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As Pupilas do Senhor Reitor

Resumo da Obra

Num cenário povoado de tipos humanos cuja bondade só é maculada pelo moralismo quase ingênuo de comadres fofoqueiras, desenrola-se o
drama amoroso. Daniel, ainda menino, prepara-se para ingressar no seminário, mas o reitor descobre seu inocente namoro com a pastorinha
Margarida (Guida). O pai, José das Dornas, decide, então, enviá-lo ao Porto para estudar medicina. Dez anos depois Daniel volta para a aldeia,
como médico homeopata. Margarida, agora professora de crianças, conserva ainda seu amor pelo rapaz. Ele, no entanto, contaminado pelos
costumes da cidade, torna-se um namorador impulsivo e inconstante, e já nem se lembra da pequena pastora. A esse tempo, Pedro, irmão de
Daniel, está noivo de Clara, irmã de Margarida. O jovem médico encanta-se da futura cunhada, iniciando uma tentativa de conquista que poria
em risco a harmonia familiar. Clara, inicialmente, incentiva os arroubos do rapaz, mas recua ao perceber a gravidade das conseqüências. Ansiosa
por acabar com impertinente assédio, concede-lhe uma entrevista no jardim de sua casa. Esse encontro é o ponto culminante da narrativa:
surpreendidos por Pedro, são salvos por Margarida, que toma o lugar da irmã. Rapidamente esses acontecimentos tornam-se um grande
escândalo que compromete a reputação de Margarida. Daniel, impressionado com a abnegação da moça, recorda-se, finalmente, do amor da
infância. Apaixonado agora por Guida, procura conquistá-la. No último capítulo, depois de muita resistência e de muito sofrimento, Margarida
aceita o amor de Daniel.

Apresentação

Escritas em 1863, As Pupilas do Senhor Reitor foram publicadas pela primeira vez como folhetim do Jornal do Porto,em 1866. Alcançaram
grande êxito, fornecendo ao seu autor, até então quase desconhecido, o estímulo para publicá-las na forma definitiva de romance, em 1867.

Embora As Pupilas tivessem sido escritas de uma maneira que se afastava da norma geral, rápida e parcelada, de produção folhetinesca, uma
vez que o romance foi escrito in totum e submetido a revisões antes que Júlio Dinis se dispusesse a publicá-lo, não há dúvida de que ele se
destinava a esse tipo de divulgação. Ao sucesso do primeiro folhetim, seguiu-se imediatamente a publicação de outros: "Uma Família de
Ingleses" (1867) e "A Morgadinha dos Canaviais" (1868). Essa predileção pela forma folhetinesca parece ligar-se às idéias de Júlio Dinis a
respeito do papel da literatura como "instrumento":

"Há livros que são monumentos e livros que são instrumentos. Os primeiros levantam-se a perpetuar a memória de uma literatura, ainda
mesmo que se extinga a nacionalidade a que pertencia. (...) Os livros instrumentos são, pelo contrário, para andarem nas mãos de todos, para o
uso quotidiano, para educarem, civilizarem e doutrinarem as massas" ; estaria relacionada, portanto, a um "projeto literário pedagógico" com o
qual se comprometia o escritor.

Se não determinou todas as características da obra, a apresentação como folhetim é, contudo, responsável por muitas delas; e algumas das
críticas que o romance recebeu, devem-se à pouca atenção que os seus autores prestaram a esse fator, preocupados como estavam em julgar
a obra da perspectiva dos cânones estabelecidos para a literatura consagrada.

Antepassado oitocentista das nossas foto-, radio- e telenovelas, o folhetim publicava-se, geralmente, em partes volantes dos periódicos. Toda
uma arte especial de narrar se fazia necessária, então, para manter o interesse do público e assegurar a venda do número seguinte. Desenlaces
adiados, soluções parciais que criam outros problemas, introdução de novas personagens, cortes dramáticos, mudanças estratégicas, tudo faz
parte da técnica do folhetinista que busca compor a sua história para um veículo e um público determinados. Além disso, pela sua própria
apresentação material, o folhetim se torna arte do efêmero, pois o que se conta não se deposita senão na experiência momentânea e truncada
de quem lê a cada dia as notícias do mundo real lado a lado com as do fictício: não se exige dele, portanto, a coerência que o leitor se habituara
a exigir dos livros, produtos acabados e sujeitos, por isso, a releituras, confirmações e confrontos.

Não admira assim que, n'As Pupilas, certas incoerências ou mesmo inverossimilhanças ocorram: o que importa, afinal, é o impacto forte, mas
parcelar, que se obtém, capitulo a capítulo, sobre um leitor distraído e passivo.

