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A Educação Existencial

- desfasamento temporal entre o momento da escrita e o da edição do romance: O


que pode acontecer é revelarem estádios da evolução dos mesmos autores
transcendidos já. É o caso da presente obra, de José de Almada Negreiros, que data
de 1925. De 1925 é a Lisboa que o seu romance tão sugestivamente nos pinta. Isso
não quer dizer, todavia, que o seu romance não seja das obras mais originais que da
pena do seu autor tenham saído. Nome de Guerra é livro tão original em 1938 como o
era em 1925, conquanto José de Almada Negreiros o tenha escrito- única excepção
em toda a sua obra- com o pensamento no público.
- António Ramos de Almeida assinava uma crítica reticente nas páginas da Gazeta de
Coimbra, em que referia negativamente as digressões do romance e, embora
elogiasse o uso do diálogo e concedesse subtileza a algumas observações,
considerava a obra possuidora de uma metafisica «infantil e ridícula»
- Adolfo Casais Monteiro destacava a originalidade do livro no contexto do romance
português da época e elogiava o estilo e a prosa do autor; porém, não escaparam os
remoques às digressões presentes no romance, detectadas sobretudo nos últimos
capítulos, que Casais Monteiro atribuiu à propensão de Almada para explicar os
segredos da vida e da natureza, sendo opinião do crítico que tais divagações se
revelavam «frágeis, e que, insertas num romance, lhe enfraquecem a linha
romanesca».
- censurando a escassez de desenvolvimento psicológico das personagens e a
esquemática descrição dos cenários. Em contraponto à obra plástica do autor, o crítico
reconhecia a existência, na prosa de Almada Negreiros, da «mesma linearidade
prodigiosa, talvez ainda mais elementar do que o seu desenho», o que impediria a
recepção daquele discurso como linguagem novelística, pela sua incapacidade de
criar um ambiente que enquadrasse as personagens
- [categoria de espaço - estado da arte, fixação dos modelos novelísticos camiliano,
queirosianos] - Nome de Guerra, ao contrário da tradição naturalista do romance
português, constrói o espaço em torno do personagem, em vez de construir o
personagem em torno do espaço, o que reduz em muito as virtualidades
sócio-realistas presentes na obra, ou seja, o romance de Almada não é uma
reprodução ou um retrato fiel de determinada época, mas, ao centrar-se no
indivíduo — ou na construção do indivíduo — é intemporal, ou para-temporal - A
presença das coisas materiais na vida humana, dando-lhe resistência, reforçar-lhe-ia o
sentido. Ideias, emoções e actos pedem localização, uma «fisica» que ora seja
testemunho e contraste da nossa febre, ora suporte e cúmplice de mistério - obra
inovadora no plano da ficção narrativa em língua portuguesa
- Teresa Leitão Barros - “o livro de Almada Negreiros é um bom romance como outro
qualquer, mascarado de 'panfleto futurista', de cousa feita para provar que a arte de
escrever contemporânea tem de ser diferente do que foi durante séculos e
distinguir-se por uma infinita série de graciosas excentricidades, de
malabarismos de ideias e de palavras que ofusquem a atenção do leitor e o
obriguem a aplaudir”
- [Marques Fernandes - estado da arte em Portugal/ contexto estético - ponto de vista
que pedia à arte um comprometimento social e político - padrões oitocentistas]
personagens “só preocupadas com problemas pessoais” [ideia de construir o
espaço em torno do personagem, em vez de construir o personagem em torno do
espaço] e um discurso de autor que “fraquejava bastante nas tentativas de pensamento
original” - a fraca receção da obra, uma vez que o ambiente literário refletia o
contexto político da época - 1938, solidava-se a ditadura do Estado Novo em Portugal
- tempos poucos propícios à separação entre a arte e a política propugnada
- incerteza quanto à classificação de género literário em que deveria ser integrado -
pela importância secundária atribuída à ação
- 1953 - Nome de Guerra volta a ser referido - José-Augusto França - “romance de uma
aprendizagem, o único romance de aprendizagem que se escreveu em Portugal
- 1956 - 2ª edição - comparado à ficção de Albert Camus - “o extraordinário realismo
da absurdidade no Nome de Guerra”
- 1963 - Alfredo Margarido - “tanto em A Engomadeira, como em Nome de Guerra, o
que nos entrega o autor são documentos onde, de uma forma peculiar, as personagens
principais (e algumas laterais) fazem a sua entrada na vida” (reiterada a ideia de
1953)
- Bildungsroman único na literatura portuguesa cujo modernismo psico metafísico ele
inaugura
- história simples:
1) O seu protagonista tem trinta anos e chama-se Antunes, Luís de nome próprio.
