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Introdução
Seria somente após décadas, já no modernismo, que o livro passaria a ser mais
estudado por figuras como Oswald de Andrade, as quais viriam a canonizar a obra
como um clássico, por ele ser capaz de refletir sobre aspectos sociais de fora da
lente burguesa e de trazer uma abordagem diferente de outros grandes nomes da prosa
do século XIX e por desafiar valores consumados como norma para a linguagem e para
as temáticas trabalhadas nos textos desse período.
Essa abordagem de elementos escanteadas faz da obra uma representação muito mais
próxima da realidade fluminense do que os célebres textos idealistas dos
contemporâneos de Manoel Antônio de Almeida.
Sendo assim, a seguinte dissertação tem como intuito refletir sobre os aspectos
trabalhados no livro e sobre como ele difere da sua suposta escola literária, sob o
prisma de uma leitura feita mais de 150 anos depois de seu lançamento.
Romantismo
O século XIX é permeado pelo estilo literário que viria posteriormente a ser
catalogado como romantismo. É evidente que outras tendências surgiram nesse século,
como o realismo e o naturalismo, mas, em especial até os anos 80, o romantismo era
o gênero mais consumido. Devemos atentar-nos, também, ao fato de que o estilo
romântico não é homogêneo, mas sim uma tendência de escrita, com algumas
características norteadoras aos escritores desse gênero da época.
No romantismo, esse modelo é readaptado, mas mantém como fim máximo a geração da
catarse.
Essa readequação deu-se, principalmente, pelas imposições do formato de publicação
dos romances no século XIX, sendo ele o folhetim. O folhetim era um espaço dos
jornais reservado ao entretenimento e era nele que ocorriam as publicações dos
romances, segmentados em capítulos. O adendo principal desse novo modelo é a
necessidade comercial de manter uma história relevante ao longo de sua publicação,
com os capítulos geralmente terminando no seu clímax e depois se desenrolando no
início do próximo. A intenção de gerar catarse, porém, persiste no macro da
história. O maior exemplo de romance do século XIX que segue esse modelo, é em
Lucíola, de José de Alencar, de 1862. De forma breve e simplista, a história ocorre
assim: a protagonista Lúcia é introduzida de forma idealista, depois ficamos
estarrecidos com sua história e seu passado e, no fim, ela morre, suscitando ao
leitor compaixão e consolidando a catarse.
Narrativa
Esse modelo rompe com a esperada jornada proposta no romantismo. Não há uma
identificação com o leitor médio de folhetins à época, que esperava um
representante idealizado das supostas virtudes de sua classe, em meio a uma jornada
destinada a ter final belo e redentor. Memórias é livre do peso do pecado e é mais
uma representação de uma sociedade fluminense de classe média, composta por
profissionais liberais e pequenos burgueses. Não é à toa que, com a formalização
dos capítulos de folhetim em livro, ele ganhou um subtítulo: “o romance escrito ao
correr da pena”.
“O major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a
esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo
tempo o guarda que dava caça aos criminosos. “
Esse mesmo personagem é, também, alguém que cede a favores ilícitos de cunho
sexual, de modo a driblar a lei e esquivar de suas obrigações, cedendo às paixões
da carne. Leonardo-Pataca, pai do protagonista, oscila entre um casamento
formalizado com a esposa à uma traição com uma cigana e, por fim, uma relação
amadurecida, mas conturbada com Chiquinha, filha da comadre. José Manoel,
personagem inteligente, bem falado, de família mais abastada, mas que maltrata a
esposa. O próprio compadre, figura meiga e prestativa, que cuida de Leonardo
durante grande parte da história, tem uma renda de origem duvidosa. Esses são
alguns dos personagens que apresentam mais de uma faceta e que, muitas vezes,
oscilam entre elas na história, quando não diretamente como personagem (Leonardo,
Leonardo-Pataca, Vidigal, etc.), na imagem que consolidam para a sociedade
(Compadre, José Manoel, etc.). Esse aspecto da escrita brinca com o sagrado e com o
profano, como já mencionado, e evidencia uma falta de rigidez nas virtudes humanas
e na constante iminência da imoralidade.
O próprio romance do livro entre Leonardo e Luisinha não segue a linha tradicional,
que envolve a conquista de um grande amor, ou um relacionamento impossível, mas sim
meras ocasionalidades as quais o fazem possível. O protagonista já se apaixona no
início da obra por uma garota chamada Luisinha, caracterizada como meiga e
adorável. No entanto, apesar dos esforços de Leonardo, Luisinha é forçada a um
relacionamento com José Manoel, um homem rico da alta sociedade. Sem muitas
lamentações e remetendo a uma característica de mulherengo, Leonardo apaixona-se
por outra garota, apelidada Vidinha, com características muito diferentes da de seu
primeiro amor. Ou seja, toda a ideia de uma predestinação do amor, da nobreza do
herói da história com a sua prometida ou dos desafios com os quais o protagonista
deve lidar para conquistar sua amada inexistem aqui. No final, de maneira quase
satírica, o Leonardo acaba por reatar seu relacionamento com Luisinha, pois Vidinha
o desprezara e José Manoel morrera de doença. O protagonista não teve de fazer nada
para se relacionar com ela. Novamente, a natureza do acaso e da sorte fizeram com
que o malandro do protagonista tivesse um final feliz.
Outro fator que foi importante para a quebra do estilo romântico e, mais
especificamente, da catarse da obra foi a forma pela qual a narrativa do texto
utilizou-se da estrutura de publicação em folhetim para afastar-se do leitor, no
sentido de quebrar a sua imersão.
No livro Arte e Mídia de Arlindo Machado, o autor trabalha com a ideia das
influências que o meio o qual um produto artístico é publicado refletem na sua
estrutura e forma. O conceito discutido em questão pode ser percebido em Memórias,
posto que, não só o livro é publicado em capítulos, o que já muda o planejamento do
texto do autor, pois é necessário manter a história rentável, como também o
narrador da história - em terceira pessoa e onisciente - intervém nela, provocando
uma metalinguagem que combina com o estilo despojado e cômico do livro.