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“O amor desromantizado em Lygia Fagundes Telles”, de Marcos

Antonio Martiliano Silva


(E.E. Olga Cury; D.E. Santos; Santos)

O amor desromantizado em Lygia Fagundes Telles

Uma legítima função da arte é atuar no processo de humanização do indivíduo.

No caso específico da arte literária, é o mestre Antônio Candido (1982: p. 249) quem
postula: “a literatura desenvolve em nós a quota de humanidade por nos tornar mais
compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.”

Com efeito, ao colocar o leitor diante de situações da vida, amalgamadas na


exemplaridade da estrutura literária, a literatura leva-o a mirar-se no espelho do seu
próprio eu – ou dos seus próprios eus -, possibilitando desse modo uma peculiar
sensibilidade à percepção de sua humanidade, ou seja, do conjunto de traços que o
distinguem dos seres ditos irracionais.

É sob o ponto de vista do potencial humanizador da literatura que empreenderemos,


neste ensaio, um breve estudo de alguns contos de Lygia Fagundes Telles, reunidos na
coletânea Oito contos de amor e cujo ponto comum reside no fato de elegerem como
eixo temático o sentimento amoroso.

À primeira vista, pode soar algo estranho escolher o amor – tema via-de-regra associado
à irracionalidade do só-sentimento -, para a sondagem do potencial humanizador da
produção de um escritor, dado que seria o exercício da razão, antes de tudo, o traço
diferencial do ente humano.

Por outro lado, reduzir a humanidade dos seres aos objetivismos por vezes associados à
razão, poderia sugerir uma mecanização tal que não muito longe os colocaria de outros
seres não-humanos – as máquinas, por exemplo.

Nessa situação, superados os exageros do sentimentalismo romântico e, igualmente, os


excessos objetivistas do realismo de gênese positivista, o desafio que se coloca ao
escritor da modernidade é extremamente complexo: o alcance, na fatura literária, do
ponto de equilíbrio entre a razão e a emoção no trato do universo humano que lhe serve
de ponto-de-partida.

E Telles aceita o desafio. Desafio que a estimulará no decorrer de toda a sua já vasta
obra, exemplarmente nos momentos em que elege o tema amoroso como eixo temático.

Sem receio de ter colado a si o estigma do sentimentalismo subjetivista, que os mais


desavisados ainda teimam em associar à produção de autoria feminina, Telles enfrenta a
complexidade do tema amoroso e nos mostra, pela via exemplar do discurso literário,
que ainda temos muito a nos humanizar a partir dele.

Emancipação: outra palavra estranha, aos nossos ouvidos romanescos, quando associada
ao amor. Afinal, ensinou-nos boa parte dos românticos de escola – ou foi isso que, por
vezes, deduzimos de nossas sempre anacrônicas leituras deles – que amar, implicando
num gesto de “entrega total” ao outro, pressuporia uma razoável dose de auto-anulação
– em face do outro -, quando não de alienação – em face do próprio sentimento.

Neste ponto, registre-se uma advertência: as observações sobre o romantismo de escola,


que hoje denominamos folhetinesco, não pretendem aqui desqualificá-lo, mas apenas
indicar que, passados os entusiasmos iniciais com a proposição de um novo modo de
relacionamento – no que aliás esse Romantismo cumpriu um papel revolucionário e
fundamental no afinamento das relações afetivas -, não faz mais sentido o radicalismo a
ele subjacente e cujo resultado é, conforme ressaltamos, uma razoável dose de alienação
do indivíduo.

De qualquer modo, é preciso ressalvar o tom esquemático dessas observações, cuja


inevitável conseqüência é o não dar conta das tantas nuanças entre os autores desse
momento de extrema riqueza e complexidade de nossa produção literária.

Consideradas tais ressalvas, pensamos que o tratamento dado por Telles ao tema
amoroso faz-se revolucionário na medida em que, na auto-projeção concomitante à
leitura, saímos de seus textos não pretendendo uma compreensão ou pseudo-
compreensão do outro, ou mesmo do próprio sentimento, ambos alçados para além de
nós próprios – alienados, em síntese. Ao contrário, é a sondagem do outro, e do nosso
sentimento por ele, que termina por nos dizer muito de nós próprios, ainda que a melhor
compreensão de outro e sentimento seja também contemplada, dada a polivalência do
foco de nossa autora.