O fato de ter sido escrito completamente, e não por partes, sob a obrigação de entregar material para o dia seguinte, livrou a obra de certas
características ligadas a esse tipo de produção: o emprego abusivo de chavões, o pouco cuidado com o estilo, a tendência à simplificação de
personagens e situações, que marcam grande parte da literatura folhetinesca; entretanto, se para o autor não houve essa fragmentação, ela
existiu, certamente, para o leitor. E a própria construção da obra revela a consciência do tipo especial de suporte e de leitor a que se destinava.

Procuraremos examinar aqui quatro aspectos que se relacionam diretamente com a natureza folhetinesca d'As Pupilas, e com o "projeto
pedagógico" a que já nos referimos: os procedimentos que presidem à construção dos capítulos, a identificação dos narratários, a estrutura
geral da obra e a caracterização da principal personagem feminina.

Certos princípios gerais que determinam a seleção dos assuntos, dos acontecimentos e das personagens dentro de cada capítulo, bem como a
sua abertura e fechamento, podem ser encontrados operando no romance:

a. A variedade: segundo esse princípio, é preciso manter o interesse do leitor, proporcionando-lhe estímulos diversificados. Para tanto, é
comum o narrador usar a técnica de desatar e reatar os fios da história, variar a perspectiva através da qual apresenta as personagens (por
exemplo, no primeiro capitulo, Daniel é apresentado pelo narrador, pelo pai e pelo Reitor, que nos dão dele um retraio limitado às suas
expectativas profissionais; no segundo capítulo, a introdução de novas personagens, agora duas mulheres, permite a apresentação de Daniel sob
um novo ângulo: o seu prestígio junto às mulheres, que se refigura como uma herança, uma sina; essa espécie de fatalidade ligada ao seu
temperamento começa a concretizar-se já no segundo capítulo com a história dos seus atrasos à aula e as suspeitas do Reitor); o narrador
pode ainda mudar o fio condutor da história (assim, terminado o idílio infantil entre Daniel e Margarida, com a partida daquele e as lágrimas desta,
o sétimo capítulo passa a focalizar uma personagem que o narrador apresentara rapidamente no primeiro: Pedro, o irmão de Daniel. Essa
mudança permite passar por cima das experiências urbanas de Daniel, e introduzir ainda uma nova personagem. Clara, que se revela ser, afinal, a
irmã da mesma Margarida do começo do livro; desta forma, a variedade se manifesta, mas dentro de limites previamente estabelecidos pelo
gênero ou pela economia geral da narrativa).

O princípio da variedade pode entrar em combinação com outros princípios construtores: ela opera, por exemplo, em momentos cruciais da

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narrativa (caps. XVI-XIX), obtendo um efeito secundário, isto é, o suspense.

b. O suspense: um dos recursos mais largamente utilizados para captar e manter o interesse do leitor (ou do ouvinte), o suspense se torna o
princípio organizador principal de alguns gêneros, entre os quais os próprios folhetins que estavam em voga no século XIX. Não obstante, se
oporem à "literatura de fantasia" então em grande moda, As Pupilas do Senhor Reitor não escapam totalmente ao fascínio do procedimento.

Dessa maneira, muitos capítulos se fecham com a proposta de um enigma (por que se atrasa Daniel?) ou o pressentimento de uma desgraça (a
descoberta do romance infantil; o casamento de Clara como possível fonte de dissabores para Margarida), o problema da identificação de uma
personagem (quem é Clara?) ou a sugestão de sentimentos ou acontecimentos (a volta de Daniel como pretexto para lembrar os sentimentos
de Guida e sugerir a sua possível união futura).

c. A distensão: o suspense não pode manter-se ininterruptamente, pois, se assim fosse, o leitor seria conduzido num crescendo de angústia
difícil de suportar e particularmente desaconselhável para este tipo de literatura amena. Em alguns momentos é preciso aliviar a tensão criada
pelos conflitos, e um dos recursos mais apropriados para o gênero é provocar o riso. N'As Pupilas, o narrador consegue esse efeito através de
várias formas de humor, que vão desde a caricatura até a paródia e a ironia. Assim, a ação pode ser interrompida num momento de maior
dramaticidade, e logo em seguida encontrar-se o leitor diante de um diálogo em que não há conflitos, nem andamento da ação da narrativa, mas
que serve para construir tipos cômicos, como o aldeão ignorante das ciências da cidade, as velhas mexeriqueiras e beatas, o médico velho e
ranzinza, etc. O alívio conseguido através do riso alia-se à natural desmistificação do trágico e do dramático: unindo os processos peculiares aos
dois gêneros, o autor teria provavelmente a intenção de "imitar a vida", mas obtinha igualmente certos efeitos já assegurados pela tradição de
um gênero menor, bem como a diluição da seriedade, a amenizarão dos conflitos e dos problemas com que respondia à necessidade de reforçar
a fantasmagoria burguesa, exigência da classe a que, como veremos, se destinava principalmente o romance.

