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I.

PERSONALISMO

EMMANUEL MOUNIER:
UMA FILOSOFIA PERSONALISTA

Nosso amigo Emmanuel Mounier não mais responderá às


nossas perguntas: uma das crueldades da morte é mudar radi­
calmente o sentido de uma obra literária que ainda se constrói:
não só ela não mais continuará, como também é subtraída a
êsse movimento de intercâmbio, de interrogações e respostas,
que situava êsse autor entre os vivos. Torna-se para sempre
obra escritaJ e apenas escrita; consuma-se a ruptura com seu
autor, cuja obra entra doravante no campo da única história
possível, a dos leitores, a dos homens vivos que ela alimenta.
Em certo sentido, uma obra atinge a verdade da sua existência
literária quando morre seu autor; tôda publicação, tôda edição
inaugura a impiedosa relação dos homens vivos com o livro
de um homem virtualmente morto.
Os vivos menos preparados a participar de tal relação são,
sem dúvida, aquêles que conheceram e amaram o homem, aqüe­
le que viveu . . . e cada leitura renova nêles e consagra de certo
modo a morte do amigo.
Não fui capaz de reler os livros de Emmanuel Mounier
como os livros devem ser lidos, como se fôssem livros de um
morto. Dêsse modo, não se queira ver nestas páginas um estudo
histórico puro e simples, mas algo de híbrido, que começa no
domínio da leitura e pretende em vão continuar o diálogo im­
possível . . .
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Reli em primeiro lugar, e de certo modo em contr�ponto, justamente que se decidiram o estilo e o gênero e escopo filo­
os artigos de Emmanuel Mounier aparecidos em Esprzt e�tre sófico de nosso amigo.
outubro de 1932 e dezembro de 1934 (e que foram reumdos Sua grande fôrça é de ter, em 1932, vinculado originà­
em volume sob o título Révolution personnaliste et communau­ riamente sua maneira de filosofar ao afloramento ao nível da
taire I ) e o breve e excelente guia da filosofia personali�ta inti­ consciência de uma crise de civilização e de ter tido a ousadia
.
tulado Personnalisme. 2 São, mms ou menos, os dOis mo� de visar, para além de qualquer escola filosófica, uma nova
mentos extremos da obra de Mounier: 1932, 1950. A mim civilização em sua totalidade. Não se percebe a amplidão dêsse
me pareceu, com fulgurante clareza, que os escritos de 1932 projeto inicial se se começa pelo Traité du caractere ou pelo
conferem a todo o empreendimento filosófico uma perspectiva Personnalisme : entregamo-nos nesse caso ao jôgo estéril de
verdadeira e revelam, sob forma juvenil, virulenta, as intenções comparar, peça por peça, a "filosofia" de Mounier à "filosofia"
da obra. ulterior. existencialista e à "filosofia" marxista. Este jôgo é estéril, por­
Mostra essa coletânea, de modo claro, que o pensamento que as três "filosofias" não são soluções diferentes dadas a um
de Emmanuel Mounier está marcado negativamente pela sua mesmo bloco de problemas, não são mesmo problemáticas dife­
saída da Universidade, por sua ruptura com o magistério - e, rentes situadas num mesmo plano teórico, são maneiras diver­
de modo positivo, pela responsabilidade de um movimento, que gentes de projetar as relações do teórico e do prático, da refle­
se concretizava numa Revista. Esta primeira observação vai xão e da ação.
mais longe do que poderia parecer; obras como as de Bergson,
Será preciso voltar dentro em breve a esta comparação e
de Brunschvicg, de Blondel, de Maritain, contemporâneas dos
sobretudo às condições de tal comparação; mas não o podere­
primórdios da revista Esprit, realizam, por todo o seu estilo,
o gênero didático, que se adapta a um público de es:udiosos,
mos fazer de maneira válida, senão depois de ter reencontrado
o desígnio primordial do personalismo, o desígnio de uma civi­
de professôres, e para além dêstes , de adultos que se mstruem.
lização; é muito digno de nota o fato de que o adjetivo perso­
A filosofia francesa participava de modo claro até o período nalista qualifica antes de tudo uma civilização, uma função
imediatamente anterior à guerra, da tarefa docente em sua
civilizadora; 3 e o personalismo de 1950 recorda que o têrmo
acepção mais geral. Essa função docente explica bastante bem
pretendia, em 1932, "designar as pesquisas iniciais da revista
a fôrça e a fraqueza da filosofia universitária: fraqueza, �m
Esprit e de certos grupos vizinhos em tôrno da crise política e
sua tendência a situar os problemas à margem da VIda, da his­
espiritual que então se manifestava na Europa". ( 1 1 5 )
tória, e a proporcionar-se uma vida e uma história próprias
que, nos casos limite, são de todo irreais; mas fôrça em seu �sse aflorar de uma época a o nível d a consciência, essa
gôsto pelas questões metodológicas, pelas questões prelimina­ apreensão de nossa época como manifestação de uma crise da
res, pela busca do "ponto de partida", da "verdade primeira", civilização nascida na Renascença, é a primeira provocação do
e pelo ordenado processo discursivo. personalismo; ora, essa consciência de crise estava longe de
Com a fundação de Esprit, tentava Mounier a aventura ocupar lugar de destaque no cerne do pensamento representa­
de uma filosofia não universitária. Sua sorte seria então, ao tivo na França, em 1932; sobretudo na filosofia universitária,
libertar-se da Universidade - pois o magistério é à sua ma­ não desempenhava qualquer papel decisivo; ainda menos se
neira um compromisso - salvar-se do ócio, pela criação de achava ela capacitada a orientar de maneira radical uma voca­
um movimento a cujo serviço se colocou; o primeiro cometi­ ção filosófica. É portanto uma dúvida metódica de caráter
mento de Emmanuel Mounier é o movimento Esprit; é aqui histórico e cultural que estimula tôdas as reflexões de Emma­
nuel Mounier. E êle as enfrenta não pelo desespêro, por uma
profecia da decadência ou uma atitude descritiva, mas pelo
1 Révolution personnaliste et communautaire, col. Esprit, Aubier
1935 (Oeuvres de Mounier, t. I, Ed. du Seuil). ,
2 Personnalisme, cal. Que sais-je? P . U . F . 1950 (Oeuvres, t. III, 3 Manifeste au service du personnalisme, col. Esprit, Aubier 1936,
Ed. du Seui!). pág. 9 ( Oeuvres, t. I, Ed. du Senil).

