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CINEMA

Pornô, bruxaria e um Marlon Brando descontrolado: 25


anos depois, a alucinante rodagem de ‘A ilha do Dr.
Moreau’ ainda fascina
Um dos últimos —e mais insólitos— filmes do protagonista de ‘O Poderoso
Chefão’ continua sendo analisado e hoje é cultuado como “esquisito demais e
memorável demais para ser descartado como lixo”

Marlon Brando em uma cena de ‘A ilha do Dr. Moreau'. O filme, pelo qual recebeu críticas demolidoras e um prêmio
Razzie, foi uma de suas últimas aparições no cinema. GETTY IMAGES / GETTY IMAGES
JAIME LORITE

09 SET 2021 - 20:30 BRT

No último capítulo do romance A ilha do doutor Moreau, seu protagonista


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declara: “Não abrigo a esperança de que o terror da ilha me abandone
jamais”. Apesar de o inglês H.G. Wells ter escrito estas palavras em 1896, a
frase poderia perfeitamente ter sido pronunciada cem anos mais tarde por
alguns dos participantes de uma filmagem que aconteceu no noroeste da
Austrália, a da própria adaptação do livro, cuja estreia acaba de completar A relação íntima
entre James
um quarto de século.
Dean e Marlon
Brando
Com um cronograma de produção de seis semanas que acabou se
estendendo para seis meses, a rodagem do filme rapidamente ficou
conhecida como uma das mais caóticas na história de Hollywood, por
causa da mudança de diretor —de Richard Stanley para John
Frankenheimer, logo no começo— e do comportamento conflitivo de suas Admissão de
vulcânicas estrelas, Marlon Brando e Val Kilmer. Vendo a história mais de que houve
estupro real em
perto, essa era apenas a inofensiva ponta do iceberg. ‘O Último Tango
em Paris’
revolta
Hollywood
O documentário Lost soul: A viagem maldita de Richard Stanley à ilha do
Dr. Moreau, de 2014, analisou o ocorrido sob o ponto de vista do diretor
demitido, com os depoimentos de parte da equipe e do estúdio que
produziu o filme, a New Line Cinema. O documentário despertou o
interesse dos fãs do gênero fantástico —foi premiado no Festival de Sitges
A insaciável vida
daquele ano— não só pela curiosidade em conhecer em primeira mão os
sexual de
meandros da rodagem de A ilha do Dr. Moreau, mas sim pelo Marlon Brando
reaparecimento de Stanley, promessa do gênero no começo dos anos
noventa por filmes como Hardware, o destruidor do futuro (1990), de
quem praticamente nunca mais se ouvira falar desde então.

Graças ao seu longo depoimento no documentário dirigido por David Gregory, ficamos
sabendo, por exemplo, que Richard Stanley, de crenças wiccanas (uma religião vinculada à
bruxaria), tinha recorrido a feitiços para conseguir o emprego, e que seu ambicioso roteiro
incluía cenas de sexo oral entre espécies e mutilações genitais em primeiro plano.
Cartaz promocional de ‘A ilha do Dr. Moreau’ com o ator Mark Dacascos caracterizado como uma das estranhas
criaturas do filme.
MICHAEL OCHS ARCHIVES / GETTY IMAGES

Dirigir a adaptação de A ilha do doutor Moreau era um dos grandes sonhos de Stanley. A
história do náufrago que chega por acidente à terra onde um cientista maluco se exilou para
realizar seus experimentos de dissecação de animais fascinava o cineasta, que passou
quatro anos desenvolvendo o roteiro e imaginando os desenhos das criaturas e os cenários.
Seu vínculo por descendência direta com o explorador Henry M. Stanley (1841-1904), autor
da célebre frase “Dr. Livingstone, suponho”, colaborador do rei Leopoldo II da Bélgica no
genocídio do Congo e inspiração de Joseph Conrad para o personagem Kurtz em O coração
das trevas (1899), também lhe serviu para ganhar a aprovação de Marlon Brando, intérprete
de Kurtz em Apocalypse now (1979). E essa inesperada boa relação entre o diretor, então
com apenas 29 anos, e o difícil Brando foi suficiente para que o estúdio inicialmente desse
carta branca a Richard Stanley.

Tanto é que a New Line destinou 40 milhões de dólares (o equivalente a mais de 360
milhões de reais atuais) ao projeto, embora isso implicasse ignorar alguns outros sinais.
“Quando meu assistente nos perguntou o que queríamos tomar, [Stanley] disse ‘um café,
por favor, com três ou quatro cubinhos de açúcar’, e aí notei que parecia haver algo de
errado naquele sujeito”, rememorava com ironia em Lost soul o fundador do estúdio, Robert
Shaye, a propósito de seu primeiro encontro com o cineasta.

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O pouco interesse de Richard Stanley em comparecer às reuniões de trabalho, a


inexperiência à frente de uma superprodução —seu filme mais caro, Dust devil: o
colecionador de almas (1992), tinha tido um orçamento de cinco milhões de dólares— e
outros traços erráticos em sua conduta (como ligar de madrugada para um produtor
pedindo uma mudança de hotel por motivos misteriosos) levaram o executivo Tim
Zinnemann a propor um acréscimo de 1,5 milhão de dólares ao orçamento para
contingências, ou seja, para a eventualidade de que fosse preciso trocar de diretor. Apenas
três dias depois de iniciada a rodagem na costa de Cairns, na Austrália, o cofre do milhão e
meio se abriu.

O diretor Richard Stanley durante a apresentação do filme ‘A cor que caiu do espaço’ no Festival de Sitges (Espanha) em
2019. DAVID ZORRAKINO / EUROPA PRESS / EUROPA PRESS VIA GETTY IMAGES

Os problemas mudam
Em 1995, a filha de Marlon Brando se suicidou, então sua participação no projeto esteve por
um fio —e com ela o status de protegido que Richard Stanley acreditava ter assegurado. De
fato, a outra estrela, Val Kilmer, tinha exercido uma firme oposição ao cineasta desde o
primeiro minuto. Com Batman eternamente recém-estreado, Kilmer estava no auge do seu
sucesso comercial, e dirigi-lo era uma tarefa árdua. Tinha pedido uma mudança de
personagem, que lhe foi concedida, e, conforme coincidiram em apontar diferentes
membros da equipe no documentário Lost soul, ele se contrapunha a Stanley em todos os
aspectos criativos: de falas próprias e alheias até posicionamentos de câmera.

Além disso, do set na selva australiana de Cairns não paravam de chegar notícias esquisitas:
o diretor, supostamente, tinha terminado uma das jornadas encarapitado numa árvore para
não falar com ninguém e entrado em pânico quando um furacão arrasou o cenário da
rodagem. A tensão com Kilmer foi estopim para que o estúdio o substituísse por John
Frankenheimer sem ter transcorrido nem uma semana inteira. Os rumores de que Stanley
planejava queimar o set como represália levaram também a New Line Cinema a lhe pedir
que abandonasse a ilha, mas o já ex-funcionário desapareceu na mata sem deixar rastro.

Assim, o veterano Frankenheimer, responsável por clássicos como Sob o domínio do mal
(1962), incorporou-se ao filme com seu assistente de confiança, James Sbardellati, que
observou desconcertado como Stanley e seus produtores tinham planejado parte da
rodagem no ponto mais chuvoso da Austrália, só para ter de fundo nas tomadas exteriores
uma montanha que a umidade nunca permitia ver. O caráter do novo diretor não conseguiu
apaziguar um Val Kilmer em rebeldia, que, segundo várias testemunhas, tinha chegado a
apagar um cigarro na cara de um dos técnicos. “Nem que eu dirigisse um filme chamado A
vida de Val Kilmer eu não voltaria a trabalhar com esse babaca!”, diz-se que Frankenheimer
chegou a vociferar.

Val Kilmer em uma cena de ‘A ilha do Dr. Moreau’. NEW LINE CINEMA / GETTY IMAGES

O ator alemão Marco Hofschneider também acabou vendo seu papel minguar porque Val
Kilmer não gostava de contracenar com ele. E o desembarque final de Marlon Brando, longe
de arrumar as coisas, foi sua sentença. Frankenheimer tinha uma péssima opinião sobre o
roteiro de Richard Stanley e havia exigido uma reescrita, mas o protagonista de O Poderoso
Chefão também chegou à Austrália com ideias próprias. Hofschneider encarnava M’Ling,
mordomo do Dr. Moreau, mas Brando se afeiçoou pelo ator dominicano Nelson de la Rosa,
um anão de 71 centímetros de altura, e tomou a decisão radical de substituir o ator alemão,
e que no seu lugar De la Rosa o acompanhasse continuamente na tela, como braço-direito.
A equipe de figurino criou às pressas réplicas da roupa de Brando em miniatura para que
ambos andassem combinando. O resultado serviu de inspiração ao comediante Mike Myers
para criar o Mini Me, sequaz do Dr. Evil na saga Austin Powers.

