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Pragas, pestes, epidemias e BUSCAR

pandemias
RÁDIO na arte
CELESTE DA HORA SELECTV AGENDA A REVISTA PROJETOS ESPECIAIS
contemporânea
ENGLISH

De Munch à Regina Silveira, o


imaginário de crises sanitárias e
sociais é tratado criticamente ao
longo da história da arte
Marcus Bastos
PUBLICADO EM: 01/06/2020 CATEGORIA: DESTAQUE, OPINIÃO

216

RÁDIO CELESTE

Denilson Baniwa
entrevista Renata
Tupinambá
 01/02/2022

Samba
e
Mundus Admirabilis (2019), de Regina Silveira (Foto: Cortesia da
Artista)

resistência
 12/11/2021
As artes têm uma longa história de diálogo com
acontecimentos trágicos. Num cálculo pouco COLUNA MÓVEL
sistemático, pragas, pestes, epidemias e pandemias
ocupam um honroso segundo lugar. Em primeiro, vêm Reflexões em um
observatório avançado da
as guerras, com seus enredos épicos e dramáticos, que arte indígena
mobilizaram de nomes históricos, como Homero e contemporânea 
Goya, a artistas modernos e contemporâneos, como
Picasso e o múltiplo Tony Conrad. Em tempos de Covid-      

19, a relação da arte com estes temas trágicos ganha


uma relevância autoexplicativa. Por isso mesmo, tratar
RÁDIO CELESTE DA HORA SELECTV AGENDA A REVISTA#TBT PROJETOS ESPECIAIS
do tema implica no desafio de fugir ao que vem sendo
repetido na miríade de lives, artigos e vídeos em redes #tbt
ENGLISH
sociais, que abordam o assunto a partir de um 46, 47,
48
percurso sempre muito parecido.

23/12/202
São nomes unânimes, entre artistas mais e menos
conhecidos, como Tintoretto, Bruegel e Bocklin (que
pintaram obras relacionadas à Peste Negra), ou Klimt e
Munch (que pintaram obras relacionadas à gripe
espanhola). A arte contemporânea também se engajou
em aproximações com pestes, pragas, epidemias e
pandemias (Sars, Aids e a própria Covid-19). A
dimensão mais figurativa ainda aparece, mesmo que
reconfigurada pelas inquietações com materiais e
procedimentos múltiplos que marca a arte posterior ao
período das vanguardas históricas. Também surgem
práticas com o uso de substâncias orgânicas e fluidas,
como o sangue, que se relaciona com as pragas e
pandemias de forma metonímica. Isto é típico de uma + 

virada que acontece de forma gradual, do século 17, Acessado Últimas

quando artistas como Vermeer e Velázquez começam a 


fraturar os limites da tela, ao século 20, quando artistas Aleatório
como Marcel Duchamp ou Robert Smithson usam
objetos ou o próprio espaço construído como Agenda
para
Adiar o
materiais. A arte deixa de lado a representação das Fim do
Mundo
coisas, para trabalhar com as coisas propriamente (26/1
ditas. Agenda
para
Adiar o
Fim do
Mundo
(19

Agenda para Adiar o 


Fim do Mundo (12...

12/01/202
      
Rafael
BQueer

RÁDIO CELESTE DA HORA SELECTV AGENDA A REVISTA PROJETOS ESPECIAIS


amplifica a

ENGLISH
AGENDA

Auto-Retrato Depois da Gripe Espanhola (1919), de Edvard


Munch (Foto: Galeria Nacional, Oslo)

Ao propor uma discussão sobre como os artistas Agenda para Adiar o Fim
contemporâneos se aproximaram do tema, em obras do Mundo (2 a 9/2)

que vão do museu ao espaço público e à Internet, o  02/02/2022

objetivo é fugir deste repertório repisado. Artistas e


coletivos como Blast Theory, Lynn Hershman, Regina
Silveira, Jordan Eagles e Giselle Beiguelman exploram
este diálogo com as pestes, pragas, epidemias e Agenda para Adiar o Fim
pandemias de perspectivas diversas, o que permite do Mundo (26/1 a 2/2)

tratar o tema para além do aspecto da representação  26/01/2022

da doença e da morte, que aparece de forma


recorrente nestes conteúdos que têm se multiplicado
nas redes (apesar que mesmo deste ponto-de-vista, o
assunto pode ser ampliado de forma menos repetitiva,
considerando que artistas como David Wojnarowicz ou
Bill Viola exploraram a representação da morte, por
vezes em contextos vinculados à pestes, pragas,
epidemias e pandemias, por vezes não).


