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Inicialmente Neorrealista, Vergílio Ferreira sofre então uma sensível mudança que o
tornou marginal à ideologia marxista, mas que o afastará também do catolicismo. O que
essencialmente o fez mudar, como ele próprio escreveu, não foi a aspiração ao humanismo
e à justiça, mas um conceito prático de justiça e de humanismo, pois que se os modos de
concretização de um sonho podem sofrer correção, não o sofreu neste caso a aspiração que
visava concretizar.
O que seja esse equilíbrio ele no-lo diz, remetendo-o para o insondável e
incognoscível de nós, um substrato gerado ao longo dos infinitos acidentes, encontros e
desencontros e que nos surge como anterioridade radical às nossas escolhas e opções. Por
isso, "o impensável e o indiscutível subjaz a todo o pensar, e para lá dele, ao sentir", sendo
sobre esse impensável que se nos organiza a harmonia do pensar, que ulteriormente
tentamos explicar ou demonstrar com a disciplina da razão. É este, então, um dos temas
mais recorrentes no pensamento de Vergílio Ferreira.
Dando corpo a um pensamento de base existencialista, emerge então o primado do
sentir, "o essencial não é para se pensar mas para se sentir", que nos diz que "a verdade é
amor"2, pelo que é a verdade emotiva a primeira e a última que nos liga ao mundo.
A passagem do Neorrealismo para o Existencialismo faz-se, pois, em Vergílio
Ferreira, através de Hegel, que está na base do marxismo e também do Existencialismo.
Enquanto que nas suas primeiras obras se pode afirmar, em termos gerais, que o autor
assume ou incorpora correntes literárias estabelecidas, embora assinale já nelas
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Vergílio Ferreira, in “Pensar”
caraterísticas heterodoxas, a sua evolução literária acarretou a crescente preocupação
subjetiva, centrada não no domínio psicológico mas no espaço metafísico. Será a partir
desse momento que os problemas sociais e psicológicos serão superados e descurados por
outros apelos mais prementes, como a origem, o destino ou a transcendência do homem
sempre fiel à sua vocação de absoluto. O mistério da existência, o nascer e o morrer, o ser e
o não ser, os maiores problemas da condição humana, não serão desdenhados como meros
acidentes insondáveis, mas adquirirão na obra vergiliana a categoria de reflexões insistentes
e apaixonadas.
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Manhã submersa, p. 39
refúgio do fim. Ela porém, quase me não falou. E, depois de me beijar
brevemente, disse-me em voz suave e medrosa: - A senhora. Olha a senhora. -
Mas a senhora, a D. Estefânia, estava já ali ao pé, cortava-me já os ouvidos
com a vergasta da voz: - Menino! Vamos! - A criada tomou-me a saca à
cabeça, nós seguimos atrás. Voltei-me ainda, lá de longe, para onde ficara
minha mãe. Mas só já lá havia noite (…) Quisera perguntar a minha mãe pelo
Joaquim, pela Maria, por tudo quanto no seminário me enchera de esperança
das férias; e ali ia, afinal, outra vez só, entregue à disciplina de D. Estefânia.
Casada com um capitão de tarimba, mãe de seis filhos, tinha todavia uma
religião tão seca e impiedosa como uma velha virgem descarnada. Morava ela
num casarão antigo junto do adro da igreja, a um canto da povoação. Um
longo e escuro corredor, serpeando aos altos e baixos pela casa toda, levava
até ao meu quarto, que ficava junto à cozinha. (…) Fizeram-me as perguntas
que quiseram, e D. Estefânia, que vigiava os meus atos, de mãos dadas à
frente, terminando o interrogatório, mandou-me enfim jantar: - Comes este ano
ainda na cozinha. Para o ano, comerás connosco. Um futuro ministro de Deus
deve habituar-se a lidar com todas as classes sociais (MS: pp 65 e 66 );
e ainda:
Descobri então minha mãe, pesada, coberta de negro, e corri ansioso para ela,
como para um refúgio de fim. Ela, porém, quase me não falou. E, depois de me
beijar brevemente, disse-me em voz surda e medrosa: – A senhora. Olha a
senhora. Sem se mover, não ousando tocar-me, disse-me apenas “meu filho”, e
ficou a olhar-me em silêncio. Eu sentia sobre mim o suplício dos olhos de D.