Chega a Lisboa, empurrado por um tio que pretende sujeitá-lo a experiências
boémias que fizessem dele «qualquer coisa que se visse».
2) Ainda que a situação não evolua exactamente como o tio de Antunes teria
desejado, este acaba por se relacionar com uma prostituta, cujo nome falso,
«nome de guerra>>, é Judite.
3) Passam os dois a viver juntos, mas depressa as dificuldades financeiras e a
vida de Judite erguem obstáculos ao relacionamento do par, que terminará em
definitivo quando ele souber, por intermédio de uma carta da mãe, que Maria,
a noiva platónica deixada na província sem notícias, morreu de saudades.
4) Antunes alugará depois uma mansarda, de onde poderá contemplar as estrelas
e o espaço circundante, ao mesmo tempo que reflecte sobre a necessidade de
ser o próprio a tomar decisões relativamente à sua vida.
5) O romance conclui como uma composição aberta, na medida em que não é
dado a conhecer ao leitor o que fará o protagonista a partir das suas reflexões
finais, sendo apenas dito que ele adquirira a consciência de que «terminara o
tempo de hesitar sobre o seu destino»28. Por fim, surge uma estranha
moralidade a encerrar o texto, que parece decorrer da lógica anteriormente
subsumida

- Em que medida corresponde ao modelo de aprendizagem?


- Bildungsroman, na sua origem, associado à glorificação de um homem que,
proveniente de uma classe social desfavorecida, fosse capaz de ascender a lugares de
destaque no interior de uma sociedade aristocrática e, naturalmente, autocrática -
desenhava-se contra o pano de fundo da ascensão da burguesia - vontade de
criar um género literário moderno, capaz de substituir a forma clássica da
epopeia, cujas referências não poderiam encontrar eco na classe social
ascendente
- A denominação do género é justificada porque se reporta a obras que narram os
primórdios da formação (Bildung) do herói, até ao momento em que ele atinge
um determinado patamar de maturidade.
- e mostrar o indivíduo na sua interioridade e de revelar ao leitor o caminho pelo
qual a personalidade assim exposta se ia constituindo; um trajecto pontuado por
diferentes experiências, traçando a particularidade essencial do romance, que
consistiria precisamente em contar a história interior do seu protagonista”
- [Em Goethe] significava uma submissão do indivíduo, nas suas aspirações e nos seus
sonhos, às exigências do mundo e não a dominação do espírito sobre a matéria e o
real (oposição)
- o seu herói = cavaleiro da época moderna, que se via obrigado a opor os seus ideais
de amor, de glória ou de transformação do mundo «à ordem existente e à realidade
prosaica que em todos os campos se ergue como um obstáculo» [questão do respeito -
não sabe como comportar-se no grupo, do mesmo modo que não sabe o que fazer
quando se vê diante da mulher nua que dorme em seus braços - Entre ele e a
mulher nua a sua educação punha uma distância.... O Antunes via que a sua
educação e a realidade estavam em guerra, naquele momento só que fosse. A
realidade, por ironia, tinha posto uma mulher nua nos braços da sua educação]
- O jovem estaria condenado a combater um mundo que não lhe convinha e procuraria
construir um paraíso terrestre, estruturando a sua educação precisamente através
desses confrontos.
- «entra na vida num feliz estado de ignorância, procura almas que lhe estejam
próximas, experiências de amizade e de amor, luta contra as duras realidades do
mundo e, armado desse modo com uma variedade de experiências, amadurece e
descobre-se a si próprio e à sua missão no mundo»
- as situações apresentadas em Nome de Guerra expressam a consciência da sua
relevância individual, como é assinalado pelo narrador logo no início: «Vê- -se
perfeitamente que a cada um aconteceu qualquer coisa que não se passou com mais
ninguém» - teor existencialista - as experiências, por parte do protagonista, de medo e
abalo, temor e absoluto isolamento, emergem como a condição prévia para a sua saída
de uma profunda e universal espécie de imaturidade
- O isolamento [final] transcende qualquer possibilidade de comunicação e situa-o no
plano de uma individualidade absoluta.