      

RÁDIO CELESTE DA HORA SELECTV AGENDA A REVISTA PROJETOS ESPECIAIS

ENGLISH

Untitled (1988), de David Wojnarowicz (Foto: Whitney Museum of


American Art)
The Passing (1991), de Bill Viola
Portrait of the Dying Edith Schiele (1918), de Egon Schiele (Foto:
Leopold Museum)
Série Trágica II (1947), de Flávio de Carvalho (Foto: Coleção MAC-
USP)

Transit (2001), de Regina Silveira, é um bom ponto de


partida. É uma intervenção urbana com projeção
recortada por gobo, em que moscas riscadas com luz
tomam proporções gigantes conforme são projetadas
sobre fachadas de prédios, em percurso itinerante
pelas ruas. A artista diz que se trata de um processo
que é “quase como desenhar sobre a epiderme da
cidade”. Na dimensão em que se relaciona com as
pestes e pragas, a obra pode ser entendida como uma
espécie de prelúdio a um enxame que se desenrola no
espaço, não no tempo. Os insetos se multiplicam pela
parede, mas sua presença assume intensidade antes
pela escala da projeção que pela quantidade de
moscas. Este procedimento resulta em certa tensão
entre amplitude e asfixia. 

Imagens deste tamanho sugerem algo que roça o


libertário, conforme escapam das restrições das quatro

linhas que formam as telas em que por um bom tempo
estiveram restritas (na pintura, no cinema, mesmo nas       

experiências disruptivas do vídeo, nos primeiros passos


em que as obras circulavam especialmente na forma
RÁDIO CELESTE DA HORA SELECTV AGENDA A REVISTA PROJETOS ESPECIAIS
de cópias em monocanal). Elas também provocam
reconfigurações dos modos de olhar a arquitetura, que
ENGLISH
desafiam a lógica de geometrias restritivas comuns nas
maneiras consolidadas de organizar a cidade (em ruas
que se cruzam a partir de quadras, em janelas que se
acumulam como caixas enfileiradas em prateleiras).
Esta desorganização virtual que a luz provoca,
desestabilizando arquiteturas que parecem perder
temporariamente sua rigidez, abre horizontes que
fazem sonhar com outros tipos de cidade. A
viscosidade das moscas, deste ponto-de-vista, não
chega a desfazer o encanto das luzes (e somos nós que
nos tornamos como moscas, estimulados pelas
trajetórias cintilantes que a projeção sugere, a
vislumbrar outros modos de estar nas ruas).

Transit (2001), de Regina Silveira (Foto: Cortesia da artista)

Mas, conforme o mundo minúsculo das moscas se


amplia, como se os ambientes que desafiam a lógica
escritos por Lewis Carroll ganhassem tangibilidade, a
invasão da paisagem por insetos gigantes provoca

certa estranheza, permeada por sensações que podem
ir do nojo à claustrofobia. Quando o olhar registra nas       

sinuosidades desta luz projetada o aspecto repugnante


do inseto, as sensações mudam de direção. A
RÁDIO CELESTE DA HORA SELECTV AGENDA A REVISTA PROJETOS ESPECIAIS
desorganização não acontece mais pelo atrito entre
projeção e arquitetura, mas nas frestas por onde o
ENGLISH
sensório afeta nosso entendimento do mundo. O
encanto das luzes, deste ponto-de-vista, sucumbe à
viscosidade das moscas, afetado pela memória que
temos do inseto zumbindo próximo aos ouvidos ou ao
redor das frutas na mesa. Escapam por estas frestas
temores viscerais diante da possibilidade de
multiplicação das moscas. Não por acaso, as nuvens de
inseto são um acontecimento recorrente nos cenários
distópicos que a cultura formula em livros, filmes e
obras de arte.

