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Como escrever um romance sem que na verdade se esteja escrevendo outra coisa1

Daniel Fernando Gruber2

1 Introdução

Escrever um romance certamente exige mais fôlego que escrever qualquer outra coisa.
Assim, posto esta primeira frase de efeito, não temos grande novidade. Mas é preciso ressaltar o
fato de que tal esforço no processo de criação romanesco não se relaciona particularmente à
extensão normalmente atribuída ao gênero, como poderíamos supor num primeiro momento, mas a
elementos que poderíamos dizer que são da ordem da estrutura. Basta lembrarmos, por exemplo,
que há novelas tão ou mais extensas que romances clássicos, nem por isso mais profundas ou
complexas. Podemos concordar, também, que um livro de contos, crônicas ou poemas pode ser tão
volumoso quanto um livro de narrativa longa e, mesmo sob todas essas condições, ainda o romance
é o que, em regra, exige mais fôlego do escritor. É sobre este aspecto que quero tratar, de forma
bastante livre, neste ensaio.
Certamente há, comparando um romance a um livro de contos, uma diferenciação entre
exigência de talento e exigência de trabalho. Sabemos – e muitas vezes esquecemos – que o conto
determina uma perícia que muitos romancistas não têm, a de trabalhar com uma narrativa que seja
funcional, impactante, surpreendente, econômica e atrativa, encaixando-se num pequeno espaço de
texto. Exige precisão e habilidade, às vezes muito mais que de um romancista, motivo pelo qual são
poucos os verdadeiros mestres na arte contística. No entanto, temos reparado que muitos escritores
contemporâneos têm preferido iniciar sua carreira no conto, não porque o gênero seja fácil, mas
porque é, na maioria das vezes, mais prático, mais rápido de se concluir ou de publicar avulsamente
em revistas, coletâneas e na internet. E também mais maleável, na sua definição conceitual. Muitos
livros de contos não exigem um projeto sólido, nem muito planejamento, e podem ser resultado de
1 Trabalho realizado para a disciplina Oficina de Criação Literária I: Narrativa, do Programa de Pós-Graduação em
Letras da PUCRS, ministrada por Luiz Antonio de Assis Brasil entre março e junho de 2016.
2 Doutorando em Escrita Criativa pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS, mestre em Processos e
Manifestações Culturais pela Universidade Feevale (Novo Hamburgo/RS) e graduado em Comunicação Social pela
mesma universidade. Bolsista CNPq. E-mail: daniel.gruber@acad.pucrs.br.

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uma recolha de escritos diversos – fragmentos, relatos, memórias, cenas e sacadas individuais – que
seu autor resolveu juntar sob o bojo de um título e chamou de “livro de contos”.
No romance, o resultado final publicável é normalmente mais difícil de obter. Mesmo uma
reunião de estilhaços textuais – por exemplo, as anotações de um diário – ordenará um trabalho
cuidadoso de adaptação e costura, até sua transformação em unidade de significação. Custa tempo,
atenção e empenho. Afinal, por mais fragmentada que se pretenda esta literatura, protegida pela
indefinição da estética pós-moderna, precisa ter coerência e corpo, ao menos em parte, a fim de
atrair leitores.
Para fins didáticos, poderá ser útil elencarmos alguns motivos pelos quais o romance se
torna mais trabalhoso em sua construção que os demais gêneros. O primeiro deles é que o romance
congrega, em geral, um número maior de personagens, episódios, ações, detalhes e cenários.
Observemos que isso nada tem a ver com o espaço de tempo da narrativa. Há certamente grandes
histórias – a exemplo das sagas familiares – que se passam em longos períodos. Mas há também
romances extensos, profundos e intrincados que se passam no lapso de um único dia – como
Ulysses, de Joyce, e Sábado, de Ian McEwan. Daí por que o universo ficcional (ou “universo
diegético”, nas palavras de Barthes3) é maior e mais delineado que aquele nascido a partir de uma
ou várias pequenas narrativas.
O segundo motivo é que o romance, o conto e a poesia trabalham com matérias-primas
distintas. O objeto da poesia é, sem dúvida, a palavra. Em um poema, quase nunca importam os
referentes do real ou o grau de representação realista, mas sim o poder imagético, rítmico, sonoro.
Isto é, a poesia tem um valor mais estético que qualquer outra coisa – a palavra basta por si. No
conto, por outro lado, pouco importa a estética verbal: seu material bruto é a trama e o significado, a
maneira como a sequência dos fatos narrados leva a uma conclusão intensa. Isso deriva do fato de
que o conto surgiu na oralidade e com fins morais. O romance, advindo da épica, mas transformado
sobretudo pela sátira e outros gêneros discursivos da Antiguidade Clássica, é uma narrativa de
grandes finalidades e dimensões, sobretudo de múltiplos discursos, em que importa tudo isso, a
estética e a trama, mas especialmente a narrativa como um todo, a narrativa aqui entendida como
ficção, um vasto universo criado pelo poder de representação do autor e sua capacidade de fingi-lo

