.
– Ias ser uma grande amiga dele, Geor queria conhecer-te. Vou contar-lhe que és uma menina
forte, uma vingadora de todas as pessoas que perderam a vida nas mãos daquele monstro sem
sentimentos. Nem por um segundo desistas, nem por um segundo.
O corpo estremece ao som do tiro. Rachel larga a arma, a mão dele pressionou o dedo no gatinho.
Empara-o nos braços, nega, não podia continuar a perder.
– Está tudo bem Rachel. – deita no chão – Está tudo bem.
– Não morras. – coloca as mãos sobre o buraco da bala e tenta estancar o sangue – Eu perdoo-te.
Daniel deixa a mão no rosto dela cair e o olhar vira para o teto. Morto, Rachel grita de dor, bate-
lhe no peito e grita que assim não conseguia.
– Perdoo. – fala ao fechar os olhos – Perdoo pai, porque ele não te queria ver morto. Ele não…
Ele não.
A porta abre repentinamente, os homens da taberna entram armados. Chamam Kim ao ver quem
estava morto no chão. Rachel levanta, mete a mão no bolso e dá conta que não tinha o revolver.
Recua, se fosse apanhada, Logan teria finalmente um motivo para a matar. Limpa as lágrimas
com os braços, as mãos manchadas de sangue ainda quente tocam a parede de madeira.
– Rachel… – Kim entra – Bom trabalho.
– Merecia morrer. – fala com um enorme pesar.
– O mestre está feliz. Quer fazer o favor de nos acompanhar?
Nega, perderam o juízo de certeza absoluta. Aproveita o baixar dele para o corpo e desata a correr
para a porta. Um homem agarra-a nos braços. Rachel tenta libertar-se, grita ao bater nas mãos
dele.
Para a acalmar, Kim dá-lhe uma violenta estalada no rosto. O corpo é sustido nos braços, a mente
não conseguia comandar, fazer as pernas se moverem e lutar pela sobrevivência. Fica, de olhos
abertos para o morto que estava no chão. Morto. Busca em si a memória da manhã trágica. Let
her go. Let… Daniel pedia ao ouvido de Logan após Chester a pegar e andar para o cavalo. No
way! She need die. Então… A menina que chorava via o rosto daquele homem, os olhos em
lágrimas e a mão que ligeiramente levantava. Please Logan, it´s just a girl. Please. Backer puxa
o braço dele e comenta que as coisas tinham que ser assim, daquela maneira. Please!
Fecha os olhos, tanta vez reviu a morte do pai e não viu aquilo. Sempre que se lembrava, algo
estava em falta na memória, os rostos, os atos… Quem realmente merecia morrer e quem não.
Afinal, o maior culpado ainda estava vivo, enquanto as peças manipuladas estavam mortas.
– Levem-na. – pede.
Alguém pega nas pernas dela para a levar. Estica a mão para o morto. Que fosse em paz, estava
perdoado do que aconteceu.

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Daniel morto e Rachel apanhada em apenas um dia… Logan nunca teve tanta sorte. E agora,
como se ia livrar deles?

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Sete Nomes

Capítulo 63
Veste o robe azul e levanta da cama. Abre as cortinas vermelhas e espreita pela janela o céu azul.
Um dia de sol, finalmente. Puxa a gaveta da cómoda, pega na túnica engomada e pousa-a sobre o
colchão.
– Acordado, meu bem?
Levanta a vista para a porta e sorri para a futura esposa.
– Como dormiu? – estica a mão.
– Sabe que este quarto não se assemelha ao outro. Porém, é pura gentileza a prenda de vossa
Majestade.
Beija-a, de facto, Victoria tinha sido muito generosa ao ter-lhe dado uma mansão no centro da
cidade.
– Desça para o pequeno-almoço que já a acompanho.
Yerne sorri ao caminhar para a porta e fechá-la. Londres, depois de grandes cidades europeias,
voltou a casa como se nunca tivesse de lá saído. Fecha a gaveta e senta na cama, às vezes, não se
reconhecia no espelho. Quem era Phillipe Stathouder? Ninguém. O que mais gostou naquela
aventura foi viajar, cruzar o mar sem fronteiras, ficar acordado há noite e finalmente pisar Itália.
O lado mau, mudou muito para agradar os outros. Até a roupa mudou para encher a boca e dizer
que pertencia à casa Orange.
Olha para a janela, onde estava Phill Smith? Perdido na enorme sala cheia de estátuas. Procurava
a saída para o pesadelo, e não encontrava uma única porta.
– Bom dia, filho. – William entra no quarto.
– Diga lá, chá em qual casa inglesa?
– Hoje preparei um passeio por Londres, tu sabes, falar um pouco… – faz uns gestos com a mão.
– Já falamos sobre isso. – levanta e procura as botas polidas.
– A mãe de Yerne é viúva, não custa nada ajudar o teu velho pai arranjar um encontro.
Nega, não custava nem um pouco chegar ao pé da sogra e pedir que se deite com o futuro parente.
– Desista.
– Pronto. Então falemos da data do casamento. Quando vai ser?
Outro assunto que lhe tirava o sono. Suspira, aproxima à janela e olha para a rua.
– Sabe que não a amo, por mais que me esforce.
– Phillipe, é uma bela mulher, simpática, saudável, rica… Vai dar-te filhos perfeitos, e a família
aceitou. Vais finalmente receber o teu título como príncipe, não voltes atrás.
Encosta a testa à janela, sempre suspeitou que aquilo acabaria por acontecer. Mas escolheu ir,
não foi? Então, aceitava tudo o que os outros queriam.
– Um de Agosto. Pode ser?
– Perfeito. Já te disse muitas vezes, não tens que amar Yerne, tens que casar e cumprir o teu dever.
Assente, sonhos manipulados.
– Veste-te que ela não gosta de esperar… – abre a porta.
Para ao ver um mordomo com uma mala na mão. Arregala os olhos ao reconhecer, faz sinal para
recuar o quanto antes.
– É para o prince Phillipe. – o homem fala.
– O quê? – vira-se.
– Nada meu filho, este lacaio está maluco. – ri e coloca-se à frente da mala.
– Mas ouvi dizer que era para mim. – aproxima-se da porta.
– Engano, é para mim. Veste-te… – começa a fechar.

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Phill trava o avanço, desvia o pai e olha para o que o mordomo pegava. A mala, a companheira
de viagem de… Sim, devia de pensar no nome. Rachel. Pega na alça e pensa um pouco. O que
estava ali a fazer?
– Um homem mandou-a entregar. Disse que a dona tinha morrido e que pediu para lhe deixar isto.
Morta? A mão sobe para o peito, Para ao pé do coração e tenta segurar os ligeiros soluços que
chamavam o choro. Morta. Pega na mala, entra no quarto e aproxima-se da janela. William faz
sinal para o mordomo desaparecer, estava demitido. Fecha a porta e caminha para perto do filho.
– Phillipe, é um engano. É só uma mala, não significa nada.
– Não ouviu? Rachel morreu!
– Prometeste-me não voltar a dizer esse nome.
Prometeu… Anda um pouco pelo quarto, prometeu esquecê-la para não desistir da nova vida.
Garantiu que nunca mais a chamaria nos pensamentos, ou tocaria no difícil assunto do coração.
Entrou em Orange sem passado, sem histórias de amor ou mulheres que enterrou. Para quê
esconder o que sentia? Morta… Senta na cama e baixa o rosto, como aquela mulher morreu?
– Não adianta, por mais voltas que dê, elas morrem.
– Rachel não está morta.
– Como sabe? – olha-o.
– Porque a vi ontem, a chorar. Viu-te com Yerne e fugiu a chorar. Por isso que não faz sentido.
Deve estar a arranjar uma estratégia para sabotar o teu casamento.
Esteve no restaurante?
– Como me escondeu isso?! – berra-lhe.
– Phillipe, não podia quebrar o que prometemos.
– Tratasse da mulher que eu amo! Que eu evito pensar todos os dias. Se a viu, devia ter-me dito!
– Para quê? Para ires atrás dela?
– Sim, para lhe explicar que a amo incondicionalmente e que estou a agradar os outros. Que tinha
razão, este tempo todo, o seu plano era levar-me para Orange e tornar-me príncipe herdeiro.
– Se tu a amasses de verdade, tinhas ficado no slum. Não quiseste, foste procurar-me ao castelo e
pediste, não, imploraste-me que te levasse para longe. Então Phillipe, sê homem e admite os teus
erros! – berra – Rachel não está morta, ela quer ver se cais no seu choro e recuas. Vais vestir-te,
descer e sorrir para o teu futuro. Yerne é a tua futura esposa, entendeste? Não me humilhei em
Orange para deitar tudo a perder.
Fecha as mãos ao baixar o rosto, entrou no mundo de submissão, não tinha voz ou opinião. Se
não queria aquela vida, porque implorou para ter? O pai tinha razão, se foi, é porque já sabia para
o que ia.
– Vá, sorri. – ajeita o robe dele – Vais viver num castelo, ter empregados, dinheiro… Felicidade
não te vai faltar. Nem imaginas a sorte que tens. – caminha para a porta.
Sorte? Sorte? Pousa a mala na cama e abre. Pega nas roupas lá deixadas e sente o aroma.
Rachel… Fecha os olhos e vê-a deitada na cama, com a pele delicada e cheia de pequenas
cicatrizes que contavam uma história. O perfume americano que ficava nas narinas, a voz que
tentava superar a dor que sentia. Rachel. Pousa a roupa e pega na boneca, intacta, apesar de
porcelana, continuava exatamente igual ao dia em que a deu. Don´t change your nightmare for
manipulate dreams. I love you Phill… Stay with me. As lágrimas chegam aos olhos ao ver os
documentos que ela tanto quis proteger, fosse para onde fosse. E as medalhas que ganhou ao
proteger a rainha? Ajoelha-se no chão e chora, não conseguia acreditar que morreu. A chorar na
rua… Deve ter-lhe partido o coração por completo.
– Porquê Rachel? Eu te amava tanto… – aproxima as coisas ao peito.
No mar, passou a noite acordado para ver o céu estrelado que se difundia com as águas calmas.
Desejou, com todas as forças, que ela estivesse lá. Não se foi embora por não a amar, partiu por

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Sete Nomes

não aguentar a pobreza. Agora, não aguentava a riqueza, os jantares controlados, os banhos
solitários, a cama vazia, as conversas sem conteúdo, os planos sem afeição... Yves gostou tanto
de Orange que ficou lá a viver como ajudante da realeza. Mas Phill, quis tanto viajar para Londres
que nem deu um motivo. Depois, Walter contava-lhe o que Rachel passava sozinha, o sofrimento
do abandono que a atirava para o álcool.
Mete as coisas na mala, morreu. Logan deve tê-la apanhado, aproveitado a sua fraqueza para a
assassinar. Cobarde.
– Descansa em paz, ao pé da Abie e do teu pai. – murmura ao limpar os olhos.
Não ia conseguir comer ou sorrir. Levanta do chão, contém os soluços e aceita o que aconteceu
por sua culpa. Que não a ia deixar de amar, não ia.
Yerne não era princesa de pequenos luxos. Nasceu na Rússia, era filha de um príncipe russo com
uma duquesa holandesa. Mudou-se para Orange após a morte do pai, ficando aos cuidados dos
príncipes e do rei. Come o pudim com a mais pequena colher de prata. Mimada, queria ter tudo,
um enorme quarto, empregados, damas de companhia, roupas feitas à medida, leques coloridos…
E quando não tinha, chorava ajoelhada no chão, segurando na cadelinha com tiara de ouro. A mãe
apresentou-lhe o príncipe Phillipe e, apenas sorriu ao ver que até era bonito. Futuro herdeiro ao
trono holandês, só porque apresentava um bom perfil. Nunca pensou tão alto em toda a sua vida.
Olha para o príncipe William.
– Quando o meu bem descerá?
– Breve. Mais bolo?
– Sim, por favor. – estica o prato.
William não gostava daquela nora, negava ter algo antes do casamento e só aceitava beijos porque
era muito beijoqueira. Ou nem isso o filho poderia dar. Além disso, irritante, por vezes dava
vontade de lhe enfiar uma almofada pela aguda voz. Enfim, não se ia casar com ela e não.
Ambos olham para a porta ao ver quem chegava. Levantam e fazem uma vénia.
– Phillipe, que roupa é essa?!
– Desculpem, mas hoje acordei muito melancólico. – senta na mesa.
– Isso faz-te vestir que nem um operário?
Puxa o lenço do pai e aproxima a boca ao ouvido.
– Já estou vestido, como pediu, já estou sentado na mesa, como pediu. Até já sorrio, mas não me
obrigue a ser desagradável. Estou a fazer luto à minha maneira, não posso? – murmura.
Fica sem opinião, poderia ter colocado um fato negro e inventado algo, não a velha roupa de Phill
Smith. Onde a arranjou? A mala… Deve ter guardado algo dele.
– Está há vontade.
Sorri e pega no prato para se servir.
– Meu bem, poderemos caminhar pelas ruas com a Pimy? – Yerne pergunta ao limpar os cantos
da boca.
– Com todo o respeito, mas essa cadela já me está a irritar. Às vezes, nem sei quem é pior.
O olhar fica ofendido por completo. Repara no gesto de William. Calma, acordou maldisposto.
Assente, como futura esposa, tinha que aceitar tudo sem dar opinião.
– O casamento está marcado para o primeiro de agosto. O que me diz?
– Pai, dei-lhe ordem para divulgar a data? – Phill olha-o.
– Não vejo o motivo de não a divulgar.
– Pois bem, eu dir-lhe-ei. – pousa o prato – Tratasse do meu casamento com esta pessoa sentada
na mesa. Além de não ser da sua conta, não vai passar parte da sua vida com uma mulher irritante,
ter filhos por obrigação e passar o resto dos dias sentado em frente à janela a ver a vida dos outros.
Se me fizer o favor de não falar mais hoje, agradecia.

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Sete Nomes

O príncipe bate o pano na mesa, tocou no nome da ex e o filhinho de sonho voltou ao inicio do
relacionamento difícil. Claro, mexer no passado ressuscitava certas opiniões enterradas.
– Phillipe, tenho que te lembrar…
– Não, até porque estou farto de usar isso como seu trunfo psicológico. Acabou o menino de ouro
que quer agradar o paizinho e a problemática família. – levanta – Phill Smith também tem opinião
de vez em quando.
Yerne levanta e baixa o rosto.
– Onde vais, Phillipe?
– Passear.
– Vais ter com ela, não vais? Rachel… Essa maldita mulher consegue sempre o que quer.
Volta a entrar na sala.
– Quer saber que mais, não vai haver casamento. Rachel, Rachel, Rachel! Grito as vezes que
forem precisas. E sabe porquê? Porque a amo, porque me fez feliz, deixou-me satisfeito…
Enquanto a tinha a meu lado, pesava noventa e um quilos, treinava, continuava a lutar. Agora,
oitenta e ainda acham que é peso a mais para um príncipe. Para quê casar com essa aí se mal a
conheço, mete raiva só de ouvir os estúpidos pedidos. E dorme com uma cadela a pensar que é
um bebé. Estou farto de tudo, tudo! Não quero um castelo, não quero um título, não quero
dinheiro, não quero mais nada que seja seu. Acabou, chega. Não troco nunca mais os meus
pesadelos por sonhos manipulados. Nunca mais! – grita bem alto.
Que facada nas costas de William. Fez tudo por ele, ajoelhou-se perante o velho pai e pediu
reconhecimento pelo neto bastardo. Humilhou-se ao irmão para deixar Phillipe entrar e se tornar
o orgulho da casa Orange. Para quê? O ingrato voltou para Londres e decidiu largar tudo. Bate na
mesa com força, faz a louça toda telintar.
A princesa senta. Chocada, nunca foi tão ofendida.
– Passaram alguma noite juntos?
– Não.
– Nem para dar o golpe serve! – berra – Se tivessem estado uma maldita noite juntos, inventava
que estava grávida. Agora, explique à sua mãe o motivo de rejeição, porque eu, não quero saber
de mais nada. – levanta da mesa.
Quando a porta fecha, Yerne desata a chorar. Como ia explicar à mãe que o noivo desistiu do
título por causa de uma mulher?

Corre pelas ruas do slum, sorri ao passar por entre os pobres, feliz por voltar a ser o pugilista
miserável que fazia dívidas. Liberdade, ganhou coragem para se libertar do pai, da monarquia e
do dever. Desacelera o passo, abre os braços ao sentir o fedorento cheiro a papel queimado. Como
era bom ser livre, ser ele. A mãe escolheu aquela vida, deixou o castelo italiano para viver na
pequena casa em Londres. Se quis aquilo, é porque já sabia que a vida de rico era censurada por
todos.
Ao ver um mendigo, beija-lhe o rosto.
– Voltei. Sentiste a minha falta?
O homem nega a sorrir.
– Eu senti a tua, senti a de todos… – fala ao andar – Senti a falta de todos! Quero que saibam que
eu, Phill Smith, jamais voltará a ser Phillipe de Orange. Acabou a realeza, acabou a submissão.
Quem está comigo? – levanta o braço.
As pessoas batem palmas ao tal estranho que discursava bonito.

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Sete Nomes

– Agora, alguém sabe da minha mulher? Ela é Rachel, aquela que vive com uma negra que fala
em Amon… Ré… Esses deuses estranhos.
Os aplausos desaparecem, os rostos voltavam a ficar mudos e a esperança desaparecia. A morte
de Amarys abalou os que viviam ao pé da fábrica. O pobre gato amarelo dormia na porta da casa
que, foi assaltada, roubada e destruída pelos mendigos. Fizeram um minuto de luto, mas não havia
tempo para isso no momento em que outras vidas estavam em jogo.
Um homem faz sinal para Phill o seguir. Pela demora da resposta, o pugilista entende que algo
aconteceu.
Param ao pé do espaço vazio onde antes, existiu uma casa. No chão, deitado, o pobre Amon
dormia aninhado às patas.
– O que aconteceu? – pergunta ao estranho.
– Um homem rico entrou e matou Amarys com um tiro na cabeça. A outra mulher desapareceu.
Ficou só o gato dela aqui, não tem para onde ir.
Logan. Mais nenhum homem rico iria ali. E a mulher que desapareceu era Rachel. Com pena,
pega no gato e mima-o, fiel à casa e à dona morta.
– Sabe para onde poderá ter ido?
– Não. Contaram que quando entraram num quarto, a parede estava cheia de coisas escritas.
Lembro-me de um nome… Daniel! Achei estranho, temos um por cá.
Então, foi matá-lo às docas. Daí a suspeita de morte.
– Obrigado pela informação. – começa a andar.
– Vai levar o gato?
– Vou, precisa de uma casa.
O homem dá de ombros, iam comê-lo mais cedo ou mais tarde.
O contramestre gritava as ordens aos marinheiros. Novo capitão para o Royal Sean, mudaram a
data de partida do navio e o porto a atracar. Entra, pela doca a dentro, um aparato de policias do
estado, seguindo um homem de cartola e bengala. Kim desce a prancha, cospe o palito para a água
e tenta entender o que estava a acontecer.
– Sir Bronwen Daniel?
Nega ao levantar um pouco o chapéu.
– Quem é o dono deste navio?
– Quem pergunta?
– Jason Clarel, legítimo herdeiro. Sir Wood, faça-me as honras. – recua.
O advogado coloca os óculos nos olhos e abre a capa negra com as leis.
– “Segundo o código penal da marinha real inglesa, qualquer navio que navegue em contrabando,
ou contra as leias impostas pela Companhia das Índias, assinado e acordado por vossa Majestade,
rainha Victoria, deve ser imediatamente apreendido e retirada a bandeira britânica.” Neste caso,
estamos a falar de roubo de um bem herdado no leito de morte pela MiLady Rachel Clarel. Além
de praticar noventa crimes em alto mar, crimes como tráfico humano, roubo e ataque de navios
mercantis de outros países, entrada ilegal em certos portos… Entre outros crimes vergonhosos
praticados pelo vosso capitão.
– Por essa ordem, trouxe comigo o inspetor Huggo, para efetuar a apreensão do individuo, ser
julgado pelo tribunal e condenado à morte, se possível. – Jason conclui – Pode ir chamá-lo?
– Está morto. Só estou há espera do novo capitão. Quando chegar, prendam-no. – Kim fala nas
calmas.
Morto? Jason olha para Wood, ainda no dia anterior o viram a passar pela rua.
– Rachel. – murmura.