00:00 00:36

As nuvens de insetos aparecem naquela que é


provavelmente a menção mais antiga às pragas e
pestes conhecida na história da cultura humana, o

relato das punições que Deus lança sobre o Egito
enquanto o país mantém o povo judeu em cativeiro,       

conforme a narrativa no livro do Êxodo. Esta ligação


com temas bíblicos perpassa diversas obras de Regina
RÁDIO CELESTE DA HORA SELECTV AGENDA A REVISTA PROJETOS ESPECIAIS
Silveira (mais sobre isso em breve e atenção aos
trechos destacados nas legendas, que propõe diálogos
ENGLISH
entre o texto bíblico e as obras analisadas neste artigo).
Ela sugere uma aproximação entre o que há de mais
recente no campo das linguagens e as tradições mais
estabelecidas no campo da cultura.

Novo e velho não são medidas de proximidade com o


atual, como o senso comum faz supor. São
intensidades, que pulsam nas entrelinhas do tempo.
Foi isso que Augusto de Campos mostrou em seu
conhecido poema Ovo Novelo, em que formula ao
modo sintético dos poetas concretos um dos
pressupostos que norteia a pesquisa do grupo, de
buscar o “novo no velho”. Por isso tem obras antigas
que dizem muito ao contemporâneo, e outras de
ontem que já parecem datadas. O percurso da poesia
concreta, que afetou os modos de trabalhar de Regina
Silveira, leva a esses duplos engajamentos, em que
passados remotos e futuros adivinhados se unem em
obras que tanto remetem ao antigo sem nostalgia
quanto sugerem o novo sem descuidar do diálogo com
(o que o que ainda vibra n)a tradição. Ao escrever
sobre a obra A Lição, Fernando Cocchiarale resume de
que forma esta tensão atravessa a obra da artista, ao
considerar esta instalação “um desdobramento do
sentido poético e semântico predominante na obra de
Regina Silveira nos últimos 20 anos: aquele que deriva
da crítica aos repertórios clássicos da representação da
sombra e da luz na arte ocidental. Recorrentes de

modo variado na produção da artista, esses repertórios
vem sendo por ela trabalhados, contra eles mesmos”.       

Um dos exemplos mais contundentes deste elo duplo é


a tradução
RÁDIO CELESTE doDA
Bere’shith,
HORA feita por Haroldo
SELECTV de Campos.
AGENDA A REVISTA PROJETOS ESPECIAIS
No prefácio do livro, ele afirma: “Minha aproximação
do texto bíblico é laica. Estou primacialmente
ENGLISH
interessado em poesia. De minha parte, a meta era
verificar essa poesia primeva (e ao mesmo tempo
altamente elaborada) em nosso idioma, abalando-o
criativamente com a violência do seu sopro, evitando
que esse alento fundamental se perdesse ou
edulcorasse. Para tal fim, não é eficaz nenhum
estereótipo literário, nenhuma preconcebida ‘arte de
bem escrever’, mas valem, sim, os amplos recursos
experimentais da poética da modernidade”. Com esta
motivação, ele recria a pulsação oral do texto,
traduzida pelo uso criativo do branco da página, ao
modo dos poetas experimentais que o interessam,
como Pound e Mallarmé. É preciso lembrar as
implicações complexas que a palavra tradução tem
para Haroldo de Campos, o que infelizmente não
podemos desenvolver no momento para não perder o
foco do tema proposto.

Teknolust, de Lynn Hershman também movimenta


cenários catastróficos e distópicos. Um dos primeiros
filmes digitais realizados em alta definição, a obra
apresenta um futuro em que uma bio-geneticista
desenvolve uma forma de fazer download do próprio
DNA para um híbrido computacional vivo. Neste
aspecto (já que partimos desta discussão sobre como
certas obras estabelecem elos duplos com o passado e
o futuro), a obra dialoga com a tradição dos cientistas
que criam seres de laboratório, que Luiz Nazário 
remete à lenda judaica do Golem, em O Golem, o
autômato e Frankenstein (capítulo do livro Fazedores       

de Golem). Os seres criados pela cientista imaginada


por Lynn Hershman parecem humanos, mas são
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inteligências artificiais chamadas de AAR (Autônomos
Auto Replicantes). Eles têm uma falha de projeto. Para
ENGLISH
sobreviver, dependem de um cromossomo masculino
específico encontrado apenas no esperma. Por isso, ela
os programa para acessar o mundo real por meio de
um processo mediado por vídeo. Mas, depois do
contato com as AARs, os homens começam a sofrer de
impotência e comichões inesperados. Com medo de
uma praga, os especialistas médicos alertam a Patrulha
Federal da Imunidade, que coloca seus agentes para
investigar esse estranho vírus.

Teknolust (2001), de Lynn Hershman (Foto: Medienkunstnetz)

A contaminação através dos fluídos do corpo é um dos


aspectos centrais das epidemias e pandemias. Ela
aparece na arte como tema especialmente em
consequência da epidemia de Aids, no início dos anos
1980. Um dos artistas que trata o tema de forma
interessante é Jordan Eagles, pois ele opta pelo uso do
sangue como material. Em Blood Mirror, ele cria uma
escultura através de um projeto em colaboração.

Conforme o site do artista explica, 59 doações de
sangue de homens gays, bissexuais e transgênero, que      

advogam por igualdade e protestam contra o ato


estigmatizante e discriminatório em que o governo dos
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EUA estipula a proibição perpétua de doação de
sangue por homens gays e bissexuais. O sangue doado
ENGLISH
é colocado em prateleiras de estrutura com aspecto
formal sóbrio, austero e, em certo sentido, neutro.
Tudo muda quando se percebe que ela é o suporte
para prateleiras de sangue encapsulado em resina, de
modo a ser completamente preservado, compondo
uma espécie de arquivo orgânico.

O contraste entre o rigor formal da estrutura, os


materiais límpidos e o elemento orgânico que a
compõe resultam numa discrepância entre aspecto e
projeto. O sangue no interior da escultura a transforma
numa espécie de corpo estranho, destituído de vida,
mas com energia vital latente, e portador de memórias
de teor contraditório: ao mesmo tempo que remetem
ao sangue contaminado que matou tantos durante a
epidemia de Aids, têm um tratamento que faz com que
as amostras durem, potencialmente, para sempre.
Mortalidade e imortalidade se entrelaçam num
paralelepípedo minimalista, de aspecto anódino. A
obra de Eagles tem uma ambiguidade difícil de explicar.
Ela retorna a um conjunto de soluções que lembram o
minimalismo (mas desinvestidas do caráter conceitual)
e aposta no uso de um material incomum, e ainda por
cima orgânico (no que dialoga à distância, pois adota o
procedimento com um sentido muito diferente, com
experiências recentes em que a matéria viva torna-se
objeto da obra). 


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RÁDIO CELESTE DA HORA SELECTV AGENDA A REVISTA PROJETOS ESPECIAIS

ENGLISH

1. Infernus (2008), de Regina Silveira (Foto: Cort… 1:53

Infernus, de Regina Silveira, é outra de suas obras de


acento bíblico, agora pela referência ao sangue. Claro
que não é possível reduzir obras desta complexidade a
um entendimento restrito, como os exemplos
apresentados até agora vêm mostrando. Infernus
oferece uma experiência imersiva, ao obrigar que o
observador se curve sobre um objeto cilíndrico feito de
madeira tratada com pintura industrial, que remete a
um poço. No fundo, é possível assistir um vídeo que
exibe a cena de gotas de sangue pingando sobre o
líquido vermelho acumulado. A artista explica que “é
preciso olhar dentro do poço, para ter a cara tingida de
vermelho (luz do vídeo) e entender que a gota cai do
próprio rosto”. Dele também emanam sons (uma
combinação de gota e vento em tubulação), resultando 
em uma experiência que leva ao movimento do corpo
como resultado da emissão de imagens e sons a partir       

de fontes que deslocam o olhar para o chão (um


universo de pesquisa que permeia a história da vídeo
RÁDIO CELESTE DA HORA SELECTV AGENDA A REVISTA PROJETOS ESPECIAIS
instalação, em obras como Video-narcisus, de Jeffrey
Shaw, Subterrâneos, de Lucas Bambozzi, e a série
ENGLISH
Enciclopédia da Ignorância, de Eder Santos).