As contribuições de Brando (que não decorou suas falas e pediu que as recitassem por um
ponto eletrônico, visível em vários planos) foram além. Alegou que Moreau sofria uma
agressiva alergia ao sol e por isso, nas cenas externas, deveria estar impregnado por um
chamativo creme branco, o que, casualmente, facilitava que um dublê fizesse as tomadas
longas no seu lugar. Também, por causa do calor, solicitou que um balde com gelo fosse
incorporado à cabeça do personagem. Mais adiante, desenvolvendo essa ideia, pediu a John
Frankenheimer que interrompesse a produção “por seis ou oito semanas” para
reescreverem o filme juntos: lhe ocorreu que o doutor Moreau poderia ser um golfinho, e
mantê-lo hidratado seria a justificativa para o balde de gelo. Esta última exigência não foi
atendida. O consenso dos entrevistados em Lost soul é que Brando não levava o filme a
sério e procurava sabotá-lo, embora no documentário Val (2021) o ator Val Kilmer defenda
que seu colega de elenco tinha uma visão criativa, mas que Frankenheimer não a soube
valorizar.
O diretor John Frankenheimer na rodagem de ‘A ilha do Dr. Moreau’, em 1996. MICHAEL OCHS ARCHIVES / GETTY
IMAGES

O caos prosseguiu durante um semestre inteiro que durou a produção. O anão Nelson de la
Rosa, poderoso sob a proteção de Marlon Brando, chegou a agredir Marco Hofschneider e
se tornaram frequentes seus comentários de teor sexual às mulheres da equipe. O figurante
Neil Young (nenhuma relação com o músico canadense), que no filme interpretava um javali
humano, contou: “As rodagens noturnas terminavam com um consumo enorme de álcool.
Muita gente se deitou com quem não devia. Consumiram muitas drogas. Com o tempo, a
coisa foi degenerando cada vez mais”.

No documentário do filme, de fato, aparecem fragmentos de vídeos quase pornôs rodados


pelos atores, metidos nas elaboradas próteses de monstros que o artesão Stan Winston (de
Jurassic Park) tinha montado para o filme. Quando foram necessários mais figurantes,
recrutou-se uma comuna de hippies que vivia na floresta e onde, desde sua demissão,
encontrava-se o ex-diretor Richard Stanley, que aproveitou a ocasião para se infiltrar na
rodagem disfarçado de homem-cão.
A Vila Sésamo de Satanás
“Eu gostaria de oferecer um relato real do que foi a produção do filme, mas temo não voltar
a trabalhar se fizer isso.” Com essas palavras, o ator David Thewlis, o autêntico protagonista
de A ilha do Dr. Moreau, expressou sua decisão de se manter calado sobre a rodagem do
filme e não participar do documentário Lost soul, onde nem sequer é mencionado. Thewlis,
popular por seu papel do professor Lupin nos filmes da saga Harry Potter, não apareceu no
cartaz nem em eventos promocionais, e por isso, afinal, acabou sendo o menos prejudicado
pela tempestade de críticas que sobreveio após a estreia. Qualificada pelo crítico Brandon
Judell como “a Vila Sésamo de Satanás”, o resultado final arrecadou 49,6 milhões de
dólares em todo o mundo, o que representou prejuízos para a New Line Cinema, que tinha
investido mais do que os 40 milhões iniciais em gastos de promoção e imprevistos. Marlon
Brando, por sua vez, ganhou os prêmios Razzie e Stinkers de pior ator do ano.

Marlon Brando junto a uma de suas criaturas em ‘A ilha do Dr. Moreau’. MONDADORI PORTFOLIO / MONDADORI VIA
GETTY IMAGES

John Frankenheimer quase não deu declarações: considerava tudo uma experiência ruim.
Richard Stanley se mudou para Montségur, na França, onde se dedicou a rodar curtas e
documentários, até reaparecer para o público em Lost soul. Graças a ele, pôde voltar a
dirigir: em 2019, estreou com ótimas críticas seu primeiro longa-metragem de ficção em 27
anos, A cor que caiu do espaço, protagonizado por Nicolas Cage. Seu sucesso levou o selo
SpectreVision a contratá-lo para uma trilogia baseada nas obras do H. P. Lovecraft. Mas
logo depois a ex-mulher do diretor, a escritora e roteirista Scarlett Amaris, publicou um duro
texto detalhando os abusos violentos e psicológicos aos quais o cineasta a teria submetido
(e que chegavam a incluir a difusão de imagens íntimas do casal). Depois disso, a produtora
cancelou o acordo. Além de apresentar a denúncia, Amaris informou que Richard Stanley é
réu, paralelamente, em um processo por maus tratos movido por outra mulher.

Desde que esses fatos foram revelados, em plataformas como a Letterboxd, uma rede
social de cinema, questiona-se o papel de vítima de Richard Stanley na rodagem, e inclusive
na ficha do documentário Lost soul agora aparecem comentários da comunidade wiccana
que fazem críticas ao diretor pelo ponto de vista da bruxaria. O ocultismo, reflete um
participante do fórum, “pode fazer os abusadores parecerem poderosos e extraordinários”.
Enquanto tudo indica que sua acidentada carreira agora sim terminou, o supostamente
desastroso filme do qual foi demitido 25 anos atrás não dá sinais de cair no esquecimento. A
ilha do Dr. Moreau continua atraindo espectadores, talvez por motivos como os que o
escritor e crítico Zach Vasquez alegou na defesa que publicou neste ano no The Guardian: “É
esquisita demais e memorável demais para ser descartada como lixo”.

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