- nome = presença de uma máscara sobre a face existencial do sujeito está presente
em Nome de Guerra logo no título e é explicitada pelo narrador no capítulo lli,
quando é dito que Judite «não se chama assim» e que conseguira «depois de sérios
trabalhos aparentar toda uma naturalidade para esse nome de mulher, sem
denunciar que escondia o autêntico».
- [definição para o Outro] imagem de si para os outros - imagem reificada para se
proteger, a qual não consegue desencarnar - Não, não namoro. Quero dizer: namoro
e não namoro. Namoro, para os outros. Para os outros, somos namorados. -
Antunes consegue ver-se a partir do exterior da referida imagem - sugerindo a
possibilidade da sua libertação, libertação da máscara que veste para os Outros -
que o leva à expressão de uma crise, entre o Eu e o Si Próprio - será ao nível da
superfície que se começarão a perceber os primeiros sinais de uma alteração - o
sujeito aflora à superfície da máscara, - [revela, gradualmente, a sua intimidade]
- altera-a o suficiente para que se perceba a existência de movimentos interiores -
cena frente ao espelho - «visse o Antunes aquela tarde sair do hotel não o
reconheceria. A cara insípida tomara-se aguda e cortante, e tão afiada que tinha dois
gumes em cruz, no perfil e nos olhos»
- A vontade de aprofundar a investigação existencial torna-se intensa, ela é mesmo
a única ambição do protagonista, pois «Antunes queria saber claramente tudo
quanto se passava no seu íntimo. Pouco lhe importava saber se o seu desejo era
detestável desde o momento em que o soubesse» = Problema do nome, que se
torna percetível, para ele, na cena em que Judite o trata pelo nome próprio
- Luís - disse a rapariga. E ele ficou assombrado ao ouvir o seu nome, a sua vida
inteira, a palavra única do seu segredo na boca daquela mulher. Ele era Antunes para
todo o mundo e Luís daquela maneira para ninguém
- Antunes = nome de família, símbolo da socialização e da continuidade = aceitação de
um modelo alheio
- Luís = nome próprio, representa a afirmação da individualidade, a
intransmissibilidade do sujeito, a incomunicabilidade do Si Próprio
- esta dicotomia - transformação da personagem, que se deve apenas a si mesmo e se
reflete no seu exterior - o modo como entra apressado no hotel e não é deste modo
reconhecido pelo porteiro - VISÃO, a sua importância, na sua vertente existencial, é
dessa forma que a modificação do protagonista se vai dando a perceber, mesmo para
quem com ele partilha a intimidade
- O acto de «ver tem para Almada Negreiros uma significação absoluta, para além
do funcional ou descritivo. Por isso, quando Antunes, no capítulo XXI, quer
saber exatamente qual é o seu desejo, a resposta surge-lhe em “uma espécie de
visão fantástica”. A imagem de Judite sobrepõe-se à de Maria e substitui-a, numa
cena em que a imaginação do protagonista se equipara à sua capacidade de ver. De
resto, essa relação é válida para as outras personagens, nomeadamente para Judite,
que apresenta, como um condicionalismo de ordem simbólica, uma extrema
miopia. Ela não poderá desenvolver uma educação existencial idêntica à que se
irá processar em Antunes, pois a “sua imaginação não ia para além do que ficava
ao alcance das suas mãos. Não tinha distância a sua imaginação: era como a sua
miopia”
- alcance desse gesto é fundamental para que o sujeito se liberte da imagem
reificada em que os outros querem encerrá-lo, mas a sua prossecução depende
apenas do próprio sujeito, ou seja, representa a afirmação da sua individualidade
- [Nome de Guerra] “Ver ao longe é um dom especial de certas pessoas, sobretudo
daquelas que não é pelas realidades alheias que caminham. Não pode por
conseguinte ver ao longe aquele que põe a sua vontade ao serviço de qualquer acto
imediato que caiba dentro do espaço de tempo da sua própria existência.”
