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Marlon Brando em uma cena de ‘A ilha do Dr. Moreau'. O filme, pelo qual recebeu críticas demolidoras e um prêmio
Razzie, foi uma de suas últimas aparições no cinema. GETTY IMAGES / GETTY IMAGES
JAIME LORITE
Graças ao seu longo depoimento no documentário dirigido por David Gregory, ficamos
sabendo, por exemplo, que Richard Stanley, de crenças wiccanas (uma religião vinculada à
bruxaria), tinha recorrido a feitiços para conseguir o emprego, e que seu ambicioso roteiro
incluía cenas de sexo oral entre espécies e mutilações genitais em primeiro plano.
Cartaz promocional de ‘A ilha do Dr. Moreau’ com o ator Mark Dacascos caracterizado como uma das estranhas
criaturas do filme.
MICHAEL OCHS ARCHIVES / GETTY IMAGES
Dirigir a adaptação de A ilha do doutor Moreau era um dos grandes sonhos de Stanley. A
história do náufrago que chega por acidente à terra onde um cientista maluco se exilou para
realizar seus experimentos de dissecação de animais fascinava o cineasta, que passou
quatro anos desenvolvendo o roteiro e imaginando os desenhos das criaturas e os cenários.
Seu vínculo por descendência direta com o explorador Henry M. Stanley (1841-1904), autor
da célebre frase “Dr. Livingstone, suponho”, colaborador do rei Leopoldo II da Bélgica no
genocídio do Congo e inspiração de Joseph Conrad para o personagem Kurtz em O coração
das trevas (1899), também lhe serviu para ganhar a aprovação de Marlon Brando, intérprete
de Kurtz em Apocalypse now (1979). E essa inesperada boa relação entre o diretor, então
com apenas 29 anos, e o difícil Brando foi suficiente para que o estúdio inicialmente desse
carta branca a Richard Stanley.
Tanto é que a New Line destinou 40 milhões de dólares (o equivalente a mais de 360
milhões de reais atuais) ao projeto, embora isso implicasse ignorar alguns outros sinais.
“Quando meu assistente nos perguntou o que queríamos tomar, [Stanley] disse ‘um café,
por favor, com três ou quatro cubinhos de açúcar’, e aí notei que parecia haver algo de
errado naquele sujeito”, rememorava com ironia em Lost soul o fundador do estúdio, Robert
Shaye, a propósito de seu primeiro encontro com o cineasta.
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O diretor Richard Stanley durante a apresentação do filme ‘A cor que caiu do espaço’ no Festival de Sitges (Espanha) em
2019. DAVID ZORRAKINO / EUROPA PRESS / EUROPA PRESS VIA GETTY IMAGES
Os problemas mudam
Em 1995, a filha de Marlon Brando se suicidou, então sua participação no projeto esteve por
um fio —e com ela o status de protegido que Richard Stanley acreditava ter assegurado. De
fato, a outra estrela, Val Kilmer, tinha exercido uma firme oposição ao cineasta desde o
primeiro minuto. Com Batman eternamente recém-estreado, Kilmer estava no auge do seu
sucesso comercial, e dirigi-lo era uma tarefa árdua. Tinha pedido uma mudança de
personagem, que lhe foi concedida, e, conforme coincidiram em apontar diferentes
membros da equipe no documentário Lost soul, ele se contrapunha a Stanley em todos os
aspectos criativos: de falas próprias e alheias até posicionamentos de câmera.
Além disso, do set na selva australiana de Cairns não paravam de chegar notícias esquisitas:
o diretor, supostamente, tinha terminado uma das jornadas encarapitado numa árvore para
não falar com ninguém e entrado em pânico quando um furacão arrasou o cenário da
rodagem. A tensão com Kilmer foi estopim para que o estúdio o substituísse por John
Frankenheimer sem ter transcorrido nem uma semana inteira. Os rumores de que Stanley
planejava queimar o set como represália levaram também a New Line Cinema a lhe pedir
que abandonasse a ilha, mas o já ex-funcionário desapareceu na mata sem deixar rastro.
Assim, o veterano Frankenheimer, responsável por clássicos como Sob o domínio do mal
(1962), incorporou-se ao filme com seu assistente de confiança, James Sbardellati, que
observou desconcertado como Stanley e seus produtores tinham planejado parte da
rodagem no ponto mais chuvoso da Austrália, só para ter de fundo nas tomadas exteriores
uma montanha que a umidade nunca permitia ver. O caráter do novo diretor não conseguiu
apaziguar um Val Kilmer em rebeldia, que, segundo várias testemunhas, tinha chegado a
apagar um cigarro na cara de um dos técnicos. “Nem que eu dirigisse um filme chamado A
vida de Val Kilmer eu não voltaria a trabalhar com esse babaca!”, diz-se que Frankenheimer
chegou a vociferar.