3 Barthes, 2008.

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até o limite de torná-lo verdadeiro.
Nesta matéria de carpintaria – a narrativa – cabem muitos elementos: lugares, pessoas,
épocas, costumes, acontecimentos, fatos históricos. Mas todos eles estão subordinados ao único
aspecto que a narrativa traduz, que é a humanidade. Acompanhamos as narrativas porque elas nos
aproximam do elemento humano, de quem somos, em relação a quem devemos ou poderíamos ser.
Essa carga emocional é catalisada pela personagem. Grandes narrativas são consequência de
grandes personagens. E assim chegamos a uma ideia mais ou menos concreta do que é a matéria-
prima do romance, em relação aos demais gêneros: o romance é personagem.
Proponho, neste ensaio, refletir sobre o processo criativo do romance, destacando-o dos
demais gêneros literários em suas particularidades, e utilizando como ilustração a análise do
processo criativo na elaboração do meu primeiro romance, intitulado provisoriamente Paraíso
original (e ainda inédito). A partir de minha experiência como escritor, mas sobretudo como
observador, espero trazer algumas contribuições ao estudo e reflexão do processo de idealização,
construção e escritura desse gênero.

2 A gênese do romance

A maneira mais eficaz de alcançar um número maior de possíveis leitores é escrevendo uma
boa obra. Podemos aqui tentar observar alguns critérios para definir o que é um bom romance: 1) ter
uma personagem inesquecível, que nos cative e faça com que queiramos saber tudo sobre ela; 2) ser
tão bem escrito que cada parágrafo exploda fogos de artifício no nosso cérebro; 3) criar um
problema tão mirabolante que somos instigados a buscar sua resolução até as últimas páginas; 4)
apresentar um conflito de natureza humana tão reconhecível que faz com que a história se
correlacione emocionalmente à nossa vida.
Não escolhemos o momento de começar a escrever ou planejar um romance. Esse ímpeto
surgirá, é claro, de uma ideia primitiva, de um conceito ou imagem que nos possui e que só será
exorcizado no ato da escrita, momento em que os demônios – leia-se: angústias, tormentos, mitos
pessoais do escritor – devem ser postos para fora. A ideia de um novo romance pode surgir de
qualquer lugar: de uma cena que presenciamos na rua, de um filme, uma frase, um tipo de pessoa

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que conhecemos nas encruzilhadas da vida, numa tese, numa informação curiosa, numa proposta
estética. Apesar disso, a ideia diz muito pouco sobre a obra, sobre o resultado final. A execução
impecável de uma boa ideia é que torna o autor um artista. Ao iniciarmos o planejamento de uma
nova história, devemos pensar que ponto do leitor queremos atingir, ou melhor, que tipo de leitor
queremos que seja captado pelas qualidades que a narrativa supostamente terá.
Assim, após trabalhar e retrabalhar a ideia por trás de Paraíso original, meu primeiro
romance, cheguei à seguinte sinopse:

Ainda adolescente, em meados dos anos 90, Luísa se envolve em relação incestuosa com
meio-irmão, consequência da relação conturbada com os pais. Sua jornada à autodestruição
arrastará pessoas que ama e a levará a ser hostilizada pela comunidade do bairro
conservador onde vive, até o ponto em que, depois de uma fuga, compreende que a
liberdade exige concessões.