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Sete Nomes

A neta não sabia que aportou no dia anterior em Londres, conseguiu a declaração que prenderia
Logan e declararia à coroa britânica o legítimo direito sobre o património roubado. Pelos vistos,
não esperou muito em ir atrás dele para o matar.
– Jason…
Vira o rosto para Walter ao pé de uma porta. Acelera o passo, esperava não encontrar uma
tragédia lá dentro. Passa pelo aro e olha o morto no chão. Daniel.
– Não foi ela, pois não?
Nega, sabia que aquele homem ia-lhe contar o que realmente aconteceu naquela manhã. Quando
Cristian morreu e os restantes partiram para longe, ele voltou à mansão e contou tudo, tudo menos
onde Rachel estava. Tentou ajudar, apoiou Angellyne na sua dor, mas Logan o obrigou a partir
antes que fosse a tribunal testemunhar contra. Teve esperança de o encontrar com vida para ajudar
a prender o inimigo.
– Rachel não o mataria, conheço bem os sentimentos da minha neta.
– Matou-se. – conclui.
– Sim. De certeza que sim.
O inspetor Huggo passa pela porta e coloca um lenço ao pé da boca ao ver o morto.
– Por Deus, quem o matou? – pergunta.
Ambos não respondem, não queriam condenar quem protegiam.
– Este Jack anda a dar a volta à cabeça dos londrinos. Mandarei fazer uma busca à doca.
– Sir Grover, não é preciso. – Walter pede.
– Como não? Temos um homem morto.
– Tratasse de um suicídio. Veja a arma do crime ao lado do corpo… Quem vai condenar?
– Com todo o respeito ao seu trabalho, mas agora quem serve este país sou eu, não o senhor.
Walter não queria, mas tinha que ser. Pega na bengala do tio, bate-a contra o aro da porta e finta
o novo inspetor.
– Acho que a sua função está concluída. – arranca-lhe a medalha do peito – Vossa Majestade tem
novamente o seu braço direito.
– Não pode fazer isso!
– Só não posso como acabei de fazer. Vá lá ao castelo reclamar, vá! – baixa a bengala.
O inspetor assente ao sair pela porta, ia, porque estava no seu direito reclamar pelo cargo dado.
Faz sinal para os homens ao pé do navio, acabou a detenção.
Coloca a medalha ao peito e suspira, não havia nada como voltar a casa e ser o que sempre se
foi. Repara no olhar do tio. Admirado. Sorri ao coloca as mãos na bengala.
– Bernard estaria muito orgulhoso de ti, Walter.
– Hora essa, devemos lutar pelo que é nosso.
– Concordo plenamente…
– Rachel! – Phill passa pela porta.
E… Além de chegar tarde, atrasado por completo, dava de caras com duas pessoas que estavam
mortinhas para lhe bater. Mima a nuca de Amon, talvez devesse pedir ao deus dele ajuda para sair
daquela situação difícil.
Jason dá um passo em frente, arregaça as mangas…
– Antes de qualquer coisa, avozinho, deixe-me explicar. – pousa o gato no chão.
– Explicar a tua cobardia? Deves ter perdido o juízo!
Nenhum homem podia explicar um ato cobarde no momento em que os fúteis motivos o levavam
a recuar. Mas tentar não custava, pois não?
– Em momento algum pensei ferir a sua neta…

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Sete Nomes

Walter coloca a mão no queixo ao ver o valente murro que o pugilista leva. Abre e fecha, não
queria estar na pele dele. Phill apoia-se na parede e cospe o sangue. Que gancho, Jason deve ter
praticado boxe em Boston, porque tinha uma capacidade de bater muito eficaz.
– O que fazes aqui? Esperas que ela abra os braços para te receber?!
– Eu… – vira-se – Eu espero uma boa conversa sobre o que fiz, sobre o facto de a amar…
O advogado dá-lhe um murro no abdómen. Pugilista? Cai de joelhos no chão, onde raio estava o
pugilista londrino? Cerra os dentes à dor que sentia, perdeu muito peso e já não aguentava os
ataques.
– Amor? Chegas aqui a falar de amor após andares com uma mulher lá em Orange, na cama com
ela… E ainda estás noivo de uma princesa mimada. Desaparece antes que te mate!
– Walter podia-lhe ter escondido isso. – levanta a cabeça.
– Podia, mas é meu tio e não gosto de mentir.
– Sim, fiz amor com uma empregada. E? Qual é o homem que se separa de uma mulher e depois
tenta esquecê-la? Foi só uma noite sem qualquer significado.
– Rachel jamais…
– Mentira! – levanta o dedo – Ela dormiu com Elvis assim que saiu pela porta do Box Dead. Então
estamos quites.
– Mesmo assim. Devias de ter vergonha na cara, ir embora porque era príncipe e não podia viver
por entre os pobres… Depois chegava ao castelo e dizia que nasceu num slum e não conseguia
ser filho de um príncipe. A minha neta chorou por ti dia e noite! Jurei que se te voltasse a ver,
morrerias!
Bem que avisou lá na torre, se Rachel sofresse nas mãos dele, ia apanhar do pesado. Claro, tinha
que se colocar no lado de avô protetor. Porém, pode até ter falhado, mas e ele? Não falhou?
– Está bem… – apoia a mão na parede e levanta – Bata-me até partir os dentes. Só que…
Walter eleva os dedos à testa assim que Jason leva um murro no rosto. Estavam loucos? Tinham
que procurar Rachel, não disputar quem acertou ou errou. O advogado toca o sangue nos dentes
e depois olha para o pugilista. Há coisas que um homem não deve fazer.
– Chega! – Walter ergue a bengala e trava ambos os corpos – Todos erramos. Não é correto
estarmos aqui a disputar, atirar culpas e o raio que parta, se a pessoa que queremos está
desaparecida! Chega, sejam homens e não cobardes!
Pelo olhar de Phill e Jason, aquela luta estava longe de terminar.
– Só quero entender, eu parti, porque o senhor partiu também?
– Logan queria tomar a casa de Boston. Maddey não podia tratar desse assunto sozinha.
– Então a culpa de ela ficar alcoólica é sua, porque foi embora invés de ficar.
– Filho da… Partiste-lhe o coração ao ires e agora eu é que tenho a culpa? Queres mesmo ficar
igual àquele…
Walter segura no tio e empurra-o para trás.
– Pedi para pararem. Eu também sou culpado por ter ido embora, mas não existia alternativas,
Logan cercou-nos para apanhar Rachel sozinha.
– Ela está com Amarys. – Jason limpa os lábios com sangue.
– Logan matou-a. Por isso que trouxe o Amon, ou acha que andaria a passear um gato pela rua?
Faz um gesto com a cabeça, não duvidava nem um pouco.
– Certo. Não está com essa tal… Amarys, então onde está? – Walter pergunta.
– O meu pai disse que a viu ontem à tarde, a chorar na rua.
– É mesmo… E porque motivo chorava a minha neta?
– Viu-me com a minha ex prometida. Infelizmente não a vi, ou teria explicado a situação.
O inspetor volta a segurar o advogado, estava mesmo impossível.
– Por favor, estou preocupado com a minha pequena Achel. Dá para se unirem para a encontrar?

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– Eu bem queria Walter, mas esse aí tira-me a vontade!


– Pois bem. Sou único com pistas. – Phill argumenta.
– Quais, Mr. Detective? – goza.
– Um homem deixou a mala dela na minha mansão hoje de manhã, dizendo que Rachel mandou
lá deixar porque estava morta.
Bate palmas, bela pista dada, conseguiam mesmo encontrá-la.
– E agora? Pego num mapa e faço o quê para a encontrar?
– Pensei que amava a sua neta, mas pelos vistos, está a cagar para o seu desaparecimento.
Os braços agarram o tronco de Jason, ia matar Phill antes mesmo de acabar o pensamento.
– A tua maldita sorte é ter o meu sobrinho a segurar-me, ou partia-te esse rostinho todo!
– Que o solte, terei todo o gosto em lutar consigo.
– Por amor de Deus, parem. Assim não vamos a lado nenhum. Se Rachel não está em lugar algum,
é porque Logan a apanhou. Se isso aconteceu, todos nós sabemos que a sua vida está contada.
Aquele homem quere-a morta, nada mais. Podem dar as mãos e fazer tréguas?
Negam com violência, nem que estalasse ali uma guerra mundial.
– Façam por mim ou por ela. Precisamos de nos unir para a encontrar. Vá, sejam homens e não
galos.
Jason sai dos braços do sobrinho, ajeita bem o casaco negro e pega na bengala. Pazes… Estava
com imenso ódio dele, da cobardia, da falta de respeito e da petulância de chegar ali e dizer que
podia mandar. Amarys morreu… Nem sabia o que pensar sobre o assunto.
Olha para a mão estendida dele. Tréguas? Vira o rosto, nunca.
– Vá lá pedaço de salpicão, se não fosse mesmo necessário, jamais estenderia a mão.
Walter revira os olhos, pega no pulso do tio e coloca a mão na do pugilista.
– Os homens da nossa família são ossos duros de roer. – comenta.
– Não. Quando os outros não prestam, jamais damos o braço a torcer.
– Entendo avozinho, mas há que cuspir o sabor horrendo da boca e engolir à mesma o brandy.
Quero encontrar a Rachel, não casar consigo.
– Se depender de mim, nem com ela tu casas!
– Achas…
– Se depender de mim, ambos vão sair daqui e procurar nos possíveis lugares onde Rachel possa
estar escondida. Entendido? – Walter pergunta – Enquanto forem homens perdidos, eu comando
esta demanda.
– Mas… – ambos começam.
– Nem, nem! Vamos, que quanto mais se empata, mais um minuto de vida ela perde.
Pura verdade, se estava nas mãos de Logan, todos os segundos contavam para salvar a sua vida.
Phill pega no gato e olha para o morto do chão. Daniel. Matou-o. Agora tinha um nome a qual
cozer nas costas. Será que se escondeu para conter o remorso? Ou foi mesmo levada? Fecha os
olhos para tentar rever o que aconteceu… Agarra no pelo com força. Bala no corpo, a mão larga
a pistola… Passa por cima do morto e abre os olhos para o sangue na parede. Rachel encostou-se
lá. Tentou salvar Daniel. Pousa o gato e tenta colocar-se na mesma posição que ela… Alguém
entra pela porta. Come with us. Negou. O homem baixou, então correu… Corre para perto das
caixas vazias. Foi agarrada. Ainda colocou a mão na parede, tentou libertar-se… O homem
levanta do chão, bate-lhe no rosto e ela fica sem forças para continuar.
Sai pela porta e olha para a rua.
– Para onde Rachel? – murmura.
– Não vens, Phill? – Jason pergunta ao lado de Wood.

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Sete Nomes

Levanta a mão ao tentar seguir o rasto. Olhos de águia, os pormenores contavam. Caminha para
a frente, o lado contrário ao do navio. Walter pega no gato perdido e olha para o pugilista, o que
raio estava a fazer?
– Tem o mesmo dom de Rachel. – o advogado conclui.
– Qual?
– Usar o olhar para refazer os factos. Pensei que tinha sido o único a ensinar-lhe aquilo, mas
parece que mais uma pessoa ensinou a ele essa capacidade.
– Quem poderá ter sido? – Wood pergunta.
– Kayo, o meu amigo pugilista. Não acredito que Phill foi pupilo dele.
Custava a acreditar, mas o mundo era pequeno demais para as vidas não se cruzarem. Quem
diria…
Os passos param ao pé de um beco cheio de redes de pesca. Por lá… Fecha os olhos e coloca a
mão junto à parede. Uma carruagem negra parou ao fundo da rua, atiraram-na para dentro e
trancaram a porta. Antes disso, antes de o homem fazer sinal, Rachel atirou para as redes algo.
Começa a andar, abre os olhos e procura os colares. Ela sabia que Phill iria, sabia. Como? Mandou
entregar a mala, conhecia bem aquele pugilista que saberia interpretar a mensagem. Podia amar
outra mulher, casar e construir uma casa, mas o velho sentimento estava lá. Mete a mão por entre
a rede e agarra nos colares. O trevo de ouro e um escaravelho.
– Sabias que vinha.
Olha para a rua movimentada, para onde? Lado algum. Pelo menos já sabia que não se escondeu,
foi levada forçadamente.
– Vou-te encontrar, quer onde tu estejas.
Se era para morrer juntos, então morreriam.

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Capítulo 64
Não… William teve um ataque ao ver à porta dois homens que precisavam de refugiu. Berrou,
levou o filho para o escritório e gritou-lhe tanto que o deixou com lágrimas nos olhos. E na sala,
ficou Walter e Jason, acompanhados da muda princesa. Ao fim de duas horas, a porta foi aberta
e o pugilista liberado. Em troca de encontrar Rachel, casava-se com Yerne e mudava-se para
Orange. Porquê essa condição? William ameaçou sabotar os planos deles, não queria saber se
estava a ser um bom pai ou mau, apenas queria que as coisas fossem cumpridas como o
combinado. Dura decisão, mas pela vida dela, Phill faria qualquer coisa.
Depois, colocou um mapa sobre a mesa e chamou os Clarel para ajudar a pensar. Gastaram o giz
a pintar os possíveis lugares para onde Logan a tenha levado. Por aquela hora, quase nem valia
apena sair e procurar, à noite tornava-se difícil.
Derrama mais vinho no copo de cristal. Ainda bem que Yerne se foi deitar, estava com uma
enorme vontade de a colocar na rua.
– Kayo… Estou admirado. – Jason comenta.
– Não sabia que lhe tinha ensinado essa estratégia.
– Fomos alunos da academia de Oxford. Fiquei espião e ele desapareceu. Devia ter dado conta
que o teu feitio é semelhante.
Nega ao beber, o mestre era mais despreocupado da vida. Phill conseguia passar noites sem
dormir por causa dos problemas.
– Sinto falta dele.
– Como morreu?
– Bêbedo, sobre um degrau do Box Dead. Deixou-me a herança e o lugar na arena.
– Hm. – sopra o fumo do cigarro – Sabes o que faria nesta situação?
Sorri para o inspetor.
– “Phill, o que raio aconteceu com o Box Dead? Eu é que bebo e tu é que fazes as merdas sem
pensar? Vai já atrás da miúda que te abriu as pernas, não tens vergonha de usar e deitar fora?”
O riso percorre a sala com o ar abafado.
– “Calma mestre, eu vou encontrá-la.” “Vais o rabo da tua mãe! No teu lugar já a tinha encontrado.
As mulheres não são como agulhas no palheiro. Sabes encontrar a porcaria da porta do bordel,
mas ela não. Devias ter levado mais nesse rosto!” Kayo às vezes não media o que dizia.
– Não mesmo. Foi o melhor aluno, até se apaixonar por uma mulher e mudar-se para a América.
Nunca soube o que fez voltar.
– Disse que estava a fugir de um enorme problema financeiro. Abriu o Box Dead e não houve
uma única noite em que a casa não estivesse cheia. “Enquanto viver, esta arena vai lucrar.” Morreu
e eu não consegui pagar as dívidas que herdei.
Herdou muito dinheiro, mas as contas por pagar superavam a riqueza. Depois, habituou-se a
pedir, pedir e pagar mais tarde. Quando deu conta do erro, já tinha a fama de devedor. Foi graças
ao pai que pagou o resto, mas apostava que ainda havia mais contas antigas.
– Onde está Stayci?
– Com Gwenny. Pedi para não ir, mas disse que tinha tudo controlado… – Walter comenta –
Ando com o coração na mão por causa dessa decisão.
– Não gostei nada dessa ideia. Aquela louca é capaz de qualquer coisa.
– Eu sei, meu tio. Na altura, não devia ter casado com ela.
– Porque casou?
Walter suspira.
– Gwenny implorou-me que a esposasse. Tive pena e acabei por lhe pedir a mão.

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– Que erro, é pior que o diabo. – Phill bate as cinzas no copo.


– Sim. Acredito que um dos abortos que teve foi provocado, disse que de mim teria só uma filha.
Não sei onde errei, dei-lhe tudo.
– Vá por mim, aquela nasceu com um grande problema mental. Rachel está mortinha para a matar.
E quem não estava? Uma mulher que se une a um assassino é porque sabe qual é o seu fim. Viram
o rosto para William, entrava com um jornal na mão. E a conversa? Entre olham-se, fazem sinal
para não falarem que aquele podia traí-los. O príncipe cruza a perna, abre o jornal e lê as
novidades.
– Podem falar à vontade. – comenta.
Não, o fator confiança foi quebrado. Antes, até poderiam confiar em William, mas agora que a
relação com o filho estava muito complicada, nem arriscariam. Jason bebe o resto do uísque e
espreita pela janela. Walter continua a mimar o gato e Phill, encara o pai que estava a mais. Não
o perdoava do que disse, colocava os interesses à frente da felicidade do filho.
Uma empregada corre para a porta, alguém bateu. As cabeças espreitam para o corredor, quem
seria àquela hora?
– Stayci. – Walter levanta.
– Pai. – corre para os braços dele.
– O que aconteceu?
– Gwenny colocou-me na rua, disse que estava a estragar-lhe os planos. A prima foi levada, não
foi?
Pelo silêncio, sim, Logan a levou. Stayci senta no sofá e olha para o chão, não podia acreditar
naquilo. Rachel will die! Gritou-lhe isso ao atirar pela janela a roupa. Pensou, pensou mesmo que
se tratava de uma ameaça, não de uma verdade.
– Hei… – Phill coloca a mão sobre a dela – Ainda há esperança.
– Não. Ele matou-a.
– Acredito que está viva e bem.
– Como podes acreditar nisso?
– Porque pedi para ela lutar no momento em que o enfrentasse. Acho que vai aguentar.
Nega, aquele homem não conhecia o monstro que a mãe era.
– Não entendo, sinceramente não entendo. – William fala.
– O que raio não entende? – vira o rosto.
– A demora. Adoram Rachel… Morrem por ela… – fecha o jornal – Mas invés de estarem na rua,
estão aqui sentados a beber, rir… E ela lá, presa, torturada… Vão fazer algo quando estiver morta?
O pugilista ajunta o dedo indicador aos lábios, antes até lhe dava a razão, mas, agora, nem o
queria ouvir.
– Está a falar o homem que assassinou uma rapariga de dezanove anos por ter carregado no ventre
o seu filho que, agora, para si, é um negócio. Que descaramento tem de dar opinião…
– Não é verdade o que disse?
– Perguntei, que descaramento tem de nos dar a opinião se invés de se aliar, ameaça contar ao
inimigo o que planeamos?
– Fi-lo para teu bem.
– Fez? Pensou na minha felicidade ao lado daquela mimada princesinha?
– Phill. – Jason apela.
– Espere avozinho, a conversa é entre mim e o meu estúpido pai. Já o amei mais do que o amo.
O príncipe bate o jornal no chão e curva o tronco para encará-lo.
– Levanta e vai atrás dela. Se a amas, vais entender que não há nada desta vida que supere esse
amor.
– Agora banca de meu conselheiro?