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projetar de uma nova Renascença. " �efaz�r a Renascenç�" : atitude . . . é uma filosofia, não é sistema. Pelo fato de precisar
eis 0 título do primeiro editorial de Esprtt assmado por Moumer. estruturas, é o personalismo uma filosofia e não apenas uma
Esta palavra de ordem, que vincula uma tarefa a uma cons­ atitude . . . Mas pelo fato de ser sua afirmação central a exis­
ciência de crise assinala os marcos extremos do personalismo tência de pessoas livres e criadoras, êle introduz no cerne de
de 1932 · não s� trata liminarmente, de analisar uma noção, de tais estruturas um princípio de imprevisibilidade que remove
descreve� uma estrut�ra, mas de influir na história por um tôda veleidade de sistematização definitiva" (Le Personnalisme,
certo tipo de pensamento de combate. pág. 6 ) .
Tal intenção vai além daquilo que habitualmente enten­ A mim me parece, portanto, ter o pensamento d e Emma­
demos por uma "filosofia"; ousaria dizer que �mmanuel �ou­ nuel Mounier de 1932 e 1950 sido um movimento orientado
nier foi o pedagogo, o educador de uma geraçao; com? Peg�y. de um projeto de civilização "personalista" a uma interpretação
Mas seria preciso retirar destas palavras sua dupla hm!!açao; "personalista" das filosofias da existência. O sentido de tal
0 referirem-se a uma infância que nos propomos a conduztr a
translação de acento será delineado com precisão no curso do
idade adulta' e o vincularem-se a uma função de ensino, a um presente estudo.
corpo social já diferenciado (como se diz, por exemplo, a "Edu­
cação Pública" ) ; ou ainda diria eu que Mounier p�egou uma
conversão se fôsse possível transplantar essa expressao das co­ CONVERSÃO PESSOA E PEDAGOGIA COMUNITÁRIA
munidade� religiosas para o plano mais largo de uma civilização
tomada em conjunto. Projetar uma civilização supõe por certo que uma civili­
O personalismo: de início, uma pedagogia da vida comu­ zação é, em parte - e parte decisiva - obra de homens. Fa­
nitária vinculada a uma conversão da pessoa. zer, desfazer, refazer a Renascença é tarefa do homem. O per­
Em 1932-34, essa intenção mais ou menos do que uma sonalismo se entendia como "o conjunto dos consentimentos pri­
"filosofia" no sentido de que o projeto de uma nova época his­
P
tórica im licava uma "filosofia" e talvez diversas "filosofias"
mordiais em que se pode fundamentar uma civilização devotada
à pessoa humana" (Manifeste . . , pág. 8 ) .
.

no sentido escolar da palavra; era o que Emmanuel Mounier


acentuava ao dizer que o personalismo envolve os personahs­
mos. Sua grande contribuição ao pensamento contemporâneo 1. Refazer a Renascença
foi ao situar-se acima de uma problemática filosófica em sen­
tid� estrito, acima das questões relativas a pontos de partida, Bem se poderia denominar ética tal emprêsa, se justamente
de método e de ordem, oferecer aos filósofos de profissão uma não houvesse E. Mounier repelido com horror o espírito do
matriz filosófica, propor-lhes tonalidades, modos de apresentar moralista, que sempre lhe pareceu perdido nas generalidades e
teóricos e práticos podendo desaguar em uma ou em várias filo­ na eloqüência, amesquinhado às dimensões do indivíduo, sem
sofias, tendo em seu bôjo uma ou várias sistematizações filosó­ pesar na história e maculado pela hipocrisia; essa crítica do mo­
ficas. É essa, para muitos de nós, nossa dívida verdadeira para ralismo identifica-se com um dos elementos da crítica perma­
com nosso amigo. Sem dúvida, em 1932-34 essa conversão e nente do idealismo que encontraremos de contínuo ao longo do
essa pedagogia eram menos do que uma filosofia, no sentido caminho.
de que a teoria dos valôres, da história, do conhecimento, do Mas graças à sua crítica do "êrro doutrinário ou moralista",
ser, que pressupunham, permanecia implícita. Mas, confon_ne Emmanuel Mounier terá precisamente contribuído para restau­
veremos adiante, os livros do pós-guerra infletiram a pesqmsa rar o prestígio da ética, fazendo-lhe atravessar tôda a espessura
em sentido mais filosófico, interpretando o personalismo como das técnicas, das estruturas sociais, das idéias, e erguer n pêso
uma das filosofias da existência. Em 1949, dizia Emmanuel
dos determinismos e das inércias ideológicas. Terá tornado real
Mounier: "É o personalismo uma filosofia e não apenas uma e verídica a ética. A longa caminhada do zêlo ético através da
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carne das sociedades não faz senão tornar mais resplendente global como alguma coisa que por essência se desfaz, como
a afirmação fundamental da revolução personalista e comunitá­ um movimento de consunção. O burguês é um estilo de des­
ria: uma civilização é "antes de tudo uma resposta metafísica censão: do herói ao burguês; dos valôres de conquista e criação
a um apêlo metafísico, uma aventura de ordem eterna, proposta aos valôres de confôrto. Essa intuição do negativo no burguês
a cada homem na solidão de sua escolha e responsabilidade . . " conduz a tôdas as reflexões sôbre a oposição entre indivíduo
(Manifeste . . . , pág. 1 1 ) . "Cada idade só realiza tarefa mais e pessoa. O indivíduo é preliminarmente um pólo de civiliza­
.