Estefânia, que um pouco atrás assistiam ao encontro; mas, num ímpeto,
levantei os braços, rebentei as cordas do medo e atirei-me a minha mãe num
abraço desesperado. Imediatamente, porém, D. Estefânia cortou: - Não, não.
Aqui não. Cenas dessas, não. Vão lá para a cozinha, se querem (idem: p. 70).
Por entre uma colocação hierárquico-social mais elevada do que a mãe de António,
não só a um nível económico, intelectual, habitacional, social, educacional, etc, a frieza de
D. Estefânia revela-se também nos modos como trata e educa António, pautados
essencialmente por um regramento punitivo e frio, por um fundamentalismo religioso que
tem a sua expressão máxima no envio de António para o Seminário, enquanto meio de
ascensão à prestigiada condição de sacerdote. Se D. Estefânia domina as esferas sociais da
relação familiar de António, a sua mãe, subalterna à primeira, mantém-se apagada, pois
que, apesar de tudo, é D. Estefânia o garante de futuro do seu filho (e da sua velhice).
Este tipo de relação e representação literária assume uma base neorrealista na
medida em que é evidenciadora, em primeiro lugar, da miséria de diversas famílias nas
zonas rurais do país, e na sua baixa colocação numa situação hierárquica face aos
indivíduos com um elevado poder económico. Esta estratificação social com base em
critérios de riqueza é enunciadora de uma incapacidade de garantir o futuro, o
desenvolvimento e a felicidade aos próprios filhos, sendo então necessário que estes fiquem
ao encargo de alguém com verdadeiras possibilidade económicas, encarregue dessa tarefa.
A miséria subjacente a esta situação passa então também, como já referido, pela falta de
educação (vejamos, por exemplo, a relação antagónica entre a figura do Dr. Alberto e do
Tio Gorra), pela pobreza e carência alimentar, entre outros aspetos.
A este propósito, diz-nos a mãe de António, aquando de uma conversa com o filho
sobre o seu futuro no seminário:
O futuro de António era também o futuro de sua mãe. Neste sentido, dá-se a
inversão de papéis, em que é o filho uma forma de sustento pessoal de sua mãe e não a mãe
a fonte de sustente e garante de sobrevivência de seu filho.
Como nos informa o ensaio de João Décio, “O sentido ensaístico do romance de
Vergílio Ferreira”, a busca do essencialismo através da problemática interior, sendo que as
essências se definem enquanto um meio e compreensão íntima, é, a título exemplificativo,
uma das dimensões observáveis na personagem de António. Factualmente, desde cedo, a
aldeia natal da personagem torna-se um meio de conforto, de aconchego e de compreensão
desejados: é a representação última da oportunidade de fuga e liberdade, quando António se
vê constrangido pela força opressora do Seminário.
A este último, o Seminário, está então interligada a temática existencialista. De
facto, um problema candente em Manhã Submersa reside naquilo que é a análise do
sistema de vida de um seminário retrógrado, rígido e autoritário em Portugal. Do
Seminário, que nos surge caraterizado enquanto um verdadeiro monstro “engolidor” dos
seminaristas, que os consome e devora, surge uma angústia, desespero e incompreensão por
parte dos jovens, para com tudo aquilo que é o seu processo de vivências dentro da
instituição.
Deste modo, existe uma incapacidade de enquadramento dos alunos num ambiente
totalmente hostil e contrário à sua humanidade. Ao invés disso, sofrem profundamente
dentro de um Seminário que se afigura não mais do que um meio de asfixia, não só pelo seu
aspeto escuro e sombrio, mas pelas “criaturas” que o habitam. Neste sofrimento reside
então um profundo sentido existencial que permitirá a evolução das personagens,
nomeadamente de Gaudêncio e António, a partir de um processo essencialmente pautado
pelo sofrimento e trauma.
Se o Existencialismo sartriano se pauta por uma ideia-base fundamental proveniente
já de Nietzsche, a de que “Deus está Morto”, podemos afirmar que, em profundidade,
Manhã Submersa se afirma enquanto plano possível de integração desta mesma ideia,
sendo que o caminho percorrido desde a chegada ao Seminário, passando pelo
questionamento de Deus, pela morte de Gaudêncio, e, por último, até à mutilação de
António, é um caminho que visa a progressiva morte de Deus. Vejamos um excerto
representativo do questionamento acerca da existência de Deus, ocorrido numa conversa
entre Gaudêncio e António: