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No caso específico da arte literária, é o mestre Antônio Candido (1982: p. 249) quem
postula: “a literatura desenvolve em nós a quota de humanidade por nos tornar mais
compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.”
À primeira vista, pode soar algo estranho escolher o amor – tema via-de-regra associado
à irracionalidade do só-sentimento -, para a sondagem do potencial humanizador da
produção de um escritor, dado que seria o exercício da razão, antes de tudo, o traço
diferencial do ente humano.
Por outro lado, reduzir a humanidade dos seres aos objetivismos por vezes associados à
razão, poderia sugerir uma mecanização tal que não muito longe os colocaria de outros
seres não-humanos – as máquinas, por exemplo.
E Telles aceita o desafio. Desafio que a estimulará no decorrer de toda a sua já vasta
obra, exemplarmente nos momentos em que elege o tema amoroso como eixo temático.
Emancipação: outra palavra estranha, aos nossos ouvidos romanescos, quando associada
ao amor. Afinal, ensinou-nos boa parte dos românticos de escola – ou foi isso que, por
vezes, deduzimos de nossas sempre anacrônicas leituras deles – que amar, implicando
num gesto de “entrega total” ao outro, pressuporia uma razoável dose de auto-anulação
– em face do outro -, quando não de alienação – em face do próprio sentimento.
Consideradas tais ressalvas, pensamos que o tratamento dado por Telles ao tema
amoroso faz-se revolucionário na medida em que, na auto-projeção concomitante à
leitura, saímos de seus textos não pretendendo uma compreensão ou pseudo-
compreensão do outro, ou mesmo do próprio sentimento, ambos alçados para além de
nós próprios – alienados, em síntese. Ao contrário, é a sondagem do outro, e do nosso
sentimento por ele, que termina por nos dizer muito de nós próprios, ainda que a melhor
compreensão de outro e sentimento seja também contemplada, dada a polivalência do
foco de nossa autora.
Desromantizado, advirta-se enfim, por outro lado, não quer indicar um tipo de
desesperança no amor em nossa autora, mas apenas um redirecionamento do lirismo
amoroso, cuja graça e “encanto” sem dúvida existe, e transborda de sua obra, mas de um
modo completamente alheio aos arrebatamentos do romantismo folhetinesco, como
esperamos demonstrar neste ensaio.
II
Os contos serão analisados em grupos de dois, sendo que o critério de agrupamento foi a
demarcação das semelhanças entre os focos narrativos e/ou entre as protagonistas.
Assim, analisaremos, respectivamente, contos narrados ou protagonizados por duas
tenras adolescentes; por duas mulheres em estado de devaneio (uma pelo idealismo
romanesco e outra arrebatada por um sonho); por dois homens maduros, ambos em crise
diante das companheiras mais jovens e; por duas quadragenárias em processo de
compreensão de experiências amorosas.
Estabelecido isso, vamos enfim aos Oito contos de amor.
III
Como em todos os contos do livro, não há no primeiro deles, “As cerejas”, a clássica
linearidade narrativa; a matéria literária é relatada num vai-e-vem entre o tempo da
enunciação e o do enunciado, mesclando-se ainda, em ambos, dados de um passado
mais recente com os de um passado mais longínquo.
Se no amor está implicada uma razoável dose de loucura, passa a fazer sentido então
que a própria estruturação narrativa do conto em foco obedeça a uma sintaxe própria,
num jogo de idas e vindas cujo resultado é a verbalização de uma subjetividade, no
caso, a da narradora-personagem.
IV
O uso do termo história no subtítulo do conto funciona, assim, como uma espécie de
informação antecipada ao leitor da personalidade da protagonista, cuja existência se
pauta por ficções romanescas.