Em termos de enredo, o romance se desenvolve da seguinte maneira: Luísa é relacionada


simbolicamente ao complexo de Electra, atitude emocional contrária à de Édipo, em que a menina
rivaliza com a mãe e sente o desejo de possuir o pai. Quando em grau de disfunção, pode levar a
problemas de convivência (agressividade em relação à mãe, disputa pela atenção do pai) e de
relacionamentos (busca da figura paterna nos casos amorosos, atração por homens mais velhos). No
caso de Paraíso original, essa relação é retratada no desejo de Luísa de que seus progenitores se
divorciem, a fim de se afastar da mãe e aproximar-se do pai. Sua maturidade precoce em relação à
própria sexualidade faz com que utilize a sedução como instrumento para instituir conflitos ao seu
redor.
Abel, o meio-irmão – garoto mais velho, fruto do primeiro casamento do pai; vive na
Europa, Luísa só o viu uma vez na vida – torna-se objeto de seus embates familiares. Mas é um
jovem violento e, após ser atiçado, termina por abusar da irmã. A revelação do ocorrido torna-se
polêmica no bairro. Os pais de Luísa resolvem a situação enviando-a para um internato, onde ela
dará continuação à sua trajetória impetuosa e tentará seduzir um professor. Mesmo sem chegarem à
relação carnal, o professor é demitido e, ao deixar o colégio, envolve-se em um acidente de carro
com o pai de Luísa, que está vindo em seu encontro. A adolescente se vê obrigada a viver com a
mãe enquanto aguarda o pai acordar do coma e, ao completar dezoito anos, foge com um namorado
músico para São Paulo, onde levará uma vida de excessos – bebidas, festas, drogas, sexo – até seu

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iminente retorno.
Isso é o que acontece no plano dos episódios. Trata-se de um romance de tensões sexuais na
adolescência, de obsessões paternas e de sentimentos deslocados com o entorno social. O grande
evento sob o qual a trama gira é a relação incestuosa que escandaliza a comunidade moralista onde
se insere, resulta numa tentativa de afastamento do problema, depois num acidente trágico e, por
fim, numa fuga irresponsável. A consequência dos acontecimentos desenlaça-se a partir do tema
central, a mulher como tabu sexual e vítima do abuso masculino. Temos aí uma gênese, uma ideia
por onde caminharmos. É dela que partiremos para, no final, chegarmos inescapavelmente a ela
outra vez.
O que descrevi nos parágrafos acima não está especificado na sinopse. Uma sinopse –
quanto menor puder ser – não é um resumo, mas uma definição abrangente de todo o romance. Na
sinopse deve estar contido e relacionado o tema central, o protagonista, sua motivação e conflito, e
uma abordagem ampla e mínima do enredo, por meio do episódio principal e de suas
consequências. Não é fácil chegar a uma sinopse ideal, sintetizar um universo vasto em uma ou
duas frases. Mas é pela sinopse que fincamos no solo a estaca do nosso romance, que damos a ele
uma coluna vertebral e descobrimos sobre o que ele trata, que mensagem quer transmitir, levando
em consideração que quase nunca o autor sabe, no princípio, a que sua ideia se propõe. Nada mais
natural, as ideias são grandes forças concentradas num átomo, surgem de dentro, de onde não
podemos perscrutar com a mente, e explodem num momento de grande entusiasmo. Essa será toda
a inspiração de que o romancista precisa. Depois do jorro primordial, sentimentos devem ser postos
de lado e o autor deve olhar para aquilo que concebeu de fora, com frieza e cautela.
Há uma fórmula para saber se a sinopse funciona, isto é, se a história é boa. É preciso se
perguntar o que acontece caso o episódio principal não ocorra. O conflito se manteria? Ele mantém
sua força? A personagem ainda se justifica? Depois, é preciso se perguntar se, pela sinopse,
podemos compreender a transformação do protagonista. Há um estado inicial e final naquilo que
está posto? Lembremos que as narrativas são histórias de transformações. Um romance só se
justifica se o leitor acompanhar uma curva dramática em franco desenvolvimento.
Pela sinopse acima, sabemos que a personagem principal se chama Luísa e é adolescente.
Que a história se passa em meados dos anos 90, em um bairro de comunidade conservadora.