Retomando a noção do sentimento amoroso como elemento emancipador de um ente


tanto mais humano quanto mais equilibrado entre os pólos da razão e da emoção,
podemos dizer que em Telles o amor é humanizador porque, se não se reduz a
pretensiosas tentativas de definições objetivistas, por outro lado, também não se dilui no
impalpável de um subjetivismo insondável, tornando sua mensagem impenetrável ao
leitor. O que define uma peculiar estruturação desses Oito contos de amor, em que a
configuração dos elementos narrativos se pauta por um jogo dialético entre a
objetividade e a subjetividade, conforme demonstraremos adiante.

Por isso tudo, acreditamos, faz-se pertinente apontar em Telles um amor


desromantizado, porque divorciado do elemento alienante subjacente ao tradicional
amor romanesco, cuja natureza leva o amante a projetar-se tanto no outro – um outro
ademais idealizado -, que nada ou quase nada acaba por restar de sua própria
individualidade ou, mais ainda, de sua própria humanidade.

Desromantizado, advirta-se enfim, por outro lado, não quer indicar um tipo de
desesperança no amor em nossa autora, mas apenas um redirecionamento do lirismo
amoroso, cuja graça e “encanto” sem dúvida existe, e transborda de sua obra, mas de um
modo completamente alheio aos arrebatamentos do romantismo folhetinesco, como
esperamos demonstrar neste ensaio.

II

Dadas as limitações espaciais do texto ensaístico, dos vários elementos em jogo na


fatura literária, reportaremo-nos, na apreciação de cada conto, apenas àqueles que
correspondam mais de perto ao objetivo central deste ensaio, qual seja, demonstrar que,
no trato do sentimento amoroso como eixo temático, acaba por configurar-se em Telles
uma surpreendente visão humanizadora e emancipatória do amor. Pelas mesmas razões,
as exemplificações (citações) serão limitadas ao mínimo necessário para a ilustração das
propostas de leitura a serem apresentadas.

Os contos serão analisados em grupos de dois, sendo que o critério de agrupamento foi a
demarcação das semelhanças entre os focos narrativos e/ou entre as protagonistas.
Assim, analisaremos, respectivamente, contos narrados ou protagonizados por duas
tenras adolescentes; por duas mulheres em estado de devaneio (uma pelo idealismo
romanesco e outra arrebatada por um sonho); por dois homens maduros, ambos em crise
diante das companheiras mais jovens e; por duas quadragenárias em processo de
compreensão de experiências amorosas.
Estabelecido isso, vamos enfim aos Oito contos de amor.

III

Como em todos os contos do livro, não há no primeiro deles, “As cerejas”, a clássica
linearidade narrativa; a matéria literária é relatada num vai-e-vem entre o tempo da
enunciação e o do enunciado, mesclando-se ainda, em ambos, dados de um passado
mais recente com os de um passado mais longínquo.

Nessa direção, as cerejas artificiais de um broche, “com sua vermelhidão de loucura”


(TELLES: 2001, p. 15), enquanto elementos simbólicos do sentimento amoroso,
atribuem coerência interna a passagens do conto que, numa leitura menos atenta,
poderiam parecer deslocadas.

Se no amor está implicada uma razoável dose de loucura, passa a fazer sentido então
que a própria estruturação narrativa do conto em foco obedeça a uma sintaxe própria,
num jogo de idas e vindas cujo resultado é a verbalização de uma subjetividade, no
caso, a da narradora-personagem.

Essa concepção do amor como loucura, ou da loucura como um dos aspectos do


sentimento amoroso, reflete-se não só na protagonista, mas também naquela que será a
sua primeira rival no amor e a um só tempo guia na travessia da adolescência para a
maturidade, fase esta cujo início é marcado no conto quando, a duras penas, é obrigada
a superar suas idealizações romanescas: a exótica “tia Olívia”.

Na sua aparente futilidade – atributo que em tantas outras tramas possivelmente a


colocaria num patamar secundário –, tia Olívia parece simbolizar a própria maturidade
amorosa. E se a maturidade no amor implica também em reconhecer o seu componente
de loucura, de imprecisão, como sugere o conto, esta personagem, na certeira pena de
Telles, ganha contornos de toda uma sutil imprecisão; o tom interrogativo e pontuado de
reticências, característico de suas poucas falas e evocativo de um certo ar de constante
devaneio, a torna impassível de um completo desvendamento, como o próprio
sentimento amoroso.

