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O romance que desceu à terra

Introdução

Memórias de um Sargento de Milícias é um célebre clássico da literatura brasileira


lançado em 1852 por Manoel Antônio Bandeira, quando ele tinha somente 20 anos. O
livro caiu no esquecimento durantes os anos subsequentes de seu lançamento, sendo
ele mesmo um pária entre os críticos de seu tempo.

Seria somente após décadas, já no modernismo, que o livro passaria a ser mais
estudado por figuras como Oswald de Andrade, as quais viriam a canonizar a obra
como um clássico, por ele ser capaz de refletir sobre aspectos sociais de fora da
lente burguesa e de trazer uma abordagem diferente de outros grandes nomes da prosa
do século XIX e por desafiar valores consumados como norma para a linguagem e para
as temáticas trabalhadas nos textos desse período.

Essa abordagem de elementos escanteadas faz da obra uma representação muito mais
próxima da realidade fluminense do que os célebres textos idealistas dos
contemporâneos de Manoel Antônio de Almeida.

Sendo assim, a seguinte dissertação tem como intuito refletir sobre os aspectos
trabalhados no livro e sobre como ele difere da sua suposta escola literária, sob o
prisma de uma leitura feita mais de 150 anos depois de seu lançamento.

Romantismo

O século XIX é permeado pelo estilo literário que viria posteriormente a ser
catalogado como romantismo. É evidente que outras tendências surgiram nesse século,
como o realismo e o naturalismo, mas, em especial até os anos 80, o romantismo era
o gênero mais consumido. Devemos atentar-nos, também, ao fato de que o estilo
romântico não é homogêneo, mas sim uma tendência de escrita, com algumas
características norteadoras aos escritores desse gênero da época.

O romantismo baseia-se na tragédia grega e, portanto, tem como fim máximo a


catarse. Catarse, por sua vez, é um conceito extremamente amplo na história do
debate filosófico da arte, mas, para a análise e proposta, a catarse deve ser
analisada em uma perspectiva aristotélica. A proposição para o conceito é, de modo
direto, um sentimento de libertação momentânea da razão e a imersão em uma sensação
de plenitude espiritual, ou seja, uma espécie de transcendência breve do indivíduo
ao consumir arte.

No aristotelismo, a catarse ocorre pelo seguinte processo, em ordem sucessiva:


identificação, terror e compaixão. A identificação se dá no processo introdutório
da obra, no qual o público deve conectar-se com o protagonista e com a história
sendo contada. O terror é o clímax da história. Nele, algum tipo de tragédia
acomete o protagonista. Por fim, ocorre a etapa da compaixão, em que somos
suscitados a nos comover com o mesmo e, enfim, sentir a sensação catártica. Um
grande exemplo da antiguidade dessa estrutura narrativa ocorre em o mito de Édipo.

No romantismo, esse modelo é readaptado, mas mantém como fim máximo a geração da
catarse.
Essa readequação deu-se, principalmente, pelas imposições do formato de publicação
dos romances no século XIX, sendo ele o folhetim. O folhetim era um espaço dos
jornais reservado ao entretenimento e era nele que ocorriam as publicações dos
romances, segmentados em capítulos. O adendo principal desse novo modelo é a
necessidade comercial de manter uma história relevante ao longo de sua publicação,
com os capítulos geralmente terminando no seu clímax e depois se desenrolando no
início do próximo. A intenção de gerar catarse, porém, persiste no macro da
história. O maior exemplo de romance do século XIX que segue esse modelo, é em
Lucíola, de José de Alencar, de 1862. De forma breve e simplista, a história ocorre
assim: a protagonista Lúcia é introduzida de forma idealista, depois ficamos
estarrecidos com sua história e seu passado e, no fim, ela morre, suscitando ao
leitor compaixão e consolidando a catarse.

Para além do modelo de publicação, outras características nacionais também compõe


um estilo particular da escola literária no Brasil, que caracterizaram a escrita e
modularam a execução da catarse na obra, sendo eles: uma subjetividade exacerbada,
valorização da natureza e da religiosidade, valorização de elementos burgueses e um
heroísmo do personagem principal.

Com essa introdução sobre o romantismo, cabe situar Memórias de um Sargento de


Milícias dentro desse movimento e entender por que ele é um desvio, posto que o
livro tem como marca registrada a total fuga das tendências apresentadas, sendo ele
escrito para uma classe que não a burguesa. São muitos ainda os elementos que são
anticatárticos e, em última instância, mesmo antiromânticos. O fato de o livro ser
atrelado a esse estilo é muito mais algo pedagógico e resultado de uma falta de
melhores outras opções do que uma linguagem que se adeque aos moldes do romantismo.