ou menos humana, se escuta antes de tudo o chamado sôbre-hu­ çãü, ou, mais exatamente, um contrapólo; sob êsse têrmo, iden­
mano da história . . . Nosso objetivo longínquo continua a ser tificou Mounier a coalisão de diversas tendências em aparência
aquêle que nos atribuímos em 1932: após quatro séculos de disparatadas, mas entre as quais circula a mesma corrente as­
erros, pacientemente, coletivamente, refazer a Renascença" cendente: o desordenado das imagens superficiais, dos diversos
(ibidem, pág. 1 5 ) . personagens entre os quais se divide o homem sem interiori­
Esta convicção preliminar de que uma civilização emerge dade, a complacência nessas imagens, a avareza fundamental
por fôrça das opções e consentimentos, aliás mais vividos e de um ser sem generosidade, a segurança na qual êle se enquista,
"atuados" do que refletidos, por fôrça dos valôres em marcha, e por fim a fria reivindicação, racionalista e jurídica, com a
eis o que Mounier denominava "primazia do espiritual", embora qual êle se protege. Dêsse modo coagula-se um "mundo" do
opondo-o com violência ao espiritualismo que desterra o espí­ indivíduo que é simultâneamente o mundo da aparência e da
rito em outro mundo. Mas essa convicção, Mounier não a consideração, o mundo do dinheiro, o mundo da impersonali­
assumiu de saída como problema sociológico preliminar, como dade, o mundo do juridicismo.
questão especulativa da forma: quais são as relações dialéticas Se o mundo do burguês, do qual o indivíduo é o perfil
entre as opções dos homens e os ônus econômicos, políticos, limite, é um mundo baseado no "menos" (amar menos e ser
ideológicos? Esta convicção êle a arriscou e jogou ao mesmo menos) , o mundo do fascista é o mundo do "pseudo" : selli
tempo na leitura do acontecimento e no projeto de tarefa a entusiasmo é uma pseudogenerosidade, seu nacionalismo uma
empreender. Nesse sentido ela pertence antes à ordem da pra­ pseudo-originalidade, seu racismo uma pseudoconcreção, sua
xis que da the01·ia: é assim que se estimula qualquer conversão, agressividade uma pseudofôrça. Tal foi o grande equívoco dos
qualquer pedagogia, qualquer Reforma. anos de 1933 a 1939, cuja impostaria foi desmascarada em defi­
ílste mesmo estilo prático se reconhece na própria eluci­ nitivo em Buchenwald.
dação do tema personalista: desde o início evita Emmanuel Mou­ Assim o mundo da pessoa se reconquista graças à sua per­
nier começar por definições abstratas; orienta-se antes, por um da e caricatura.
certo tato concreto, por entre fórmulas de civilização, exercendo
uma espécie de "discernimento dos espíritos". :Bsse tato procede
antes de mais nada de maneira crítica: tôdas as pesquisas per­ 2. O Mundo da Pessoa
sonalistas de antes da guerra começam pelo "estudo crítico das
for�as de �ivilização cujo ciclo se encerra ou daquelas que, por É ainda como "mundo da" pessoa que esta é antecipada
melO de onentações primeiras, procuram se lhes suceder" (ib;­ de modo positivo. Por certo, já em 1932, encontramos fórmu­
dem, pág. 1 5 ) . A maneira própria de Emmanuel Mounier é las tendentes a uma definição estrutural, tal como se há de
de reassumir êsses tipos de civilizacão em "formas puras" "dou­ encontrar com freqüência após a guerra: assim a pessoa se
trinas limite", "direções experimentais" (Révolution pe;sonna­ opõe ao indivíduo como a unidade viva para além dos perso­
liste . . , pág. 75) . nagens, com "o centro invisível ao qual tudo se vincula" (Révo­
lution personnaliste . . . , pág. 69 ) , como a "cifra única", que
.