- “A relevância individual que se configura no caso de cada pessoa impele a um
confronto com a sociedade ou, pelo menos, a uma recusa da mera continuidade
proposta pela lógica da socialização. Assim, o protagonista não aceita ser
confundido com ninguém, nem permite que lhe digam que a sua história é igual à
de outros, antes contrapõe um grito incontido, que, precisamente por ser espontâneo,
é um sinal da sua libertação existencial: ‘Esta história é só minha’”.
- Mais adiante na narrativa, quando Antunes vai morar para a água-furtada, concluída a
relação com Judite, tem uma percepção exacta desse confronto, expresso na metáfora
da vontade dos astros: « Os astros mandam! E mandam uma coisa para cada um!
E esta ordem sereníssima dos astros é uma verdadeira anarquia para a
sociedade»
- contrário de Antunes - aquele que persiste na sua imagem reificada e não se
mostra capaz de se libertar da máscara
- Tio de Antunes - não está ao alcance daquele que persiste na sua imagem
reificada e não se mostra capaz de se libertar da sua máscara - porquê? não
consegue passar pela prova fundamental do isolamento - indispensável à
aprendizagem existencial, na medida em que são a expressão do período de crise
que a personagem deve atravessar para afirmar a sua individualidade - A recusa
em enfrentá-los impede o tio de se conhecer e leva-o a procurar insistentemente a
companhia alheia, pois a possibilidade da solidão adquire um peso cada vez mais
insuportável. Com efeito, sentir-se «sozinho excitava-o de tal maneira que não se
aguentava. Tinha por força que sair de ali, de estar sozinho. Senão, rebentava»
- = Judite, não consegue confrontar-se com o isolamento e fica irremediavelmente
afastada da possibilidade de se conhecer. A ela, o «tédio esmagava-a na solidão»,
pelo que «fugia horrorizada dos lugares pacíficos que lhe negavam a paz e ia
misturar-se na multidão para não se ver, para não se sentir». Abrigara Antunes no
seu quarto e precisava da sua companhia para se segurar aí, «mas quando ele ia à rua
ela ficava sozinha com o seu futuro, isto é, sem nada”
- O desejo de estar só prenuncia a capacidade para superar a crise que atravessa e, na
sequência da recordação de palavras de Judite, antecipa-lhe a ideia de que «perder o
medo era ganhar o conhecimento da vida»
- Durante um lapso de tempo, Antunes afasta-se da solidão para viver no quarto de
Judite, mas o sinal de que a sua crise não estava resolvida é dado quando ele
percebe que, após «tantos dias naquele quarto, começava a raciocinar, como nos
tempos em que vivia só». Por isso, abandona a vida com Judite e aluga uma
água-furtada, de onde pode contemplar a terra e o céu, o que o levará a concluir que
nenhuma <<janela de nenhum andar se pode comparar à independência de uma janela
- de telhado», pois esta proporciona, de uma forma extrema, o «espectáculo da
humanidade sem o contacto das gentes». A importância do isolamento como
condição para aceder à maturidade existencial adquire relevância pelo
contraponto entre o protagonista e as restantes personagens, o que permite ao
narrador afirmar que há «de facto diferença entre aqueles que têm capacidade
para suportar sozinhos o peso da atmosfera e aqueles que apenas ombro a ombro
resistiriam ao quotidiano»
- tem consciência do seu problema/ da sua crise e toma consciência disso rapidamente,
compreende limitar-se a construir a imagem que os outros desejavam ver - uma
máscara que impede a libertação do Si próprio
- tem consciência do seu problema/ da sua crise/ do seu confronto com o mundo -
Perante a impossibilidade de abarcar o mundo exterior e de passar a dominá-lo, o
sujeito volta-se para dentro de si, procura refúgio e segurança perante a incerteza
do que o rodeia. Os espaços descritos tornam-se um pretexto para a
movimentação flsica e mental do protagonista, cujas dúvidas e hesitações são
expressas desse modo, pois estar «a meio caminho do hotel» significa estar indeciso
entre dois comportamentos possíveis
- O que esse texto deveria contar era, afinal, um processo de educação existencial, ou
seja, a libertação da imagem reificada de Antunes, que impedia a expressão da sua
individualidade, dessa forma manifestando claramente a sua oposição a qualquer