Num conto recheado de oscilações do fluxo narrativo, funcionam as mesmas cerejas


como guia do leitor, que intui a conclusão do aprendizado da protagonista justamente
quando, ao despedir-se de tia Olívia, numa passagem repleta da rica simbologia de
Telles, é por ela presenteada com o acessório feito das cerejas artificiais. O que
patenteia decisivamente a importância do papel daquela personagem, que na sua
evanescência parece sugerir que o amor, enfim, ainda que devamos buscar compreendê-
lo, como o faz a protagonista por meio do relato de sua experiência, será sempre
irredutível a definições acabadas, como ademais o próprio ser humano que o gestou.

Estruturação semelhante tem “Herbarium”, cuja narrativa consiste no auto-relato do


aprendizado amoroso de uma adolescente, que a seu turno terá como guia desse
aprendizado, e ao mesmo tempo como objeto imediato de seu amor, também um parente
em visita a sua igualmente bucólica morada. Aqui, o jogo com os pólos da
inocência/maturidade parece constituir a viga mestra da ótica sobre o sentimento
amoroso nele em jogo.

Assim, se uma virginal puerilidade é aparentemente a tônica do universo no qual se


insere a protagonista, por outro lado, há pinceladas no conto sugestivas de que ela possa
não ser tão casta como aparenta. Um exemplo: em meio ao verde característico do
mundo campestre que habita, nossa heroína, relatando um passeio pela floresta com seu
visitante, refere-se a uma formiga vermelha e, em seguida, sucedem-se na narrativa
várias frases à primeira vista desconexas, mas que, no todo, se não sugerem a
consumação cabal da relação sexual entre ela e seu visitante, pincelam de todo modo
um momento de latente eroticidade. Nessa direção, entre outros símbolos, a cor
vermelha da formiga converte-se em sugestiva metaforização da perda da castidade.

Como em “As cerejas”, também agora a travessia adolescência-maturidade será


ritualmente marcada: ao partir seu especial visitante, mesmo que em companhia de
outra, nossa heroína irá presenteá-lo com uma folha rara – era pesquisador botânico -,
que até então mantivera escondida. Nesse momento, parece desprender-se, “sem
remorso”, como ela mesma verbaliza, da adolescência e, com ela, da sua concepção
romanesca de amor, porventura simbolizada na folha que entrega ao seu mentor na
iniciação amorosa.

IV

Se as adolescentes protagonistas dos contos anteriores parecem ter realizado a travessia


para a maturidade, ao entender que a concretização do amor não corresponde
necessariamente às suas idealizações romanescas, o mesmo não ocorre com a
jovenzinha do conto seguinte, “Pomba enamorada ou uma história de amor”.

O uso do termo história no subtítulo do conto funciona, assim, como uma espécie de
informação antecipada ao leitor da personalidade da protagonista, cuja existência se
pauta por ficções romanescas.

As bases dessa personalidade profundamente ficcionalizada ou, melhor, “folhetinizada”


– se for permitido o neologismo -, o leitor vai conhecendo no decorrer do conto: é
assídua expectadora de tele-novelas e leitora voraz de folhetins.

Curiosamente, porém, é no trato com os santos que aflora todo um inusitado empirismo
da personagem. Na maior “sem-cerimônia”, como diria um atento observador do
brasileiro, a protagonista de “Pomba enamorada”, tendo acendido treze velas na “Igreja
dos Enforcados”, quando chegou em casa pegou o Santo Antônio de gesso, tirou o
filhinho dele, escondeu-o na gaveta da cômoda e avisou que enquanto Antenor não a
procurasse, não o soltava nem lhe devolvia o menino (p. 28).

Entretanto, se nos pareceu tão pragmática a sua franqueza e sem-cerimônia diante do


santo, por outro lado, percebemos tal postura não se estender para além do trato com as
coisas supra-terrenas.

Nesse sentido, numa demonstração máxima do platonismo que lhe impregna a


personalidade, nossa heroína chega a recusar mesmo o que seria o estágio mais concreto
da relação amorosa – o erotismo; quando do envio de diversas cartas ao amado, que
escrevera sob a picante influência de um amigo, resolve postar apenas as que lhe
pareceram mais adequadas a uma moça virgem, rasgando as eróticas. Folhetinescamente
romântica, importa-lhe mais o sentimento do que o objeto dele.