O burguês é a "figura" fundamental a servir de contraste·


aqui o demônio de Sócrates diz não. A chave de tôdas as ob: seria uma "presença em mim" (ibidem) . Repugnam-lhe os va­
servações sôbre o mundo do burguês é compreender de modo lôres de fuga e refúgio do espiritualismo. Aspira a transfigurar
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za a avarez�
seu corpo e a história. Mais q�e tudo, ela despre de impersonalidade, o de uma "sociedade de espíritos" realizada,
duo. O indiví duo é exigente e se apode ra; a pessoa da por exemplo, por um congresso científico, e o de uma "socie­
do indiví
e dá-se. Pessoa é generosid ade. . . . dade jurídica contratual" para a qual tende o juridicismo de­
Mas estas fórmulas não se podenam desvmcular do Im­ mocrático.
pulso pelo qual me V?l�o- para um "mundo" en:- v�a� de instau­ Conforme se vê, êsses tipos de sociedade representam me­
ração; são menos deftmçoes da . pessoa �o que mdtc�os v:?ltados nos categorias sociológicas objetivas, à maneira das distinções
para uma civilização a constrmr-se; . � ssm; , a_ v,�caçao nao te!ll elaboradas por Durkheim ou mesmo Bergson, do que -os está­
sentido senão para um mundo da medttaçao , a encarnaçao gios de uma "ascese" dirigida para a figura-limite de uma
senão para um mundo de "comprometimentos", a comunhão, "pessoa de pessoas". Esses estágios melhor se comparariam aos
para um mundo de "despojamentos". Ora, me.ditação, compr? ­ de Kierkgaard num outro registro, ou ainda aos "graus da ciên­
metimento, despojamento descrevem uma soc�edade que sena cia" de Platão e Spinoza; Max Scheler sugeriu manifestamente
uma "pessoa de pessoas" -:- uma comu?idade. A pe.sso.a � é a alguns dêsses estágios. Trata-se em todos êsses casos, não de
figura - limite da comumdade verdade1�a, como o mdiVId?? tipos empíricos surgidos da observação, mas de fórmulas pos­
0 é da não-civilização burguesa e o facciOSO, da pseudociVIh­ síveis de vida em comum, 8: balizar um movimento de cada um
zação fascista. e de todos em direção à perfeição. Trata-se, em suma, de mo­
J'o: nesse sentido que Mounier insistia na partícula copula­ mentos pedagógicos. 4
tiva da expressão Revolução personalista e comunitária; o e
significa a intenção única voltada para o Eu e o Nós ("Se não
fôsse a miséria da linguagem, seria supérfluo falar de filosofia 3. Personalismo e cristianismo
personalista. E comunitária", ibidem, pág. 91 ) ; o despertar
da pessoa é a mesma coisa que a pedagogia da comunidade. Íl aqui que se situa legitimamente a questão das relações
Eis por que não se deve separar as fórmulas sôbre a pessoa entre tal pedagogia e, duma parte, o cristianismo, e doutra, o
do esbôço de uma "ascese comunitária" (ibidem, pág. 96) que marxismo. A conversion do primeiro, a praxis do outro, são evi­
tornamos a encontrar sob formas diferentes nos escritm. de antes dentemente postas em questão por êsse despertar e essa ascese.
da guerra e cujo sentido inteiro está, por sua vez, em ser uma Não se pode negar que aquela pedagogia se inspire dire­
"iniciação à pessoa". Contentar-me-ei de relembrar apenas seus tamente no tema cristão da "santificação": a figura do "santo"
pontos mais importantes, de vez que meu objetivo não é resu­ atrai a si a comunidade personalista, da mesma forma c-omo
mir a pesquisa de Emmanuel Mounier, mas pôr em relêvo os
respectivos processos e intenções. 4 Não posso, no quadro de um estudo sôbre Emmanuel Mounier
A partir de 1932, via êle no "Alguém" como Heidegger filósofo, mostrar como uma pedagogia engloba uma política, isto é, de
(Révolution personnaliste . . . , pág. 79) aquela figura-limite da que modo aquela supõe esta última, situando-a em perspectiva mais
despersonalização maciça muito bem ilustrada pela "insulsa ge­ vasta. :É ainda a figura típica do burguês que faz do problema do
dinheiro a chave de tôdas as análises sociológicas de Mounier: Argent
léia dos leitores de Paris-Sair" (ibidem, pág. 80 ) ; depois, pas­ et Vie privée, Anticapitalisme, Note sur la propriété, etc . . . (Révolution
sava êle ao nível das sociedades caracterizadas pelo "quanto a persomzaliste, págs. 147 e segs.) ; De la Propriété capitaliste à la pro­
nós", parcialmente realizadas pelos grupamentos de "partidá­ priété humaíne (Aubier, 1934; retomado em Liberté sous conditions,
1949). Seria preciso ver de que modo se vincula à pedagogia de Mounier
rios" e fundadas na camaradagem e no companheirismo; a abne­ sua "ética das necessidades" que inspira suas posições com relação à
gação e o heroísmo dêles nos colocam acima das "sociedades vi­ propriedade e ao socialismo. Sobretudo, porém, não deveria um estudo
tais", dirigidas para os valôres do bem-viver, da felicidade, mas filosófico ofuscar a luta constante contra o preconceito antitecnicista:
que lhes sã-o inferiores devido à destruição da iniciativa indivi­ "Não é o personalismo um jardim fechado, no qual o dvilizado se
abriga da civilização, mas o princípio que deve animar, restabelecendo-a
dual e da espontaneidade nas relações mútuas. Mais acima em seu nível próprio, tôda civilização" (Révolution personnaliste,
acham-se as "sociedades racionais", que oscilam entre dois níveis pág. 152).
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Seria o caso de se dizer que o personalismo é, por exce­
a do "her6i'*, a sociedade Iascita (Révolution personnaliste . . . , lência, cristão (e católico)? Não correria a comunidade o risco
pág 75 · Manifeste . . . , pág. 79 ) . . de se tornar uma projeção temporal e laicizada do "reino de
· A generosidade da pessoa tem por paradigm� a v1rtu�e
, Deus", como precisamente a "cidade dos fins" do kantismo ou
teo!ogal da caridade, e a mutualidade. das pessoas a comunh�o a sociedade sem classes do comunismo? Por outro lado, não é
d08 sant,os" confessada no Credo cnstão. Um pequeno en � a10,
de e ,
intitulado - apenas uma questão de ortodoxia cristã, mas algo que diz res­
escn'to dur�nte 0 inverno. 1939 _
Personna l!sme
· peito à possibilidade de colaboração de cristãos (de confissões
et Christianis me, s vincula de modo expresso � pregaçao cnsta, diferentes) e não cristãos no seio de um personalismo relati­
que rompia com as maneiras do pensamento 1mpes�oal ,� natu­ vamente coerente. Ora, Mounier jamais cessou de afirmar que
ralista dos gregos, o acesso ao mundo da pessoa; e � exube­ tal colaboração era, em princípio, possível.
rância divina" (pág. 20) que suscita centros pessoa1s de res­ Parece-me que aqui a posição de Gabriel Marcel sôbre as
ponsabilidade, sêres capazes de dizer ."Adsum!" pres�nte! (pág. relações entre pesquisa filosófica e fé cristã é muito esclarece­
25) ; é 0 mesmo influxo cristão que mvoc� o despo! ame�to do dora: o tema da pessoa surge e ganha significação numa zona
ser, que dêsse convida à pobreza de �enllmentos: ,TomfJCa e "pericristã" da consciência ética, numa zona de sensibilização
viriliza a pessoa, mas desarma-a. Aqmeta-lhe as vontades para que recebe verticalmente a prédica cristã e lateralmente a in­
abri-Ia ao abandono" (pág. 3 1 ) . Outros, que não eu, hão de se fluência fecundante das atitudes cristãs mais autênticas, mas
pronunciar sôbre aquilo que o cristianismo de Emmanuel Mou­ que, por essa dupla fecundação, explícita suas possibilidades
nier possuía de especificamente católico, não sàmente do ponto próprias. Pelo cristianismo o homem ético, o homem capaz de
de vista da doutrina católica da autoridade (págs. 54-60), mas civilização, abre-se às suas próprias antecipações. Se é assim,
também quanto à doutrina do pecado (contra Lutero, págs. o personalismo não será nem confusão no que toca ao cristia­
50 58 67) e sobretudo da "natureza" (páginas capitais: nismo, nem ecletismo no que toca ao lado não cristã-o.
69:72) ; ' de modo geral se acha Mounier na linha de um to­ É nesse sentido, parece-me, que Emmanuel Mounier se
mismo essencial, cujo humanismo lhe surge como linha de refere a "valôres", a "escala de valôres" (materiais, vitais, ra­
cumieiras entre o pessimismo luterano e o otimismo do Século cionais, espirituais) ; mais ou menos como Max Scheler e seu
das Lnzes. Mas sua função própria, em relação a êsse tomismo discípulo Paul Landsberg, de quem foi amigo até sua morte
essencial é ter estendido ao máximo a noção de "natureza" no
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trágica no exílio, Mounier interpreta os valôres como exigências