Narrativa

A ruptura promovida por Memórias é explícita já no início de sua história.


Leonardo, o protagonista, é filho de “uma pisadela e um beliscão”. Já no seu
nascimento, ele carrega uma alcunha que foge ao heroísmo romântico. O personagem
não vem de um berço nobre, tampouco é confrontado por desafios que o fazem
amadurecer ao longo da história. É justamente o oposto. Por toda a trama, Leonardo
é um malandro, safado, refém da vadiagem. Não importa quantas vezes ele se de mal,
a vida é encarregada por salvá-lo. Uma das estruturas textuais fundamentais
envolvendo o protagonista é justamente essa: Leonardo faz alguma besteira, então é
confrontado e, na hora do seu julgamento e da sua punição, alguma força externa
salva-o quase que ao acaso.

Esse modelo rompe com a esperada jornada proposta no romantismo. Não há uma
identificação com o leitor médio de folhetins à época, que esperava um
representante idealizado das supostas virtudes de sua classe, em meio a uma jornada
destinada a ter final belo e redentor. Memórias é livre do peso do pecado e é mais
uma representação de uma sociedade fluminense de classe média, composta por
profissionais liberais e pequenos burgueses. Não é à toa que, com a formalização
dos capítulos de folhetim em livro, ele ganhou um subtítulo: “o romance escrito ao
correr da pena”.

A seguir, vejamos, pois, como os aspectos supracitados do romantismo não são


percebidos no livro, ou mesmo, satirizados e subvertidos.

A subjetividade exacerbada em Memórias é uma das primeiras características


notavelmente abandonados na sua escrita. Primeiro porque o livro é escrito em
terceira pessoa, narrado por um narrador onisciente. Esse afastamento entre o
narrador e a história denota uma escolha do autor em evitar monólogos internos,
duradouros e profundos. É evidente que existem histórias que são profundas no
sentido da complexidade psicológica dos personagens e são escritas em terceira
pessoa, vide outros clássicos brasileiros como O Alienista ou Vidas Secas, mas
escritas em terceira pessoa tendem a uma abordagem distinta para suas histórias.
Para além da narração, o romance tem um aspecto muito mais representativo no contar
de sua história e, portanto, trabalha com personagens representativos de arquétipos
sociais – o padre, o sargento Vidigal, a comadre, o compadre, etc. -. Sendo eles
arquétipos, são, por conseguinte, exemplos generalistas de um certo papel social, o
que inibe um aprofundamento demasiado dos personagens.

A valorização de aspectos etéreos, como a natureza e a própria religiosidade,


também não se fazem presente na história. Primeiro porque o romance se passa
inteiramente na zona urbana do Rio de Janeiro, com descrições honestas e nada
místicas da cidade, segundo porque, na trama do livro, a própria religiosidade é
alvo de um tratamento não sacralizado. No início do texto, Leonardo é abandonado
por seu pais, então fica sob cuidado de sua comadre e de seu compadre. Ele queria
que o protagonista se formasse em direito, ela aspirava por um afilhado na igreja.
O temperamento de Leonardo o fez desviar de ambos os caminhos. Pelo desinteresse em
tratar de um maior fardo na vida de seus personagens, o livro brinca com uma
alternância entre o profano e o sagrado, sempre interessado em mostrar como a vida
não parte de uma dicotomia idealista, mas sim de uma polaridade em que as pessoas
ficam alternando entre e por toda a extensão e toda a gradação da moralidade
humana. Um momento muito característico disso é no capítulo 14. Nele, é contada a
história de um padre mestre de cerimônias sempre entendido como alguém sério e
virtuoso. No entanto, descobrimos que ele tinha relações confidenciais com uma
cigana, quebrando seu voto celibatário. Nessa cena, o padre está somente com sua
cueca da cintura para baixo e, da cintura para cima, com sua batina. A perfeita
ilustração da dualidade humana e da inexistência da perfeição tão reiterada em
diversos clássicos do romantismo.

Como já fora sugerido ao longo da resenha, o livro atropela quaisquer noções


burguesas idealistas de personagens e, também, a própria noção de romance em si.
Como já mencionado, Leonardo – protagonista - é filho de uma pisadela em um
beliscão. A essência do personagem já é pitoresca e sua presença na obra – que não
pode ser chamada de desenvolvimento, pois ele começa e termina igual – prova isso.
Mas não é só ele que rompe com a estrutura romântica de personagem. No elenco da
obra há, por exemplo, o major Vidigal. Personagem duro, conservador, caracterizado
como reflexo da lei, como exposto no capítulo cinco:

“O major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a
esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo
tempo o guarda que dava caça aos criminosos. “