Vários elos anafóricos vão-se estabelecendo entre os capítulos assim fragmentados, porque o narrador não pode confiar na memória do leitor;
muitas vezes o narrador é obrigado a dizer coisas como: "Daniel não deixara mentir o prognóstico que aquelas duas boas velhas, das quais não
sei se o leitor ainda se lembrará, tinham feito do jovem estudante de latim, ao verem-no passar, sobraçando os livros, para casa do reitor".
(Grifo meu.)

Uma chamada como essa seria desnecessária num outro tipo de construção romanesca, uma vez que o próprio aparecimento das velhas
tecedeiras, no segundo capitulo, seria suficiente para lembrar ao leitor outras personagens congêneres, embora mais trágicas (as mulheres
tecedeiras do fio da vida, que têm o poder de predizer o futuro e a morte, por exemplo), bem como para sugerir-lhe uma possibilidade estrutural
bastante conhecida: a estrutura do "vaticínio", isto é, a representação inicial, em forma de micronarrativa, de algo que mais tarde efetivamente
acontece ao herói (de que é exemplo clássico o mito de Édipo).

No gênero folhetinesco, contudo, a publicação da história em partes, que acarreta uma mudança considerável na capacidade de retenção de
detalhes do leitor, traz ainda outras conseqüências; o alargamento do público receptor, não só porque o custo do folhetim é mais baixo, mas
também porque a sua leitura exige pouco tempo tirado às obrigações do dia; ampliando-se o público, passa a incluir pessoas que não
constituíam o receptor habitual dos livros, ou seja, pessoas mesmo iletradas, ou pouco versadas em literatura consagrada, que podiam até
reunir-se em lugares coletivos para ouvir a leitura do folhetim. Para esse público - abrangendo também agora as mulheres, em geral de pouca
instrução - o narrador via-se obrigado a lembrar, explicar e interpretar o seu texto: muito pouco se via ele tentado a exigir de um público pouco
afeito a reconhecer alusões da "outra" literatura.

Nesse ponto, podemos indagar-nos a respeito do tipo específico de público a que se destinavam "As Pupilas do Senhor Reitor" Há elementos na
própria obra que nos fornecem indicações precisas acerca da identificação e caracterização dos seus narratários: assim, talvez

o narrador se dirige, principalmente, às leitoras ("Mas, ainda sob o risco de indispor o ânimo das leitoras contra um dos principais personagens
desta singelíssima história,..." p. 82); a elas se destinam várias das suas falas que adotam a perspectiva e os valores atribuídos à mulher por
uma cultura de homens ("Depois. . . nunca é tão cheia de atrativos a mulher, como ao velar solícita por o doente que estima. Às mais levianas
revela-se-lhes então a grandeza e a sublimidade da sua missão na terra. O coração, que as vaidades podiam trazer abafado, estremece e
acorda ao primeiro grito de dor; o instinto feminino revive com toda a sua espontaneidade de abnegação; dá-lhes à voz inflexões de ternura, ao
olhar requebros de meiguice, e aquela deliciosa fraqueza de ânimo, que nos pedia proteção e amparo, transforma-se em coragem heróica,
diante da qual nós, os que nos supúnhamos fortes, cedemos subjugados", p. 116); dirige-se ainda ao leitor medianamente ilustrado na cultura
clássica, capaz de reconhecer e entender as alusões contidas em referências tais como: "... e não do rir dos Demócritos de todos os tempos",
"aquele vivo exemplar do Hércules escultural", e/c.; a um leitor versado na literatura romântica da época ("dando assim uma excelente lição a
esses amantes wertherianos, que, por as mais pequenas coisas, perdem o sono e o apetite"); a um leitor "comum", cheio de saudável
"sabedoria popular", capaz, portanto, de reconhecer e apreciar máximas que a representem ("quem mais faz menos merece", "mais vale quem
Deus ajuda do que quem muito madruga"); àquele leitor que, reconhecendo certos valores expressos pelas personagens ou pelo narrador, com
eles comungue: trata-se, na maioria dos casos, dos valores dominantes na burguesia portuguesa da época ("O quinhão de dores e de provações
foi indistintamente repartido por todas as classes, sem privilégio de nenhuma. Há infortúnios e misérias que causam o tormento dos grandes e
poderosos e que os pobres e humildes nem experimentam, nem imaginam sequer", p. 9; "As grandes ventanias - monologava ele - são também
um mal para o lavrador, porque lhe derrubam as searas, mas... como se não podem evitar... que se faz? - levantam-se nos montes as asas de
uns moinhos e elas aí estão aproveitadas. Aproveitemos pois também da loucura má destes perdulários, já que ainda não pude acabar com ela
de todo", p. 70) e, especialmente, na burguesia liberal do Porto, que "tinha como elementos ideológicos principais a idéia da concorrência e a do
trabalho como origem da riqueza"