sentido da invenção histórica, da audácia e do risco: eis por permanentes, mas inconsistentes fora da história escrita por pes­
que, finalmente, êle prefere referir-se à "condição humana" an­ soas. O personalismo supõe, portanto, uma ética c-oncreta, re.:.
tes que a "natureza humana" ( ibidem, pág. 72 ) . !ativamente independente da fé cristã, independente quanto a
suas significações, dependente quanto ao ato de seu apareci­
5 Liberté sous conditions. Três ensaios : Personalisme et christia� mento em tal ou tal consciência. É ainda nessa perspectiva que
nisme (1939); De la propriété capitaliste à la pr�priété humaine (1934 ) ; Mounier, antecipando-se já antes de 1939 ao seu futuro debate
Anarchie e t persowwlisme ( 1937), Ed. du Semi, 1946 (Oeuvres, t . I, com <O existencialismo, evoca a existência de uma "natureza hu­
Ed. du Seuil) .
6 "O que a Igreja sempre h á de conservar do "natur�Ii�mo" de �ão
mana", de uma "verdade fundamental" para a qual procura
Tomás é, antes de tudo, a afirmação de humanism� cnstao, qt;te . e a
alma de tal "naturalismo" (contra Lutero, a ortodoxta e o pesstmtsmo 7 Leia-se de Landsberg, em Esprit: "L'anarchiste contre Dieu", abril
dos políticos realistas) " . . . É em seguida a idéia de que as �o�s�ruções de 1937; "Refléxion sur l'engagement personnel", nov. 1937; "Intro­
mais aventurosas do homem devem repousar num solo pnmano, em duction à une critique du mythe", janeiro de 1938; "Kafka et la mé!a­
algo de nativo . . . " (contra a antropologia racionalista e sua idéia de morphose", set. de 1938; "Le sens de l'action", out. de 1938; "Note;s
uma invenção do homem pelo homem sem estrutura e sem fundamento)
• • • É nesse sentido que uma política católica há de sempre recordar sur la philosophie du mariage", abril de 1939; "Refléxion sur une phi­
-
11

losophie de guerre", out. de 1939. _


Prob/emes du Personnalmne, Ed.
às utopias evangélicas ou racionalistas o valor dos vínculos, o pêso da
du Seuil, 1952.
duração, os limites do sonho" (ibidem, pág. 7 1 ) .

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apenas uma "emergência histórica" nova' (Manifeste . . , págs.
. a mentalidade total da ' 'pedagogia" personalista que é mister
.
·
d as vezes I'nsistido . na conti- confrontar com a mentalidade total da praxis comunista.
8, 13-1 4). Que êle tenha o mais
nuidade entre sua fé cristã e sua indag a � ão per� onali
,