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Sabemos que Luísa tem uma relação conturbada com a família. A questão que proponho ao leitor
neste rápido resumo é se o fato de ser adolescente e brigar com os pais em um meio conservador
pode levar uma menina a um caminho de autodestruição. O episódio central – a relação incestuosa –
é apenas o transbordamento da pressão entre forças adversas. A fuga da protagonista é a
consequência desse embate e sua transformação é o amadurecimento, representado em sua volta
para casa, depois de compreender que liberdade não é fazer o que se quer, mas a capacidade de se
fazer escolhas que definam nossa vida.
Tentei, nesta pequena descrição, dar a dimensão total da história, mostrar que o conflito de
Luísa está dentro dela, não em seus atos inconsequentes. Aplicando o teste reverso, responderia que,
se o incesto não ocorresse, ocorreria outro choque de igual proporção, outro ato imprudente que
tivesse para ela o sentido de se libertar, forçar limites, exceder e atrair a atenção de todos. É nesse
pilar que Luísa existe e, consequentemente, todo o romance. Está ali sua transformação: da ideia
incompreendida (e incompreensível) de livre-arbítrio – motivo pelo qual a história também se
aproxima dos temas bíblicos do Paraíso e do pecado original – à sensatez equilibrada que a
maturidade nos traz após um caminho de erros. Esta é a ideia que atravessa Paraíso original.

3 Personagem, conflito, motivação

Em um ensaio sobre a personagem de ficção, o teatrólogo Anatol Rosenfeld (1998) investiga


as razões “poetológicas” de um texto literário de narrativa e lembra que a descrição de paisagens ou
objetos pode resultar em boa “prosa de arte”, mas que só se torna narrativa quando é “animada”,
isto é, se humaniza ou ganha função em relação ao elemento humano do texto. Não há história, em
última análise, sem a presença de um sujeito humano ou antropomorfo, que centralize os
acontecimentos. Não existe narrativa sem personagem, e esta é, em suma, seu elemento principal.
A personagem é o sujeito dentro da história. Pode ser a representação de uma pessoa real ou
histórica, ou puramente inventada. A humanização de que Rosenfeld fala é vital para o
entendimento deste conceito, pois sempre que a personagem é algo que não uma pessoa – por
exemplo, um animal antropomorfo numa fábula, um objeto animado num conto de fadas – ela
assume características humanas e é agente da ação. “O homem, afinal, só se interessa pelo homem e

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só com ele pode se identificar realmente”, diz o autor. Todas as narrativas dependem da personagem
para se constituírem como tal.

A narração – mesmo a não-fictícia –, para não se tornar mera descrição ou em relato, exige,
portanto, que não haja ausências demasiado prolongadas do elemento humano (este,
naturalmente, pode ser substituído por outros seres, quando antropomorfizados) porque o
homem é o único ente que não se situa somente “no” tempo, mas que “é” essencialmente
tempo (ROSENFELD, 1998, p.28).

A concepção de Rosenfeld converge para a de Barthes, quando afirma que, para o autor de
um texto, as pessoas históricas, ao se tornarem ponto zero de orientação do leitor, ou ao serem
focalizadas pelo narrador, também passam a ser personagens. Elas deixam de ser meras figuras e
nomes e se transformam em seres que possuem um “eu” próprio, mesmo que esse “eu” esteja
transfigurado na voz autoral. É por meio da personagem que se edifica a narrativa, pois é através
dela que “a camada imaginária se adensa e se cristaliza” (ROSENFELD, 1998), tornando-se uma
história.
A “personagem”, segundo o verbete do Dicionário de narratologia (REIS; LOPES, 2002), é
um signo narrativo com funcionalidades e peso específico na estrutura do relato. Ela pode ser o
protagonista ou herói de uma história, o antagonista, um sujeito secundário ou ainda um mero
figurante, evidenciando, na complexidade ficcional, sua forma de intervenção no enunciado. As
personagens podem ser planas ou redondas; personagens planas são construídas em torno de uma
única ideia ou qualidade e, quando nelas existe mais de um fator, atinge-se o início da curva que
leva à personagem redonda.
A personagem plana é estática, uma vez que reincide no texto quantas vezes forem
necessárias, por meio das mesmas características, dos mesmos gestos e comportamentos, com
poucas variações, de modo a serem entendidas como marcas de manifestação. A personagem plana
é facilmente reconhecida e lembrada, e é identificada com um tipo ou grupo que representa. Grande
parte das personagens secundárias é plana, mas nem todas as personagens planas são secundárias.
Elas podem ter um papel importante na história e até servirem de protagonistas (como Bartleby, o
escrivão, de Melville). A personagem plana é identificada por jamais realizar uma curva dramática:
da forma como age no início, continua a agir até o fim.
Diferentemente da personagem plana, a personagem redonda “reveste-se da complexidade