Esse mesmo personagem é, também, alguém que cede a favores ilícitos de cunho
sexual, de modo a driblar a lei e esquivar de suas obrigações, cedendo às paixões
da carne. Leonardo-Pataca, pai do protagonista, oscila entre um casamento
formalizado com a esposa à uma traição com uma cigana e, por fim, uma relação
amadurecida, mas conturbada com Chiquinha, filha da comadre. José Manoel,
personagem inteligente, bem falado, de família mais abastada, mas que maltrata a
esposa. O próprio compadre, figura meiga e prestativa, que cuida de Leonardo
durante grande parte da história, tem uma renda de origem duvidosa. Esses são
alguns dos personagens que apresentam mais de uma faceta e que, muitas vezes,
oscilam entre elas na história, quando não diretamente como personagem (Leonardo,
Leonardo-Pataca, Vidigal, etc.), na imagem que consolidam para a sociedade
(Compadre, José Manoel, etc.). Esse aspecto da escrita brinca com o sagrado e com o
profano, como já mencionado, e evidencia uma falta de rigidez nas virtudes humanas
e na constante iminência da imoralidade.
O próprio romance do livro entre Leonardo e Luisinha não segue a linha tradicional,
que envolve a conquista de um grande amor, ou um relacionamento impossível, mas sim
meras ocasionalidades as quais o fazem possível. O protagonista já se apaixona no
início da obra por uma garota chamada Luisinha, caracterizada como meiga e
adorável. No entanto, apesar dos esforços de Leonardo, Luisinha é forçada a um
relacionamento com José Manoel, um homem rico da alta sociedade. Sem muitas
lamentações e remetendo a uma característica de mulherengo, Leonardo apaixona-se
por outra garota, apelidada Vidinha, com características muito diferentes da de seu
primeiro amor. Ou seja, toda a ideia de uma predestinação do amor, da nobreza do
herói da história com a sua prometida ou dos desafios com os quais o protagonista
deve lidar para conquistar sua amada inexistem aqui. No final, de maneira quase
satírica, o Leonardo acaba por reatar seu relacionamento com Luisinha, pois Vidinha
o desprezara e José Manoel morrera de doença. O protagonista não teve de fazer nada
para se relacionar com ela. Novamente, a natureza do acaso e da sorte fizeram com
que o malandro do protagonista tivesse um final feliz.

A quebra da estrutura romântica, conforme apresentado ao longo da resenha, vai de


encontro ao efeito anticatártico previamente mencionado como aspecto chave do
livro. Ao invés de uma jornada cheia de louvores e dificuldades, temos um texto
engraçado, que parece fazer piada com essa vida performática e idealizada dos
escritores românticos. Inclusive o próprio nome do livro remete a isso. O tal
Sargento do título da obra é Leonardo, que adquire essa patente após uma negociação
de sua comadre e amigas com major Vidigal para o tirar da cadeia. Esse momento da
obra canonizado em seu título evidencia talvez o aspecto mais importante para essa
resenha: o protagonista que nada faz para suas conquistas, arrebatando o modelo de
protagonista romântico.

A importância dos meios para a arte

Outro fator que foi importante para a quebra do estilo romântico e, mais
especificamente, da catarse da obra foi a forma pela qual a narrativa do texto
utilizou-se da estrutura de publicação em folhetim para afastar-se do leitor, no
sentido de quebrar a sua imersão.

No livro Arte e Mídia de Arlindo Machado, o autor trabalha com a ideia das
influências que o meio o qual um produto artístico é publicado refletem na sua
estrutura e forma. O conceito discutido em questão pode ser percebido em Memórias,
posto que, não só o livro é publicado em capítulos, o que já muda o planejamento do
texto do autor, pois é necessário manter a história rentável, como também o
narrador da história - em terceira pessoa e onisciente - intervém nela, provocando
uma metalinguagem que combina com o estilo despojado e cômico do livro.

Em diversos momentos do texto, o narrador intervém na história, seja para retomar


um tópico anterior – o que quebra a imersão narrativa pressuposta pelo texto
romântico -, como em: “Cumpre-nos agora dizer alguma coisa a respeito de uma
personagem que representará no correr desta história um importante papel, e que o
leitor apenas conhece, porque nela tocamos de passagem no primeiro capítulo: é a
comadre”; seja para quebrar a quarta parede e atribuir um aspecto metalinguístico à
obra, como em: “Como o velho tenente-coronel conhecia a comadre e o Leonardo, e por
que se interessava por ele, o leitor saberá mais para diante.” Nesse segundo caso,
a intervenção não tem um objetivo interno de conduzir a história, mas quebrar a
quarta parede e, também, a imersão, pois um trecho como esse ratifica, mesmo que
indiretamente, ao leitor que a história é ficcional e contada.

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