Como contraponto ao platonismo da heroína, temos o caráter eminentemente


pragmático do objeto de seu amor. Caráter em cuja configuração entra novamente em
jogo a maestria literária de Telles: se não lhe é possível demorar o foco narrativo numa
personagem secundária, dadas as limitações espaciais do conto, fornece então ao leitor
subsídios para que esboce ele próprio um nítido retrato dela.

Ao contrário da volátil protagonista, de quem não temos nenhuma referência evocativa


pautada na realidade concreta – não sabemos nem mesmo seu verdadeiro nome! -, seu
amado tem nome (Antenor) e endereço onde possa ser encontrado – uma oficina na
“Praça Marechal Deodoro”, uma “loja de acessórios na Guaianazes esquina com a
General Osório”, quando empregado e, finalmente, em sua própria oficina, na “São
João”. (TELLES: 2001, p. 25-26)

Com isso, Telles vai fornecendo ao leitor subsídios para que, pela via da comparação,
possa ele deparar-se com outro aspecto do sentimento amoroso: o desencontro entre as
aspirações romanescas daqueles que o idealizam excessivamente e a impossibilidade de
sua concretização nesses termos.

Desencontro que, no caso da história de “Pomba enamorada”, dá-se pela incapacidade


da protagonista de desromantizar sua concepção de amor, único expediente que a
tornaria capaz de compreender, definitivamente, que não existe para além de Antenor
mais ou menos do que aquilo que nele se mostra; que a humanidade do amado é muito
menos nobre e elevada do que o plano e estereotipado estofo das personagens do seu
mundo de folhetins e; enfim, a partir da compreensão do outro, a perceber e valorizar a
própria humanidade.

Já em outro dos Oito contos de amor, o mundo dos sonhos exercerá não um papel
mascarador da realidade mas, ao contrário, é a partir dele que a protagonista alcançará
melhor compreensão dos aspectos da sua vida ligados ao sentimento amoroso.
Sugestivo dessa hipótese é o próprio título: “O encontro”.

Contrariamente ao que ocorre em “Herbarium”, todo o cenário do conto em foco está


impregnado de símbolos de potencialidade erótica – “penhascos altos e retos”, “folhas
enrijecidas”, “pedra fendida ao meio”, “folha avermelhada” -, sendo que o verde,
porventura simbólico da adolescência – é referido como algo ainda presente, mas
“pálido e opaco” (op. cit.: p. 70).

Nessa possível conotação de eroticidade, enquanto componente indispensável no


aprendizado que os amantes fazem um do outro e cada um de si mesmo, o universo
narrativo de “O encontro” sugere ao leitor que, dada a sua complexidade, o sentimento
amoroso não pode ter sua compreensão limitada ao aparente objetivismo da vigília ou a
qualquer tipo de racionalismo isolado.

Nesse sentido, Telles redireciona nossa compreensão do importante elemento onírico do


amor romântico, sugerindo-nos que, se o que temos em mira é a compreensão e
refinamento da nossa própria humanidade, no delicado exercício do sentimento amoroso
por um outro, mesmo nosso sonho e por extensão outras manifestações subjetivas
exercerão aí um papel, passando de lugares de distorção da realidade para peculiares
focos de luz sobre profundos aspectos dela.

Num universo ficcional dominado por bem acabadas protagonistas femininas, em dois
dos Oito contos de amor o primeiro plano da cena será ocupado por personagens
masculinas.

Ambos casados com mulheres mais novas, os protagonistas de “As pérolas” e “A


chave” se debatem com questões implicadas nas relações em que a excessiva diferença
etária acarreta desencontros os mais insuspeitados.

Longe das soluções simplistas do pensamento machista convencional, o comportamento


e reflexões de nossas personagens trazem em seu bojo toda a complexidade das relações
modernas, cujos princípios de liberdade mútua nem sempre encontram ressonância na
formação média dos indivíduos, ainda calcada mais ou menos nos padrões possessivos
das sociedades de gênese patriarcal.

Assim, a sempre desconfiança na autenticidade do sentimento amoroso do outro, que


nos acompanha desde as primeiras frustrações do adolescente mundo romanesco,
tornam os protagonistas em foco incapazes de decantarem, em meio às diferenças
decorrentes de suas faixas etárias em relação às parceiras – diferenças que a franqueza
da pena de Telles impede de camuflar -, os laivos de um amor ainda vivo.