Curiosamente, porém, é no trato com os santos que aflora todo um inusitado empirismo
da personagem. Na maior “sem-cerimônia”, como diria um atento observador do
brasileiro, a protagonista de “Pomba enamorada”, tendo acendido treze velas na “Igreja
dos Enforcados”, quando chegou em casa pegou o Santo Antônio de gesso, tirou o
filhinho dele, escondeu-o na gaveta da cômoda e avisou que enquanto Antenor não a
procurasse, não o soltava nem lhe devolvia o menino (p. 28).
Com isso, Telles vai fornecendo ao leitor subsídios para que, pela via da comparação,
possa ele deparar-se com outro aspecto do sentimento amoroso: o desencontro entre as
aspirações romanescas daqueles que o idealizam excessivamente e a impossibilidade de
sua concretização nesses termos.
Já em outro dos Oito contos de amor, o mundo dos sonhos exercerá não um papel
mascarador da realidade mas, ao contrário, é a partir dele que a protagonista alcançará
melhor compreensão dos aspectos da sua vida ligados ao sentimento amoroso.
Sugestivo dessa hipótese é o próprio título: “O encontro”.
Num universo ficcional dominado por bem acabadas protagonistas femininas, em dois
dos Oito contos de amor o primeiro plano da cena será ocupado por personagens
masculinas.
VI
Nessa peculiar condição de lucidez regada a doses de uísque, nossa narradora, do alto de
seus confessos 44 anos e cinco meses, parece enunciar a perspectiva adequada a uma
retrospectiva amorosa e que, acreditamos, está na gênese da visão de Telles sobre o
tema. Trata-se da já referida busca de equilíbrio entre a racionalidade e a emotividade.
De qualquer modo, se não fisicamente, não resta dúvidas de que se processou uma
operação de mortificação da subjetividade da protagonista, já que sua auto-percepção
atual não se dá desvinculada dos objetos que a rodeiam.
Nessa situação, o amor que rememora passa a figurar como a gênese de sua humanidade
agora esfacelada, na medida em que o objeto desse amor, para além dos atributos físicos
que trariam a ela abundância material, parecia amá-la pelo conjunto de sua
personalidade, dos aspectos que a delineavam em sua peculiaridade humana.
Compreendendo isso, nossa protagonista como que oferece o “seu reino” por apenas um
saxofone, objeto por meio do qual, acredita, poderia trazer de volta, via memória, ainda
uma centelha do amor perdido, mas suficiente para lançar um momentâneo facho de luz
nas trevas do não-amor a que relegara sua existência.
A uma bolha de sabão, que “é mesmo imprecisa, nem sólida nem líquida, nem realidade
nem sonho”, a narradora-protagonista de “A estrutura da bolha de sabão” compara a
vivência amorosa que rememora - “um amor de transparências e membranas, condenado
à ruptura.” (TELLES: 2001, p. 78-79, respect.).
Ao mesmo tempo em que acompanha o amante nas suas indagações sobre uma possível
estrutura da bolha de sabão – o inusitado objeto de sua atividade de pesquisador-, nossa
protagonista vai estendendo tais reflexões ao próprio amor que sente por ele.
Essa concepção de um amor ao mesmo tempo corpóreo e intocável, como uma bolha de
sabão, determina toda uma peculiar linguagem entre os amantes. A linearidade dos
diálogos é, assim, esporadicamente suspensa por jogos de palavras aparentemente
desconexas, como se intuíssem que, das pretensões objetivistas da linguagem
convencional, pudesse resultar um esfacelamento de suas subjetividades; ao mesmo
tempo em que se envolvem pela linguagem, fogem um do outro pelos descaminhos que
exploram no bojo dessa mesma linguagem.
Resultante das reflexões empreendidas neste derradeiro dos Oito contos de amor, como
uma das tantas possibilidades que abre, afigura-se ao leitor a impressão de que não há
que se cogitar em uma estrutura do sentimento amoroso. Afinal, longe da generalização
esquemática implicada numa conceituação inicial do termo estrutura, o amor terá tantos
rostos quantos forem os indivíduos que se deixarem tocar por ele, que por ele se
deixarem humanizar.