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Sete Nomes

– Porque talvez ame também aquela mulher. Porque talvez a deseje mais que tu e, no entanto,
contento a minha vontade de a beijar.
– É um grande filho da mãe por me dizer isso. – comenta com os punhos fechados.
– Pensas que és o único a querer Rachel? Pelo menos, não lhe parti o coração.
Vai direto ao pescoço dele, os restantes tentam puxa-lo para trás para evitar uma tragédia.
William passou das marcas, podia estar em guerra com o filho, mas não tinha esse direito. Perdeu
a cabeça ao falar dela assim? Não, a mais pura verdade a ser desabafada. Gostava mais dela do
que o filho suspeitava.
A princesa coloca a mão na boca ao ver o que estava a acontecer. Desceu, uma barulheira infernal
perturbava o seu sono. E o que via? Três pessoas a tentar puxar o príncipe para não matar o pai.
A cadela desata a latir ao ver o gato amarelo no chão.
– Pimy. – pega ao colo.
A empregada volta a correr para a porta. Outra pessoa por convidar. Yerne recua ao ver a rapariga
que entrava com caçadeira na mão.
– Parem ou disparo ao primeiro que me surgir na mira.
Viram o rosto para quem não estavam à espera. Selena… Phill larga o pescoço do pai e ergue o
tronco. Ali? Se existia alguém que conhecia bem o inimigo, era ela, a desaparecida filha.
– Tu e eu temos muito a falar… – caminha na direção dela.
– Alto Phill, isto pode ser uma armadilha. – Jason alerta.
Não, Rachel ajudou-a a desaparecer de Londres. Se fosse um truque, não estaria ali a arriscar-se
tanto. Baixa o cano da espingarda, agarra no braço dela e arrasta-a escada acima.
– Onde vais? – o advogado pergunta.
– Trate desse traste que eu trato da minha amada.
Vira o rosto para o príncipe com os olhos em lágrima. Apertar-lhe o pescoço era pouco, no lugar
do genro, ter-lhe-ia arrancado a língua por falar dessa maneira. Enfim, estava de muito mau humor
para começar ali uma guerra entre família. Faz sinal para lhe darem água, ainda morria sentado
na poltrona.
Abre a porta, atira-a contra a cama e tranca à chave. Depois, acende o interruptor, fecha as
cortinas e pousa a espingarda no sofá. Com que então, a cria do lobo decidiu aparecer em
Londres… Nem sabia se a espancava para ouvir as verdades ou se ia com doçura.
Cruza os braços, a paciência estava no limite.
– Fala.
Selena recompõe o vestido. O que fazia ali? Bogges alertou que as coisas em Londres não
estavam bem. Possivelmente, Logan apanharia Rachel por causa de Daniel, o seu plano sempre
foi esse, chegar a ela através do mais fraco. Teve algum receio em comprar passagem para ali, se
o pai a visse, não pensaria duas vezes em matá-la por traição. Mesmo assim, faria o certo, porque
estava cansada de se esconder.
– O que queres saber?
– Não sei… És a cobrinha júnior daquele no ninho de cascavéis. Então, no teu lugar… – caminha
na sua direção – Eu abria a boca a bem.
– Vais bater-me? Que cobardia.
Respira bem fundo, naquele momento, a palavra estava a ter imensos significados opostos.
– Onde está a Rachel?
– Possivelmente, em muitos lugares.
Que conclusão, eles já tinham lá chegado antes.
– Um deles. – pede.
– Posso estar a enganar-te.
– Eu certifico-me que falas a verdade… – agarra no cabelo dela.

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Sete Nomes

Cerra os dentes ao sentir a dor. Coloca a mão na dele, sente o corpo ser puxado para cima.
– Onde está Rachel?
– O meu pai vai matar ambos. Será pior se todos forem. – fala com voz quase de choro.
– Estou capaz de loucuras muito impensáveis.
– Eu levo-te lá, mas só se eles ficarem.
– Porquê?
– Porque o plano é matar todos de uma só vez.
Agarra no queixo dela e olha-a nos olhos. Será que mentia? Selena mexe-se, queria libertar-se
daquelas brutas mãos.
– Leva-me lá. – larga-a.
Abaixa o tronco sobre a cama e ofega. Pensou que Phill fosse meigo com as mulheres, mas pelos
vistos, tirado do sério, era um homem violento.
– Vamos pela janela.
– Que remédio. – coloca a boina.
Enfrentar o pai… Selena caminha para as cortinas, abre a janela e espreita para a rua. Podia uma
filha ser tão ingrata a esse ponto? Podia, no momento que era usada como objeto conspirador.
Coloca a alça da espingarda ao peito e passa a perna pelo parapeito. Sabia o que ia acontecer, e
estava feliz por fazer o certo. Morria, orgulhosa de pela primeira vez da vida servir o país e não
homens ambiciosos.
– Se ela estiver morta, o que vais fazer?
– Matar o teu pai, tatuar o nome dela no meu braço e partir para Boston. Alguma sugestão?
– Muitas. Podias matar a minha madrasta e irmã.
– Odeias mesmo a tua família, não odeias?
– Experimenta ser marcado com ferro em brasa nas costas aos cinco anos de idade, só para
pertenceres à irmandade de conspiradores. Não os perdoo de nada.
– Queres pior?
Assente ao começar a descer.
– Experimenta ser filho bastardo de um pai que te matou a mãe, mentiu-te, usou-te e ainda se atira
à mulher que amas. Depois, faz-te casar por obrigação e viver infeliz em Orange. Queres pior?
Sorri e olha para cima.
– És mesmo mimado.
Baixa o rosto, então era essa a opinião alheia sobre a sua vida? Mimado? Abana a cabeça, as
pessoas não entendiam mesmo o seu sofrimento interior. Se estivessem na pele, iriam desejar nem
terem nascido.

Não aguentava mais a música do gramofone. O som repercutia na mente… Como se batesse
várias vezes na parede e percutisse… Por horas e horas… Levanta a cabeça para a porta. Porquê
que estava ligado? Para os gritos dela serem abafados. As pessoas perguntariam o que estava a
acontecer, quereriam explicação para aquele atormento. Assim, bastava mudar a faixa e bater-lhe
há vontade.
Rachel estava presa por correntes, em tronco nu, pendurada no teto. Os pulsos doíam de a
gravidade puxar. Já nem queria falar sobre a terrível dor das costelas, barriga, costas… Logan não
a matava diretamente, preferia que morresse de exaustão de tanto gritar ou de alguma hemorragia
interna. O rosto pingava sangue, os lábios esfolados de tantos os dentes trincarem para aguentar
os murros.

461
Sete Nomes

E a maldita música dia e noite… Não suportava mais aquele inferno. Mas não tinha forma de sair
dele. A esperança morreu, ninguém se lembrava dela. O avô? Boston. Os primos? Orange. Phill?
Na cama com a futura esposa. Deus? Ocupado a fazer algum milagre. Abandonada, dada ao
inimigo como prémio. Se soubesse que ao matar Daniel estava a se entregar, teria ficado no túnel
e esperado mais um pouco. Também, não existia motivos para viver.
A porta abre e um homem entra. Comida? Bem podia desejar comer, porque ninguém lhe dava.
Logan viu vários prisioneiros usarem a desculpa da refeição para se libertarem. Se existia algo
que não queria, era ver a filha do inimigo libertada.
Bate a cadeira e senta junto à parede. Logan fez-lhe uma proposta tentadora. Selena em troca de
liberdade. Riu com os dentes vermelhos e negou, por mais que desejasse fugir, não entregava a
rapariga. Então levava, as correntes baixavam e batiam-lhe até ficar quase inanimada.
Vira o rosto para a porta ao ver uma convidada bem atrasada para a festa. Gwenny. Belo vestido
negro, de certeza que já fazia luto pela priminha.
– Rachel, bons olhos te vejam. – retira as luvas de veludo – Já te vi com melhor aspeto.
Tinha vontade de rir. Invés disso, começa a tossir com violência. Do nada, cospe o sangue para
o tecido dela. Gwenny abre a boca ao ver o que fez.
– Sua cabra! – coloca a mão sobre a nódoa negra na barriga e carrega com força.
O grito sai, os dedos agarram nas correntes com força e a cabeça levanta para o teto.
– Gwen… Não brinques com a minha convidada. – Logan pede ao surgir à porta.
– Desculpa, mas ela sujou-me o vestido novo. – recua.
Olha para o sangue. Faz sinal para ser baixada.
– Vou fazê-la pedir desculpa.
Gwenny sorri com malícia. Os joelhos colidem no chão, Logan agarra nos cabelos dela e puxa
para erguer o corpo. Rachel bate-lhe no peito, mas a força não era muita.
– Pede, com jeitinho, desculpa à prima Clarel.
– Nem morta. – murmura.
– O quê? – aproxima o ouvido.
– Disse que quero que a prima vá à merda. – sorri.
Abana a cabeça, o pai dela não a educou direito. Crava na bacia dela arame farpado e segura o
corpo que queria cair. Grita, crava as unhas no braço dele e grita ao sentir o sangue escorrer.
– O pai vai educar-te como deve ser.
A voz cessa, estava rouca demais para continuar a gritar.
– Agora, pede desculpa à prima. – atira o tronco dela aos pés de Gwenny.
Abre a boca para o sangue da garganta escorrer. Não aguentava, por isso que Daniel preferiu
morrer a ser apanhado, não ia aguentar também.
– Rachel, anda lá.
– Desculpa. – pede com a voz muito baixa.
– Ela não ouviu.
Novidade? Nem que tivesse gritado, ouviria.
– Desculpa prima. – pede ao levantar o rosto.
Algo abala dentro de si, aquele olhar cheio de lágrimas toca o coração de Gwenny. A pequena
Achel de Walter, a menina que corria pela casa para apanhar Stayci. As brincadeiras na sala com
as almofadas coloridas, o jogo das escondidas no guarda roupa dela. Gwen…Gwen, play with us,
please. We like when you are the queen of England. Pediam, ambas, com as mãos juntas à boca,
para fazer de rainha, porque tinha uma majestosa tiara de prata com diamantes. E, mesmo sem
disposição, Gwenny colocava-a na cabeça, dizia ser a esposa do rei Arthur e que acordou para
governar. Eram dias tão alegres que não existia esse sentimento de vingança.

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Sete Nomes

As lágrimas descem o rosto, o que raio lhe estava a fazer? Rachel jamais abrir uma guerra com
ela, porque amava-a sem saber o que fez no passado.
– Isto é mesmo necessário? – limpa o rosto discretamente.
– É filha de Cristian… Lembraste como ele rejeitou o teu filho?
– Talvez tenha merecido isso, eu é que o forcei ao que não queria.
– Estás a recuar na nossa parceria, Gwenny?
Nega, jamais faria isso no momento em que sabia que deu a volta do laço da corda no pescoço.
– Eu sei que és muito fraca emocionalmente… – passa a mão direita pelo rosto – É melhor
regressares a casa e esperar que termine isto.
– Se queres Selena, porque a condenas? Já estamos ricos, podemos finalmente ficar juntos, vender
Rachel para a escravatura e viajar para Boston.
Logan olha para o lado.
– Sabes que Selena neste momento é mais perigosa que esta aqui. – empurra-a contra o chão – Eu
sei que ela vai abrir a boca, por isso, tenho que a matar.
– Então liberta-a, veremos se vai atrás dela…
– Gwen… Ó doce Gwen… – agarra nos ombros – Rachel não é igual ao pai, ela é igual à mãe,
fiel aos segredos, fiel a si mesma. Achas que vai abrir a boca?
– Pelo menos…
– Já entendi. Estás cansada, o regresso da tua filha fez-te mal. Lones, leva a minha amiga à porta
e escolta-a para casa em segurança.
Nega, o homem agarra pelo braço e puxa-a para fora. I am sorry Achel. Murmura para o olhar
perdido de Rachel. Arrependida… O que raio estava a acontecer com as pessoas todas que a
quiseram morta? Não entendia, tentava e não conseguia. Tosse e agarra-se à madeira do chão.
– Vês o que fazes, deixas as pessoas confusas. – caminha para as correntes – Fá-las repensar a
vida.
– Tu as confundes.
– Porque são pessoas fracas emocionalmente. – começa a puxar – Carter perdeu a mulher nas
chamas, então ataquei a sua fraqueza. Chester era um falhado nos negócios, dei-lhe uma luz.
Backer queria uma oportunidade de ser alguém, eu dei-lha. Merle sonhava em ser rei dos
bandidos, e foi. Donald um banco que foi um milagre em Londres…
Rachel cerra os dentes ao ser içada.
– Bronwen precisava de coragem para ser homem. Vês, fiz bem a todos eles.
– Tu usaste-os!
– É isso que achas? Que os usei?
– O meu pai estava a ajudá-los, então colocaste todos contra ele.
Larga as correntes, o corpo cai com violência no chão.
– Começo a achar que não devias ter ido matar Daniel. – aproxima-se.
Agarra no cabelo e arrasta o corpo pelo chão.
– O teu pai tinha-os na mão, só assim é que o conseguia matar. Quem se corrompe ao dinheiro, é
porque tem uma alma manipulável.
Rachel tenta agarrar alguma tábua do chão para evitar ser levada.
– E Angellyne deu conta, ouvia as conversas atrás da porta e alertava que se algo acontecia à
família, iria atrás de nós. Morreu não foi? Tinhas que aparecer tu para nos atormentar.
É largada, as mãos com as correntes tocam na cabeça que doía ainda mais.
– Onde está Selena, Rachel?! – grita-lhe – Onde ela está?!
– Longe, espero eu. – murmura cansada.
Desiste, pega num pano e abaixa-se. Aperta as narinas e depois, coloca o pano na boca. O corpo
desata a mexer-se, as mãos tentam puxar o pulso dele para respirar.

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– Mestre, está alguém à porta que exige falar.


– Quem?
– Selena.
Levanta as mãos e olha para o homem. Ali, a filha? Sorri, finalmente ganhou coragem para
aparecer. Levanta o tronco… Os dedos prendem-se à perna dele.
– Não. – Rachel pede.
– Não veio sozinha. – alerta.
– É mesmo? Trouxe um amigo? – Logan pergunta.
– Aquele pugilista.
Rachel levanta o tronco, Phill, ali? Pensou… Pensou mesmo que ele ia aceitar a morte. Abana a
cabeça, não podia ter sido tão burro a esse ponto, a menos que esteja a ser suicida.
– Vamos lá recebê-los. – começa a enrolar a corrente longa.
Phill… Porquê? Mudou de vida, desistiu dela sem olhar para trás. Agora estava ali com Selena?
Logan puxa-a para levantar. Não devia ter pedido para Khamero lhe dar a mala. Jamais pensou
que Daniel fosse uma armadilha. Não iam sair dali com vida.

464
Sete Nomes

Capítulo 65
Pai e filha, criador e cria. Sentado e de pé. Nunca um homem se arrependeu tanto de a ter tido.
Selena nasceu em Boston, um mês antes de Cristian morreu. A mãe? Dançarina de teatro que
passou uma noite com Darwin Logan, engravidando. Disse, com todas as letras, que não a criaria.
Deixou a bebé à porta do patrão e deu um tiro na cabeça. O que fazer? Angellyne cuidou dela por
uma noite, no dia seguinte, deixou a criança nos braços de Logan e alertou que se era pai, então
que cuidasse. Por várias vezes, pensou matá-la, abandoná-la, vendê-la… Mas, viu que também
podia ser útil como mulher.
Para quê? Fugiu, voltou-lhe as costas no momento em que precisava de sua ajuda. Sempre contra
a madrasta, sempre contra a meia-irmã que sim, fazia um altar para homenagear o pai. Selena,
desde o primeiro dia, foi uma perda de tempo. Agora dava conta do erro de a ter criado.
Finta Phill, que coragem em ir ali. Nem trouxe reforços. Sorri e faz sinal para lhe trazerem a
amada.
– Por onde andaste, Selena?
– A passear por Londres.
Abana o dedo.
– Sabes muito bem que tenho espiões. Desapareceste para longe… Longe…
Um homem empurra Rachel contra a mesa. Vestiram-lhe uma túnica, parecia mal andar com os
seios à mostra. Phill move-se, mas um homem prende-o.
– Vejam só, um reencontro. Falem um pouco, devem ter muitas novidades.
Olhavam-se… Onde erraram para chegar àquele ponto? Rachel coloca a testa na madeira, não o
queria ali, Deus não a podia castigar dessa maneira. O pugilista estava chocado com o estado dela.
Torturada. Bateram-lhe durante o dia e a noite. Tenta mover-se, tenta chegar a ela para pedir
perdão pela cobardia.
– Pronto, eu dou a novidades. Phillipe de Orange vai casar-se brevemente com a princesa Yerne.
E… É preciso lembrar, dormiu com uma empregada lá na Holanda. Que querido.
– Corno! – grita.
– Rachel, não estás chocada?
Nega ao olhá-lo.
– Mesmo?
– Dormi com Elvis quando nos separamos. Querias o quê, mal-amado? Que ficasse contra ele?
– Queria que abrisses os olhos. Mas… Eu também tenho novidades para o nosso amigo. Rachel
fez com que a amiga negra morresses. Deixa-me ver… Mataste Louisiana, Amarys… Khamero…
O contrabandista morreu? Estica as mãos contra o pescoço dele, mas alguém puxa-a pelas
correntes.
– Dez mil livros queimados naquele incidente. Que pena.
– Eu odeio-te! Odeio-te tanto Logan! – grita.
– Se te amasse, não estavas aqui para morrer. Aproveita a conversa a dois, que eu, vou discutir
uns assuntos com a minha amada filha. – levanta – Há minha frente. – pede a Selena.
– Não… Não a leves… – Rachel tenta travá-lo.
Puxam as correntes, o corpo volta a cair sobre a mesa.
– Selena, não! – grita.
– Mata-o Rachel… – pede a cada passo – Mata-o, por favor.
O choro surge quando a porta é fechada. Mais uma pessoa que ia morrer por sua culpa.
– Obrigado Selena, obrigado… – grita ao bater na mesa – Obrigado.

465
Sete Nomes

Então, olha por entre o cabelo húmido o rosto de Phill. Porque não avançava? Porque estava
parado ao pé da parede? Era chocante vê-la assim, destruída? Não, o príncipe não podia tocar na
mendiga. Assente, continuava sozinha. Baixa a cabeça, cerra os dentes ao sentir as terríveis dores
percorrerem o corpo.
Umas mãos levantam a túnica cheia de sangue. O homem que segurava as correntes não o
censurava de se aproximar dessa maneira. Então, os soluços ligeiros chegam ao peito de Phill.
Nódoas negras, cravaram-lhe algo ao fundo das costas, bateram-lhe com tanta força que teria
alguma costela deslocada ou partida.
– Vieste. – a voz murmura.
Baixa a túnica, mete a mão pelo peito dela e ajuda a levantar o tronco massacrado. E agarra-a,
nos braços novamente.
– Vim, porque te amava.
A cabeça descai para o ombro dele e chora de alegria.
– Sou eu Rachel, Phill Smith. Aquele devedor de Londres, o pugilista sonhador do Box Dead.
Lembraste dele?
Assente ao fechar os olhos.
– Lembraste como nos conhecemos? – beija-lhe o pescoço ensanguentado – Mataste Jack na loja
e fugiste para o beco…
E lá estava Phill, a fumar com o cachimbo na mão. I didn´t saw him. Virou-se para trás, porque
não entendeu o que falou. Sorry?
– Fizeste-me ficar lá parada a falar. E no fim, convidaste-me à tua arena. – fala com a voz rouca.
– Sim, comentei com Yves e Abie que conheci uma mulher linda, mas muito misteriosa. Desejei
com todas as minhas forças que fosses e foste.
– Ver-te ganhar para receberes um beijo.
Entrelaça a mão na dela.
– Convidei-te para o meu quarto, perguntei se podia e disseste para não temer. Entrei na tua
história, partilhaste-me os teus segredos e eu os meus. Rachel… Fizeste-me ver que rico, ia ser
infeliz. Que amar outras mulheres não vale apena e que só a teu lado é que sou feliz.
– Foste embora…
– Era Phillipe Orange, era ele a falar e a desesperar. Porque eu, o Phill, filho de pai incógnito e
cheio de dívidas, não temia lá ficar contigo. Vi o mar que tanto tu descreveste, vi as estrelas a
difundirem com a água. Só pensava em ti, só queria estar contigo. Não fez sentido estar nos
lugares mais belos se não te podia contar o que achava. Na noite em que me deitei com a
empregada, eu quis esquecer-te para seguir em frente. Não consegui.
Vira-se e levanta as mãos acorrentadas para o rosto com lágrimas.
– Partiste-me o coração.
– Voltei para o refazer. Não te vi no restaurante, ou teria saído disparado atrás de ti. Tinhas razão,
o meu pai esteve aquele tempo todo a tentar levar-me para Orange para casar. Tinhas razão,
sempre tiveste e sempre terás. Não pensei duas vezes quando vi a mala, queria libertar-me porque
o amor é mais forte que todo o dinheiro deste mundo. Eu quero casar contigo Rachel, só contigo.
Encosta a testa, não estava sozinha como pensou estar.
– Vamos morrer.
– Mas morreremos juntos.
Os corpos estremecem com o som do tiro. Rachel desata a chorar, agarrar-se ao peito dele e grita.
Selena morreu, Logan teve coragem de matar a própria filha. Phill baixa o rosto, apenas treze
anos, nova demais para perder a vida.
– Precisas de ser forte, só tu é que o podes matar. – pede com a voz de choro – Só tu.
– Estou fraca.

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Sete Nomes

– Vou te ajudar, juntos vamos conseguir.


– Fica aqui comigo, prefiro morrer nos teus braços.
– Tu não vais morrer sem o matar. Não desistas, tens o teu avô lá fora, o teu primo e prima. Tens
que lutar por eles.
– E tu? – levanta a vista.
– Sacrifico-me para que o possas matar.
– Não, não me faças isso, por favor, tu não…
– Como Julieta morreu por Romeu.
– É só uma estúpida história! Não jogues com a vida, não me deixes.
A porta abre.
– Vou-te amar para sempre, quer nesta vida, quer na outra.
– Phill…
Beija-a com carinho, agarra-a nos braços com força e as lágrimas tocam a pele dela.
– Fim de conversa. Levem o nosso pugilista a uma aula de boxe. – Logan pede – Porque eu estou
a adiar muito a morte da minha convidada.
Os homens começam a separar o casal que se rejeitava separar.
– Phill! – Rachel grita ao esticar a mão.
– Sê forte. – pede antes da porta fechar.
Debruça-se no chão a chorar. Porquê? Não entendia porque tinha que os perder, porquê que tantas
vidas tinham que ser sacrificadas para que um homem fosse morto. Phill não, jamais conseguiria
viver com essa dor, quem vingaria pelo nome dele? Agarra-se aos joelhos, foi enfrentar a morte
por amá-la, porque se não a amasse, ficava pela informação dada por Khamero.
– Dói perder alguém, não dói?
Doía sempre, como se fosse a primeira vez que tivesse sido magoada. Como se todos os dias a
mesma bala entrasse pela mesma ferida e doesse. Rachel pensou que poderia refazer a vida, mas
não valia apena, o destino não queria nada dela, nem a felicidade, nem a cura para o trauma.
– O que lhe vais fazer?
– Então, para Phill guardei uma boa luta de pugilistas. Não estava há espera dele. – acarinha a
cabeça dela – Não tens que te culpar, ele quis vir, não quis?
– Mataste Selena, a tua própria filha.
– Já deveria ter morrido lá em Boston. Quando a mãe não presta, as filhas não valem nada.
– Era só uma menina. És um monstro…
– Shhh… Vais ver que no fundo, as pessoas só caminham para as covas que abrem. Mas tu tiveste
oportunidade de sobreviver, podias ter seguido com a vida, desaparecido do mapa… Escolheste
vir atrás de mim. E agora, vais morrer.
O desespero invade o peito dorido.
– Poupa Phill, mata-me, faz o que quiseres, mas liberta-o, por favor.
– Amam-se mesmo. Não conheces a história do escritor Shakespeare? – puxa o cabelo para o
corpo levantar – Conheces?
Negava-se a contá-la, porque odiava histórias onde o amor perder invés de ganhar.
– Julieta decide por fim à vida, porque sabia que viva nunca ficaria com Romeu. O que aconteceu?
Hm? Conta-me.
Abana a cabeça.
– Conta-me. – carrega no sangue que saía ao fundo das costas.
O grito violento sai.
– Eu conto. Romeu pega no frasco com veneno e bebe-o. No final, ambos morrem para ficarem
juntos. Mas sabes, é só uma história, ele nunca esteve em Verona, eles nunca existiram. Eu só
faço justiça. Não achas?

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Sete Nomes

– Odeio-te. Por seres mal-amado, queres matar-me.


– Porquê? – segura no queixo.
– Porque este tempo todo, eu fui amada, as pessoas amaram-me… Morreram por me amarem.
Odiavas o meu pai por ser amado, odeias-me por ter nascido por amor. Morro, mas antes, alguém
morreu a amar-me.
Logan fica pensativo, não digeria bem a informação.
– Estava a pensar poupar-te, esperar que Phill morresse para te levar a ele e deixar o aviso, porque
às vezes, não é preciso matar, apenas chocar. Pelos vistos, farei o contrário. Não te preocupes, o
pugilista ficará vivo para contar a história.
Mais uma mulher que amava morta? Abana a cabeça, começa a bater-lhe no peito. Logan faz
sinal para abrirem a porta.
– Não! Não! Não… – grita desesperada.
O homem puxa as correntes, Logan empurra-a para andar. E Rachel grita. Grita o quanto podia
para a música do gramofone ser inferior à sua dor. Não podia dar essa dor a Phill, esse azar de
perder todas as mulheres que amava incondicionalmente. O que seria dele? Como voltaria à
sociedade sabendo que se amasse, perdia? Grita, negasse a andar pelo corredor de madeira. Porquê
tanta crueldade humana na hora de separar quem se amava? Olha para Selena morta no chão, deu-
lhe um tiro no peito e não lhe fechou os olhos. Tal e qual ao disparo dado em Cristian, a mesma
frieza e falta de sentimentos. Foi só uma criança no mundo manipulado dos adultos, não merecia
aquele fim.
– Levem Phill para fora, não preciso mais dele. – avisa a um homem.
Rachel olha para trás, tenta correr para pedir o contrário, mas as longas correntes puxam-na.
– Que mulher mais teimosa. – agarra-a pela cintura e leva-a.
– Phill, perdoa-me! – grita no corredor – Perdoa-me.
Uma porta abre para o mistério que a levaria para a morte. Rachel desiste de viver, no momento
em que a chance de sobreviver é pouca.

Já levou tareias mais duras. Porém, antes pesava noventa e um quilos, comia demasiado para
ganhar músculo. Desde que entrou na dieta, perdeu peso, perdeu a capacidade de suportar a dor e
os reflexos ficaram mais lentos. Ou seria o coração dorido a mandá-lo ao chão? Cospe o sangue
da boca, coloca a mão sobre a barriga e olha para o homem que lhe bateu. Que miserável, tinha
punhos de menina. De certeza que aquele perdia na arena do Box Dead.
– Levem-no, Cristian o dispensou. – um pede.
Já? Tão rápido? Nem tiveram tempo de o espancar. Pensou que sairia dali morto, pelos vistos,
Logan estava mais bondoso do que pensava.
– Ouviste? – aponta o dedo.
Phill enche os pulmões com ar. E pensa, ainda debruçado no chão… Quantos homens viu no
corredor? Quatro, no lado de fora havia mais dois armados. Sete portas, um enorme poço com
água num dos quartos, o edifício ficava à beira do Tamisa. Selena alertou que, se matassem
Rachel, seria afogando-a. A parede era alta e se caísse na água, não conseguiria subir, além de ser
fundo. Então, era preciso abrir a portinhola para terem acesso à superfície. Plano A, matar o
máximo que conseguia e saltarem para a água, nadarem para a margem e desaparecerem. Plano
B… Não havia plano B no momento em que esse ficou definido.
Ouviu-a gritar, então Logan ia afogá-la. Ia o A.
– Ajudem-me a levantar… – estende a mão – Ainda dói.

468
Sete Nomes

O homem pousa o revolver na cadeira, agarra nos dedos dele e puxa-o para cima. Phill sorri, faz
balanço para fora, pega na arma e dispara contra ele. Outro se aproxima e volta a disparar. Sopra
para o fumo da culatra, ainda bem que aprendeu a usar uma pistola. Mais uma vantagem? O
gramofone que estava alto demais.
Alguém muda a faixa, Beethoven começa a tocar. Espreita pelo aro da porta, lá estavam os quatro
a guardar. Quantas balas? Gastou duas, teria mais três.
– Vamos antes que seja tarde demais.
Sai para o corredor e aponta…
Pesos, cada um pesava trinta quilos. Uma alta queda… A prancha lembrava-lhe as histórias de
piratas que o pai contava. Um pilar de madeira no meio do estrado e os pesos circulares com um
buraco no meio. Rachel não se atreve a olhar para baixo, sentia o vapor fresco das águas que
borbulhavam ao baterem na enorme parede de pedra.
Logan estica bem a corrente, ia meter os elos de aço no buraco dos pesos e mandá-la para o fundo
do rio. Pousa ao lado dos pesos o arame farpado, já não precisava mais dele. Devia de morrer
como o pai morreu, um tiro no coração e pronto, assunto arrumado. Mas, a morte lenta era mais
marcante.
Ouve um bater à porta. Faz sinal para o outro ir abrir.
– Daqui a nada, já vais ver o teu querido pai. – comenta.
Assente com as lágrimas a descer o rosto, se era esse o seu destino, então finalmente o cumpriria.
O som de um disparo ecoa pelo espaço desavagado. Logan encostasse ao pilar de madeira…
Rachel vira-se. Quem era? Poderia ser qualquer pessoa de fora, desde a realeza, aos parentes.
Phill encostasse ao pilar após trancar a porta. Foi fácil matar os outros? Limpa o sangue do braço,
custou menos que enfrentar os traidores da rainha. Com um ligeiro reparo, estava muito
enferrujado para aquilo. Sente uns passos a andar sorrateiramente, levanta o braço lentamente…
A mão agarra no pulso, puxa-o para fora e faz o corpo ir contra a parede.
– Phillipe! – Rachel grita desesperada.
Vira-se e tenta bloquear os murros de Logan. Encurralado à parede, tantos assaltos com essa
técnica que nunca foi avante. Baixa um pouco o tronco, avança o pé direito por entre as pernas
dele, passa as costas por debaixo do ataque, dá com o cotovelo na anca dele e empurra-o contra a
parede. Depois, mete o braço por debaixo do pescoço dele e levanta a cabeça para travar o corpo.
– Pensavas que ia embora sem ela?
Rachel senta na prancha e tenta desapertar o nó dado na corda que prendia os pés.
– Achas que sou um amador? – Logan pergunta com dificuldades.
A mão chega à faca da algibeira, corta um pouco o braço e força-o ir para trás. Phill toca o
ferimento, outro com objetos ilegais.
– Isso é batota.
Nem comenta, avança com golpes altos e baixos.
Nós… Por algum motivo usava roupa com botões. As unhas quase partidas tentavam desfazer o
terrível nó. Olha para Phill a tentar travar a faca que o queria abrir ao meio.
– Vá lá! – pede ao mexer os pés.
As mãos bloqueiam o pulso dele. Logan podia ser mais forte, mas não era mais astuto. Roda o
pulso para fora e torce-o junto à costela. O grito sai. Depois, dá um passo atrás e fecha o punho,
dando-lhe fortes murros na barriga. Encostado ao pilar, baixa o braço e dá um violento gancho no
rosto que estremece por completo.
Logan cai no chão. O pugilista mete a mão na boca, lutar sem ligaduras doía a dobrar.
– Rachel… – anda para a prancha.
– Está morto? – pergunta.
– Não. – ajoelha-se e tenta desfazer o nó – Pega na faca e mata-o, é a tua oportunidade.

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Sete Nomes

– Devias ter ido embora.


– Rachel. – toca o rosto dela – Jamais faria isso. Não te vou perder.
Abraça-o com força, tinha vontade de chorar de alegria. Estava ali por ela, por mais ninguém.
Isso não provava o verdadeiro sentimento?
É arranco dos braços dela, os pés são puxados com força.
– Phill! – estica a mão.
Logan arrasta-o para perto do pilar.
– Estou farto disto! – comenta ao virar o corpo dele.
O pugilista só tem tempo de usar os pulsos para travar o braço que, descendia para cravar a lâmina
na cabeça. Cerra os dentes com sangue, estava sem forças para o deter. Logan usa o peso do corpo
para conseguir avançar, o pugilista era mais forte do que pensava.
Rachel desfaz o nó, atravessa a prancha e pensa no que fazer. Desafiar para lutar? Não valia
apena, não ia conseguir aguentar. Olha para as correntes que iam ser presas ao corpo e levar com
os pesos. Mesmo ao lado, o arame farpado que ainda tinha o resto do sangue dela. Só havia uma
maneira de o matar sem prejudicar mais ninguém. Pega nas correntes, ata o arame em volta do
laço e passa as pontas soltas pelo corpo, duas voltas…
Phill vê a lâmina se aproximar do olho direito. A respiração acelerada cedia os pulsos que não
aguentavam mais. Logan cerra os dentes e… Sente uma corrente com os picos de ferro do arame
farpado ser colocado no pescoço. Mesmo assim, não Para de o tentar matar, depois atirava Rachel
para o fundo do rio.
Um peso é agarrado junto ao peito, caminha pela prancha e faz os elos da corrente ficarem nas
bordas da madeira. As lágrimas descem e os olhos fecham. Londres… Nunca agradeceu tanto
aquela cidade pela ajuda que deu, pelos caminhos misteriosos que a acolheram e os lugares mais
belos que viu. Nasceu ali, sabia de cor todos os campos floridos por onde a carruagem passava e,
a pequena Rachel, colocava a cabeça de fora do vidro para sentir o aroma. Encontrou ali… Dois
jovens chamados Yves e Abibatu, dois sobreviventes da difícil vida londrina, que saíram das ruas
lamacentas para tentar criar um rumo. A eles, agradecia todos os dias a paciência e o carinho,
todas as vezes que gritaram com ódio ou se sentiram colocados de lado. Tinham razão, ser tratado
como uma criança numa idade adulta era insultuoso.
Os soluços aparecem quando lembra do motivo para ficar ali e não voltar a Boston. Desvendou
os segredos, criou um sentimento e descobriu que a vida é mais que uma vingança ou um passado
traumático. Perdoa e ama, vive cada minuto sem olhar para trás…
– Amo-te Phill.
Para o salvar, sacrificava-se, tal como Julieta morreu por Romeu. Dá um passo em frente e
recorda a manhã trágica… What you see, Rachel? I see… Cai.
Os picos cravam-se na pele, os elos esticam-se e as correntes puxam o pescoço de Logan com
força, arrasta-o pelo chão e prendem-no contra a madeira. A gravidade puxa com força o corpo
que entrava na água e…
O arame farpado entra na traqueia, sufoca Logan, o sangue escorre pela prancha, as mãos
tentavam puxar as correntes… A boca abre, os olhos arregalam-se e o coração para. Não se ouve
mais gritos, voz… Morto. Os homens fortes não morrem assim, só os mais fracos, só aqueles que
se rendem à ambição. Morto, tal como a filha disse, se Rachel a conseguiu enfrentar, então o pai
não conseguiria. Ela morreu e agora, aquele assassino estava morto pela sua própria forma de
torturar.
No fundo, Beethoven ergue os braços para a orquestra e o Hino da Alegria é tocada.
Phill levanta o tronco, olha em volta o súbito silêncio e passa a mão pela cabeça. O que
aconteceu? Ergue do chão.
– Rachel?

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Sete Nomes

Caminha para a prancha e repara no sangue que ecoava ao pingar para a água. Baixa o rosto para
o morto sobre a madeira. Nem acreditava no que via, é como se aquilo fosse um sonho. E Rachel?
Olha para as correntes no chão, um peso estava em falta… Nem pensa mais, salta para a água e
nada para o fundo.
O ar escapava da boca a cada afundar, a visão encarava o que a mente relembrava, aquela voz
que todos os dias ia lá ao quarto acordá-la…

“Rachel, um dia vais ver coisas magníficas com esses olhos. Quando os fechares, algo se vai
perder neste mundo. Quero, mais que tudo, que sejas feliz nas tuas escolhas e vejas magia para
lá da tristeza. Nasceste para correr, não pares.”

As correntes libertam o corpo. E continua a descer, as águas negras sugavam-na para o abismo.
Os olhos abertos estavam cegos, as mãos não conseguem empurrar o peso para o lado. Então ecoa
na mente o que antes, não se ouvia. Rachel… I love you. As bolhas de ar escapam pelos lábios
mais rapidamente. Após aqueles anos todos a tentar lembrar-se das palavras do pai, só agora é
que as ouvia.
Fecha os olhos e vê… Cristian sentado na poltrona da sala negra, a olhar para o fogo e a sorrir
para Angellyne. I love you. Apenas isso. Nos braços de Chester, a gritar e a chorar, o que
murmurou ao esticar a mão foi isso. Rachel… I love you. Ouve, ouve o ponteiro parado a mover-
se, quebra a barreira do tempo, enfrenta o avanço do mundo que antes, parou há treze anos. Oito
e um minuto. O trauma passou, mas a vida continuava a não fazer sentido. A menina deles, a
pequena Rachel com os grandes olhos, devia de ir ter com eles, sentir nos braços cansados o amor
que perdeu. O que ficava, sobrevivia, escolheu a morte ao procurar aquela vingança. Estava na
hora de a família se reunir.
Abre a boca para a água entrar.
Bate as pernas, os braços… Nada desesperadamente até ao fundo da gaiola que estava montada
abaixo da casa. Via lá no fundo, a silhueta do corpo que não se mexia para submergir. Estica a
mão para o peso, empurra-o para o lado e beija-a, empurrando ar para dentro da goela. Agarra no
corpo e bate as pernas para emergir mais rapidamente.
Segura o ar que começava a escapar, nunca nadou tão fundo para aguentar por tanto tempo. Grita
ao bater com força, ao gastar as energias para a salvar. Ia a tempo…

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Sete Nomes

Capítulo 66
Amanhecia no horizonte, o céu meio nublado deixava os quentes raios de sol espreitarem
Londres. As janelas abriam, as cortinas eram afastadas para o ar ameno entrar e renovar o antigo.
Os pescadores metem-se nos pequenos botes e remam para o Tamisa. Os navios preparam para
zarpar rumo ao mar, já iam tarde demais.
Do nada, um rosto submerge, puxa o violente ar para dentro dos pulmões e cospe a água que
engoliu. Bate os pés para não ir ao fundo, segura bem o corpo dela para a cabeça não ficar debaixo
de água. Dia… Chegaram ao esconderijo por volta das quatro da manhã e já era dia. Começa a
nadar para as escadas de pedra, esperava que não fosse tarde demais para a salvar do afogamento.
O alçapão não foi difícil de abrir. Segundo Selena, aquela gaiola foi feita para matar, os corpos
ficavam no fundo com os pesos por cima e, mesmo que subissem, não saíam para a superfície.
Logan não fazia as coisas à toa.
Mete o braço sobre a pedra, puxa o corpo dela, cerra os dentes e faz força para a deitar. Depois,
rasga a túnica, respira fundo, abre-lhe a boca e empurra o ar para dentro. Segue a linha do esterno
e começa a fazer força com as mãos contra o diafragma para expulsar a água.
– Vá lá Rachel.
Enche novamente os pulmões, abre-lhe a boca, empurra-o… Coloca as mãos, faz força… Um,
dois, três, quatro… Dez… Tenta novamente, sente o choro chegar e volta a fazer força.
– Por favor Rachel, acorda.
Enche… Empurra… Faz força… Mas os olhos não abrem, a água não sai. Phill grita
desesperadamente, bate-lhe no externo e baixa a cabeça contra a dela. Morta. Morreu como tanto
disse que morreria a tentar. Chora, teve esperanças, acreditou que poderia ser diferente… Não
adiantava, perdia-as de qualquer maneira.
– Acorda, não me deixes sozinho neste mundo cruel. Eu amo-te, quero-te ao meu lado. Por favor,
acorda, por favor… Conseguiste, acorda…
O tronco levanta ligeiramente, a cabeça estremece, os lábios brotam a água engolida e os olhos
abrem. Phill vira-lhe o corpo para o lado, assim não engasgava. Rachel tose com força, crava as
unhas na pedra e tose violentamente. Depois… Olha para a margem serena do Tamisa. Dia. Um
novo dia. O céu estava pintado de um suave amarelo que se misturava com o branco das nuvens.
Antes nunca tinha dado conta disso nos amanheceres. Que belo. Sorri ao ficar iluminada pela
fraca luz. Que belo. What you see? I see the sunshine.
– Rachel…
Deita no chão.
– Conseguiste. – sorri ao aproximar a testa – Tu conseguiste, meu amor.
O choro chega ao peito, um sorriso surge no rosto e as mãos sobem para a boca. Perguntava,
mudamente, se era verdade.
– Logan ficou com a traqueia entalada no arame fardado, sufocou com o próprio sangue. Está
morto, está morto…
Abraça-o com força, nem tinha voz para lhe agradecer.
– Morto Rachel, está morto.
Assente ao ficar agarrada ao tronco dele. Carter, Chester, Backer, Merle, Donald, Bronwen,
Darwin… Foram os sete homens que assassinaram Cristian Clarel, às oito horas da manhã, em
frente à pequena filha Rachel. Mortos, após treze anos há espera de justiça, finalmente estavam
todos mortos, cada um à sua maneira, quer enterrados, quer por enterrar. Mortos, tiveram o que
mereceram, cavaram a própria cova ao longo daqueles anos.

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Sete Nomes

Em paz, Rachel finalmente estava em paz, podia recomeçar a vida, aventurar-se por lugares
nunca dantes vistos e ser feliz à sua maneira. Nunca se sentiu tão leve como sentia.
– Obrigado Phill.
– Já podemos reconstruir o Box Dead? – recua.
– Então e Cavour?
– Itália não tem nada que me prenda lá. Quero erguer aquele monte de entulho e viver aqui como
pugilista. Sabes quem sou, não sabes? – abre os braços.
Pensa um pouco.
– Phillipe Stathouder?
– Não! Phill Smith, o Spectrum.
Ri. Puxa a cabeça dele e beija-o intensamente. Sozinha não tinha conseguido. Sozinha, ainda
estaria no fundo do Tamisa, morta para a eternidade. Cumpriu o que prometeu e isso, era
impagável.
– Ainda falta uma pessoa na minha lista.
– Até sei quem.
Gwenny, não podia ir para lado algum sem lhe dar uma pequena lição de vida.
– Já te contei que tens a tua família toda cá? Na minha casa?
– Desde quando tens uma casa? – deita no chão e olha o céu.
– Desde que a rainha me deu uma como prenda de casamento. Tens que ver a casa de banho... –
deita ao lado – Tem uma grande banheira e torneiras a ouro. Já pensei arrancá-las para vender.
O riso surge.
– Foi a primeira coisa que me ocorreu quando entrei. Dava… Umas duzentas libras. Deve dar
para erguer os pilares e o telhado do Box Dead. Depois, lá construo o resto.
– Ou ficas a dever?
Coloca a mão atrás da cabeça.
– Já te contei que devo aos construtores todos de Londres? Tipo, há contas que eu nunca paguei.
Aperta com força a mão dele e vira o rosto. Estava de volta, Phill estava novamente de volta.
Teve saudades dele. O pugilista gira a cabeça para o lado e encontra aquele magico sorriso no
rosto.
– Sabias que valeu apena todos os segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses… Todo o
sangue que perdi e lágrimas, para estar ao teu lado e ver esse sorriso?
– Prometo sorrir assim.
– Casas comigo ou não?
– Nem tenho vestido de noiva.
– Vamos à Francesca comprar um… Melhor não, ela odeia-me, está mortinha para me arrancar a
cabeça…
Beija-o, o Phill de antes também era muito tagarela.
– Sim. – murmura ao descolar os lábios.
Mima o rosto ainda com réstias de sangue. Se soubesse que ia ser feliz daquela maneira, jamais
teria abandonado a arena. Deitam as cabeças e olham para o céu, acabou. O que iam tatuar daquela
vez? A vida, certamente.

A empregada corre para abrir a porta, mas daquela vez, Jason puxa-a para trás, arregaça as
mangas e abre. Estala os dedos no aro ao ver Phill, molhado e com as mãos atrás das costas. E o
sorriso nos lábios? Provocava sempre, nem se lembrava que naquela casa, tinha pessoas capazes
de lhe baterem.
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Sete Nomes

– Então, fugiste com Selena e nem nos contaste? Nem penses que entras…
– Ahhhh… A casa é minha, avozinho. – entra – Além disso, estou todo partido… – passa a mão
pelo pescoço.
– É mesmo? E o que a vossa excelência fez durante a madrugada? – cruza os braços.
– Bem… – coloca o cotovelo sobre o corrimão das escadas – Primeiro, fugi. Segundo, entrei no
covil de Logan. Terceiro, enfrentei quarenta homens armados, gigantes, dois metros…
– Não exageres Phill. – Rachel avisa ao entrar e subir as escadas.
– E claro, salvei a sua neta.
– Rachel. – sobe um degrau.
Correm da sala os restantes Clarel, preocupados com o que terá acontecido. Esta vira-se, aperta
um pouco mais o robe roubado e mete as mãos aos bolsos. Assente, estava viva. Apesar de ter
mais cicatrizes, mossas e… Seja lá mais o quê, sobreviveu. Reunidos, todos, ali, à sua frente, já
podia dizer as novidades da madrugada sem ser preciso mandar cartas a pedir uma reunião ou um
jantar.
– Família, incluindo William. Ah… Logan morreu.
Jason senta no degrau, os olhos arregalados revelavam o choque. Walter sorri, abraça Stayci e
agradece a Deus a ajuda. O príncipe olha para o filho, estava sem palavras.
– A notícia má é que Selena morreu, não a consegui salvar. Ela e os demais que abriram a porta
para entrar e ficar. Primo, preciso que vá buscar o corpo à House Key e leve para a morgue. Não
o enterre, prometi fazer algo.
– Deixa comigo, prima.
– O resto… Foi difícil, mas conseguimos. Phill… – aponta a mão – Sacrificou-se, nadou até ao
fundo do rio e resgatou-me. A esta hora, estaria morta se não fosse ele. Então, peço-lhe William,
não leve o seu filho para longe. Eu amo-o e está provado isso.
O príncipe mete as mãos aos bolsos das calças. Ia pensar, não garantia nada.
– Phill, podes colocar a água a correr?
– Claro. – sobe as escadas.
– Espera. – William pede ao segui-lo – Temos que falar.
Assente ao dar uma leve pancada nas costas dele.
Rachel faz sinal para os primos saírem, era um momento mais intimo entre ela e o avô. Walter
pisca o olho, pega na mão de Stayci e saem para a rua.
Senta no último degrau e aconchega-se. Entendia o silêncio dele, arriscou-se, foi para lá sem o
levar. Rachel só se queria vingar do pai, mas Jason queria vingar os dois filhos e a esposa.
Prometeu-lhe que nesse dia, ambos estariam lá para lhe roubar a vida. Mas… As coisas nunca
acontecem como se quer e por vezes, os problemas não batem à porta, entram sem avisar.
– Lembraste quando sentei no teu colo e disse que um dia, veria aquele homem outra vez e matá-
lo-ia?
O advogado fecha os olhos ao assentir, tinha apenas treze anos, entrou feito um furacão no
escritório e sentou no colo. Mr. Dylan, my I say something? Of course, Rachel. I want kill a man,
but I don´t know where him. Do you will help me on right moment?
– Pensei que… Aquele sentimento passaria com o tempo.
– Ele não passou, foi crescendo, crescendo… Sufocava-me, tinha vontade de abrir a garganta para
ele sair. Cresci com um trauma na cabeça, todas as noites eu via o meu pai morrer, o maldito
relógio trabalhava e apresentava sempre a mesma hora. Oito em ponto. O número infinito, tal
como a minha dor. Por isso que comecei a beber, pensei que era a solução.
Gastava dinheiro a comprar caixas e caixas de brandy. Quando foi proibida, saiu para a rua e
começou a frequentar bares, tabernas, cafés… Qualquer lado onde se vendesse isso. Ninguém lhe
podia negar o dinheiro, era dona dele.

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Sete Nomes

– Comecei a ler as cartas, a ajuntar os nomes todos… Escrever na parede, beber, pensar, beber…
Quando me obrigou a parar, dei conta que não tinha vida, empatava esta vingança há muito tempo.
“Jason, quero ir para Londres, vou matá-los.” Negaste, Maddey negou. E no fim, compraste as
passagens, os passaportes e mandaste-me ir. “Estou cá para o que precisares.”
Jason assente com as lágrimas nos olhos.
– Se soubesse aquele tempo todo que eras meu avô, ter-te-ia agarrado nos braços, pedido perdão
e ficado lá, no porto de New York.
– Rachel… – desata a chorar.
– Dei conta, ontem, quando Logan me bateu que, nada disto teria sido realizado se tu não
estivesses lá, no outro lado do oceano ou cá, a dar forças, a lembrar-me que era agora ou nunca.
Foste o meu segundo pai, meu braço direito e esquerdo… Nas noites de maior aperto, estavas lá,
seguravas a minha mão e dizias para ter calma, estava em segurança.
Jason não conseguia falar.
– Eu sei que te devo a minha vida, tudo o que ganhei e aprendi. Por isso que o matei em nome de
nós dois, atirei-me às águas ciente que não era sozinha naquela luta. – segura na mão dele – Por
isso que lhe digo, avô, que o amo muito. Ambos somos livres.
Abraça-a, sente o calor dela e fecha os olhos. Quando a viu partir, jurou rezar todos os dias para
Deus a salvar da morte. Pediu-lhe, não podia fazer mais nada da vida, mas que pelos menos a
protegesse.
– Vi o pai, eu vi-o lá em casa, sentado à minha espera. Não quis ir, preferi ficar por ti, por Phill e
por os meus primos. Está morto, Logan está no inferno!
– Está… Rachel, ele está. – recua o tronco – És uma grande mulher.
Beija-lhe as mãos, por detrás de uma heroína, existia um grande mestre.
– Quero-lhe pedir algo, é um pouco difícil, mas tente entender os motivos.
– O quê? – limpa os olhos.
Suspira ao olhar para o cimo das escadas.
Mete a mão na água e vê se estava boa. Abre o armário, atira o sabão para a banheira e assobia
ao pegar na caixa com linha e agulha. Despe as calças, baixa os calções e fecha a janela. Coloca
as mãos na borda de talha dourada e entra na água. E dá um suspiro de alívio, como adorava água
quente para as dores. Teve uma séria conversa com o pai e ambos chegaram a um acordo rentável.
Qual? Os dois queriam colocar Yerne na rua, se possível, em direção à Holanda. Depois, estava
em falta uma cavalariça e uma arena para o boxe. William entrava com o capital e Phill com a
mão de obra. Iam à corte sempre que fosse preciso, mas viver aquela vida, ambos dispensavam.
Mergulha o braço na água quente e lava o sangue. Ainda bem que o corte não foi fundo, ou teria
que cozer.
Vira o rosto para a porta que se abre. Sorri.
– Livre para banho?
– A casa é tua, não é? – abre o robe.
– Aqui o avozinho não tem opinião por mais que tente.
Nem se conseguia mexer, doía-lhe o tronco todo. E a ferida ao lado da coluna? Estava a morrer
de dores. Mete um pé na água e cerra os dentes ao sentir o calor.
– Dois nomes para eu cozer? – pergunta ao encaixa-la nas pernas.
– Infelizmente.
– Essa convicção dava para fazer uma festa de aniversário. Não estás feliz? – abre a caixa com
agulha.
Por um lado, saltava de alegria, a alma estava livre para fazer o que quisesse. Mas por outro, a
morte de Daniel ainda estava na mente. O único homem que quis poupar Cristian, o único que
tentou ajudar e perdeu quem amava. A vontade de rasgar o nome dele era pouca. Perdoou mesmo,

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Sete Nomes

não lançou ao ar o perdão para o fazer feliz no leito de morte. Perdoava, porque sabia que no
fundo, Daniel jamais quis aquele destino trágico.
– Não mataste o outro, o teu avô avisou que se suicidou. – dá-lhe uma rolha de cortiça.
– Contou-me a verdade e não consegui matá-lo. Fiz mal em ser piedosa?
Pega na faca e pousa as mãos na pele escura do sangue pisado.
– Achas que contou a verdade?
Gira ligeiramente a cabeça e assente.
– Li no olhar dele o amor que sempre sentiu pela minha mãe. Ele gostava de mim, frequentava a
casa e falava-me do filho George que nasceu com problemas. Foi o único que, no meio desta lista,
não merecia morrer.
Phill fica confuso, recua a mão e pega na garrafa com brandy. Bebe. Perdoou um dos assassinos
que não era assassino? Então porque tatuou o nome dele nas costas?
– Fizeste o mesmo que fiz ao meu pai. – conclui.
– Sim, mais ou menos isso. Matou-se para que eu chegasse a Logan. O problema é que ele não
sabia que se tratava de uma armadilha.
– Mataste-o sem saber que ias ser apanhada? Rachel… É preciso ter cuidado com as pessoas que
nos ajudam…
– Phill, onde tu estavas anteontem à noite, quando tudo aconteceu?
Na cama, vestido com um belo pijama de seda e envolto de lençóis quentes e macios. A pensar
no quê? No que iria fazer no dia seguinte, sair com Yerne ou jantar no castelo.
– Tens razão. Se tivesse ido lá, talvez tudo tivesse sido diferente.
– Eu só avancei por tua culpa. Se não te visse no restaurante com ela, jamais teria perdido a
cabeça.
– Agora a culpa é minha?
– Uma parte dela, sim. Acabou Phill, rasga esses nomes e coze-os.
Que pressa, nem tinha tempo para argumentar. Volta a pousar a mão na pele, pousa a lâmina na
faca sobre o nome e rasga-o até o sangue aparecer. Rachel trinca com força a rolha, crava as unhas
na talha dourada e ergue a cabeça.
– “Cry of a banshee… Fly for other way, sleep on my window and cry on my bed… Don´t forget
your voice tells me everything, just let me heard. Revenge make us be most strong, but always
failed. We are warrior, fight on the street, life without love… Just died when found true house…
Or nothing changes us. Only the hearts breaks sometimes. Cry on my shoulder, black sparrow.
Remember, the sun always born. If I will dead soon, don’t forget your voice tells me everything,
just let me heard.”
A música… Os olhos se fecham para a cantar na mente. Phill deixa de proferir as palavras, usa a
garganta para fazer a melodia. Mete a linha na agulha, passa-a pelo brandy e depois, perfura a
pele.
– “Revenge make us be most strong… Cry on my shoulder, black sparrow… Your voice tells me
everything.”
Quatro ponto, corta a linha e passa para o nome debaixo.
– Selena merece um funeral, não achas?
Assente com as lágrimas a descer a face.
– Foi muito corajosa em enfrentar o pai. No lugar dela, não me daria ao trabalho de sacrificar a
vida por uma estranha. Não saiu a Logan, ela tinha coração e ele não. Quando Bogges saber que
morreu, vai ficar como nós, triste.
Ou não, talvez o detetive soubesse dos crimes dela e ficasse feliz por ter morrido. A verdade é
que ninguém merece perder a vida assim, nas mãos do próprio pai, numa prematura idade.
– Tenho uma novidade para te dar. – corta a linha – É relativa ao futuro.

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Sete Nomes

A rolha cai para a água e o olhar esguelha-se.


– O que vais dizer?
Faz sinal para levantar um pouco, queria limpar a outra ferida difícil. Rachel coloca-se de joelho
e volta a puxar o cabelo para cima do ombro.
– É um assunto difícil… – molha o pano com brandy e coloca-a sobre a carne ensanguentada.
O som de doer sai, aquele arame farpado não teve mesmo dó.
– Isto é o seguinte. Sou obrigado a casar com uma mulher que eu, sinceramente, não perdia nem
um único dia da minha vida a entender.
– Quem? – fala com os dentes cerrados.
– A sério, eu não a entendo. Terei que ter filhos… – derrama o álcool no ferimento – Morar numa
grande casa…
– Diz quem é?
– Depois, a rainha vai infernizar-me a vida.
– É Yerne?
Dá um suspiro ao pegar na agulha outra vez.
– Ela não me merece.
– Pensei que o teu pai tinha entendido o que falei. – fica desanimada.
– Ele entende. – coloca a mão na pele – Não queres a rolha?
Nega, naquela parte aguentava a dor. Então, Phill prossegue, perfura a carne e puxa a linha.
– Teremos quarenta cavalos lusitanos, todos vindos de Espanha. A cavalariça vai ficar em Ascot,
assim faturamos muito. Vai mudar de nome, William Smith, soa-te bem?
O rosto baixa para o olhar curioso da resposta.
– Sim, teremos Stathouder, mas Smith é para os londrinos que não nos conhecem. Então… – corta
a linha e vai para outro ferimento – Box Dead passa a ser Box Dead Spectrum. O que me dizes?
– É ego a mais. – comenta com os dentes cerrados.
– Não, sou eu a pensar na banheira, enquanto cozo uma mulher em banho Maria. Entendeste a
piada? Ãh?
Mostra a mão aberta, onde estava a piada em sentir dor?
– Pronto. Vou chamar o Yves de volta, ele tem futuro como pugilista. Amador é coisa de fevereiro,
serei profissional, farão altares em minha homenagem no centro da cidade, vais ver nas igrejas a
minha imagem.
Revira os olhos, voltou mesmo ao velho Phill. Muita garganta e pouco dinheiro para os sonhos.
– Enfim… – corta a linha e pousa a agulha na caixa de prata – A minha vida vai ser um inferno.
Senta na banheira e encosta-se ao peito dele. De facto, era estranho.
– Isso significa que é o último momento juntos? Então, porque me pediste em casamento?
Sorri, os lábios trincam a orelha e puxa-a com meiguice.
– Porque a mulher a qual me comprometi a casar foste tu. A novidade é que finalmente poderemos
ficar juntos. O meu pai não quer que seja um príncipe por obrigação. Vou ser pugilista.
Entrelaça as mãos na dele, fecha os olhos e sente um calor bom na barriga, como se algo a tivesse
atingido lá. Juntos, Phill não era mais um homem preso a uma sociedade sem valores.
– Também tenho que te dizer algo.
– Diz.
– Vou ficar. Farei uma última viagem a Boston para tratar de tudo e ficarei cá a viver.
– Estás a falar a sério?
Assente.
– Londres foi a casa da minha mãe, será a minha também.
Contente com a notícia, desata a beijá-la no pescoço. Rachel ri apesar das dores.
– Serás a minha… Esposa… Lá no Box Dead podes ser… Ser… Ser…

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Sete Nomes

Espera ouvir a nova profissão.


– Qualquer coisa, depois vejo. Não vejo a hora de vivermos juntos.
– Novamente?
– Sim. Está na hora disso, não está?
De vez em quando, ficava sem vontade de recomeçar, é como se já o tivesse feito muitas vezes.
Acabou a vingança e prometeu a si mesma que, nesse dia, traçaria outros planos para o futuro.
Quais planos? Ser dona de uma casa, ter filhos e virar a esposa que estava sempre pronta para o
marido? O sorriso escapa dos lábios assim que pensa nesse futuro tão… Comum, tão… Londrino.
– Há uma pequena probabilidade de não me encaixar nesta sociedade.
– O que queres dizer com isso?
– Não serei forte psicologicamente para virar dona de casa.
– Rachel, apenas tens que abrir o teu coração e deixar as coisas acontecerem. Não vais cuidar de
tudo sozinha, estarei cá para te ajudar. Jamais abandonarei o que construir contigo, não serei o
meu pai.
Assente ao repousar a cabeça no ombro. Talvez devesse seguir a maré invés de remar contra ela.
– Achas que o meu avô vai gostar de me ver como Lady Smith?
– Teoricamente falando, vais ser uma Stathouder, mas… O avozinho vai engolir o orgulho e dar-
me a tua mão para casar.
– Sabes que não manda em mim.
– Não, eu sei. És americana demais para viver em Londres…
Ri, vira o tronco e senta nas pernas dele.
– A sério, mostarda está proibida lá em casa, aquilo mata qualquer um. Depois, maionese só se
for em certas comidas, porque ovos com isso é matar-me logo pela manhã.
– E pipocas com manteiga derretida?
– Podemos focar na comida comum? É que não me vejo a ser americanizado. Não, não soa… –
faz um gesto ao pé do ouvido – Mister… Não, Sir. Miss… Não, Lady. Vês, eu e o americano não
falamos a mesma língua.
– És insuportável.
– Para ti sou qualquer coisa… – sobe a mão pelas costas nuas – Logo que seja teu todas as noites.
Morde o lábio, agarra na cabeça dele e beija-o. Breve beijo, as dores dos pontos não facilitavam
nada. Cerra os dentes e vira a cabeça, vinganças resumiam-se a dores impossíveis de suportar.
– Amanhã. – Phill sugere.
– Tomorrow.
Isso se não sentisse dores até a respirar. Parecia que não, mas foi torturada, arrastada pelo chão
e quase morta afogada. Estar viva já era um milagre, suportar as dores, uma dura lembrança. O
tempo iria curar lentamente tudo o que antes esteve parado.