A
superfície
lisa e
densa, que
tem sua
calmaria
temporária
Infernus (2008), de Regina Silveira (Foto: Cortesia
da Artista)

rapidamente interrompida por gotas que caem ora


aqui ora ali, é uma espécie de tela deslocada e
deformada (ela nem está na parede, nem é quadrada).
O lago Cocite, da Divina Comédia de Dante, é formado
pelas lágrimas e pelos rios do inferno, que nele
deságuam seu sangue. Mas a obra de Regina Silveira
não faz referências diretas ou literais, pelo contrário
evoca campos de possibilidades que se ligam a um
repertório menos alegórico: o calor e a luz que
emanam da tela, a imposição de um corpo curvado, a
forma cúbica, o vermelho, o acúmulo de círculos com
centros que variam de tamanho e não coincidem num
ponto único (o vão através de onde se olha para dentro
do cilindro, a tela acomodada numa abertura redonda
que recorta o vídeo ao fundo, as gotas que deformam
o líquido com pequenas porções de um mesmo que
temporariamente é outro). São territórios de sentido

que distendem o título da obra (lembrando que, do
latim, infernus significa “ínfimo”, “que está abaixo”, “das      

regiões subterrâneas”).

RÁDIO Amphibia,DA
EmCELESTE Regina
HORASilveira retorna aoAGENDA
SELECTV universo dos
A REVISTA PROJETOS ESPECIAIS
seres viscosos, agora trabalhando com rãs. Esta obra
também explora procedimentos mais conhecidos da
ENGLISH
artista. Pioneira da experimentação multimídia e da
intervenção urbana, ela costuma ser lembrada pelas
visualidades deformadas que resultam em espaços
vertiginosos, para usar termos a que ela mesmo
recorreu, em entrevista à revista Pesquisa, da FAPESP.
Esta obra transita por preocupações semelhantes à
Transit, no que toca ao uso de dispositivos que, neste
caso, desconfiguram o espaço interno do cubo branco.
Rãs repetidas em série crivam as paredes de formas
que, além de irregulares, são distorcidas. Elas
transpõem o espaço como que drenadas por um ralo
de “ouro” para onde convergem. Há dois níveis de
desarranjo em jogo: no plano macro, desaparecem os
limites que restringem as imagens a áreas
circunscritas; no plano micro, o jogo de formas pretas
sob superfície branco desfaz a percepção de figura e
fundo. 

As imagens plotadas sobre a parede, evitando


circunscrever o conjunto ao limite das molduras, faz
com que o campo de visão se expanda, da mesma
forma que a própria obra escapa de uma parede a
outra, e das paredes para o chão. Este trânsito pelo
ambiente (que, como em Infernus, induz o espectador
ao movimento), solapa a arquitetura da galeria. É o
mesmo efeito da mosca sobre o prédio, todavia com
estratégias diferentes, pois cada obra se adequa ao
contexto que problematiza (exterior / fachada / 
superfície ruidosa; interior / parede / superfície neutra):
em Transit, os retângulos das janela se dissolvem como      

resultado da imagem que desafia sua geometria; em


Amphibia, o interior do prédio se dilui num contínuo
RÁDIO CELESTE DA HORA SELECTV AGENDA A REVISTA PROJETOS ESPECIAIS
que sugere uma projeção para fora do espaço
construído, como resultado da multiplicação em série
ENGLISH
que desafia os encaixes entre as paredes e o chão.
Outro aspecto da obra que precisa ser levado em conta
é seu caráter político. A artista explica que, no contexto
em que foi exibida, “esta obra quis trazer a chuva de
sapos (bíblica) para tratar da corrupção”. Obras desta
complexidade têm sempre uma polissemia que as
torna impossíveis de conter em categorias muito
estanques ou esquemas mais rígidos, e infelizmente
olhares mais transversais, como o que este texto,
propõe precisam deixar de lado esta diversidade em
favor do foco nos elementos que levam à obra a se
inserir no conjunto proposto.

Amphibia (2013), de Regina Silveira (Foto: Cortesia do Artista)

A contaminação pelo Sars teve proporções menos


bíblicas (comparada à peste negra ou à gripe
espanhola, o número de mortes foi pequeno). A cluster
of 17 cases, do Blast Theory, resultou de uma
residência do grupo na Organização Mundial da Saúde

(a primeira vez que algo do tipo aconteceu). A obra
refere-se ao fato de que a epidemia de Sars começou a      

partir de 17 pessoas que se contaminaram quando um


médico de 64 anos se hospedou num quarto do Hotel
RÁDIO CELESTE DA HORA SELECTV AGENDA A REVISTA PROJETOS ESPECIAIS
Metrópole, em Hong Kong, sem saber que estava
doente. Em função dos padrões de circulação de ar no
ENGLISH
prédio, o vírus se espalhou, contaminando 17 pessoas,
que o multiplicaram para pelo menos 546 ao redor do
mundo. 