tentativa de o instituir como mero prolongamento de valores alheios, fossem os dos
pais, do tio ou de quaisquer outras pessoas. Tratar-se-ia, em suma, de mostrar como
estivera «quase a prevalecer o legal, isto é, conforme a lei para todos, sobre o leal, ou
seja, conforme a lei para cada um”

Forma Espacial e Abstração

- O que então se verifica é a necessidade de convocar o passado para, através do


confronto com o presente, desencadear nessa personagem um estado de angústia e de
profunda inquietação, que deverá conduzi-la à situação de crise e ao processo
dialéctico subsequente
- A temporalidade assim expressa é necessariamente fragmentária, uma vez que
não é captada desde o interior do seu fluxo, desde a consciência interna da sua
duração, antes é percebida através da sobreposição de imagens desligadas da
corrente do tempo. São imagens estáticas, pois de outra maneira não seria
possível sobrepô-las, e a sua associação, que parece prescindir de uma
causalidade explícita, torna-se responsável pela dimensão fragmentária da
narrativa - uma obra sem aparente organização ou proporções em termos de ficção
convencional, ou seja, uma obra sem progressão lógica de pensamentos ou de acções,
uma obra sem enredo - só a releitura permitirá evidenciar, através do estabelecimento
de nexos cuja coerência depende de uma percepção da obra na sua totalidade - talvez
apenas superficialmente fragmentária, um nível semântico profundo
- natureza composicional da obra aponta para outros domínios artísticos e correntes
específicas - pintura: cubismo (colagem), futurismo ou dadaísmo - abolição da
fronteira entre as artes
- a análise de um objecto verbal como Nome de Guerra, que reclama a sua inclusão na
prosa da modernidade, não apenas pelo ano em que foi publicado, mas sobretudo
pelas características de que se reveste, nomeadamente a fragmentariedade e a
fusão de géneros que aí se ensaia, o que levou Eduardo Prado Coelho a considerá-lo
como «um modelo de ficção-reflexão»
- deslocamento em direcção ao que ele qualificou como «forma espacial», ou seja, em
direcção a uma forma que permitisse ao leitor «apreender as obras espacialmente,
num dado momento, ao invés de o fazer ao longo de uma sequência temporal
- Trata-se de uma característica distintiva, em maior ou menor grau, das obras em prosa
consideradas ao longo deste capítulo, directamente relacionada com a espacialização
do tempo, ou seja, com a justaposição do passado e do presente, que elide a percepção
da progressão causal e tende a apresentar o tempo como um magma indistinto, sem
separações visíveis entre diferentes momentos ou períodos.[EXEMPLO PRÁTICO]
Aqui se toma notório um paralelismo entre a literatura e as artes plásticas, pois, tal
«como a dimensão da profundidade desapareceu da esfera da criação visual, também
a dimensão da profundidade histórica desapareceu do conteúdo das maiores obras da
literatura modema». - acção principal e apresenta-se fragmentada, dispersa por
vários capítulos, intercalada com reflexões, descrições e outros excursos
narrativos, sugerindo desde logo o princípio da descontinuidade como modelo
estruturante da diegese

A Narrativa Vertical

- primeiro momento de crise - afastado do ambiente protetor da casa paterna,


deparava-se, então, com um mundo hostil e incompreensível - incompreensível,
porque constituído por signos opacos e indecifráveis - impedido de descodificar o que
se passa em seu redor e de acertar o seu comportamento com as exigências da nova
situação
- entrada no clube e o conhecimento de Judite - rutura no equilíbrio inicial -
desconcerto entre si e o mundo - impossibilidade de o sujeito se encontrar na relação
com o universo exterior, uma vez que não era possível a comunicação entre ambas as
partes
- estado de perturbação não o impede de tomar consciência do seu estado, da sua
vontade de reconverter a entidade dual, composta por si e pelo mundo exterior (queria
contactar com a multidão, ser parte dela - tentativa de adequação ao espaço)
- surgir de um sentimento cósmico, caraterizado pelos pressupostos psíquicos que
condicionam o aparecimento de uma vontade artística capaz de dar origem a um estilo
caraterizado por formas inorgânicas - as formas em que o sujeito se revia perderam a