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suficiente para constituir uma personalidade bem vincada” (REIS; LOPES, 2002). É normalmente
uma figura de destaque no universo diegético. A condição de imprevisibilidade própria dessa
personagem, a revelação gradual de seus dramas pessoais, traumas, vacilações e obsessões,
constituem os fatores determinantes de sua configuração. Conflitos e mudanças vividas pela
personagem redonda são presenciados muitas vezes no tempo psicológico, geralmente conduzido
através do monólogo interior ou discurso indireto.
O personagem também é aquele que carrega o conflito da história. O estudo do conceito de
conflito em literatura muitas vezes tende a interpretá-lo como elemento do enredo, mas uma história
cujo conflito central seja externo, isto é, relacionado a um problema ou situação central da trama, e
pertinente aos episódios propriamente ditos, está fadada a ser apenas um sucesso de vendas. Nada
contra. Deve haver boa literatura de entretenimento que alcance o leitor desinteressado, o que lê por
prazer e não se importa de virar a última página e enviar a leitura para o compartimento da memória
das histórias esquecidas. Uma narrativa focada nos acontecimentos episódicos, na trama em si, pode
ser uma ótima narrativa de recreação, mas tende a se tornar descartável. Por isso é comumente
classificada como literatura de massa, e não alcança a permanência dos clássicos, nem o prestígio
dos livros que ninguém lê.
Na maioria dos casos das narrativas de entretenimento, especialmente daquelas
acompanhadas de “final surpreendente” e “reviravoltas mirabolantes” e “cenas de impacto”, o astro
acaba sendo a própria trama e a personagem tem a profundidade de um pires. Muito já se leu de
(maus) thrillers e novelas policiais (ruins), onde o que está em jogo é apenas solucionar um
mistério. Por fim, resolvida a premissa, a literatura acaba. É uma falha que ocorre às vezes em
literaturas de gênero, onde o gênero acaba importando mais que o fator humano universal da
história. Podemos nos lembrar de uma porção de livros e filmes assustadores, mas lembramos
apenas das cenas, da sequência de acontecimentos, não das personagens. Ao contrário, em títulos
que ficaram célebres, para ficarmos no exemplo do terror, em geral não lembramos muito dos
acontecimentos, mas de como se sentiam o monstro de Frankenstein, o conde Drácula, o doutor
Jekyll/Hyde.
O conflito é o entreposto entre personagem e enredo. É o ponto de intersecção entre os dois.
Uma boa história existe para justificar uma personagem e vice-versa, em que só aquela personagem

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poderia viver aquela história. Poderíamos colocar Hercule Poirot para resolver O código Da Vinci,
mas não Elizabeth Bennet para se casar com Charles Bovary. O conflito é a oposição de forças que
reside no interior da personagem e que nunca se resolve, porque é de natureza humana e não
discursiva. É o aspecto circunstancial do romance que transcende a linguagem, a estética, a
informação. Lemos romances porque representam o mundo, porque são bem escritos, porque nos
trazem conhecimento, porque nos distraem da crueza da realidade, sim, tudo isso. Mas o motivo
principal por que lemos romances é pelo religare ao caráter humano (daí a dimensão quase religiosa
da literatura), para nos reconhecer em nossa humanidade.
Estabelecer o conflito e manter o controle sobre ele numa narrativa é o maior desafio na
construção e escritura do romance. O conflito jamais pode ser dado gratuitamente. Não podemos
começar uma história dizendo “era uma vez uma menina chamada Chapeuzinho Vermelho que se
sentia culpada por não obedecer sua mãe e sempre pegar atalhos duvidosos na vida”, porque isso
terminaria a história antes de começá-la. O conflito é, ao mesmo tempo, a força motriz da narrativa,
tanto quanto é seu produto final. Identificar, compreender e incorporar o conflito humano posto no
romance é o que deve decorrer da leitura, ao mesmo tempo em que ele deve estar situado já nas
primeiras linhas.
Voltando a Paraíso original, lembremos que se trata da história de Luísa, uma adolescente
em conflito com os pais. O jogo de forças aqui não é externo, entre Luísa e sua família, mas entre
Luísa e ela mesma, em relação aos pais. O romance não pretende resolver um problema de conselho
tutelar, mas esmiuçar a incerteza sobre a vida que, na adolescência, nos leva a brigar com o mundo
(quando não até o fim de nossas vidas). O conflito está na concepção que Luísa tem de liberdade,
especialmente da liberdade sexual. As perguntas que Luísa precisa responder no curso da narrativa
são: por que não sou como minha mãe? Será que a odeio? Por que não tenho meu pai só para mim?
Eu poderia fazer tudo que quisesse se fossemos só nós dois?
Retomando a referência sacrum do romance, os dilemas da adolescente em relação aos
progenitores pode ser a de Eva diante de Deus, ou de nós diante da Criação (entendido aqui no
sentido metafísico, não religioso). Por que não sou como Deus? Será que O odeio? Por que não O
tenho só para mim? Posso fazer o que quiser com o dom do livre-arbítrio?
O conflito está dentro da personagem. O conflito é a personagem, e a personagem é o