("Por isso, na ocasião de formar projetos, para se dignificar aos próprios olhos pelo trabalho, sorria-lhe principalmente a carreira de ensino", p.
49; "Onde o patrão dorme, ressonam os criados. E fazem muito bem", p. 149); finalmente, àquele leitor urbano que tem do campo a
experiência passageira de uma visita idílica, de fuga aos problemas peculiares da cidade (o tema do fugere urbem remonta já à tradição clássica,
mas adquire uma importância e uma coloração própria no século XIX): assim, o campo é o lugar onde os lavradores, trabalhando de sol a sol,
constroem honesta e risonhamente a sua riqueza; onde as raparigas lavam roupa no rio, cantando essas "eternas e popularíssimas músicas de
nossa província"; onde os pobres sempre encontram "a esmola e o conforto de doutrinas evangélicas", e os miseráveis que jogam e bebem,
fazem-no porque negam ao trabalho "os braços robustos e peito valente"; onde os humilhados vêem finalmente reconhecida a sua virtude e
restabelecida a sua dignidade.

São, portanto, diversos os leitores a que se dirigem "As Pupilas do Senhor Reitor", pois, para Júlio Dinis, "o romance é um gênero de literatura
essencialmente popular. É necessário que, na leitura dele, as inteligências menos cultas encontrem atrativos, instrução e conselho e que, ao
mesmo tempo, os espíritos cultivados lhe descubram alguns dotes literários para que se possa dizer que ele satisfez, à sua missão".

De que maneira procurou Júlio Dinis realizar esse "projeto pedagógico", n'As Pupilas? Se, por um lado, como vimos, a voz do narrador e do seu
porta-voz - no caso, o Senhor Reitor - se conformam às expectativas dos diversos narratários que compõem o público leitor burguês da época,
por outro, o romance introduziu novidades no panorama literário português, e foi saudado por grande parte da crítica por causa dos seus
aspectos inovadores. Por oposição ao artificioso e fantasista, Júlio Dinis produziu um romance com "personagens que estavam longe dos
habituais avantesmas e eram homens com qualidades e defeitos como qualquer mortal" ,vivendo os seus conflitos numa realidade portuguesa
que "é ainda suave, mole, frouxa, mal definida" , mas que já antecipa a visão critica realista de dez anos mais tarde.

O seu projeto, que oscila entre o desejo da verdade ("verdade das descrições, verdade dos caracteres, verdade na evolução das paixões e
verdade, enfim, nos efeitos que resultam do encontro de determinados caracteres e de determinadas paixões" ) e a vontade de "educar, civilizar

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e doutrinar as massas", reflete esse conflito interno na própria construção do romance e das personagens.

Dessa perspectiva, convém analisar de mais perto a estrutura geral da obra e a caracterização da principal personagem feminina, Guida:

Aludimos anteriormente ao processo de vaticinar os futuros acontecimentos da narrativa, quando nos referimos ao diálogo das velhas
tecedeiras; não é só nesse momento, entretanto, que esse recurso ocorre. Ele constitui, pelo contrário, a figura nuclear do romance: toda a
estrutura romanesca se fundamenta na expectativa criada, no leitor e em pelo menos uma das personagens, pela promessa feita por Daniel a
Guida, na cena idílica inicial: "hei de vir a casar contigo". As ações subseqüentes preenchem o espaço que separa o propósito de sua realização.
"Casamento e mortalha, no céu se talha": a construção geral do romance tem por base, assim, uma filosofia da fatalidade e da resignação, que
se manifesta nas suas linhas maiores e menores. A ação principal conta a história das duas crianças, separadas por motivos alheios à sua
vontade; das duas, uma (a que fica no campo) permanece fiel ao amor da infância, enquanto a outra (a que vai para a cidade) dele se esquece e
perde-se, até reencontrar a sua identidade e integridade na realização da promessa ("Alguma coisa se passou no meu

coração, que me fez outro homem. Acabou o louco sonho de dez anos, que andei sonhando. Despertei ontem. Agora sou o mesmo Daniel, que
daqui partiu,..." p. 264). A fatalidade é a ordem do mundo, e a resignação, a filosofia adequada de vida. Essa é a ideologia do camponês, e só
nela há salvação: a roda da Fortuna faz girar nas suas voltas aqueles que, afastando-se dessa ordem, crêem ter dela escapado; o poderoso da
cidade volta ao campo, perdidos os seus bens e a sua vã ventura, para nele reencontrar o amor e a compreensão dos resignados.