consistência, o seu sentido, pareciam vazias - sensação física de inadaptação (que lhe
tolda os movimentos)
- crise do sujeito situada no domínio da linguagem, que se revela ineficaz para
apreender o mundo e aprofundar o conhecimento da essência humana - ato de nomear
- linguagem verbal afirma uma insuficiência fundamental, torna-se inútil, as palavras
esvaziam-se de significação, resistem numa opacidade que impede Antunes de se
projetar empaticamente num texto - «não sabe expressar por palavras a extraordinária
impressão que recebe sempre que copia o perfil de qualquer pessoa>>
- enquanto contempla as estrelas, à janela da mansarda alugada, ele organiza reflexões
que lhe chegam «sem ser por palavras recebidas no seu pensamento», pois sabe que
existem «outros processos para a grande linguagem das estrelas chegar ao seu
pensamento sem ser por meio das palavras»
- natureza da obra - negação da ilusão mimética e oferece-se na opacidade de um objeto
textual - estratégia para tal - recordar ao leitor a dimensão ficcional das personagens e
das estruturas envolventes, assumindo uma notória descontinuidade com o paradigma
do romance naturalista - «o uso quase sistemático da designação de 'protagonista' abre
desde logo um espaço irónico, pois que põe em causa a criação de um universo que se
pretende real» - referências às figuras humanas que rodeiam antunes, enquanto
personagens
- a forma narrativa em que são apresentadas ao leitor as angústias de Antunes, o que é
consentâneo com a recusa modernista de que o texto possa descrever o mundo ou de
que as explicações que dá dele aspirem a uma validade universal
- marcação temporal - «Quando o Antunes chegou ao fim do capítulo precedente estava
diante da única porta aberta àquela hora»
- A utilização de palavras como «capítulo» ou «leitor» remetendo para o próprio livro
destrói o efeito de simulação de uma realidade exterior, para, de seguida, se permitir
que ela possa ser retomada ainda outra vez
- Abre-se, então, um espaço de ambivalência no significado das palavras,
particularmente evidenciado no título do capítulo XXVII, «Finalmente na sua Nova
Vida Começa a Prosa», em que o uso do lexema “prosa” tem uma remissão imediata
para as dificuldades financeiras emergentes na relação de Antunes e Judite, mas pode
ainda configurar uma leitura literal, isto é, pode significar também o regresso da
escrita, visto que a narrativa é retomada após uma elipse de cinco dias, o período
durante o qual os dois amantes haviam permanecido fechados no quarto.
- A negação da ilusão mimética no romance de Almada Negreiros interrompe a
identificação emocional com um universo familiar e recusa qualquer pressuposição de
experiência estética que encontre a sua satisfação na beleza do orgânico, o que seria
característico de uma obra que, nos termos de Worringer, denotasse a tendência para a
Einfühlung. Pelo contrário, a permanente anulação da representação naturalista, ou
tridimensional, situa o texto no outro pólo da sensibilidade estética, na tendência para
a abstracção, ou seja, no pressuposto de uma vontade artística que descobre a sua
manifestação externa num estilo caracterizado pelo inorgânico e pelo cristalino. A
preferência por estas formas radica na expressão de um universo interior e na
necessidade de encontrar a mais rigorosa descrição exterior do seu conteúdo
- procura pela verdade do íntimo - por isso, procura novos amigos, que não sejam
pessoas, isto é, afasta-se de um exterior que reproduza a organicidade humana à
medida que se vai recolhendo cada vez mais dentro de si. - • A individualidade e a
personalidade, o lado visível da existência humana, teriam, assim, a sua origem nessa
realidade interior, no «invisível do nosso ser a que chamamos o nosso íntimo» -
- Reflexo da vontade de se manifestar numa forma pura e absoluta, este «íntimo
pessoal» é percorrido por uma dimensão transcendente, que se consubstancia na maior
importância atribuída ao passado geracional em detrimento da influência do presente
da sociedade
- «no momento em que Judite o trata pelo seu nome próprio, 'Luís', que se inicia o
segundo nascimento e começa a surgir a progressiva aquisição da dimensão íntima e
pessoal, e a consequente apropriação do espaço narrativo, da acção e da própria