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Sete Nomes

Capítulo 67
Os mortos não deviam ter direito a funeral, missa e flores na campa. Nem todos, quem morria
injustamente até merecia o céu, foi cedo demais na sua longa demanda. Quem morreu com justa
causa, nem deveria ser enterrado na terra. Principalmente, quando se tratava de um homem que
roubou a infância a uma simples menina de dez anos. Roubou-lhe a alegria, os pais, a vida e
deixou-a nas mãos do destino fatal que sempre a levou por trilhos errados.
Enfim, castigado na terra, perdão no inferno. A bíblia dizia que se devia de perdoar os homens
que pecavam, Jesus morreu por eles. Rachel não era crente a cem por cento e se existia algo que
não perdoava, era aquele morto que ainda estava a meter nojo sobre a mesa da morgue. Pediu
para o primo o levar para lá. Autópsia? Bem podia sonhar por ela, se dependesse de si, nem os
ossos ficariam na terra.
Ao longe, porque a mulher e a filha foram alertadas. Fez questão de mandar uma carta assinada
a dar os pêsames por matar o marido que lhe tinha matado o pai há treze anos atrás. Lá estavam
elas, vestidas de negro, a olhar para o morto que nem os olhos fechados tinha. Hilda e Meredit,
as restantes da farsa que durante anos e anos, enganaram várias pessoas. Deveria entender a dor
delas? Não, nem que tentasse. Choravam a morte de Selena? Claro que não, a bastarda de certeza
que iria ficar ali esquecida. Ainda bem que alguém pagou-lhe a campa e o caixão.
– O que farei com o Sir? – o médico pergunta ao limpar os óculos redondos – Por norma,
entregamos à família o corpo. Mas o inspetor pediu para não o fazer.
– Pagou-lhe?
Assente ao arfar para as lentes.
– Mais do que ganho ao final do mês.
– Então, quero que este homem seja enterrado na zona mais pobre de Londres. A cova pode ser
superficial, os pobres devem comer-lhe a carne, arrancar os dentes, lapidar os ossos… Não haverá
cerimónia, nem padre, nem cruz na terra. Se o corpo dele não desaparecer, quem vai desaparecer
vai ser o senhor. – vira o rosto.
O médico coloca os óculos e engole com dificuldades.
– O que lhe fez o Sir?
– Roubou-me tudo. Nem morto terá direito a descanso. Diga à família que o corpo foi entregue
ao ministério de Boston, afinal de contas, ele já devia estar preso há anos. Mais alguma coisa?
– A rapariga… O que faço a ela?
– Vista-lhe um vestido branco e enterre num local seguro, cova funda e uma campa com as
palavras… “You deserve my forgive, the little angel.” Selena Clarel.
– Sua parente?
De vez em quando, nem sabia como a encarar. Só o sacrifício que fez já valia qualquer perdão.
O médico assente ao caminhar para uma outra porta, não devia de se intrometer nos assuntos
privados.
Quantas lágrimas derramadas por Logan… Dava para encher o Pacífico e ainda sobrava para o
Atlântico. Não, não se deve poluir tão cristalinas águas com veneno de víboras. Cruza os braços
e sorri, tinha uma enorme vontade de rir. E nunca riu num funeral. Talvez tenha rido num em que
a esposa chorou pelo marido e depois pediu a mão do amante. Boston, qualquer coisa era possível.
Meredit vira o rosto. Jovem, dez anos, cabelos louros e uma estatura que lhe dava os treze anos.
Magra, mas com uma mira inalcançável com o revolver ou pistola. Ao contrário da irmã,
idolatrava o pai, por ele, faria um altar ao fundo do corredor e colocava-o lá como seu santo. Pena
que o santo usava apenas a vestes, porque de verdade, era um lobo disfarçado de cordeiro. Passa
a mão enluvada pelas lágrimas e caminha para a mulher na porta.

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Sete Nomes

– Isto não ficará empune.


– O que vais fazer, criança?
– Vingar-me-ei, irei caçar-te! – ameaça.
Ri, olha para cima e coloca a mão na boca. Que piada tinha, pelo menos Selena fora mais
convincente na ameaça.
– No teu lugar, fazia a mala antes que o inspetor batesse à porta.
– Vós sereis presa! – Hilda fala.
– Presa serão as duas por usarem ilegalmente a minha casa, alcunha e dinheiro. Não vos deixarei
nem um centavo.
– Não nos podes fazer isso. O nosso pai…
– Parou pirralha de frauda e dedo na boca. – dá um passo em frente – O meu pai morreu há treze
anos atrás, nas mãos desse cabrão que nem devia de estar aí morto. Tinha apenas dez anos quando
me tiraram tudo, abandonaram num orfanato, usufruíram do meu dinheiro, nome, mentira,
inventaram de tudo e estive anos e anos a provar que era a única filha de Cristian, morta para
vingá-lo. É teu pai, Darwin Logan não é nada a mim!
– Só tenho dez anos e agora ele está morto! – aponta para o cadáver – Não terei direito de me
vingar?
Abre os braços, sim, estava no seu direito de fazer justiça. A vingança era isso, vingar até não
existir mais ninguém a qual procurar justiça. E a humanidade seguiria? Quando só sobrassem dois
homens no mundo, talvez ela mudasse.
– Aqui tens a tua oportunidade. Se falhares, não procures justiça, porque ao contrário de mim,
terás uma mãe e um dote para desapareceres. Eu não tinha nada quando regressei a casa.
Meredit vai à bolsa, procura com as mãos tremules a pistola pequena. Hilda tapa a boca ao se
encostar à mesa, o medo afetava o seu choro. Por fim, a arma surge, a culatra é apontada ao peito
dela.
– Anda. – Rachel pede.
Segura com força a pistola, tenta parar o tremer violento que dificultava a mira. Os olhos
enchiam-se de lágrimas, não a via em condições, não pensava como deve ser, não entendia o que
estava a acontecer, não sabia como reagir. Dispara ao fechar os olhos e a bala entra pelo aro da
porta.
– Falhaste. – agarra nos cabelos dela.
A rapariga grita ao largar a arma e ser arrastada.
– Por favor. – Hilda pede desesperada.
Rachel não ia embora sem explicar à futura rival que, se entrava por aí, teria um destino fatal.
Segura no rosto e aproxima-o da goela aberta pelo inspetor, só para garantir que estava mesmo
morto. Meredit sente o odor de Logan, aquele sangue que coagulou por estar um dia inteiro ali,
sem destino. Vê os olhos abertos, quantas moscas devem ter lá pousado e sugado a humidade com
as pequenas bocas de palito?
– Estás a ver bem o que lhe fiz? Estás a ver?! É o que farei se algum dia da vida pensares em ir
atrás de mim para pedir justiça. Tatuarei o teu nome nas minhas costas e não passarás uma única
noite deitada na cama sem teres confirmado se estava à porta. És nova, com a tua idade, por esta
altura, ainda vivia na casa de Boston, brincava e lia os livros que o meu pai comprava na feira.
Depois, o pesadelo chegou sem avisar, vi-o morrer à minha frente, este homem… – aproxima
mais o rosto dela contra o sangue – Este corno matou-o e abandonou-me num orfanato macabro.
Se queres crescer para um dia seres uma dona de casa, é bom que penses bem sobre o assunto.
Queres o mesmo destino que eles?
A rapariga chorava sem parar, as lágrimas pingavam sobre o sangue e os olhos fechados faziam
os lábios dar a respostas.

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Sete Nomes

– A tua irmã decidiu enfrentá-lo para me ajudar. Acabou com uma bala no coração. Esse monstro
matou-a sem pensar duas vezes. Recomeça a vida longe de Londres, dou-te dinheiro suficiente
para desaparecer por completo. Mas se um dia cruzares no meu caminho com alguma arma na
mão a reclamar vingança, eu não te abro a garganta, eu dilacero-te viva. Depois, atiro o teu corpo
para cima de uma linha de comboio para seres cortada ao meio.
– Nós iremos embora e prometemos não vir atrás de ti. – Hilda fala por entre os soluços.
– Tenho mesmo a palavra de ambas?
– Juramos em nome de Deus.
Meredit assente. Empurra o rosto dela contra o sangue quase negro e depois larga-a. A rapariga
grita ao ficar suja, as mãos ficam manchadas, a face pintada de vermelho repugnava só de pensar.
– Saiam! – Rachel pede.
A viúva dá um lenço à filha e ajuda-a a sair. Ao aproximar-se na porta, Hilda Para e olha para
trás.
– É tão monstro quanto ele. Desejo-lhe as maiores infelicidades e que nunca tenha sossego.
– Assassino que mata assassino não é monstro, é um sobrevivente. Fiz justiça e mesmo que viva
com isso, será um problema meu. O dia mais feliz da minha vida foi quando vi este homem morto.
O resto… É só um fútil pormenor. Não é pior viver uma mentira durante anos e anos?
Nem responde, preferia a mentira a uma consciência pesada. O que fez não se perdoava, não
precisava de ser violenta com uma criança tão jovem que ainda não entendia a vida dos adultos.
Rachel não era mãe e quando fosse, saberia que um filho jamais merece sentir a dor de perto.
Caminha, aninha Meredit nos braços para acalmar o choro dilacerante. A crueldade não tinha
limites em solo inglês.
Sabia que foi dura com a rapariga, mas no lugar dela, procuraria justiça. Tinha a mesma idade
quando perdeu o seu pai, sem nunca entender o porquê e anos e anos sem respostas para as
perguntas. Quando as arranjou, criou uma cicatriz incurável. Esperava que um dia, ambas se
cruzassem na rua para discutir a dor. Tirou-lhe o pai. Tiraram-lhe o seu anos antes. Fez justiça,
Meredit faria à sua maneira e não a privava disso. Talvez vendo demais de perto a morte desistisse
dessa ideia.
Olha para Logan, ainda existia um certo receio em estar ao pé dele. E se acordasse
repentinamente? Se a goela não tivesse sido cortada, não pensaria em outra coisa. Assim, deitado
e de olhos abertos… Pousa a bolsinha na mesa e entra no campo de visão dele. Morto e bem
morto, nunca pensou que aquele dia ia chegar.
– Gostaste de rever Meredit? A tua predileta filha… Pau bem-mandado. Farinha do mesmo saco
que ficou roto. No lugar dela, eu nem tentava sequer pensar sobre uma possível vingança, não
quero ter que formular um plano para a matar. Como é estar aí, deitado, sem puder apertar o meu
pescoço novamente? Phill quis dançar sobre o teu corpo ontem, mas não deixei… Não sem eu ter
primeiro cuspido, insultar-te, amordaçar-te a boca e os dedos. Perdi mais do que tu perdeste, andei
anos e anos há procura do dia em que estaria ao pé de ti novamente e conversar com calma. Estou
calma, não estou?
Aproxima o ouvido à boca dele. Morto, estava morto.
– Sabes o que chegou hoje de manhã? O decreto dos juízes londrinos, assinado por vossa
Majestade que… Phill fez chorar ao contar a minha miserável história de vida. Presa? Tu
suicidaste-te, literalmente. Então, como mereço, ficarei com tudo, desde o vosso acordo assinado,
até aos centavos gastos enquanto era pequena. Muitas famílias ficaram sem ter o que comer por
tua culpa. Justiça, chega tarde, mas chega. E a tua amante? A coitada não sabe que morreste. Ela
vai encontrar-te no inferno, desta vez, Romeu foi mais cedo que Julieta. Não te preocupes comigo,
viverei aqui em Londres, ao lado de quem me dará dores de cabeça e ao mesmo tempo, fará feliz.
A terceira pessoa era Jason. Sabes quem é, não sabes? O teu rival, aquele que andaste anos e anos

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Sete Nomes

a infernizar. Pois bem, ele não morreu, apesar de estar mortinho para vir aqui. Pedi para respeitar
o momento delicado, mortos não merecem a visita dos vivos. Não achas?
Morto, com os olhos postos no teto negro por causa da luz não chegar lá.
– Prometi algo a Louisiana. Sabes quem é? Uma mulher que sofreu muito nas mãos de homens
que nunca valem mais que um desesperado choro de apelo à humanidade. São sempre os
superiores, veem-nos como objetos que podem usar, comandar, desgraçar a vida… Um dia,
alguém terá voz para dizer que andam todos errados em torno do sol. Quando acontecer, veremos
uma grande mudança. Pediu-me para te escancarar a boca e os dedos, farei isso com todo o prazer.
Queres dizer algo em legítima defesa? – aproxima o ouvido novamente.
Se estivesse vivo, diria que o que lhe fez foi pouco, merecia mais. Morto… Consentia o que
sequer nem ouvia. Rachel sorri, os mortos não contam histórias.
Movimentada Londres, nem por um minuto parava para respirar o intoxicante ar. Puxa o relógio
de bolso. Dez e onze minutos. Foi difícil o que Phill lhe pediu com muito jeitinho. O tempo deixou
de estar parado, a vingança acabou e não fazia sentido continuar presa a uma hora que já passou
vezes sem conta. Pela vontade, nem colocava uma corda nova para voltar a trabalhar, mas tinha
razão, estava na hora de viver o que não viveu. Então, o misterioso relógio ganhou vida à meia-
noite, fez questão de acertar horas com as de Londres. Continuava a ser estranho, se antes não
conseguia dormir por causa do som inexistente, agora dormia feito pedra com ele. Mudou muita
coisa, diria o avô.
– Como estava Logan?
Levanta a vista para o pugilista que tinha o braço sobre a enorme roda da carruagem, um palito
da boca e roupas há operariado. Sorri, era preciso o brasão da casa real na porta?
– Quem deu?
– A rainha, para o meu novo casamento. Felicidades e comprimentos à nova noiva, foi o que disse
lá no salão. Mas irei vender a carruagem, preciso de dinheiro para pagar aos contratados.
– Já disse que pagava.
– Rachel, meu país, minhas regras. – abre a porta – Para Windsor, Lady Stathouder. – estende a
mão.
– Ainda sou Clarel. – estica o braço.
– Hoje, amanhã serás Stathouder e Smith. – beija a luva de renda.
– Daqui a um mês, esquecido! – retira-lhe a boina e entra na carruagem.
Faz uma careta de gozo. Um mês, ou seja, agosto. Injusto, as outras casavam da noite para o dia,
aquela tinha que esperar trinta e um. Suspira, melhor que nada, teria tempo para reconstruir o Box
Dead e pagar o vestido de casamento. Pagar… Sorri e sobe a carruagem, se dependesse de si, ia
fazer uma grande dívida. Pega nas rédeas, vá, deixou essa vida, ganhou uma mansão às custas da
realeza… Mas Phill não era nada sem as suas miseráveis dívidas.

Sopra o chá quente, pediu camomila para acalmar o nervosismo. Não sabia ao certo o porquê,
mas persentia que algo aconteceu. A perna tremule batia no chão, o som do salto a bater na
madeira ecoava pela casa vazia. Não saía da mente, é como se fosse atormentada com isso… A
morte de Rachel, aquele olhar dilacerante a pedir perdão à prima que nunca julgou até saber a
verdade. A água na xícara ficava turva, não aguentava aquela ansiedade para saber o que
aconteceu. Logan não aparecia, o homem que a vigiava não deixava sair de casa.
Pousa o pire na mesa e benzesse, estava na hora de rezar um pouco para se sentir segura. Fecha
os olhos ao erguer as mãos e juntar ao pé dos lábios. Perdão, porque pecou muito ao longo

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Sete Nomes

daqueles anos. Perdão, por ter vendido ao diabo a alma e estragado a felicidade. Tarde demais
para isso, mas nunca se deve morrer sem reconhecer os erros.
E reza, em latim as palavras escritas na bíblia. Invoca, o santíssimo como forma de rendição.
– Stayci desequilibrou-se aos quatro anos, uma queda fatal se a minha mãe não tivesse deitado a
mão para a agarrar.
Abre os olhos e levanta a vista para a frente. Reconhecia a voz.
– Na altura, eu vi, pensei que tinha sido um lamentável acidente. Tu sabes, que mãe empurra a
filha das escadas? Então, tudo se tem encaixado bem no momento em que sempre planeaste a
morte de todos, inclusive a minha.
– Rachel. – vira o rosto e levanta.
– De carne e osso, nem morta te visitava. – abre os braços – Feliz por me ver ou uma lamentável
tristeza de não ter morrido?
Se estava viva, é porque Logan morreu. Se isso aconteceu, Gwenny ia ser presa pelos crimes que
praticou. Encostasse ao parapeito da lareira, sozinha contra ela? A respiração acelera, não sabia o
que fazer.
– Como morreu?
Abre o leque vermelho com um desenho estranho. Corvos negros. Teve que o comprar, gostou.
Abana contra o rosto, sem pressa, com uma subtil delicadeza no simples abanar.
– Coloquei correntes com arame farpado no pescoço, lancei-me à água e elas, cravaram-se na
traqueia dele, Walter abriu-lhe a goela para ter a certeza que ia para o inferno. Não vale apena ir
ver, não é uma visão muito boa.
As mãos sobem, o arrepio de imaginar a dor que deve ter sofrido sobe o corpo.
– Não tens dó mesmo. – comenta chocada.
– Dó? – pergunta como se fosse rir – Matou o meu pai, matou aqueles que me eram próximos.
Dó tem as pautas musicais, eu tenha raiva.
Via-se no olhar o ódio que ainda restava da última. Quantos nomes eram? Oito, mas só sete é que
planearam a morte de Cristian. Seis homens sem alma e uma mulher. O oitavo homem recebeu o
perdão, porque mostrou merecê-lo. Dá passos lentos em direção a ela, deixa o vestido negro
arrastar pelo chão e sente o aroma do chá. Camomila. A coitada nem ia ter tempo de o beber.
– Queres algo? Água, café, chá… – Gwenny tenta acalmar-se.
Senta na poltrona em frente às chamas e fecha o leque.
– Vim falar a bem, estou farta de ser mal-educada contigo. És a minha prima amada, manipulada
por aquele homem… Vi arrependimento no teu olhar.
– Sim… Sim… – ajoelha-se aos pés dela – Achel, pequena Achel, Logan manipulou-me este
tempo todo. Fui fraca em acreditar nele. Perdoa-me. – pede ao agarrar a mão dela e beijar –
Perdoa.
– Prima. – coloca a mão na cabeça e mima – Sempre foste um exemplo para mim, sempre bela,
perfumada, sabia receber os convidados em casa e lias enquanto penteava Stayci. Lembraste
daquela tarde em que escondeste os ovos coloridos no jardim?
Assente ao deixar as lágrimas escorrerem pelos olhos.
– Ou a minha festa de aniversário em que compraste uma casa de bonecas. Eras a minha rainha,
aquela que imaginava casada com o tal rei Arthur. O que te aconteceu, prima Gwen?
– Perdi-me. Mas tu fizeste-me abrir os olhos. Não vale apena estar contra a família, ela faz-nos
falta.
Verdade, Rachel sentia falta do pai e da mãe, dos primos e de mais ninguém, porque família
como ela, não merecia existir. Continua a mimar, foca a chama do fogo e segura bem o leque na
mão.