Até que ponto vai, porém, essa ideologia da resignação? Afinal, a um espírito liberal da segunda metade do século XIX, repugnaria uma filosofia
que procurasse "deixar a massa convenientemente educada na obscuridade", "que consumasse o respeito pela religião católica e contivesse o
germinar do 'princípio destruidor de toda a organização social' ".

Margarida é a personagem a quem cabe problematizar e criticar essa ideologia da resignação. Das duas principais figuras femininas. Clara e
Margarida, o narrador diz que a primeira é impulsiva e a outra, refletida. Margarida é o exemplo de virtudes, diante de quem devem prostrar-se
todas as demais pessoas. Ela redime os outros, através do seu sacrifício e da sua dedicação; no contexto do romance, é uma revolucionária,
pois trabalha, quando não precisaria do trabalho para sobreviver, e é instruída, quando as demais mulheres são ignorantes. Modelada sobre a
figura tradicional do herói-vítima, acaba vendo recompensados os sofrimentos e as humilhações que já o seu coração generosamente perdoara.
Entretanto, e o narrador está consciente disto, não se espere dela a perfeição: ela perdoa, mas amargura-se. A sua vingança é refletir, como um
espelho, a imagem que dela fazem os outros e as limitações que o sistema social lhe impõe: assim fazendo, explicita as forças manipuladoras
daquele mundo, e agride com a violência da verdade o fariscasmo dos opressores. O mundo ideal dos grandes sentimentos desmorona quando
Margarida revela os verdadeiros senhores do mundo ("Pensar!...Ë um luxo, com que não podem os pobres - acrescentava, sorrindo
amargamente. - Ê um prazer de ricos e ociosos. A nós, saí-nos muito caro cada minuto desperdiçado a pensar assim", pg 57). A sua resignação
é, portanto, apenas a face iluminada do seu discurso exterior; o discurso interior, contudo, tem as tonalidades sombrias da revolta. Se algo
dessa face lunar aflora ao discurso exterior, temos o escândalo ("Esmola! esmola! Que palavra! De quem recebes tu esmolas em casa de teu
pai, Guida?", p. 44; "olha que até aos infelizes, até na desventura, é um pecado o orgulho; sabes?", p. 225). As duas vozes de Guida
destacam-se nesse romance que poderíamos considerar, no seu tom geral, monológico: a voz que repete o discurso da dominação não é a da
concordância, mas tinge-se com as entoações da revolta e do protesto. O ressentimento e a ironia conferem a esse discurso citado a sua
dimensão crítica, que passa a iluminar diferentemente todo o mundo do romance. As figuras diluídas e bem comportadas desse cenário rural -
esbatidas de forma a tranqüilizar as culpas de uma classe - adquirem também, dessa forma, o seu alçapão de sombras aterradoras.

Desse diálogo, o leitor pode ouvir apenas uma das duas vozes isoladas, ou perceber o concerto das duas: a crítica de Júlio Dinis tem oscilado,
ora vendo na obra somente os seus tons róseos ora exaltando-a pela sua voz subterrânea: "Para lá da gente boa, da doçura campestre, da
pureza provinciana, da candura e da bondade de tantas personagens, do epílogo feliz dos romances, do triunfo constante dos bons, é preciso
descobrir os monstros impiedosos que comandavam de forma maquiavélica essa felicidade adormecida".

Assim, a obra manifesta a sua máscara bifronte: uma reflete gloriosamente os valores dominantes do seu mundo, enquanto a outra mostra a
face dos seus aspectos violentos e cruéis. E é essa dupla dimensão que ainda confere à leitura de "As Pupilas do Senhor Reitor" um interesse
contemporâneo.

(Retirado do prefácio do livro "As pupilas do Senhor Reitor" da Ed. Ática: São Paulo, 1991)

Análise d’As pupilas do Senhor Reitor

A obra As Pupilas do Senhor Reitor faz parte do gênero narrativo, romance pertencente ao período romântico português.

Em As Pupilas do Senhor Reitor, podemos observar características evidentes do Romantismo, como a vitória do amor sobre as convenções
sociais, o predomínio dos sentimentos sobre a razão, a idealização da vida natural, a busca de uma linguagem simples e direta, a idealização da
mulher e a religiosidade.

