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CRÍTICA

LIVROS
(HTTPS://WWW1.FOLHA.UOL.COM.BR/ILUSTRADA/LIVROS)

Chico Buarque com 'Anos de Chumbo' mostra


vigor em sua estreia em contos
Coletânea apresenta visão dura do Brasil, em que até as boas lembranças são
pervertidas por miséria e sordidez

14.out.2021 às 19h15

Alcir Pécora
Professor titular de teoria literária da Unicamp

ANOS DE CHUMBO E OUTROS CONTOS

Preço R$ 59,90 (168 págs.); R$ 29,90 (ebook)


Autor Chico Buarque
Editora Companhia das Letras

“Anos de Chumbo e Outros Contos” é a estreia vigorosa de Chico Buarque na


narrativa curta (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/10/chico-buarque-se-vinga-de-haters-e-fustiga-o-
exercito-em-primeiro-livro-de-contos.shtml). É um volume pequeno, com oito contos, todos

ambientados no Rio de Janeiro, ou perto dele, sendo seis narrados em primeira


pessoa e dois em terceira. Não é tecnicalidade vã. Espaço e ponto de vista são
os nexos mais significativos dos contos.
Em “Meu Tio”, quem narra é uma garota prostituída pelos pais para um tio,
provável miliciano enricado com construções ilegais
(https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/06/denuncias-de-construcoes-irregulares-pelas-milicias-quintuplicam-em-

quatro-anos-no-rio.shtml). Mas disso só se sabe por uma narração tão limpa de juízo e
opinião como mal seria verossímil até para contar um passeio casual de carro
até a Barra da Tijuca, passando pela sorveteria e o motel. O contraste entre a
enunciação neutra e a sordidez dos eventos acentua o efeito geral de alienação.
A violência foi normalizada, a milícia é família.
Capa do livro 'Anos de Chumbo e Outros Contos', de Chico Buarque, publicado pela Companhia
das Letras
- Divulgação

A narração de “Os Primos de Campos” é entregue a outro garoto, cujas


lembranças vivas da infância incluem as visitas dos primos que vinham passar
férias no Rio —isto é, até a data fatídica em que o primo menor é assassinado
numa chacina e o maior vem se refugiar na casa do menino.

Falso refúgio, contudo. O irmão do narrador passa a se drogar e depois se junta


a uma gangue que ataca negros. A mãe, por sua vez, se torna amante de um
delegado, que paulatinamente ocupa a casa. O horror apenas se tempera com a
vaga lembrança do pai, jogador de futebol, talvez encerrando a carreira na
Colômbia. O craque já não está aqui.

Em “Cida”, a narração é feita por um passante que observa uma mendiga


grávida vivendo numa praça (https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/03/no-rio-
do Leblon. Reticente ou
desempregados-se-juntam-a-moradores-de-rua-nas-filas-por-quentinhas.shtml)

paranoica, desconfia dele, mas aos poucos se abre a ponto de pedir que cuide
de sua futura filha, concebida do marido extraterrestre, disfarçado de peão de
obra. Face à recusa, Cida desaparece, dando lugar, anos depois, à filha albina
que ocupa o seu lugar na praça.

“Copacabana” é narrada por um homem maduro que se lembra de antigos


sonhos com artistas internacionais que vinham ao Rio e se hospedavam nos
hotéis da avenida Atlântica (https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/copacabana-palace-fecha-as-
portas-pela-primeira-vez-em-97-anos-devido-ao-coronavirus.shtml). Recorda passagens lampejantes de
Neruda e de Ava Gardner e as conta à maneira vertiginosa de José Agrippino,
embora sem a radicalidade de máquina enunciativa.

Nas suas memórias, a nostalgia é um pântano, pois sabe que falhara em


preservar a mitologia dos bons tempos da sua face mais ordinária, consumada
com a aparição de um general e seu ajudante com bigodinho de Walt Disney
(https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0412200110.htm).

O ápice dessas narrativas contadas de pontos de vista suspeitos ou distorcidos


é “O Sítio”. Uma atriz liberada propõe um pacto inesperado a um escritor para
se isolarem num sítio e passarem ali o período da “peste”
(https://www1.folha.uol.com.br/colunas/julioabramczyk/2021/01/a-importancia-do-isolamento-social-na-luta-contra-

doencas.shtml).

A certa altura do convívio, o escritor sente que está se apaixonando a ponto de


ter ciúmes dos jovens galãs com que a atriz contracenara no passado, e até do
caseiro do sítio. Presságios e urubus precipitam o sumiço da atriz e a fluência
dos escritos. A chegada de novos inquilinos cumpre uma espécie de looping
sombrio.

Em “Anos de Chumbo”, ambientada na época da ditadura militar, a narrativa


mais uma vez é entregue a um menino. Vítima de poliomielite, sem sair de casa,
encena batalhas imaginárias com seus soldadinhos de chumbo.

No meio delas, tem vaga notícia de outra guerra, desta vez travada pelo pai
capitão e um major, seu superior, contra um “inimigo traiçoeiro”. Conversas
atravessadas do major, que frequenta a cama de sua mãe, revelam que seu pai é
um diligente torturador (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/08/ustra-era-um-monstro-que-me-
torturava-com-choque-e-ria-diz-vitima-de-militar.shtml). No desfecho, entre as obscenidades dos

porões da ditadura e do quarto dos pais, o garoto põe fogo às paredes que
isolam as duas guerras.

Os dois contos em terceira pessoa têm narradores igualmente incientes e


obcecados, conquanto ganhem alguma comicidade. “Para Clarice Lispector,
Com Candura” acompanha a paixão de um jovem poeta pela autora, que está
para lançar “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres”, de 1969, que trata de
amantes que esperam o momento pleno de consumar o seu amor. No "mise-en-
abîme" rebaixado do aprendiz, há uma espera que supera a morte de Clarice e o
encontra, idoso, a criar “poemas em prosa” com o nome dela.

tudo a ler
Uma seleção semanal para conhecer novos livros, recordar clássicos, descobrir tendências e
revirar curiosidades literárias.

Deixo para o final o conto no qual os afetos polarizados do contemporâneo


encontram a sua representação mais cômica e aflitiva, “O Passaporte”. No
aeroporto, após ser vítima de um ataque ressentido, um “grande artista” calha
de se vingar —e o faz de maneira cruel e atrapalhada, a ponto de se revelar sua
estranha identidade com os adversários “canalhas”.

No conjunto, está clara a urdidura engenhosa e irônica a operar em dupla mão,


de tal modo que o que se diz de um lado pode ser desdito de outro. Resulta daí
uma visão dura do Brasil –bandidagem, assassinato, racismo, ostentação
cafona, novorriquismo miliciano et cetera. Tudo está normalizado como lei do
costume. Ruiu a pólis, e com ela se foi o alegado refúgio de cordialidade
familiar ou pessoal (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe1807201002.htm). Neste Brasil, em
que até as boas lembranças são pervertidas por miséria e sordidez, o lar já
virou butim.

Em termos de matriz literária, diria que os recursos aplicados pelos contos


estão à roda do realismo expressivo dos contistas brasileiros dos anos 1970 –o
ambiente criminal, de Rubem Fonseca; o cafajestismo de Dalton Trevisan; o
nonsense do fait-divers de Sergio Sant’Anna, se moderando contudo o
experimentalismo deles. O que talvez haja de mais irredutível do próprio Chico
(https://www1.folha.uol.com.br/folha-topicos/chico-buarque/) é o enquadramento juvenil da desgraça

corrente.

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