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Sete Nomes

– Sempre foste Morgana na lenda, sempre foste a vilã ao pé do vilão. O sétimo nome que não
tatuei nas costas por não saber. Gwenny, jurei à tua filha que não te matava, Stayci gosta de ti.
Um alívio percorre o corpo dela, a filha implorou a vida da mãe. Sorri ao beijar-lhe o pulso.
– Mataste o meu irmão que não teve culpa de nascer no teu ventre. Mataste a minha mãe
indiretamente, ajudaste o meu inimigo roubar-me tudo, envenenaste a filha de Phill, fizeste
Louisiana sofrer, Bogges fugir com medo de perder o filho, condenaste Selena, explodiste com o
Box Dead… Gwenny, foste pior que Logan, só não lhe contaste que o meu avô estava vivo porque
não sabias.
Os olhos ficam fixos no pescoço dela. Jason Clarel não morreu em Liverpool? Foi a terceira
pessoa a ajudá-la? Se tivesse sabido, jamais teria levado o amigo na direção daquela Clarel, teria
morto o outro primeiro e só depois é que investia em Rachel. Foram ambos tramados pelo mesmo
homem do passado.
– Jurei não te matar, jurei… Porém, fizeste a minha prima chorar e ter medo de viver aqui, fizeste
o meu primo ser odiado pela rainha… Jurei não te matar em vão.
Levanta a vista para o rosto dela e sorri.
– Sabes, estava a rezar pela tua alma, a pedir perdão pelo que fiz, mas, o que te fizemos foi pouco.
Se não tivesses sido apanhada por Logan naquela noite, terias morrido às portas do restaurante.
Não me arrependo de nada.
Agarra no cabelo, puxa a cabeça para trás e aproxima a boca ao ouvido dela.
– Achas mesmo que te deixaria viva depois de tudo? Quero que vás ter com o teu Romeu no
inferno, sua cabra.
Gwenny puxa as saias e procura o punhal. Sente o cabo de prata, puxa-a com os dedos… Rachel
abre o leque comprado e… O sangue salta para o vestido, o punhal colide no chão e as mãos
tapam a garganta. Cai para a frente, abre a boca para tentar sugar o ar.
Levanta da cadeira e limpa as lâminas do leque na toalha da mesa auxiliar.
– Descansa, esta casa volta para o teu marido. Aliás, ele pediu para não te enterrar, então reservei
um banquete aos teus amigos.
Os olhos dela arregalavam ao levantar a cabeça para a porta.
– Escolhi a melhor raça, aquela que mais adora devorar os corpos. O sangue que está a sair do
pescoço não te vai salvar, só quis trazer estes amigos para ires mais rápido para o inferno.
Gwenny tenta falar, mas cada vez mais sentia o coração a bater com força no peito. Estica a mão
ensanguentada, é como se tentasse dizer que não.
– Até um dia, prima. – caminha para a porta.
Rachel faz sinal para os homens largarem os quatros cães inquietos. A cada passo dado, eles
entram com furor na sala. E ouve, os dentes afiados a morderem o corpo dela, o grito desgasto sai
e faz com que o sangue saia mais pelo corte na garganta. Feliz, por vingar o sétimo nome da sua
lista, a traidora principal da família destruída. Nunca mais da vida teria que a ver à frente, entrar
naquela casa e ficar hospedada sobre absurdas regras de etiqueta. Fez uma ameaça, disse que a
alvejaria. Preferiu aquela morte, etiqueta e águas passadas. Nunca se enterra verdadeiramente os
acontecimentos marcantes, pois não?
Abre a porta principal e olha para os primos e o pugilista.
– No fim, atirem o corpo para o lago com sanguessugas, elas merecem vistos que me salvaram.
Os homens atrás deles entram na mansão e aguardam que os cães acabem.
Uma mão toca a de Stayci, tenta suportar metade da dor que sentia dela. Por um lado, aquela
rapariga não queria a mãe morta, podia ser um monstro, mas foi sua mãe. Por outro, não a
suportava mais.
– Tinha que ser, ou tu morrerias em breve.
Assente ao limpar as lágrimas e dar o braço ao pai.

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Sete Nomes

– Fiz por ambos. – comenta quase em choro – Ela merecia.


Walter beija a nuca dela e mima o rosto que se baixa sobre o ombro.
– Obrigado prima.
– A casa é vossa, sempre foi e sempre será. Vemo-nos no casamento, certo? Quero-vos como
meus padrinhos.
– Conta connosco.
Beija o rosto deles e espreita para o lado. Porquê? Phill segurava algo nos braços, um animal
pequeno, quase inexistente. Dá sorrateiros passos, atira o leque ao chão e estica o pescoço para
ver o que escondia de costas viradas.
– Não!
O pugilista vira a cabeça.
– Rachel, encontrei este cachorrinho sozinho. – ergue-o no ar – Até lhe dei um nome.
– Já temos o Amon.
– Mas é um gato e odeio gatos. Olha, o Shiu não é lindo?
Tenta não negar, de facto o cão preto, pequeno e com grandes olhos cintilantes faziam qualquer
coração partir-se.
– O Shiu pode ficar em qualquer lado, não lá em casa.
– Que é minha casa. – aninha-os nos braços.
– Que vai ser minha. Porque serei governanta.
– Eu é que te vou pagar o salário.
– Continuo a ser mais rica que tu, devedor.
– Sou um príncipe, duquesa.
– Chato! – grita.
– Azeda!
Mostra a língua e volta-lhe as costas. Então dá conta que os primos riam. Pelos menos deixavam
de chorar por causa da outra.
– Nem gostei do nome. Shiu! Isso não é nome de cão.
– Nem sei se é macho ou fêmea. A Shiu. O Shiu. Dá para ambos. E depois… Não pensei em mais
nada.
– Porque não Phoebe?
Faz um som de ser horrível.
– Shiu.
– Tu não me mandas calar! – vira e levanta o dedo.
– Não, disse que Shiu é um bom nome. Rachel, Rachel, meu amor… Que mal tem termos um
cãozinho abandonado na rua? A mãe foi comida por um urso, o pai vendido para o mercado negro.
Precisa de novos pais, não achas?
Semicerra os olhos, estava a usar uma história trágica como mote para o adotar?
– Vais limpar o cocó dele. E se comer Amon, dou cabo de ti!
Sorri ao beijar a nuca do cãozinho.
– Nem vais dar por ele lá em casa.
Não, não daria no momento em que começasse a latir, urinar nas esquinas e uivar ao luar.
Caminha para a carruagem, ainda nem se casou e já pensava no divórcio. Phill acena para os
primos e aconchega o Shiu nos braços novamente. Gato… Amon tinha os dias contados lá em
casa. Que o deus fosse pregar para outro lar, ali, preferiam a força do amigo do Homem. Ainda ia
dar a volta a ela, Rachel ia amar aquele cãozinho, achá-lo a melhor companhia.
– Um conselho, nunca ladres ou uives à noite, ou ela coloca-nos na rua. – sussurra ao ouvido
pequeno dele – E no momento de urinar, vai falar comigo primeiro, eu não quero virar mendigo.

485
Sete Nomes

Morde o lábio, ainda se ia arrepender de o ter. O que ia comer? Olha nos olhos cintilantes que
derretiam o coração de manteiga. Nega e aperta-o contra o peito, não o ia deixar na rua outra vez.
Ia aceitar a responsabilidade, se queria ser pai, devia de saber como era. Ou ia mesmo para a rua?

486
Sete Nomes

Capítulo 68
Velas esticadas para o vento as empurrar, ergue-se a bandeira britânica e invoca-se o nome dos
descobridores ingleses. A todo o vapor, se fosse um veleiro desses. Como ainda remontava o
passado glorioso dos impérios, Royal Sean preferia usar o vento e abrir as águas com calma.
Bússola sobre a mesa e o mapa de Cristian com as correntes, não queria errar na hora de navegar.
Não sabia ler a carta marítima, não teve tempo de aprender ou compreender algo sobre o assunto.
Mas, Jason pagou a um navegador experiente para aportar o navio em New York. Mal via a hora
de pisar Boston e deitar na cama, abrir os braços e suspirar de alívio. I am back! Voltou para fazer
a mala e partir novamente, a sua vida agora resumia-se a Londres.
Levanta a vista para o relógio a contar os minutos. Que segredo ele ainda guardava? O relojoeiro
garantiu que não tinha mapa nenhum lá. Então não entendia o mistério que o assombrava. Afinal,
o pirata escondeu ou não o tesouro na Patagónia? Puxa-o pela corrente de prata e respira fundo,
ia demorar anos para entender.
– Às quinze partimos, é melhor ires despedir-te do teu sogro e namorado. – Jason pede ao entrar
no camarote.
– Avô, sabes o que isto esconde?
O advogado olha para o relógio que balançava no ar. Segredo… Talvez não houvesse nenhum
mistério em volta daquilo. Nem sempre é o que parece.
– O que queres saber?
– Se o pirata escondeu aquele ouro todo na Patagónia.
Sorri e senta na cadeira. Acomoda-se e coça o queixo por aparar.
– Rachel, esse relógio nunca pertenceu ao pirata, o teu pai mandou-o fazer para ti assim que
começaste a ler histórias aos cinco anos. Amavas o mar, ele era um aventureiro. Então inventou
isso para enriquecer o teu coração.
– Não há ouro?
Nega.
– Como sabes que é a Patagónia?
– Pelas montanhas e o que está escrito atrás. Logan andava iludido com isto. Até pensava que o
barco escondia o mistério.
Ri, aquele assassino tinha problemas mentais.
– Rachel, o pirata teve ouro que foi roubado pelos portugueses em mil seiscentos e quarenta e um.
Esse mistério, esse enigma, sempre foi uma maneira de te ensinar que o verdadeiro ouro era aquele
que não existe, mas estás na nossa cabeça. – os dedos batem na testa – A imaginação. Cristian
queria conhecer a Patagónia, acho até que depois de Boston, iam lá. Mas morreu e esse sonho
ficou por realizar. Perdeste o ouro, roubaram-te há treze anos atrás. Cresceste sem imaginação.
Estava mais sossegada, pensou mesmo que se tratava de uma fortuna que não ia conseguir gerir.
Mais uma história contada em frente à lareira… Aperta com força o relógio na mão e sorri, o
maior ouro do mundo era a imaginação que podia moldar qualquer coisa, criar o impensável. É
como se fosse um mar a qual precisar de um navio. E de tolos, Logan e os restantes mataram sem
saber que se tratava de outra fortuna. Melhor assim.
– Quinze… – olha as horas – Falta dez minutos. – levanta.
– Avisei-te.
– Phill vai ficar zangado. – corre para a porta e bate-a.
Jason sorri ao olhar para a janela do escritório do camarote. Assente para a imagem do filho de
túnica branca e chapéu na cabeça. Sempre foi um belo homem, bem-apresentado e com aquele
brilho no olhar, o mesmo brilho de Rachel quando encontrava a felicidade.

487
Sete Nomes

– Querias que este dia chegasse, pois bem, ele chegou. Leva-a para Boston em segurança, eu
cuido do resto. É a neta mais bela do mundo, uma mulher forte. Graças a ti, filho.
Cristian assente ao olhar pela janela e a claridade invadir o espaço.
– Vai em paz.
De vez quando, revia o filho em pequenos momentos. Revia ambos, quer Cristian sentado na
poltrona, quer Charles a espreitar pelo corrimão das escadas. Ninguém imaginava a dor que era
perder dois filhos ao mesmo tempo, sem os abraçar mais uma vez. Mas Jason aguentava-se pela
neta, pela esposa e pela memória deles. Guardava-os no coração, não existia um único que não
relembrasse o nascimento de ambos, a sua maior alegria. Deles, ficou apenas uma descendente
para dar continuidade à família Clarel. Rachel tinha a força e a astúcia de ambos, conseguia ser o
impensável para uma sociedade fechada e cheia de manias antigas que, fechava a porta ao que era
novo. As mulheres não tinham voz e quando tivessem, só seriam ouvidas no limite da sua
existência. Londres estava longe de mudar, talvez o final do século trouxesse outros valores que
não aqueles. Talvez…
Tapa os olhos de Phill e sorri. O pugilista percorre o pulso macio, sabia bem de quem se tratava.
– Capitã Clarel, é suposto lixar o convés?
– É suposto correr para dentro do escritório e ensinar-me a ler a carta marítima.
Ler? Ri, baixa as mãos dela e prende os braços no tronco.
– Se soubesse, já estava lá dentro a dar uma aula.
Rachel apoia o queixo no ombro dele e olha para o rio com aquela imagem dos raios de sol
penetrarem nas nuvens e tocarem as águas. Final de tarde, sempre perfeita em solo inglês.
– Vou num pé e venho no outro.
– São cinco dias…
– Seis.
– Ou isso. Tenho receio que a viagem não corra bem e tu morras no mar.
Existia esse risco, se não seguissem o mapa com as correntes e os grados, poderiam entrar no
triângulo das Bermudas e afundar, ou apanharem um furacão. Passa por debaixo do braço direito
dele e abraça o peito.
– Tens que ter esperança.
Mima a cabeça com o cabelo em cascata.
– Se não tivesse, não estava contigo. Só… Só não confio no mar. Lutei pela tua vida e não me
vejo a perder-te.
– Phill… – levanta o rosto para o olhar quase em lágrimas – Navego desde os cinco anos, Royal
Sean vai aguentar e levar-me a bom porto. O meu pai vai ajudar-me, sei disso, sempre esteve
comigo.
Mesmo assim, o desespero invadia o coração dele. Toca o rosto quente, continuava a ser a mais
bela mulher que alguma vez da vida levou para o quarto. Como seria com leves rugas e cabelos
pincelados de branco? Única, jamais envelheceria ao seu olhar. Encosta a testa, fintou o azar, mas
não fintava o destino.
– Prometes que se naufragares, nadas para encontrar terra?
– Absurdo, Atlântico é enorme, morria a tentar.
– Sim, mas tenta primeiro. Quero ir, vou dizer ao meu pai… – começa a recuar.
– Não! – agarra a mão dele – Confia no meu navio, no meu avô e em mim. É só um mês, seis dias
de viagem. Mando-te uma carta assim que chegar, certo?
Nega com os olhos cheios de lágrimas prontas a descer.
– Phill, não me dilaceres o coração assim. – fala sentida.
– Não aguento ver-te ir. Porquê que o teu avô não pode tratar disso? Porquê que tens que ir?

488
Sete Nomes

– Tenho que aparecer no tribunal e testemunhar novamente, tratar de vários assuntos pendentes
antes de voltar. Não irei naufragar.
– Eu perco todas as mulheres que amo, vou perder-te. – desata a chorar.
– Não! – agarra no rosto dele – Não, porque foste homem naquela noite em que me salvaste. És
corajoso, és o meu herói, braço esquerdo e direito. Perde-me com orgulho, nunca com mágoa.
Estarei aqui dia sete de agosto, casamos dia dez. Quero voltar e ver o Box Dead em pé, quero ver-
te lutar! Entendido?
Nem conseguia assentir ou negar.
– Certo, meu pugilista? – as lágrimas descem o rosto.
Beija-a, puxa o corpo dela contra o peito e aperta-a nos braços com força. Que Deus fosse piedoso
demais e devolvesse-a viva para puderem disfrutar a vida juntos. Rezaria todos os dias, cumpriria
a promessa por ela. E quando voltasse, não a deixaria sozinha um único minuto. Encontrou a sua
metade, a força que necessitava para vencer as mais violentas batalhas.
– Estarei cá dia sete, prometo.
– Estarei aqui à tua espera, o dia inteiro. Só arredarei pé quando o teu navio aportar.
– E se me atrasar?
– Ficarei à mesma.
Sorri ao percorrer o rosto molhado com os dedos. Ia sentir falta dele lá em Boston. E sabia, que
ao ir, o coração ficaria igual a uma ervilha. Mas se não fosse, perdia o património recuperado.
– Rachel, posso dar-te algo?
Espreita pelo lado direito de Phill e sorri para William.
– Depende… – dá lentos passos para o príncipe e coloca as mãos atrás das costas.
– Phillipe não te deu algo que devia ter dado, vistos que és a noiva dele.
O pugilista faz sinal para nem se atrever a fazer isso.
– Ele não te comprou o anel de compromisso.
– Pai…
– Verdade ou não?
Rachel olha para trás e vê a mão dele a coçar a cabeça. Verdade, não comprou porque não tinha
dinheiro. Sorri, isso nem tinha importância.
– Não preciso de uma joia para dizer-me que estou noiva.
– Certo, és mesmo liberal. Porém, nós, príncipes da casa Orange, temos tradição de dar às noivas
o anel que pertenceu à nossa mãe. Bem, sou filho bastardo, filho de um rei que devia ser meu avô
e não pai. Beatrix mesmo assim, fez um anel para me dar. Guardei-o para dar ao meu filho com a
princesa austríaca, mas morreu. Então, Phill é o meu único filho e está noivo.
– Paizinho, não faça discursos longos. – faz sinal para se despachar.
– Como ia a dizer… – mete a mão ao bolso do casaco e retira uma caixinha de veludo – Aqui está
o anel.
Rachel nem se move, mas Phill aproxima-se para ver a pedra cintilante inserida no ouro branco
com contraste a ouro amarelo. Diamante? Morde o dedo indicador, estava rico.
– Para a minha nora, Rachel. – deixa a caixa na mão dela.
– Eu coloco-te o anel. – o pugilista rouba-o.
Primeiro, aproxima os olhos, depois trinca e sorri. Então repara no olhar dela, ia demorar muito
a colocar o anel no dedo?
– Estava a ver se era… Ouro. – pega na mão.
– Sim, ouro escocês e diamante vindo da Irlanda. Está avaliado, em libras… Setecentas mil libras.
O queixo descai, deixa de enfiar o anel no dedo e pensa no destino que aquilo teria.
– É melhor guardá-lo para o casamento, nunca se sabe o que pode acontecer. – mete ao bolso.
– No dedo, agora! – Rachel exige.

489
Sete Nomes

– Meu amor, não, é melhor…


– Já! – quase grita.
Suspira com violência, revira os olhos e procura o anel. Depois, mete-o no dedo e cruza os braços,
porque não o recebeu antes? Ela sorri ao erguer a mão para ver o brilho.
– Sempre com os olhos gordos em relação ao dinheiro.
– Era um bom business.
– Sim, para o gastares todo num só dia.
Não, ia fazer um pequeno investimento na área do boxe. Precisava de roupa nova, ligaduras,
botas, arena… Esse tipo de coisas, ainda ia sobrar para algo. Abre a boca, mas fecha, ainda não
pagou as outras dívidas.
– Obrigado sogrinho. – beija o rosto de William.
– Faz uma boa viagem. Phill, estiveste a chorar?
– Não. – limpa bem o rosto – Apenas espirrei com força.
– Chorou quase baba e ranho. – Rachel ri.
– Tu também!
– Mas sou mulher, faz sentido ter sentimentos.
Cruza os braços, lá se ia o dinheiro. E se afundasse o navio? Ia ela e a pedrinha brilhante.
– Chega de lamúrias, está na hora. – Jason relembra ao sair pela porta do camarote.
– Avô, veja o que ganhei do meu sogro. – mostra o dedo.
O advogado arregala os olhos ao ver o anel. Caro… Pensava que o príncipe não tinha onde cair
morto. Afinal, ainda tinha carteira para os pequenos luxos. Dá umas pancadinhas no braço dele,
era um prazer tê-lo na família.
– Vemo-nos no casamento. Até lá, eduque o seu indisciplinado filho. – aperta a mão.
– Tentarei, apesar de ser difícil a tarefa.
Teria que nascer de novo para mudar.
– Phill… – estende a mão e o pugilista aperta – Se em namorado me fazes vomitar, em marido
vais tirar-me o sono.
Ri e depois Para.
– Será um prazer, avozinho.
Puxa-o contra o ombro e aproxima a boca ao ouvido.
– Não me esqueço do abandono lá no slum. Nem da conversinha na torre. Estarei contra ti até
morrer, saloio.
Olha-o de esguelha, um certo arrepio frio subiu a espinha mal começou a falar.
– Acho que teremos que nos aguentar, não acha?
– Que remédio, Rachel escolheu-te. Estamos quites, só porque lhe salvaste a vida.
Recua ao engolir com dificuldades, nem queria imaginar se não a tivesse salvo.
– Levantar âncora! – Jason grita ao caminhar para a prancha.
William acena para a futura nora e começa a descer o navio. Phill não, olha para Rachel e suspira,
não de alívio, mas de saudade. Ainda nem tinha ido e já sentia falta dela.
– Dia sete.
Assente com as lágrimas seguradas no olhar. O pugilista aproxima-se, beija-lhe o rosto e sente o
aroma do perfume sempre caro e vindo de longe. Como ela, cruzou um oceano inteiro para se
vingar da infância perdida. Vestido branco a balançar ao vento… Ainda a veria no altar com outro,
mas se fosse aquele, provaria ser a princesa mais bela de Inglaterra.
– Amo-te para lá de tudo. – murmura.
– Para lá de um oceano?
Assente ao apertar a mão dela.
– Nem um oceano nos vai separar.