Como um bom romance em um ambiente bucólico, desenvolve-se o namoro, cheio de pequenas crises e desencontros, até o final feliz, com o
casamento. O pano de fundo é a vida simples do campesinato.

Com a supervalorização do campo, em detrimento da cidade, o autor fez com que, no contato com a singeleza da vida bucólica, os caracteres
se amoldassem perfeitamente e as pessoas se tornassem mais puras.

A convivência do grupo social se dá entre pessoas que possuem uma abnegação congênita, capacitando-as a sacrifícios intensos por amor ou
amizade.

Como todas as histórias românticas, o homem é bom, principalmente se for destinado a ser personagem principal, como é o caso de Daniel. No
final, prevalecem as boas ações, um dos mandamentos do Romantismo.

O leitor torna-se capaz de visualizar quase que cinematograficamente a vida nas aldeias portuguesas do século XIX, ao mesmo tempo em que
lhe é permitido adentrar o interior de personagens de afeições simples, nutridas de um senso incomum de fidelidade, de amor ao próximo, de
sentimentos cristãos.

Podemos notar, com freqüência, esta idealização de mundo, a vivência em um mundo idealizado porque, mesmo quando a "câmera fotográfica"
de Júlio Dinis focaliza as "comadres" que se envolvem em mexericos, trata logo depois de nos mostrar que, por mais comentários que se façam
em torno de acontecimentos da vida alheia, todos estão dispostos sempre que necessário a defender uma cega fraternidade, originária de um
espírito religioso já tradicional do povo português.

Essa religiosidade está presente no respeito que a população mantém, não só em relação à crença propriamente dita, mas também em relação
ao representante da Igreja, o Senhor Reitor, figura incomum, quase endeusada.

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As Pupilas do Senhor Reitor contrasta com o pessimismo ultra-romântico, resultando de uma visão otimista da vida e do ser humano. Para Júlio
Dinis, a natureza humana é essencialmente boa.

As idéias egocentristas do Romantismo estão bem representadas no protagonista do romance, Daniel, com o se afã de satisfazer seus
interesses pessoais, sem se preocupar com a conseqüência de seus atos.

Na obra, as singelezas dos acontecimentos circunscrevem-se às ações mais importantes do volume, formam-se os pares, enlaçam-se os
namoros que, a bem da verdade, são a força motriz dos romances românticos.

Neste "romance de namoro", ao contrário dos volumes que embalavam a imaginação dos leitores até então, não há lugar para grandes dramas,
na há desfechos trágicos nem desesperanças. Neste romance, há a leveza de amores naturais, há pequenos empecilhos a serem transpostos,
há o encontro de casais apaixonados e, para coroar o amor, são realizados casamentos, tudo na mais perfeita ordem, na mais perfeita
harmonia, como ponto característico do romance romântico de Júlio Dinis.

O autor, em suas disgressões durante a narrativa, apresenta sua definição do amor:

"Eu disse este coração – quase me estou arrependendo de me ter servido da palavra. Entraria de fato, como elemento destas paixões efêmeras,
tão instantâneas como a combustão da pólvora, essa víscera simpática que, a despeito dos médicos e da medicina, eu julgo o sacrário augusto
dos sublimes e duradouros sentimentos que constituem o dote mais valioso do nosso patrimônio moral? Não sei; antes me quer parecer que
não."

Apesar de toda essa idealização, o autor revela algumas características pré-realistas: a lentidão da narrativa, a preocupação em descrever a
natureza e os comportamentos sociais, a objetividade ao fixar tipos sociais, a caracterização psicológica de personagens, e o fator moralizante
que procura divertir e ensinar ao mesmo tempo.

Por esses aspectos, Júlio Dinis apresenta em sua obra um momento de transição entre o Romantismo e o Realismo.

Ponto de vista

No caso da obra analisada, temos a presença de um narrador em primeira pessoa, do tipo pressuposto, onisciente-seletivo. Este, é dotado do
poder da onipresença: sabe o que se passa no céu e na terra, no presente e no passado, no íntimo de cada personagem.

"Vejamos em que se ocupava o nosso herói, enquanto, sem o suspeitar, estava sendo objeto do momentoso diálogo, do qual, no capítulo
antecedente, nos aventuramos a ser cronista".

Para isso tomemos a dianteira ao reitor e entremos, antes dele, no quarto de Daniel.

"Não sei se é a voz da consciência a que me está a bradar que vou cometer uma indiscrição."

Sua neutralidade é apenas aparente, porque ele emite, volta e meia, seus critérios de valor.