É o que, surpreendendo-nos leitores, pondera o narrador, ante as desconfianças do


protagonista de “As pérolas”: “Era verdade, ela preferia ficar, ela ainda o amava. Um
amor meio esgarçado, sem alegria. Mas ainda amor.” (op. cit: p. 34).

Do mesmo modo, o protagonista de “A chave” não consegue confiar nos desejos,


expressos por sua companheira, de que ele a acompanhasse ao baile. Entretanto, uma
igual desconfiança nas soluções autoritárias os impede de verbalizarem suas
inseguranças ante as companheiras.

Nessa situação, narrativas de poucos diálogos, ambos os contos ora em análise


constituem-se essencialmente de pensamentos não-verbalizados entre as personagens.
Decorrendo daí falsas concessões, rancorosos elogios e dissimuladas indiferenças que,
sabe o leitor, terminam por dissolver toda a cumplicidade essencial a uma relação
conjugal.

Todavia, nesse desencontrado processo de educação sentimental por que passam os


seres de todas as idades, a ótica de Telles não deixa de vislumbrar a esperança num
afinamento de humanidades dela decorrente.

Assim, na mira de uma visão emancipatória do amor, nossos protagonistas parecem


compreender um princípio fundamental das convivências amadurecidas: a melhor
maneira de trazer o outro para si é deixá-lo encontrar-se antes a si mesmo, exercer a
própria humanidade, conceder-lhe liberdade enfim. É o que fica patente quando, em “As
pérolas”, o protagonista devolve à companheira o colar que havia escondido, levado
pelo receio egoísta de imaginá-la ainda mais bela na sua ausência, já que não poderia
acompanhá-la à festa.

Simbolicamente, a entrega do acessório acima referida marca a devolução à outra de


uma parte da própria individualidade dela, que nossa protagonista, elegantemente,
parece perceber de alguma maneira essencial ao sentimento que ainda nutria por ela e
que, nesse momento, ganha o vigor da liberdade.

Em “A chave”, essa mesma compreensão cristaliza-se no momento da também


simbólica entrega da chave, por parte do protagonista, à ex-companheira, cujo respeito à
sua liberdade parece, enfim, ter sido percebido como a grande e insuspeitada prova de
amor de sua vida. O desencontrado relacionamento com a parceira atual afigura-se a ele,
então, diminuído diante do amor emancipatório anterior, que só a distância dos anos e a
maturidade, enfim alcançada, o colocariam em condições de vislumbrar.

VI

A mencionada busca do equilíbrio entre os pólos da razão e da emoção, no trato com o


sentimento amoroso, manifesta-se exemplarmente no foco narrativo de “Apenas um
saxofone”.

Embora explicite sua intenção de manter-se “lúcida” enquanto rememora o passado,


acompanha a narradora-protagonista uma habitual garrafa de uísque, que iria beber
“bem devagarinho para não ficar de porre...” (op. cit., p.61).

Nessa peculiar condição de lucidez regada a doses de uísque, nossa narradora, do alto de
seus confessos 44 anos e cinco meses, parece enunciar a perspectiva adequada a uma
retrospectiva amorosa e que, acreditamos, está na gênese da visão de Telles sobre o
tema. Trata-se da já referida busca de equilíbrio entre a racionalidade e a emotividade.

Completando o cenário, a personagem-narradora posta-se numa sala, dentre as tantas de


sua abastada casa, que considera sua própria extensão, e explica: “É que fomos
escurecendo juntas, a sala e eu. Uma sala de uma burrice atroz, afetada, pretensiosa.”
(op. cit.: p. 61).

Neste ambiente, o requinte da pena de Telles determinará ainda a luminosidade em


consonância à condição da protagonista. Num sutil jogo de luz e de sombras que evoca
a imprecisão do ambiente de uma tela barroca, com predomínio das sombras, mesmo o
único foco de claridade da sala não chega a destoar do clima geral de obscuridade, na
medida em que o mesmo é por ela comparado não à vida, mas à morte: “Tudo já
escureceu na sala menos o vestido do retrato, lá está ele diáfano como a mortalha de um
ectoplasma...”. (op. cit., p. 63)

Na verdade, o andamento geral de “Apenas um saxofone” faz o leitor ter a impressão de


estar diante da confissão de um fantasma, como se à narradora postada na sala se
superpusesse a sua transfigurada fisionomia pintada no retrato. Tal impressão é
reforçada quando, em meio à fragmentada narração, nossa protagonista resolve
“identificar-se”: “Meu nome é Luisiana ... Há muitos anos mandei embora o meu amado
e desde então morri.” (ibid.)