�.
s�a, � c sa O que o personalismo reprova no marxismo é, precisa­
natural do ponto de vista �es �a m� sma md
agaç �o, mats vme . a­ mente, ser menos que um despertar, que uma pedagogia. Na
,.
da à pedagogia do que à cnten_ologi� a ; peda �ogia e em. Moum:r,
çao
época do Manifeste au Service du personnalisme, tinha essa crí­
por temperamento, mais sens1vel a contm"':tdade da " msptra tica certo sabor idealista; dirigia-se particularmente contra a
tinuidade das noçõe s. Mas, todas as vezes que o mentalidade "cientificista" do marxismo; sua ·enfeudação ao
que à discon
problema da colaboração com u� . não-cristão ascen?e ao pn­ positivismo torna-o " a filosofia derradeira duma era histórica
.
meiro plano, é tal autonomia de ehca concreta que ele Invoca que viveu sob o signo das ciências físico-matemáticas, do racio­
E então, nem mesmo se diz que só ao cristão caiba função nalismo particular e assaz estreito que daí nasceu, do sistema
fecundadora nessa tarefa de descobrir em comum o mundo da inumano e centralizado de indústria, que provisoriamente lhe
pessoa; tem sucedido que as cristandades de f�to; �s cristan�ade� encarna as aplicações técnicas" ( ibidem, pág. 5 2 ) . Mas atrás
estabelecidas, bloquearam certas aberturas histoncas da fe; dai dêsse processo de cunho teórico, o que está em causa é o sen­
acontecer que tal heresia, tal pensamento descristianizado, se tido da açã-o revolucionária; a verdadeira questão é esta: em
encontrem em melhor situação para libertar o setor de valor que se apóiam afinal os marxistas para realizarem o homem
que tais cristandades omitiram ou mesmo mascararam. Eis nôvo? No efeito futuro das mudanças econômicas, políticas, e
por que, se o personalismo é uma pedagogia, o cristão não é não na atração que os valôres pessoais exercem desde agora
obrigatoriamente o pedagogo do agnóstico, mas aprende sem sôbre os homens revolucionários. Só uma revolução material
cessar com o não-cristão o que êsse poder civilizador do homem radicada num despertar personalista teria significado e oportu­
ético ao qual a cristandade de fato tantas vêzes o "dessensi­ nidade. O marxismo não é uma educação, mas um amestra­
biliza". Da mesma forma, está o cristão muitas vêzes bastante menta (ibidem, pág. 60) : eis por que é "um otimismo do ho­
atrasado em relação ao não-cristão, por exemplo na linha da mem coletivo que mascara um pessimismo radical da pess-oa"
compreensão da história, da dinâmica social e política (Révo­ (ibidem) .
lution personnaliste, págs. 103, 1 1 5, 121-131, 140-143 ) . É justamente aqui que se situa o cerne do debate: a con­
vicção do personalismo que não se vai ao encontro da pesssoa
se ela não é, originàriamente, itquilo que faz exigência, que
4. Personalismo e marxismo exerce pressão através da revolta dos famintos e dos humilha­
dos. O perigo duma revolução que não erige sua própria fina­
É aqui que se pode legitimamente inserir o debate de Mou­ lidade como fonte, como meio, é envilecer o homem, a pretexto
nier com o marxismo : da mesma forma como seu personalismo, de libertá-lo e renovar apenas a fisionomia de suas alienações.
interpretado, no após-guerra sobretudo, como uma das filoso­ Esta crítica fundamental contém em germe tôdas as outras, na
fias da existência, se presta a um debate com aquilo que se con­ ordem da explicação histórica, bem como no plano da tática
vencionou denominar existencialismo em sentido estrito, assim revolucionária, e hoje da estratégia mundial. Mas só a recon­
também o projeto primitivo de uma civilização se presta a um quistamos ao recuperar, para além de tôda "teoria" persona­
confronto com o marxismo. Seu senso agudo dos determinis­ lista, sua intenção educativa. Em particular, torno a encontrar
mos a serem compreendidos e orientados leva-o até os limites essa censura entre a pedagogia de Mounier e a praxis comu­
do "realismo socialista"; "por ter captado a confiança do mun­ nista, quando êle se recusa a considerar como normativa a
do da miséria" (Manifeste, pág. 43 ) , não pode o marxismo ser única história escrita realmente pelo Partido Comunista: um<J
abordado como os valôres negativos do mundo burguês e os pedagogia também se abre para as possibilidades do homem
pseudovalôres fascistas. Mas, sobretudo, para além de todo que o estreito êxito histórico exclui. O sentido duma ética con­
confronto acadêmico de noção a noção, de teoria a teoria, é creta é, precisamente, transcender, por fôrça de tôda sua exi-
146 147
gência revolucionária, o fio exíguo da história efetiva, n �o con� ��lism_e d �, 1950 vinculam-se a essa terceira linha, propriamente
fiando "o tesouro espiritual da Humanidade a êsse cantao par­ filosoflca , na qual o acento se desloca dos problemas de civi­
tidário nesse cantão da duração temporal!" (Révolution person­ lização e revolução para os problemas sobretudo teóricos de
naliste, pág. 140 ) . estrutura e estatuto existencial da pessoa.

DO EDUCADOR AO FILÓSOFO
1. uAntipurismo" e (<otimismo trágico".