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conflito, e ambos são a história. Todos os demais personagens do universo ficcional devem estar a
favor do conflito do protagonista, isto é, devem agir para agravá-lo ou sofrerem suas consequências.
Trabalhar com muitos personagens pode ser perigoso para o escritor iniciante, que não tem domínio
sobre a meta e o dilema próprio de cada um, suas particularidades, fraquezas e necessidades. Todos
os personagens do romance precisam agir de forma autônoma, movimentando-se de forma natural
pelo cenário. E um bom personagem é aquele que tem um motivo forte, verdadeiro e compreensível
para agir, um dilema profundo a ser resolvido. A motivação é aquilo que leva a personagem adiante,
e também o leitor.

4 Questões de estrutura

Pense numa casa. Há casas de todos os tipos, formatos e estilos que você possa imaginar.
Uma casa nunca é igual a outra, nem por dentro nem por fora. Você reconheceria sem pestanejar a
casa de sua infância, mesmo se a visse em ruínas. Você pode achar melhor morar nesta ou naquela,
e mesmo que achasse uma casa pouco aconchegante, você saberia avaliar se ela é sólida ou se está
caindo aos pedaços. No entanto, mesmo havendo tantas casas distintas, todas singulares, elas são
feitas da mesma estrutura: algumas colunas bem fincadas, quatro paredes externas, outras do lado
de dentro, para dividir os cômodos, um forro e um telhado. Em seu esquema básico, uma casa é
uma casa.
A estrutura das narrativas já foi racionalizada desde o tempo de Aristóteles, em sua Poética.
Você sabe que uma história tem um início, uma situação de problema, um desenvolvimento, a
resolução final ou parcial desse problema, muitas vezes resultando numa catarse, e então um
fechamento. Esta estrutura não mudou da Antiguidade para cá, da mesma forma como não mudou a
estrutura das casas. Entretanto, escritores e cineastas vêm tentando incessantemente subverter a
ordem em que essas etapas ocorrem na sequência da narração. As histórias, em seu âmago, ainda se
parecem, por isso as reconhecemos como tais, embora contadas de outras formas. Há histórias que
começam pelo fim, outras pelo meio. Outras são contadas de trás para frente, e algumas vão e
voltam no tempo. Desde o tempo da épica, o modelo de narrativa in media res é utilizado em ampla
escala. O tipo mais contemporâneo de história é o fragmentado, em que cenas, situações e

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informações são embaralhadas diante do leitor, e ele precisa reconstruir a ordem, como num quebra-
cabeças.
Um romance é feito de episódios, representados por cenas. Esses episódios, chamados
peripécias, devem apresentar obstáculos à realização do desejo do protagonista, de maneira que o
conflito se sobressaia. Os obstáculos podem deixar a vida do personagem mais difícil, mais trágica
e mais cruel, mas também podem torná-la interessante, resultando em pequenas conquistas e
vitórias temporárias. O jogo entre perdas e ganhos na trajetória de um romance pode até se
equilibrar, mas nunca deve se tornar estável, e muito menos estática. Essa alternância entre altos e
baixos vai aprofundando a situação central em que a personagem está envolvida, de uma forma que
não exista retorno. Sua única opção é seguir em frente, até o final, enfrentar as forças opositoras e
se transformar, para o bem ou para o mal. Narrativas são histórias de transformação, em direção à
decadência total ou ao alcance glorioso do seu desejo, mas é inevitável que a personagem seja outra
completamente diversa daquela que foi na primeira página.
Temos aí a clássica diferenciação entre enredo e trama. Enredo é a história, a fabula, a
ordem dos acontecimentos em sua sequência cronológica. Já a trama remete à composição final do
romance, isto é, como o enredo é apresentado textual e discursivamente. O enredo é sempre lógico e
diz respeito ao plano da narrativa e do material humano; a trama pode ser fragmentada e obtusa, e
diz respeito ao plano da narração, do enunciado.