VII
“Quase peço desculpas ao leitor por não ser mais otimista...”, declara Telles na
entrevista transcrita como prefácio a esses Oito contos de amor. Entretanto, não se leia
aí uma desesperança fundamental ou característica; trata-se, antes, da postura
naturalmente decorrente de uma ótica que, para além dos fantasiosismos da produção
folhetinesca, busca através da arte fornecer elementos para uma lúcida compreensão das
coisas humanas, ressalvando-se que, nesse caso, a lucidez não se resume a uma mera
equacionalização racionalista das coisas, conforme procuramos demonstrar neste ensaio.
Nessa direção, numa outra entrevista, a mesma autora declara que “um escritor
desesperado é uma contradição” (LUCENA: 2002, p. 5), o que motivaria a criação
literária então, desse ponto de vista, seria a esperança de que, por meio dela, pudesse o
escritor apresentar alguma contribuição à emancipação dos indivíduos.
Nesse caso, aliás, poderíamos comparar a atividade literária à atividade docente, já que
tão contraditório quanto um artista desesperado seria um educador desesperado, na
medida em que o ofício deste se justifica pela crença de que, em não nascendo os seres
acabados, formados, podem contudo se refinarem desde que submetidos a um efetivo
trabalho educativo.
Nesse sentido, para nossa autora, o leitor não se reduziria a um ente que, numa ótica
idealizada, estaria pronto e “à altura” de compartilhar de suas próprias convicções.
Assim, está em contínua vigilância: quando a narrativa parece caminhar para as
soluções fechadas, eis que interfere uma perspectiva cuja mira é a do equilíbrio entre
subjetividade e objetividade, entre razão e emoção.
Do ponto de vista de uma racionalidade emancipadora – já que até agora referimos tanto
o potencial humanizador do exercício da subjetividade, emotiva ou onírica -, a
linguagem literária se afigura em Telles como um elemento de organização do caos
interior, precedente às palavras e cuja superação, via linguagem, é manifestação a um só
tempo elementar e plena da humanidade dos seres.
Cônscia dessa tarefa do escritor no seu artesanato da linguagem, nossa autora postula:
A criação literária. E o escritor que pode ser louco mas não enlouquece o leitor, ao
contrário, pode até desviá-lo da sua loucura. O escritor que pode ser corrompido mas
não corrompe. Que pode ser solitário e triste mas ainda assim vai alimentar o sonho
daquele que está na solidão.(TELLES: 2001, p. 8)
Nos contos aqui analisados, assistimos com efeito ao embate de criaturas que,
irredutíveis aos objetivismos padronizadores da sociedade em que se inserem, ainda que
mais ou menos sujeitos a seus produtos, encontram por outro lado, na organização
permitida pela linguagem, uma efetiva possibilidade de compreensão de aspectos
fundamentais de sua condição humana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas
cidades, 1982
CARROZZA, Elza. Esse incrível jogo do amor. São Paulo: Hucitec, 1992
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. 44 ed. Rio de Janeiro, Record, 2001
HOBSBAWN, Erich. A era dos extremos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977
LUCENA, Suênio Campos de. Lygia Fagundes Telles – a pessoa e a escritora. Prefácio
a TELLES, Lygia Fagundes. Durante aquele estranho chá. Perdidos e achados. São
Paulo: Rocco, 2002
TELLES, Lygia Fagundes. As pérolas. A chave. Apenas um saxofone. In: ___ Antes do
baile verde. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986
___. Pomba enamorada ou uma história de amor. Herbarium. In: ___. Seminário dos
ratos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984
___. O encontro. In: ___. Mistérios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987
___. A estrutura da bolha de sabão. In: ___. A estrutura da bolha de sabão. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1991
___. As cerejas. In: ___. O jardim selvagem. Rio de Janeiro: José Olympio/Civilização
Brasileira, 1974