A Frente Popular, a Guerra de Espanha, Munique, a Guer­


Qu'est-ce que le personnalisme? é uma retomada do Ma­
ra Mundial, a Resistência, a política das frentes nacionais . . . ;
poderia a "filosofia" personalista atravessar incólume tal den­ nifeste de 1936, após dez anos de história. Confirma-o quanto
sidade de acontecimentos, nenhum dos quais foi apenas um ao fundo, mas desloca-lhe a extremidade. Com efeito, se o
fato bruto, a sofrer e a explicar, mas foi, cada qual, também desprêzo do homem é o perigo específico da revolução mar­
uma questão que se apresentava e a oportunidade de uma op­ xista, a ética personalista também possui seu perigo peculiar,
ção? Outros, que não eu, dirão aqui quais foram essas opções, digno também de uma autocrítica: "Uma certa preocupação
sua liberdade e coerência. de pureza tendia a ser o sentimento diretor de nossa atitude:
Vejo, em tais oportunidades, lançar-se o pensamento de · pureza de valôres, pureza de meios. Nossa formação de inte­
Emmanuel Mounier em três direções: de um lado, o seu perso­ lectuais nos inclinava a procurar tal purificação antes de mais
nalismo, a criticar-se a si mesmo, põe-se em guarda contra suas nada em uma purificação dos conceitos, e o individualismo da
próprias tentações, puristas, idealizantes, anarquizantes, e faz época, oontra o qual nos erguíamos, não deixava de marcar-nos,
o esfôrço máximo no sentido de tornar-se dócil ao ensino do desviando-nos, nessa revisão doutrinária, no sentido de um zêlo
movimento da história: situam-se nessa linha Q'est-ce que le por demais exclusivo de nossos comportamentos individuais"
personnalisme? s e La Petite Peur du XXe siêcle. 9 Mas, ao (pág. 1 6 ) . Contra "o demônio da pureza" (pág. 20) , é neces­
. mesmo tempo que desaprova um "personalismo da pu­ sário aquilatar cada vez melhor o pêso das situações, para as
reza", Mounier aprofunda e purifica o motivo cristão de seu quais não contribuímos, que só em parte compreendemos e que
personalismo. Não se deve violar o antipurismo dos dois livros só parcialmente dominamos, e compreender que essa sujeição
precedentes da purificação evangélica que se exprime em L'Af­ não é de modo algum uma maldição: ela maltrata o Narciso
frontement chrétien. lO É em função dessas duas linhas de pen­ que se esconde em nós. "Só somos livres na medida em que não
samento que se deve apreciar o esfôrço "filosófico" (em sen� somos inteiramente livres" (pág. 2 6 ) . Já se esboça aqui o tipo
tido estrito) para situar o personalismo em relação às ciências de filosofia da existência que o personalismo privilegia: sua li­
do homem, de um lado, e em relação às filosofias da existência, berdade não será gratuita, mas fundar-se-á na necessidade com­
do outro. O grande Traité du caractêre 11 - grande no tama­ preendida e na responsabilidade exercida. Esta vista de olhos
nho, na amplidão da perspectiva e na quantidade das questões sôbre "a liberdade sob condições" se transforma aqui numa crí­
abordadas - a /ntroduction aux existentialismes 12 e o Person- tica ao espírito de utopia que desejaria elaborar o esquema de
uma sociedade e as regras de uma ação a partir de princípios,
8 Qu'est-ce que le persomwlisme? Ed. du Seuil, 1947 (Oeuvres,
t. III).
sem jamais incorporar a esta pesquisa a investigação do acon­
9 La Petite Peur du XXe sii!cle. Cahiers du Rhône, La Baconniere tecimento, a exegese das fôrças históricas. Seu êrro é um equí­
et Ed. du Seuil, 1948 (Oeuvres, t. III). voco sôbre o próprio sentido de uma ética concreta: um valor
10 L'Affrontement chrétien. Cahiers du Rhône, Ed. de La Bacon- não se exibe perante uma consciência intemporal estrangeira
niere, Neucbâtel, 1944 (Oeuvres, t. III).
11 Traité du caractere, Ed. du Seuil, 1946 (Oeuvres, t. Il). aos combates do século, mas a um combatente que se orienta
12 lntroduction aux existencialismes, Denoel, 1946 ( Oeuvres, t. III). na crise, discerne para agir e age para discernir: "Um perso-
148 149
nalismo não se pode afirmar, senão no cerne de um juízo his­ preguiças conservadoras ou reformistas. Uma filosofia-espada,
tórico concreto" (pág. 44) . como foi denominado, se transformaria numa filosofia-máscara:
O Manifeste e Révolution personnaliste e t communautaire a bem dizer, uma mistificação" (pág. 9 5).
já c-ontinham tais fórmulas sôbre a afirmação personalista "no La Petite Peur d u XX• Siecle aprofunda inda mais êsse
cruzamento de um juízo de valor e de um juízo de fato", "de exorcismo dos "disparates que se implantam diretamente sôbre
nma direção metafísica precisa e . . . de juízos históricos bem a inspiração personalista", procurando "desmitificar" o catas­
determinados" (Révolution personnaliste, pág. 120 ) . trofismo professado por tantos "espirituais" de nossos dias. A
Assim se inclina a êsse livro a uma interpretação flexível segunda conferência, especialmente, submete a urna espécie de
da dialética marxista, exonerada da hipoteca cientificista. Sua psicanálise social o bloco dos mêdos que se manifestam através
esperança era mesmo ajudar lateralmente -o marxismo a saldar da reação antitecnicista; Mounier vê nisso um mêdo primitivo,
tal hipoteca e a exercer-se no seio do movimento revolucioná­ que é na verdade um mêdo de si mesmo, um mêdo do de­
rio à maneira de um lêvedo, ainda que purgando-se de tôda miurgo que somos por nosso própri-o destino: "A angústia de
tentação anarquizante, sob as rudes lições da eficácia coletiva. uma catástrofe coletiva do mundo moderno é, antes de tudo,
Sua fónnula não era: "Para além do marxismo'' , como se dizia em nossos contemporâneüs, uma reação infantil de viajantes
alhures, mas: "No cerne do materialismo, do coletivismo e do despreparados e endoidecidos" que se apavoram com a "deriva
espiritualismo" (pág. 8 1 ) . Emmanuel Mounier entrevia no após­ longe dos portos" (pág. 32). "Coletivamente, estamos todos,
-guerra a convergência de um "marxismo aberto" e de um "rea­ face à máquina, num momento de confusão" (pág. 5 1 ) . Ater­
lismo personalista" (pág. 79 ) . Deixo de lado o alcance político rorizado outrora pela natureza indomável, o homem o é hoje
imediato de tais fórmulas; para o filósofo, essa esperança a pelo universo humano: a isto, responde êle por "urna reação
longo prazo de "personalizar o coletivismo", embora preservan­ de menino embaraçado" (pág. 83). O método de Mounier con­
do-se das "doenças de infância do pers-onalismo" (pág. 85), re­ siste, pois, em primeiro explicar, e assim reduzir o mito antitec­
pousa na convicção mais profunda do "robusto parentesco" do nicista para focalizar os verdadeiros perigos, os perigos de um
sentido do eterno de um certo sentido da "matéria"; nesse cur­ mundo especificamente humano, perigos provenientes não ape­
to-circuito do céu à terra supera-se a eloqüência vazia dos mo­ nas da máquina, mas de todos os aparelhos abstratos, de tôdas
ralistas, a ruminação dos escrupulosos e a preguiça dos ecléti­ as "mediações" que o homem inventa entre êle próprio e as
cos. Mas em Mounier êsse elogio da matéria nas paragens do coisas, como entre êle e os outros homens (Direito, Estado,
"espiritual" (que se vai achar no Personnalisme de 1950) não Instituições, Ciências, Idiomas, etc. . . . ) : "Onde existe media­
é puramente especulativo: a intuição do espiritual-carnal, do ção, a alienação está à espreita" (pág. 9 1 ) .
eterno-histórico, não apresenta uma vertente filosófica, senão
pelo fato de possuir uma vertente prática. Não nos prepara Esta última observação sugere que a idéia de progresso,
a uma crítica do pessimismo existencialista, senão pelo fato de ainda quando corrigida, não exclui da história uma ambigüidade
estar em comunhão com aquela vontade civilizadora formada irredutível, uma dupla possibilidade de petrificação e de liber­
nos primeiros combates: "Para inserir o personalismo no dra­ tação : as situações que o homem inventou e que depois se
ma histórico dêste tempo, não é suficiente dizer: pessoa, comu­ interpuseram em sua rota como enigmas à espera de decifração,
nidade, homem total, etc. . . . É preciso dizer também: fim da são um complexo de oportunidades e de perigos. Mas a tarefa
burguesia ocidental, advento das estruturas socialistas, função do homem é correr seus próprios riscos; a partida na direção
pioneira do proletariado, e promover com precisão cada vez do artificial vincula-se à própria condição de homem na medida
maior, ano após ano, a análise das fôrças e possibilidades. Sem em que êle tem uma "História" e não mais só uma "natureza".
o que, o personalismo se tornaria uma ideologia boa para tudo Nesse particular, Mounier chega bem perto de Marx: "A natu­
e, privado do acicate revolucionário, escraviza-se a serviço das reza não é apenas matriz da Humanidade: oferece-se ao homem
150 151