linguagem»
- Se o nome próprio da personagem principal é decisivo para o início de uma etapa da
sua educação existencial, ele marca também, num modelo de rigorosa coerência, o
fim desse ciclo, determinado pela morte de Maria, a namorada da província, cuja
última palavra é precisamente «Luís»
- a é uma visão do mundo que recusa a importância do tempo histórico e encara as
acções, os sucessos e os fracassos de uma determinada época como o reflexo ou a
projecção de modelos universais e eternos - elimina qualquer sugestão de sequência
e, pelo contrário, evidencia uma lógica de descontinuidade
- A mesma descontinuidade está patente no capítulo III, cujo início se assemelha ao da
abertura de uma narrativa tradicional: «Era uma vez uma rapariga chamada Judite». O
romance começara, porém, dois capítulos antes, com páginas em que se acumulam
reflexões sobre o nome e o íntimo pessoal de cada ser humano, dando origem a que o
começo da narrativa propriamente dita surja de modo algo abrupto
- releitura, enquanto processo de estabelecimento de nexos cuja coerência depende da
percepção da obra na totalidade, faz emergir a sua estrutura profunda
- No capítulo VII, através de uma analepse que interrompe a lógica sequencial da
narrativa e, desse modo, contribui para negar a ilusão mimética, é apresentado o tio de
Antunes e são descritas as suas intenções relativamente ao sobrinho. As reflexões do
protagonista e do narrador constroem os capítulos XX e XXX, em que a acção se
suspende, o que acontece de igual forma nas últimas páginas do livro, com particular
destaque para o capítulo LXII, constituído por apenas dois breves parágrafos e sem
referência ao nome de qualquer personagem. Por seu turno, no capítulo XXII,
Antunes ouve contar duas histórias no clube, sobre um rapaz e sobre uma rapariga, e
esses episódios interrompem a acção para se integrarem no romance como situações
exemplares ou exemplificativas. Já o capítulo XXXVIII é ocupado com a descrição
física de Judite, enquanto o imediatamente subsequente apresenta as digressões do
narrador sobre a vida das «raparigas de clube»47. A utilização das digressões e das
descrições verifica-se ainda, com particular destaque, nos capítulos XLI e XLII, antes
de invadir por completo o texto, nas já citadas últimas páginas, que são sugeridas no
capítulo LI, preenchido por três parágrafos onde o narrador capta as reflexões de
Antunes, cuja percepção dos mundos real e imaginário é precisamente marcada pela
descontinuidade
- traduz o confronto entre o sujeito e o mundo como um elemento estruturante na
educação existencial do protagonista
- irracionalidade aparece aqui como um modo de libertação, um caminho mais exacto
para conhecer o mundo ou para melhor se adequar a ele - Todos os gestos e decisões
de Antunes comportam, porém, esta dimensão irracional. A sua incapacidade em
descodificar os signos que o rodeiam leva-o a seguir D. Jorge, na sua estreia no clube,
«como o resto de um barco segue a proa» . O mundo apresenta- -se-lhe numa densa
opacidade e ele, sentado à mesa com o experimentado e as raparigas, não «sabia
porquê, mas sorria-se». Quando decide regressar ao clube, naquela deslocação que lhe
irá facultar a primeira possibilidade de rever Judite, sabe apenas que é levado a agir
assim por uma «força alheia e irresistível» Mais tarde, há-de encontrar-se diante dela,
depois de sair do hotel na ignorância do que ia fazer, pois deixava «a mala como se
voltasse, mas não sabia de nada», apenas tinha a certeza de que «havia de ir buscar
outra vez o seu inconsciente, desenterrar as suas energias espontâneas que ficaram
sequestradas, para ter uma vontade que luta
- A irracionalidade aparente dos comportamentos sustenta-se aqui pela. ausência de
nexos causais empíricos que permitam à personagem compreender o que lhe acontece,
impondo o princípio da descontinuidade na associação das acções. Dito de outro
modo, está- -se perante o modelo de conexões da arte abstracta., regido por uma
lógica de adição e de combinação que dissolve o espaço tridimensional num plano de
duas dimensões e altera a independência formal dos elementos que constituem o
conjunto.

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