"Abençoada lhe chamei, pelo conforto que gerou: porque na horrível tortura de coração daquele desgraçado, foi um bálsamo consolador."

Ação

As Pupilas do Senhor Reitor não é uma narrativa introspectiva, pois os fatos externos determinam as ações internas, funcionando, portanto,
como novela. No romance as ações são consideradas pontos fundamentais para que a narrativa atinja o seu propósito.

Um dos protagonistas, Daniel, é induzido por uma força externa a viajar para outro lugar, no caso, a cidade do Porto, deixando seu prematuro
amor. Com esta ação de deslocamento, que é próprio do romance linear (começo, meio, fim), dá-se o passo inicial e fundamental para o
conflito da trama, pois é a partir da separação do jovem casal que a narrativa se constrói.

Outras ações externas também são importantes, como o retorno de Daniel para a aldeia, anos mais tarde; seu falso envolvimento com
Francisca; seu encontro com Clara, noiva se seu irmão Pedro; sua possível paixão por ela e, por final, seu reencontro com Margarida, principal
protagonista da estória.

Há também de muito importante a ação interna, que são as ações que passam em nível de consciência dos personagens, no caso, os
pensamentos, os sonhos e as atitudes de Margarida, porque é devido ao seu alto nível de consciência em torno das ações que o romance
torna-se mais representativo.

Pode-se dizer, também, que a intensidade das ações surge de modo regular, paulatinamente, no seu devido momento, sem que haja excesso de
absurdos quanto à rapidez das ações.

Tempo

Quanto ao tempo, a narrativa começa quando os personagens Daniel e Margarida estão com doze anos de idade e retorna com intensidade
quando eles já estão com 23 anos.

É, portanto, um romance cronológico, linear, pois há sucessão de dias, meses e anos.

Em alguns momentos a protagonista Margarida reporta-se ao passado através dos sonhos e lembranças. Isso constitui o chamado tempo
psicológico. Tal tempo é interior à personagem, pois os seus momentos de felicidade ou de dor estão presentes em sua memória.

Espaço

No que se refere ao espaço, pode-se dizer que há predominância do espaço dimensional, visto que a estória acontece numa pequena aldeia de
pessoas simples, onde um padre chamado Reitor é o grande líder espiritual.

Neste caso, a espacialidade dimensional é temporal, pois a narrativa é linear, própria do espaço humano ou natural, em oposição à espacialidade
vertical, que consiste no relacionamento com o espaço divino ou sobrenatural.

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A espacialidade temporal pode ser:

Tópica (espaço feliz), quando Margarida e Daniel encontram-se, ainda adolescentes, todos os fins de tarde na tocais das cabras;

Atópica (espaço hostil), que compreende a casa em que Margarida mora com sua madrasta e sua irmã caçula;

Utópica (lugar da imaginação e do desejo), que diz respeito aos devaneios de Margarida em relação ao seu possível encontro com Daniel.

Recursos narrativos

Os recursos narrativos utilizados na obra analisada são a narração, a descrição e os diálogos diretos.

Personagens

Em relação ao tópico personagens, também podemos apontar protagonistas, antagonistas e personagens secundárias, dentro da prosa de
ficção.

Em As Pupilas do Senhor Reitor, analisaremos as seguintes personagens:

Daniel

Protagonista do romance, Júlio Dinis serve-se de Daniel para demonstrar a influência do determinismo de Taine em sua obra, onde o meio
influencia a formação do caráter e o comportamento do indivíduo.

Personagem de natureza e dinâmica, Daniel era um rapaz puro, que foi modificado pelo ambiente urbano. Na personagem, notamos já uma forte
influência pré-realista, com sua visão carnal do amor, tendo-se relacionado com várias mulheres. Achava-se superior, pela cultura, arvorando-se
o direito de fazer o que quisesse e com quem quisesse.

"Não era Daniel homem para se coibir, por acanhamentos, em observação, que tanto o deleitava. Sem disfarces, nem precauções, analisava,
feição por feição, aquela fisionomia simpática, e como que lhe delineava com a vista o perfil, onde se continuavam graciosamente, por suaves
inflexões, as mais elegantes curvas."

O retorno ao campo, a grandiosidade de Margarida, com sua profunda religiosidade, fizeram com que o rapaz readquirisse os valores perdidos,
entregando-se, finalmente, a um puro amor romântico.

Obra sem personagens antagonistas, esse papel é representado pelo próprio Daniel, protagonista e antagonista ao mesmo tempo, na sua
dualidade amor espiritual X amor carnal, ciência X religião, campo X cidade.