Mais que uma obra, A cluster of 17 cases é um


processo de pesquisa complexo, em que os membros
do Blast Theory tiveram a oportunidade de conhecer as
práticas do Centro Estratégico de Operações de Saúde,
que monitora epidemias e pandemias ao redor do
mundo, e entrevistar especialistas ligados à
Organização Mundial da Saúde. A obra resultante foi
uma maquete, em que o público é convidado a ouvir
dois áudios: uma narrativa de ficção em primeira
pessoa e uma entrevista com Mike Ryan, coordenador
operacional da resposta da OMS à disseminação do
SARS em 2003. Na entrevista, ele reflete sobre como
lidar com incertezas, e os desafios de declarar um
alerta global baseado em informações limitadas. 

Epidemias restritas a certas áreas geográficas, ou casos


como o do Sars, que se irradiou rapidamente, têm sido
recorrentes nos últimos anos. A docusérie Pandemic:
How to Prevent an Outbreak, disponível no Netflix, dá
uma dimensão da quantidade de ocorrências que
aconteceram, como o ebola ou o H1N1, para ficar com
dois exemplos do que, quando assistimos em
retrospecto, parece ser um prelúdio à Covid-19.
Mundus Admirabilis, de Regina Silveira, parece dialogar
com esta situação, formulando uma espécie de 
convergência das pragas (para deslocar um termo que
esteve na moda a certa altura da escrita sobre as       

formas como os aparelhos digitais combinavam


diferentes tipos de recursos no mesmo dispositivo). Ao
RÁDIO CELESTE DA HORA SELECTV AGENDA A REVISTA PROJETOS ESPECIAIS
invés de moscas (em menor quantidade) ou rãs (em
maior quantidade), agora temos um enxame de todos
ENGLISH
os tipos de insetos e animais peçonhentos. Aqui, as
intensidades de escala e quantidade se sobrepõe num
efeito que também é vertiginoso, não pela deformação
das imagens, mas sim por seu recrudescimento. 

Esta multiplicação de acontecimentos leva a um clima


de repetida ansiedade (e, no mundo dos especialistas,
de atenção constante). Talvez seja esse contexto que
proporcione o surgimento de uma obra como Spit
Spreads Death: The Parade, do Blast Theory. Como no
caso de A cluster of 17 cases, a obra se baseia em um
acontecimento ligado à uma epidemia, desta vez, a
gripe espanhola de 1918. Por meio de um desfile
interativo com luz e som, o coletivo inglês rememora os
20.000 mortos em consequência da rápida
disseminação da gripe na Filadélfia. A descrição no site
do Blast Theory explica que os participantes
“desfilaram com o certificado de morte de cada pessoa.
E, um por um, tiraram um momento para parar de
andar conforme o desfile fluía ao redor”. A obra dialoga
com a tradição de performances que reencenam
acontecimento ou obras históricas ao mesmo tempo
que desloca algumas das práticas de intervenção com
imagens e sons na esfera pública para o âmbito da rua
(outro tipo de elo duplo entre passado e futuro, para
remeter ao início do texto). Se as primeiras formas de
projeção de imagens e difusão sonora nas ruas
implicou em situações que, apesar de desmontarem de

muitas formas as lógicas de exibição tradicional, em
certo sentido ainda mantém uma relação de tela e       

espectador (mesmo que difusa, expandida,


reconfigurada), obras como Spit Spreads Death trazem
RÁDIO CELESTE DA HORA SELECTV AGENDA A REVISTA PROJETOS ESPECIAIS
o público para dentro do acontecimento. Onde em
certas obras se explora as superfícies da cidade como
ENGLISH
uma tela porosa, aqui temos uma lógica de circulação
inclusiva.