490
Sete Nomes

Rachel beija-o uma última vez e abraça-o com força. E Phill vai, caminha para a prancha sem
olhar para trás. A vontade era de ficar, partir naquela louca viagem e segurá-la nos braços quando
as estrelas cruzassem a água. Mas não podia, havia limites.
– Phill!
O pugilista olha para cima do navio.
– Eu amo-te para lá de tudo. Espera-me dia sete.
Beija a mão e levanta no ar. A prancha é recolhida, as velas esticam-se ao limite e o navio começa
a mover-se ao sabor da corrente do rio. E Rachel beija a mão e levanta no ar, da mesma maneira
que ele mantinha o braço dele. Conheceram-se ao acaso na pequena cidade londrina, fria, escura
e marcada pela desigualdade. Amaram-se, viram os defeitos e as qualidades. Discutiram sem
motivos, partiram com o amor na bagagem e no final, sofreram para ficarem juntos. Ambos
perderam mais do que ganharam, mas conquistaram-se e isso, nem o oceano ia separar. O relógio
contava os minutos, o calendário contaria os dias, a vida contaria os anos.
Phill baixa o braço quando o navio já ia longe, a descer o sereno Tamisa inquieto. A sua história
começa só agora. E esperava ter aprendido com o passado. Só se ama uma vez, pode-se perder
várias vezes, mas nunca se perde o que realmente nos pertence. Rachel voltaria no primeiro raio
de sol, isso é o que mais desejava. Que amor resiste a um oceano?

13–12–2018

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Sete Nomes

Agradecimento

Sete Nomes foi o primeiro livro sem ajuda do meu irmão. Por um lado, senti-me bem a ouvir as
minhas ideias e a focar o meu mundo imaginário, mas por outro, senti falta do dedo dele que fazia
mexer o enredo. Apesar disso, o romance não deixou de ter influencia de outras pessoas,
principalmente de um amigo que, começou a ler desde o primeiro capítulo, deu opinião e fez-me
refletir acerca do assunto. A ele, e sabe quem é, um grande obrigado. Espero continuar a aprender
contigo e a transmitir-te o meu saber.
Confesso que não foi o segundo livro escrito após a saga Lâmina Negra, na verdade, deve ter
sido o quarto ou quinto. A ideia nasceu enquanto lavava louça, fiz um pequeno trailer na mente e
depois de muito pensar, comecei a decompor quase em poesia as ideias que surgiam. Não ficou
nada igual ao que imaginei, esperava algo mais profundo, mais arrepiante e dentro do mundo que
é o meu imaginário macabro. Porém, não deixa de ter estado à altura do meu pequeno desafio e
surpreender pela positiva.
Este livro, atrevo a dizer, que é seguimento do outro escrito, Duquesa, passado entre mil
oitocentos e treze a quinze, com o estalar da era napoleónica. Ainda não o passei a Word. Todavia,
se tivesse passado, veríamos o que aconteceu a Elyne e Phillipe. O maior exemplo disso é Thomas
Wood, segundo filho de uma personagem posterior e que narra a sua vida em Duquesa. Em
momento algum, estas personagens existiram, pertencem a um mundo fictício e são inseridas
numa determinada época histórica, por isso motivo que se chama de romance histórico. Apesar
disso, quem realmente existiu é apresentada com o maior respeito, como o caso da rainha Victoria
que, apesar de não estar cem por cento verídica, assemelhasse à real e tem descriminado certas
curiosidades sobre ela.
Não foi fácil, em momento algum o foi, faltava-me pesquisa, faltava conhecimento mais
aprofundado sobre a época vitoriana. Está retratada na minha visão e que critica intemporalmente
este século e o outro século, onde ainda é visível que, afinal, por mais anos que passem, certos
assuntos na sociedade não mudam, evoluem para pior. Escrevo para criticar e se não critico,
escrevo para ensinar. Quantos às emoções, elas não aconteceram todas na minha vida, algumas
situações sim, outras não e mesmo assim, descrevo-as para ajudar quem está nessa situação
encontrar um caminho para se alto ajudar. Se me perguntassem, é um livro com um pouco de
biografia? Depende, certas coisas sim, como a depressão, um amor distante que em momento
algum ganhou coragem para existir, problemas financeiros e procura de um lugar a qual chamar
casa. Mas, não é de todo, biográfico, a saga talvez, Sete Nomes é só uma exploração de outros
sentimentos. Gostava de ajudar uma pessoa com problemas de autoestima, que eu sinceramente,
também tenho. Nele, é mais depressivo ao ponto de perder o que ganhou e não dar conta que está
a lutar com as armas erradas, a deixar para trás os sonhos e a tornar ainda maior o oceano que nos
separa. Por mais que lhe enviasse o livro, ele jamais leria. Mas se lesse, gostava de lhe dizer que,
pode perder tudo, menos algo que conquistou. Um dia entenderás.
Jamais será o meu último livro e, se enterrei Rheynne para despertar, deixarei Rachel navegar no
Atlântico, rumo à casa para se sentir segura. Espero que a viagem corra como o pretendido e quem
sabe, um dia, faça o segundo volume se assim merecer. Ou caso contrário, deixo o futuro dela nas
vossas mãos, os leitores também podem decidir de vez em quando.
E eu, de volta a casa que Deland há muito que me espera. Até ao próximo livro.

492
Sete Nomes

Vocabulário

I like this city! – Eu gosto desta cidade!


Good morning, MiLady. – Bom dia, senhorita.
Sir\Lorde. – senhor.
MiLady – senhorita.
Lady – senhora.
Wolf – lobo.
Twenty Two – Vinte e Dois.
Box Dead – Caixa Morta.
Pences – moeda Londrina inferior à libra e superior ao xelim.
Breakfast – pequeno-almoço.
Brandy – bebida Londrina, semelhante ao conhaque.
Le courage – francês, a coragem.
Fifty pence – cinquenta pences.
Show – concurso.
One… Two… Three… - Um… Dois… Três…
Nine, ten! – Nove, dez!
Tell me Rachel… Tell me what you see? – Diz-me Rachel… Diz-me o quê que tu vês?
Cherry – francês, querido.
Was she, I knew! – Foi ela, eu sabia!
Boy - rapaz.
Terrible angles! – francês, terriveis ingleses.
Ready – preparado.
Correct – correto.
Scones – pão inglês, parecido a um bolo, muito usado para comer na hora do chá.
Capisci? – italiano, Entendeste?
Boss – patrão.
Good boy! Good boy! – Bom rapaz! Bom rapaz!
Miracle – francês, cura, milagre.
Father – pai.
Closed – fechado.
C´est vrai? – francês, É verdade?
Mademoiselle – francês, senhorita.
vrai – francês, verdade.
Monsieur – francês, meu senhor.
Cry of a banshee… Fly for other way, sleep on my window and cry on my bed… Don´t forget
your voice tells me everything, just let me heard. – O choro de uma alma penada… Voa para
outro lugar, dorme na minha janela e chora na minha cama… Não te esqueças, a tua voz diz-me
tudo, apenas deixa-me ouvir.
Revenge make us be most strong, but always failed. We are warrior, fight on the street, life
without love… Just died when found true house… Or nothing changes us. – A vingança faz-nos
mais fortes, mas sempre falha. Nós somos guerreiros, lutamos na rua, vida sem amor… Apenas
morremos quando encontramos a verdadeira casa… Ou nada nos muda.
Only the hearts breaks sometimes. Cry on my shoulder, black sparrow. Remember the sun
always born. – Todos os corações partem às vezes. Chora no meu ombro, pardal negro. Lembra-
te, o sol sempre nasce.
Ice heart, nothing we fell, nothing we want. Just… Let me go. – Coração de gelo, não sentimos
nada, não queremos nada. Apenas… Deixa-me ir.
Ice Heart – Coração de Gelo.
Black Sparrow. – pardal negro.
What you waiting for? Kill him! – De quê que estás há espera? Matem-no!
Queen – rainha.
Touché – francês, utilizado na esgrima, sinónimo de ponto.

493
Sete Nomes

Better Time – Melhor tempo.


Jab, hook, uppercut, knockout, sparring – golpes praticados no boxe.
my house, your house – minha casa, tua casa.
Castel – castelo.
Hostel – semelhante a um hotel, mas mais luxuoso e de maior dimensões.
Slut – prostitute.
We found a new India. Now, let´s go building a new kingdom! – Encontramos a nova Índia.
Agora, vamos construir o novo reino!
Croissant – bolo francês.
Crazy! – louca!
Good boy. – bom rapaz.
Good night boss. – Boa noite patrão.
Phill, keep calm and take easy. You are just a boy, don’t make your dream be your nightmare. –
Phill, tem calma e relaxa. Tu és só um rapaz, não faças os teus sonhos serem o teu pesadelo.
You were my best draw. Smile. – Tu foste o meu melhor desenho. Sorri.
hurricane. – furacão.
And she? What we will do? – E ela? O que vamos fazer?
No! I know where she going. – Não! Eu sei para onde ela vai.
New Age. – Nova Era.
Debtor. – Devedor.
Phillipe Orange? Son of prince William Stathouder? No… He is Phillipe Debtor. It’s a mistake.
- Phillipe de Orange? Filho do príncipe William Stathouder? Não… Ele é Phillipe Debtor. É um
erro.
slum. – parecido a favela, local onde os operários viviam sem condições. Local muito pobre.
“Oh my God, this boy is so rebel.” – “ Oh meu Deus, este rapaz é mesmo rebelde.”
“My hair… My eyes… Do you like my lips? Do you want feel my skin? Why the Sir doesn’t
marry with me? Your father is very interesting.” – “O meu cabelo… Os meus olhos… Gostas
dos meus lábios? Queres sentir a minha pele? Porque o senhor não casa comigo? O teu pai é
muito interessante.
Cigarette – francês, cigarro.
Copine – francês, namorada.
Bartman – homem que trata do bar.
Pourquoi? – francês, Porquê ?
Parce que mademoiselle ne mon dire le cocktail. – francês, Porque a senhorita não me disse a
bebida.
Je ne nécessité. Je suis angle, ne française. – francês, Não preciso. Eu sou inglesa, não francesa.
Regina – italiano, rainha.
Sì¸ Firenze. Tu hai nome? – italiano, Sim, Florença. Tu tens nome?
Cierto? – italiano, Certo?
Signoria – italiano, senhorita.
Capisci? – italiano, Entendeste?
Paella – espanhol, prato típico da Espanha, paelha.
Pardon. – francês, desculpa.
Revenge – vingança.
We are the pride of kingdom. Do you know? Happy queen, society happy too. – Nós somos o
orgulho do reino. Tu sabes? Rainha feliz, sociedade feliz também.
King – rei.
Silver – cinzento, prateado.
Pardon mademoiselle. – francês, Desculpe Senhorita.
“Illegal without voice.”, “Other attack the queen Victoria.”, “What really happened in the
Hotel Mountain Secret?” – “ Ilegais sem voz”, “Outro ataque à rainha Victoria”, “O que
realmente aconteceu no hotel Mountain Secret?”
Little Achel – Pequena Achel.
Loser! – Perdedor!
Business – negócios.

494
Sete Nomes

Welcome my home – Bem-vindo à minha casa.


Hobby – passatempo.
“Kill him!” – “Matem-no!”
Where is your mind, boy? – Onde está a tua cabeça, rapaz?
ménage à… – francês, homenagem a…
Cinque. – italiano, cinco.
Six – Seis.
Casting – audições.
We have a deal. – Nós temos um acordo.
fuck you too. – Vai-te lixar também.
We never died when we fight for something. Just get up. – Nós nunca morremos quando lutamos
por algo. Apenas levanta-te.
royal tea – chá real.
Please – por favor.
I never saw him before. – Eu nunca o vi antes.
best friend forever. – melhor amigo para sempre.
Over. – acabou.
Anywere – qualquer lado.
Get out of the way! – Sai do meu caminho!
Hello… - Olá.
Gentleman – cavalheiro.
Really? Do you will do that? – A sério? Tu vais fazer isso?
We need to have the same rights that´s man. Do you think we have conditions to have a baby? –
Nós precisamos de ter alguns direitos como os homens. Tu pensas que temos condições para ter
bebés?
Whispered – acreditar.
Don´t go so fast. Keep calm girl, you are so young for this pain. – Não vás tão rapidamente.
Tem calma rapariga, és muito nova para esta dor.
Never Forget, first love, second take care and last one, building a house here you will live. And
dead when sunset will be the last for you. – Nunca te esqueças, primeiro ama, Segundo cuida e
por ultimo, constrói uma casa para viveres. E more quando o nascer do sol por o ultimo para ti.
Mama mia! – italiano, Minha mãe!
Bonjour mademoiselle – francês, Bom dia, senhorita.
We never will return this house! – Nunca mais voltaremos a esta casa!
Rachel… Come whit me. – Rachel… Anda comigo.
Really? – A sério?
Good morning, MiLady April. I am Phillipe of Orange, future husband of the MiLady Rachel
Clarel. How you been? – Bom dia, senhorita April. Eu sou o Phillipe de Orange, futuro marido
da senhorita Rachel Clarel. Como tem passado?
I understand, MiLady, I love her too. Is she your best friend? Do you can tell me your secret?
Ah! I don’t believe, she loves me! – Eu entendo, senhorita, eu amo-a também. É ela a sua melhor
amiga? Pode contra-me um segredo? Ah! Não acredito, ela ama-me!
States – estados, abrebiatura para Estados Unidos da América.
habeas corpus – latim, usado em devocacia.
My god… - Meu Deus…
No way! – Não acredito!
No! – Não!
Fine! – Está bem!
Maybe – Talvez.
Gallina vechia fa buon brudo. – italiano, Galinha velha faz boa sopa.
Keep calm – Tem calma.
Why you drink so much? – Porque bebes tanto?
I need drink. – Eu preciso beber.
No, you need be woman. Sometimes it´s easy to lose. Always find a star to guide you. – Não, tu
precisas de ser mulher. Às vezes é fácil perder. Encontra sempre a tua estrela para te guiares.

495
Sete Nomes

We need baby’s! – Nós precisamos de bebés!


Never more – nunca mais.
A buon intenditor, poche parole. – italiano, Para bom entendedor, meia palavra basta.
Sorry. – desculpa.
baby. – querida.
Fire! – Fogo!
Distraction. – distração.
Where is Phill? – Onde está o Phill?
Eating Forever – comer para sempre.
Hot Dog – cachorro quente.
Don´t eat my food! – Não comas a minha comida!
suitcase? – mala.
My dear… You will have many problems if you revenge your parents. – Minha querida… Tu
terás muitos problemas se vingares os teus pais.
Secret. – segredo.
Stay… – fica.
Sì, signore. – italiano, Sim, senhore.
give up – desiste.
Did you feel this house, Rachel? – Tu sentiste esta casa, Rachel?
“Never stop Phill, your mother always will love you, here or in the sky. Believe in you and go
on.” – “ Nunca pares Phill, a tua mãe sempre irá amar-te aqui ou no céu. Acredita em ti e vai.”
Amazing! Brilliant! – Maravilhoso! Brilhante!
My dear, what do you try doing? – Minha querida, o que estás a tentar fazer?
Black Room – sala negra–
Revenge your soul. – Vingar a tua alma.
far west – oeste longínquo.
Mare Nuestro – latim, nosso mar.
It’s impossible you still life. – É impossível tu estares viva.
You will die soon my bitch. – Tu vais morrer brevemente minha cabra.
Eleven. Church Saint Martin’s. Alone. – Onze. Igreja Saint Martin’s. Sozinha.
Boss, wake up! – Patrão, acorde!
Be father again! – Seja pai outra vez.
Perdona me, Francesca – italiano, Perdoa-me Francesca.
pezzo di merda. – italiano, pedaço de merda.
Otto anne – italiano, oito anos.
Nipote – italiano, sobrinha.
Chiaro – italiano, claro.
Perché lei hai trovato inferno con te! – italiano, Porque ela encontrou o inferno contigo!
Amici della regina, capisci? – italiano, Amigo da rainha, entendes?
Allora! – italiano, Agora!
commesso? – italiano, Empregado?
Sì. – italiano, Sim.
Vero…– italiano, Verdade…
Principessa? – italiano, Princesa?
mia cara. – italiano, minha querida.
Bouna Signoria. – italiano, Boa sinhorita.
Bambino – italiano, menino.
No. Vorrei che voi apressate a andare per la... – italiano, Não. Quero que se apressem a andar
para a...
Come in! – pode entrar.
Seven Names – Sete Nomes.
best friend. – melhor amigo–
“Once upon a time… – “Era uma vez…
Welcome the slum. – Bem-vindo à miséria.
They dead! They dead in the explosion! – Eles morreram! Eles morreram na explosão.

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Sete Nomes

Uadi
Neb cheperu Re
You deserve survive. – Tu mereces sobreviver.
Animals! – Animais!
Go on…Go on Rachel. – Vai… Vai Rachel.
I need my voice. – Eu preciso da minha voz.
Revenge your soul… Forgive me father. Everything I have did was just another way to scream
your name. I made a map, I could find my way back. So I started in the darkness with you. I can
never let go… - Vingar a tua alma… Perdoa-me pai. Todo o que fiz foi outra maneira de gritar o
teu nome. Eu faço o mapa, podia encontrar o meu caminho novamente. Então comecei na
escuridão contigo. E posso nunca conseguir ir…
Logan need die. – Logan precisa de morrer.
I need find my way or I will die soon. – Eu preciso encontrar o meu caminho ou morrerrei.
Come Rachel, sit there and drink with me. – Anda Rachel, senta aqui e bebe comigo.
Rachel, my dear… Many things you don’t know about us. – Rachel, minha querida… Há muitas
coisas que tu não sabes sobre nós.
Rachel, I don´t have good news. – Rachel, eu não tenho boas notícias.
Forgive… You are the key. – Perdoa… Tu és a chave.
Sorry. Forgive me Amon. – Desculpa. Perdoa-me Amon.
Mon papa – francês, meu pai.
Magnifique – francês, magnifico.
Listen us… MiLady, you need listen. – Ouçam-nos… Senhorita, precisa ouvir.
Rachel, it´s your name? I am Bronwen Daniel, friend your parents. We will be big friends; my
boy will love meet you. What you say? – Rachel, é esse o teu nome? Sou o Bronwen Daniel,
amigo dos teus pais. O meu rapaz vai adorar conhecer-te. O que me dizes?
Let her go. Let… – Deixa-a ir. Deixa-a…
No way! She need die. – Nem pensar! Ela precisa de morrer.
Please Logan, it´s just a girl. Please. – Por favor Logan, é apenas uma menina. Por favor.
Please! – Por favor.
Don´t change your nightmare for manipulate dreams. I love you Phill… Stay with me. – Não
troques os teus pesadelos por sonhos manipulados. Eu amo-te Phill… Fica comigo.
Come with us. – Anda connosco.
Rachel will die! – Rachel irá morrer.
Gwen…Gwen, play with us, please. We like when you are the queen of England. – Gwen…
Gwen, brinca connosco por favor. Nós gostamos quando és a rainha de Inglaterra.
I am sorry Achel. – Desculpa Achel.
I didn´t saw him. – Eu não o vi.
What you see, Rachel? I see… – O que vês, Rachel? E vejo…
Rachel… I love you. – Rachel… Eu amo-te.
I love you. – amo-te.
What you see? I see the sunshine. – O que vês? Eu vejo o nascer do sol.
Mr. Dylan, my I say something? Of course, Rachel. I want kill a man, but I don´t know where
him. Do you will help me on right moment? – Senhor Dylan, posso dizer-lhe uma coisa? É claro,
Rachel. Eu quero matar um homem, mas não sei onde está. Podia ajudar-me no momento certo?
Tomorrow. – amanhã.
“You deserve my forgive, the little angel.” – “Tu mereces o meu perdão, pequeno anjo.”
I am back! – Eu voltei!

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