Val Kilmer em uma cena de ‘A ilha do Dr. Moreau’. NEW LINE CINEMA / GETTY IMAGES
O ator alemão Marco Hofschneider também acabou vendo seu papel minguar porque Val
Kilmer não gostava de contracenar com ele. E o desembarque final de Marlon Brando, longe
de arrumar as coisas, foi sua sentença. Frankenheimer tinha uma péssima opinião sobre o
roteiro de Richard Stanley e havia exigido uma reescrita, mas o protagonista de O Poderoso
Chefão também chegou à Austrália com ideias próprias. Hofschneider encarnava M’Ling,
mordomo do Dr. Moreau, mas Brando se afeiçoou pelo ator dominicano Nelson de la Rosa,
um anão de 71 centímetros de altura, e tomou a decisão radical de substituir o ator alemão,
e que no seu lugar De la Rosa o acompanhasse continuamente na tela, como braço-direito.
A equipe de figurino criou às pressas réplicas da roupa de Brando em miniatura para que
ambos andassem combinando. O resultado serviu de inspiração ao comediante Mike Myers
para criar o Mini Me, sequaz do Dr. Evil na saga Austin Powers.
As contribuições de Brando (que não decorou suas falas e pediu que as recitassem por um
ponto eletrônico, visível em vários planos) foram além. Alegou que Moreau sofria uma
agressiva alergia ao sol e por isso, nas cenas externas, deveria estar impregnado por um
chamativo creme branco, o que, casualmente, facilitava que um dublê fizesse as tomadas
longas no seu lugar. Também, por causa do calor, solicitou que um balde com gelo fosse
incorporado à cabeça do personagem. Mais adiante, desenvolvendo essa ideia, pediu a John
Frankenheimer que interrompesse a produção “por seis ou oito semanas” para
reescreverem o filme juntos: lhe ocorreu que o doutor Moreau poderia ser um golfinho, e
mantê-lo hidratado seria a justificativa para o balde de gelo. Esta última exigência não foi
atendida. O consenso dos entrevistados em Lost soul é que Brando não levava o filme a
sério e procurava sabotá-lo, embora no documentário Val (2021) o ator Val Kilmer defenda
que seu colega de elenco tinha uma visão criativa, mas que Frankenheimer não a soube
valorizar.
O diretor John Frankenheimer na rodagem de ‘A ilha do Dr. Moreau’, em 1996. MICHAEL OCHS ARCHIVES / GETTY
IMAGES
O caos prosseguiu durante um semestre inteiro que durou a produção. O anão Nelson de la
Rosa, poderoso sob a proteção de Marlon Brando, chegou a agredir Marco Hofschneider e
se tornaram frequentes seus comentários de teor sexual às mulheres da equipe. O figurante
Neil Young (nenhuma relação com o músico canadense), que no filme interpretava um javali
humano, contou: “As rodagens noturnas terminavam com um consumo enorme de álcool.
Muita gente se deitou com quem não devia. Consumiram muitas drogas. Com o tempo, a
coisa foi degenerando cada vez mais”.
Marlon Brando junto a uma de suas criaturas em ‘A ilha do Dr. Moreau’. MONDADORI PORTFOLIO / MONDADORI VIA
GETTY IMAGES
John Frankenheimer quase não deu declarações: considerava tudo uma experiência ruim.
Richard Stanley se mudou para Montségur, na França, onde se dedicou a rodar curtas e
documentários, até reaparecer para o público em Lost soul. Graças a ele, pôde voltar a
dirigir: em 2019, estreou com ótimas críticas seu primeiro longa-metragem de ficção em 27
anos, A cor que caiu do espaço, protagonizado por Nicolas Cage. Seu sucesso levou o selo
SpectreVision a contratá-lo para uma trilogia baseada nas obras do H. P. Lovecraft. Mas
logo depois a ex-mulher do diretor, a escritora e roteirista Scarlett Amaris, publicou um duro
texto detalhando os abusos violentos e psicológicos aos quais o cineasta a teria submetido
(e que chegavam a incluir a difusão de imagens íntimas do casal). Depois disso, a produtora
cancelou o acordo. Além de apresentar a denúncia, Amaris informou que Richard Stanley é
réu, paralelamente, em um processo por maus tratos movido por outra mulher.
Desde que esses fatos foram revelados, em plataformas como a Letterboxd, uma rede
social de cinema, questiona-se o papel de vítima de Richard Stanley na rodagem, e inclusive
na ficha do documentário Lost soul agora aparecem comentários da comunidade wiccana
que fazem críticas ao diretor pelo ponto de vista da bruxaria. O ocultismo, reflete um
participante do fórum, “pode fazer os abusadores parecerem poderosos e extraordinários”.
Enquanto tudo indica que sua acidentada carreira agora sim terminou, o supostamente
desastroso filme do qual foi demitido 25 anos atrás não dá sinais de cair no esquecimento. A
ilha do Dr. Moreau continua atraindo espectadores, talvez por motivos como os que o
escritor e crítico Zach Vasquez alegou na defesa que publicou neste ano no The Guardian: “É
esquisita demais e memorável demais para ser descartada como lixo”.
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