Margarida

Em Margarida, co-protagonista do romance, personagem estática e plana, podemos encontrar as características de uma idealização da figura
feminina. Guida seria a mulher perfeita, totalmente ingênua e pura. Jovem boa e apaixonada, é capaz de sacrificar sua reputação pelas duas
pessoas a quem mais ama: sua irmã e Daniel.

Essa doçura de Margarida, aliada à sua profunda religiosidade, dão o toque de candura que a obra apresenta, além de transformar a vida de
todos que a cercam.

Clara

Personagem estática e plana, também apresenta tendências pré-realistas. Moça boa e de grande coração onde, no entanto, cabem muitas
pessoas. Quando percebe que Margarida gosta de Daniel e se dá conta da desgraça que poderia provocar com suas atitudes algo levianas, se
afasta do rapaz e descobre que é realmente apaixonada por Pedro.

Pedro

Personagem estática e plana, digno representante do "bom selvagem", é um homem rude, acostumado com o pesado trabalho do campo, um
caçador apaixonado. Muito semelhante ao pai, gostava das coisas simples e via o amor com a pureza e a seriedade de seu coração.

José das Dornas

Personagem plana e estática, lavrador simplório e preocupado com o futuro dos filhos. Profundamente religioso e com grande senso de humor.

Reitor

Personagem plana e estática, homem culto e inteligente, preocupado com o destino e a felicidade de suas pupilas. Baluarte da religiosidade na
aldeia, é muito querido e respeitado por todos.

João Semana

Personagem estática e plana, o octogenário João Semana, antigo médico da aldeia e proprietário rural, chegado à boa mesa e à glutonice,
ressentiu-se um pouco com a chegada de Daniel que, julgava, lhe faria concorrência.

No entanto, sua bondade extrema, evidenciada pelo fato de tirar do próprio bolso o recurso necessário para a aquisição de medicamentos para o
tratamento de seus pacientes e a confiança nele depositada pelos habitantes da aldeia, mantiveram seu prestígio e a preferência da população.

Análise Crítica

De acordo com a visão crítica determinista, podemos afirmar que Júlio Dinis, por pertencer à terceira geração romântica portuguesa, já
apresenta algumas características realistas em sua obra As Pupilas do Senhor Reitor, ao demonstrar a mudança de comportamento de Daniel ao

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As Pupilas do Senhor Reitor http://analgesi.co.cc/html/t12621.html

entrar em contato com o ambiente urbano, embora, como romântico, o autor "salva" a personagem, através do amor e do retorno ao
ambiente campesino, numa demonstração do amor pela natureza do Romantismo. Neste caso, também podemos sentir uma forte influência
das idéias do filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau, com sua teoria do "bom selvagem".

Estas características pré-realistas também se mostram presentes de acordo com a crítica estruturalista onde, fazendo-se um estudo lingüístico
da estruturação da obra, ao lado da utilização de uma linguagem simples e despojada do movimento romântico, temos a presença de
regionalismos e gírias, numa linguagem bem próxima da realista.

Em relação à crítica formalista, podemos notar a presença de temas românticos dominantes na obra, como a presença do amor, de um amor
idealizado e puro, que vence o tempo e as distâncias determinadas pelo espaço, e que determina todo o plano da fábula. Outro tema
predominante é a forte religiosidade, que determina as ações das personagens, purificando-as.

Podemos notar também uma influência biográfica na obra, com a presença de dois médicos na trama do romance, Daniel e João Semana, além
da utilização da linguagem poética em várias passagens da obra, poeta que também foi o autor.

"Trigueira! que tem? Mais feia

Com essa cor que te imaginas?

Feia! tu, que assim fascinas

Com um só olhar dos teus!

Que ciúmes tens da alvura

Desses semblantes de neve!

Ai, pobre cabeça leve!

Que te não te castigue Deus."

Talvez a mais importante obra de Júlio Dinis , inicialmente publicada em folhetim, como a maior parte dos romances do movimento romântico,
As Pupilas do Senhor Reitor, obra de transição entre o Romantismo e o Realismo, nos apresenta como que um hino ao amor espiritual e puro.

Esse amor romântico é aquele que vence todos os obstáculos, sempre levando a uma vitória final, onde as personagens, a ele totalmente
rendidas, se transformam e se sublimam, tornando-se heróis capazes de grandes feitos e formidáveis obras em prol de seus semelhantes.

As idéias românticas da obra sobre o amor e a religião, durante tanto tempo afastadas do contexto humano, começam a ressurgir nos tempos
atuais, quando a humanidade, cansada do desamor, das injustiças sociais e da sempre crescente violência do homem contra o homem, mais e
mais está se aproximando de Deus.

E o que é Deus? Deus é Amor.

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