5 Como contar essa história

Para Gerard Genette, a distinção entre narração e descrição pode variar no interior de um
gênero discursivo de predominância narrativa. Numa narração, também temos descrição. O modo
narrativo assume formas distintas para representar objetos reais ou imaginários, e essas formas
podem coexistir em menor ou maior grau. Neste âmbito, devemos tomar consciência de que é
perfeitamente possível conceber um texto puramente descritivo, representando objetos em sua
simples existência espacial, desprovidos de contexto factual ou temporal, porque a descrição pura,
por si, não prevê a percepção do tempo. Sempre que há a passagem do tempo, entretanto, há ação.
Neste caso, há também a narração. Por outro lado, é quase impossível conceber uma narração pura,

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sem que haja a menor descrição dos objetos envolvidos. Mesmo em uma sentença narrativa simples,
a escolha de um ou outro substantivo, ou de um ou outro verbo, é capaz de mudar
consideravelmente o significado da ação, razão pela qual Genette (2008) lembra que “nenhum
verbo é isento de ressonância descritiva” (p.273).
Está claro para ele que os objetos podem existir sem movimento, mas não movimento sem
objetos, o que indica que é mais fácil descrever sem narrar do que narrar sem descrever. Daí a
importância da descrição no texto narrativo. Contudo, devemos prestar atenção à nossa tentação
como escritores de escrever ficção sem narrar. Independentemente do tamanho que ocupe dentro do
discurso, a descrição deve estar sempre em posição de dependência. Em outras palavras, significa
que, em um gênero como o romance, a extensão de trechos descritivos não deve se sobrepor aos de
caráter narrativo, à ação propriamente dita, e, quando presentes, devem apenas servir para situar o
leitor diante da narrativa como um todo.
A descrição tem diversas funções dentro da narrativa. Uma delas é a de retardar o
andamento da história. Funciona como uma pausa na ação, e a exposição de lugares, objetos, climas
e sensações preparam o leitor para os fatos que virão, dão a atmosfera necessária ao cenário da
narrativa. Outra função é de ordem simbólica: a definição de roupas, acessórios, pensamentos,
diálogos e traços físicos serve para caracterizar personagens ou figurar ações, dar-lhes significado e
imagem dentro do universo do texto. Narrativas extremamente interiorizadas podem dar a entender
que há pouca ação, mas, mesmo nesse gênero, a função da descrição é delinear as personagens e
justificar seus atos.
Em um de seus Ensaios sobre literatura, Georg Lukács (1965) também tentou distinguir a
diferença entre narrar e descrever, mas sua preocupação era principalmente esclarecer as distinções
estilísticas que se estabeleceram no romance do século XIX. Lukács considerava que romances
anteriores ao século XVIII se preocupavam, basicamente, com a narração, oriunda de uma tradição
épica, enquanto o romance realista insurgente se constituía a partir da descrição minuciosa de
lugares, objetos, costumes, pensamentos e fatos, para assim atender à sua especificidade dramática.
As teses a respeito da contribuição da descrição e da narração aos efeitos estilísticos da
narrativa promoveram discussões posteriores que, por sua vez, eliminaram a ideia de narratividade.
De acordo com Lukács, a descrição é uma digressão dentro do conjunto da narrativa e seu objeto