Coronário (2020), de Giselle Beiguelman (Foto: Reprodução/ Site


do Instituto Moreira Salles)

O problema é que os passos mais recentes desta


história acontecem num mundo sem acesso às ruas.
Diante disso, uma obra como Coronário, de Giselle
Beiguelman, movimenta os agenciamentos das atuais
vidas mediadas por telas. A obra organiza uma nuvem
de palavras (reminiscência de um mundo anterior às
hashtags) com termos popularizados no contexto da
pandemia de Covid-19. Ela associa a nuvem de palavras
a um mapa de calor que monitora quais são mais
acessadas, fazendo variar em direção ao vermelho uma
escala de cor que partiu do azul. A obra marca um
retorno da artista às experiências na Internet, após um
foco recente em questões da memória e do espaço
público (mesmo que sempre articuladas, de forma

mais ou menos explícita, às pesquisas sobre os
processos em rede e às consequências da mediação       

digital).

Coronário
RÁDIO CELESTE é um
DAretorno
HORA à uma net art transformada
SELECTV AGENDA A REVISTA PROJETOS ESPECIAIS
pelo contexto. Diferente de obras como O livro depois
do livro, em que a navegação por páginas marcava um
ENGLISH
uso do link como acesso a outra página, em Coronário
clicar faz uma única página subir ou descer. Há uma
verticalização da leitura, consequência evidente do uso
disseminado de celulares (mas também, um diálogo
com formas ancestrais de leitura em papiros que se
desenrolam sem quebra de página, para insistir neste
fio condutor estruturante que liga as obras de Haroldo
de Campos, Lynn Hershman, Regina Silveira, Blast
Theory e Giselle Beiguelman pela chave do “novo no
velho” dos poetas concretos). E os aspectos mais
contundentes da obra não resultam de escolhas na
interface (como o uso de fontes cuidadosamente ou
recursos dinâmicos de texto que eram marcantes nas
primeiras obras de Beiguelman). Seus acontecimentos
mais importantes se desenrolam nos bastidores, onde
o trânsito dos usuários é monitorado. Mesmo que o
resultado visível esteja destacado no alto da página, e
que uma das consequências mais importantes seja dar
tangibilidade às práticas de monitoramento que se
tornaram pervasivas nos motores de busca e redes
sociais (e hoje em dia, a Internet é, em grande medida,
um repositório acessado por meio de motores de
busca, e um ambiente mediados por redes sociais), o
que não chega aos olhos tem muita importância mais
importância do que o que vemos, em Coronário. Talvez
essa seja uma forma possível de conectar a obra ao
seu contexto de um modo menos direto: num mundo

em que tudo gira em torno do fato de que um
organismo minúsculo circula invisível contaminando as      

pessoas, o que não vemos se tornou mais significativo


do que vemos. 
RÁDIO CELESTE DA HORA SELECTV AGENDA A REVISTA PROJETOS ESPECIAIS
Marcus Bastos é coordenador do curso de
Comunicação e Multimeios e professor do programa de
ENGLISH
pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design
Digital da PUC-SP. Autor de Limiares das Redes:
escritos sobre arte e cultura contemporânea
(Intermeios, 2014) e Audiovisual ao vivo: tendências e
conceitos, dos órgãos de cor aos lives, com Patricia
Moran (Intermeios, no prelo).

Os textos de opinião não refletem necessariamente a


opinião da revista e são de responsabilidade integral
dos autores
TAGS: AIDS, AUGUSTO DE CAMPOS, BILL VIOLA, BLAST THEORY, BOCKLIN,
BRUEGEL, CORONAVÍRUS, COVID-19, DANTE, DAVID WOJNAROWICZ, DIVINA
COMÉDIA, ÉDER SANTOS, EZRA POUND, GISELLE BEIGUELMAN, HAROLDO DE
CAMPOS, HOMERO, JEFFREY SHAW, JORDAN EAGLES, KLIMT, LEWIS CARROLL,
LIVES, LUCAS BAMBOZZI, LUIZ NAZÁRIO, LYNN HERSHMAN, MALLARMÉ,
MARCEL DUCHAMP, MARCUS BASTOS, MIKE RYAN, MUNCH, NETFLIX,
PANDEMIA, PANDEMIC: HOW TO PREVENT AN OUTBREAK, PICASSO,
QUARENTENA, REGINA SILVEIRA, ROBERT SMITHSON, SARS, TINTORETTO,
TONY CONRAD, VELÁZQUEZ, VERMEER

216


      
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