De qualquer modo, se não fisicamente, não resta dúvidas de que se processou uma
operação de mortificação da subjetividade da protagonista, já que sua auto-percepção
atual não se dá desvinculada dos objetos que a rodeiam.

Nessa situação, o amor que rememora passa a figurar como a gênese de sua humanidade
agora esfacelada, na medida em que o objeto desse amor, para além dos atributos físicos
que trariam a ela abundância material, parecia amá-la pelo conjunto de sua
personalidade, dos aspectos que a delineavam em sua peculiaridade humana.

Compreendendo isso, nossa protagonista como que oferece o “seu reino” por apenas um
saxofone, objeto por meio do qual, acredita, poderia trazer de volta, via memória, ainda
uma centelha do amor perdido, mas suficiente para lançar um momentâneo facho de luz
nas trevas do não-amor a que relegara sua existência.

A mesma delicadeza no trato com o sentimento amoroso, não observada pela


protagonista de “Apenas um saxofone”, será eixo da densa reflexão sobre o assunto
empreendida no último conto do livro, curiosamente o menor de todos e a um só tempo
o de maior complexidade no trato da questão.

A uma bolha de sabão, que “é mesmo imprecisa, nem sólida nem líquida, nem realidade
nem sonho”, a narradora-protagonista de “A estrutura da bolha de sabão” compara a
vivência amorosa que rememora - “um amor de transparências e membranas, condenado
à ruptura.” (TELLES: 2001, p. 78-79, respect.).

Ao mesmo tempo em que acompanha o amante nas suas indagações sobre uma possível
estrutura da bolha de sabão – o inusitado objeto de sua atividade de pesquisador-, nossa
protagonista vai estendendo tais reflexões ao próprio amor que sente por ele.

Nessa direção, no amor, percebe a narradora, há que se observar a postura semelhante à


de uma criança encantada diante de uma bolha de sabão bem engendrada:
“envolvimento e fuga”. Envolvimento, para apreender melhor a sua multifacetada
beleza; fuga, para evitar a sua dissolução, resultante de uma aproximação deveras
invasiva.

Essa concepção de um amor ao mesmo tempo corpóreo e intocável, como uma bolha de
sabão, determina toda uma peculiar linguagem entre os amantes. A linearidade dos
diálogos é, assim, esporadicamente suspensa por jogos de palavras aparentemente
desconexas, como se intuíssem que, das pretensões objetivistas da linguagem
convencional, pudesse resultar um esfacelamento de suas subjetividades; ao mesmo
tempo em que se envolvem pela linguagem, fogem um do outro pelos descaminhos que
exploram no bojo dessa mesma linguagem.

A própria coerência da estruturação narrativa, o leitor a vislumbra quando lança mão


desse mesmo princípio de envolvimento e fuga em jogo na multifacetada fatura literária
de Telles, que assim faz lembrar os mil olhos da bolha de sabão tocada pela
luminosidade; comungando desse jogo, o leitor é levado a envolver-se mas, a um só
tempo, a fugir das conclusões simplistas.

Resultante das reflexões empreendidas neste derradeiro dos Oito contos de amor, como
uma das tantas possibilidades que abre, afigura-se ao leitor a impressão de que não há
que se cogitar em uma estrutura do sentimento amoroso. Afinal, longe da generalização
esquemática implicada numa conceituação inicial do termo estrutura, o amor terá tantos
rostos quantos forem os indivíduos que se deixarem tocar por ele, que por ele se
deixarem humanizar.

VII

“Quase peço desculpas ao leitor por não ser mais otimista...”, declara Telles na
entrevista transcrita como prefácio a esses Oito contos de amor. Entretanto, não se leia
aí uma desesperança fundamental ou característica; trata-se, antes, da postura
naturalmente decorrente de uma ótica que, para além dos fantasiosismos da produção
folhetinesca, busca através da arte fornecer elementos para uma lúcida compreensão das
coisas humanas, ressalvando-se que, nesse caso, a lucidez não se resume a uma mera
equacionalização racionalista das coisas, conforme procuramos demonstrar neste ensaio.

Nessa direção, numa outra entrevista, a mesma autora declara que “um escritor
desesperado é uma contradição” (LUCENA: 2002, p. 5), o que motivaria a criação
literária então, desse ponto de vista, seria a esperança de que, por meio dela, pudesse o
escritor apresentar alguma contribuição à emancipação dos indivíduos.

Nesse caso, aliás, poderíamos comparar a atividade literária à atividade docente, já que
tão contraditório quanto um artista desesperado seria um educador desesperado, na
medida em que o ofício deste se justifica pela crença de que, em não nascendo os seres
acabados, formados, podem contudo se refinarem desde que submetidos a um efetivo
trabalho educativo.

Ao oferecer ao leitor subsídios para a compreensão de aspectos ligados ao sentimento


amoroso e, ao mesmo tempo, ao negar-se a impor a ele soluções acabadas, Telles deixa
entrever ainda a sua própria concepção de leitor.

Nesse sentido, para nossa autora, o leitor não se reduziria a um ente que, numa ótica
idealizada, estaria pronto e “à altura” de compartilhar de suas próprias convicções.
Assim, está em contínua vigilância: quando a narrativa parece caminhar para as
soluções fechadas, eis que interfere uma perspectiva cuja mira é a do equilíbrio entre
subjetividade e objetividade, entre razão e emoção.

Do ponto de vista de uma racionalidade emancipadora – já que até agora referimos tanto
o potencial humanizador do exercício da subjetividade, emotiva ou onírica -, a
linguagem literária se afigura em Telles como um elemento de organização do caos
interior, precedente às palavras e cuja superação, via linguagem, é manifestação a um só
tempo elementar e plena da humanidade dos seres.

Cônscia dessa tarefa do escritor no seu artesanato da linguagem, nossa autora postula:

A criação literária. E o escritor que pode ser louco mas não enlouquece o leitor, ao
contrário, pode até desviá-lo da sua loucura. O escritor que pode ser corrompido mas
não corrompe. Que pode ser solitário e triste mas ainda assim vai alimentar o sonho
daquele que está na solidão.(TELLES: 2001, p. 8)

Nos contos aqui analisados, assistimos com efeito ao embate de criaturas que,
irredutíveis aos objetivismos padronizadores da sociedade em que se inserem, ainda que
mais ou menos sujeitos a seus produtos, encontram por outro lado, na organização
permitida pela linguagem, uma efetiva possibilidade de compreensão de aspectos
fundamentais de sua condição humana.

O resultado disso, conhecemos na leitura desses contos, é a emancipação do leitor, desse


modo livre para, juntando os elementos do que lhe parece o Bem e do que lhe parece o
Mal em sua narrativa, e projetando-os para sua vivência, erigir por si mesmo
possibilidades interpretativas acerca do sentimento amoroso.

Se estamos pensando em uma concepção emancipatória de amor, podemos então dizer,


para finalizar, sem receio de equívocos, que esses oito contos são, antes de tudo, oito
grandes provas do amor de Lygia Fagundes Telles pelo leitor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas
cidades, 1982

CARROZZA, Elza. Esse incrível jogo do amor. São Paulo: Hucitec, 1992

FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. 44 ed. Rio de Janeiro, Record, 2001

GOLDMANN, Lucien. Estrutura: realidade humana e conceito metodológico. In:


MACKSEY, R. (org.). A controvérsia estruturalista. São Paulo: Cultrix, 1972

HOBSBAWN, Erich. A era dos extremos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977

LUCENA, Suênio Campos de. Lygia Fagundes Telles – a pessoa e a escritora. Prefácio
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Paulo: Rocco, 2002

TELLES, Lygia Fagundes. As pérolas. A chave. Apenas um saxofone. In: ___ Antes do
baile verde. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986

___. Pomba enamorada ou uma história de amor. Herbarium. In: ___. Seminário dos
ratos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984
___. O encontro. In: ___. Mistérios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987

___. A estrutura da bolha de sabão. In: ___. A estrutura da bolha de sabão. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1991

___. As cerejas. In: ___. O jardim selvagem. Rio de Janeiro: José Olympio/Civilização
Brasileira, 1974

____. Oito contos de amor. 4 ed. São Paulo: Ática, 2001

VÁRIOS. Cadernos de Literatura Brasileira: Lygia Fagundes Telles. n. 5, mar.1998


(Publicação do Instituto Moreira Salles)

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