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não está relacionado aos fatos da história. A narração estaria ligada à dinâmica das cenas que
alternam e movimentam o conjunto do enredo, distinguindo o que é essencial para a história e o que
é acidental. Na descrição, os acontecimentos, personagens e relações são interpretados do ponto de
vista de um espectador; já na narração, eles são expostos do ponto de vista de um participante.
Enquanto o espectador contempla o fato ou a ação com distanciamento, como mero observador, o
participante vivencia a cena e, geralmente, é agente ativo nos fatos, por meio de sua imaginação, e
criador de sentidos. Embora o participante ativo de um fato seja a personagem, e não o leitor, este
assume temporariamente o papel daquele. Daí a relação passional que se estabelece entre a narrativa
e seu interlocutor.
A descrição coloca o leitor na posição de observador racional e sem envolvimento, enquanto
a narração lhe permite situar-se no papel da personagem e em meio ao acontecimento, envolvendo-o
por meio de efeitos de presentificação. A narração levaria os episódios do enredo ao interior das
personagens, enquanto a descrição, embora tenha seu valor decorativo, não se funda organicamente
aos pensamentos e atos. A narração “não descreve uma ‘coisa’, mas narra acontecimentos humanos”
(LUKÁCS, 1965, p.62), enquanto a descrição se limita a transformar os homens em “seres
estáticos, elementos de naturezas mortas”. A narração distingue e ordena, enquanto a descrição
nivela todas as coisas. A narração busca a representação das relações sociais e humanas, enquanto a
descrição transforma o objeto numa reprodução imagética.
Outro aspecto para o entendimento da narratividade está relacionado à diferenciação entre
cena e sumário4. Esses termos têm sua origem nas formas de representação mimética que Aristóteles
distinguia: a direta ou dramática, em que os acontecimentos são encenados e se desenrolam diante
do espectador sem a presença nítida de um narrador (ainda que exista uma instância discursiva que
organize as ações), e a narrativa ou épica, realizada por um narrador 5. Podemos identificar aí duas
formas de narrar: uma “cênica”, e outra “expositiva” ou “descritiva”, para se obter a gama de
processos narrativos de que dispõe o romancista (BOURNEUF; OUELLET, 1976, p.72-73). Em
geral, elas se misturam mais do que se opõem.
A cena confere ao narrado um caráter decisivo, que corresponde a um momento acentuado
4Alguns autores utilizam o termo “resumo” ao invés de “sumário”.
5 Posteriormente, essa distinção foi aprofundada e aplicada à análise da literatura por numerosos críticos, como Henry
James e Percy Lubbock.

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da curva dramática. A arte do narrador consiste em situar as cenas no lugar certo da narrativa, ou
seja, nas ações centrais do conflito, nos momentos de risco. Uma cena está submetida aos princípios
de unidade da história – lugar, tempo, ação e ponto de vista –, sendo apresentada pela recorrência à
mimesis, personagens em ação.
Tendo como matéria bruta uma porção de informações, oriundas de fontes diversas, o
escritor – que também é um pesquisador, dado que um romance é geralmente prolífero em
referências – necessita ordenar os fatos em cenas e sumários. As cenas invocam o princípio
essencial da narrativa, assumindo o ponto de vista da personagem e representando diante do
interlocutor a maneira como ela enxerga o acontecimento. Os sumários, por sua vez, servem como
peças de ligação entre as cenas principais, ocupando-se de descrições, argumentos e informações
que orientem o leitor pelas veredas da narrativa, e apresentem, de forma sucinta, aquilo que é
necessário ao entendimento das cenas e da história como um todo, geralmente comprimindo
acontecimentos mais longos e demorados ou menos importantes e resumindo longas passagens de
tempo. Tendo o conhecimento sobre os fatos da história, o narrador seleciona aqueles que devem ser
enfatizados e, se for preciso buscar uma informação no passado, o narrador não hesitará em voltar
no tempo para contar o que já se passou. Esses e outros recursos fazem parte da função de síntese da
narração, da atividade principal do escritor, que é escrever.

Referências

BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. In: BARTHES, Roland et al.
(Orgs.). Análise estrutural da narrativa. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 19-62.
BOURNEUF, Roland; OUELLET, Réal. O universo do romance. Trad. José Carlos Seabra Pereira.
Coimbra: Almedina, 1976.
GENETTE, Gérard. Fronteiras da narrativa. In: BARTHES, Roland et al. (Orgs.). Análise
estrutural da narrativa. Petrópolis: Vozes, 2008.
LUKÁCS, Georg. Narrar ou descrever: In: _____. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1965. p.43-94.
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. Coimbra: Almedina, 2002.

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ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. In: CANDIDO, Antonio et al. A personagem de
ficção. São Paulo: Perspectiva, 1998.

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