I
para ser por êste recriada . . . O hom� m. se vê h�ie cha;nado a 2. Em prol de um cristianismo dos fortes
ser o demiurgo do mundo e de sua propna cond1çao, (pag. 75).
Aqui atinge a reflexão o ponto decisivo: essa história Tal grau de proximidade em relação ao movimento da his­
c-onstitutiva de um destino tomado em conjunto terá acaso sen­ tória conduziria um espírito fácil à divinização do homem. Mas
tido? Orienta-se tal sentido para algo de melhor? Esse algo quanto mais acentuava Mounier seu parentesco com a dialética
melhor terá como caminho por excelência o desenvolvimento marxista, tanto mais êle se reequilibrava por um senso abrupto,
das ciências e das técnicas? E finalmente o sentido dessa as­ virulento, da transcendência cristã. Eis por que não se deve
censão será para o homem "a missão gloriosa de ser o autor tomar La Petite Peur du XX• Siecle sem L'Affrontment chré­
de sua própria ascensão?" (pág. 1 04 ) . Eis o complexo de ques­ tien. Este livro foi escrito em Dienlefit, no inverno de 1943-
tões que constitui o problema do progresso. Emmanuel Mou­ 1944, símbolo de tanta pobreza material e de ascese interior.
nier aborda-o concedendo um crédito de confiança, embora se Outro, que não eu, dirá o que foi em Emmanuel Mounier o
reserve o direito de criticar antes um certo otimismo inicial cristã-o ; quanto a mim, só buscarei nesse livro, tão duro para
que um pessimismo inicial. Todo êsse livro tende a substituir, o cristão ordinário, tão exigente, suas incidências filosóficas.
na alma do leitor, o regime afetivo do "pessimismo ativo" pela Pode-se dizer que êle, por inteiro, uma meditação sôbre a vir­
disposição contrária do "otimismo trágico", isto é, o clima da tude da fôrça, da qual tratou São Tomás, depois dos Padres.
confiança corrigido pela experiência do combate indeciso e obs­ Não é por acaso que essa obra é possuída pela idéia fixa de
curecido pela possibilidade do malôgro. Não se deve acusar Nietzsche como a Petite Peur o é pela de Marx. Pois só o
Mounier de ter sistematizado sua apologia do progresso : suas cristão que tem algo a retrucar a Nietzsche é cristão assaz duro
páginas mais lúcidas são aquelas em que se faz a distinção da para não mais se deixar dissolver na parcela de marxismo que
escatologia cristã do progresso face ao racionalismo do século assume. Nêle se acha a articulação dos dois primeiros grupos
XVIII ou face à dialética marxista. Em particular, o emprêgo de meditações publicadas após a guerra. Nietzsche propõe ao
que se faz do Apocalipse, na primeira e na terceira conferên­ cristão um problema que no fundo o atinge mais perto do cora­
cias, conduz-nos a atribuir ao otimismo posição privilegiada, ção que o marxismo; pois ,o argumento anticristão do marxismo
mas com m] reservas que não temos o direito de negligenciar. ainda permanece muito sociológico para produzir comoção
A bem dizer, o "clima" , o "tom" que Mounier designa pelo
maior: respondeu-me depressa demais que Marx só havia conhe­
nome de otimismo trágico é algo mais complexo do que poderia cido uma caricatura do cristianismo, uma cristandade decaden­
parecer à primeira vista: traz no bôjo duas tendências prestes
te, que se apressava em cobrir os privilégios da burguesia com
a se disso�iarem; uma, que permanece em primeiro plano, tende
_
para o ot1m1smo como resultante final do drama; a outra mais um Evangelho pervertido da resignação. Ao passo que Nietzs­
discreta, tende para o sentimento de ambigüidade da hi�tória, che é aquêle que, para além do malôgro sociológico da cristan­
em cujo seio se digladiam o melhor e o pior. Emmanuel Mou­ dade, pretende descobrir um malôgro de origem, vinculado à
nier pôs sem dúvida em cena um debate de interêsse de histo­ existência cristã como tal; "Será verdade que o cristianismo,
riadores� soc�ólogos,Jilósofos, teólogos; a questão que deixa em capaz de lançar um clarão tranqüilo sôbre as civilizações enve­
aberto e a mterseçao duma teologia bíblica e duma filosofia lhecidas e as vidas em declínio, é um veneno para as muscula­
profana de história, na encruzilhada do otimismo como ba­ turas jovens, um inimigo da fôrça viril e da graça natural ( . . . ) ?
lanço � ositivo, em face dos olhos humanos, e da esperança ( . . . ) Traria acaso o cristianismo em seu bôjo alguma fraqueza
como ftrme certeza de um sentido oculto. Mas uma vez mais liminar cujos efeitos emergem enfim à luz depois de terem
sua tarefa própria é pôr-nos de sobreaviso contra uma aborda­ sido retardadas pela lentidão e a complexidade da história?"
gem especulativa do problema, desvinculada da crítica do mun­ (págs. 1 1 e 14) .
do contemporâneo e isolada do problema central da Revolução Emmanuel Mounier procura servir-se da "conversão atéia"
do século XX. como provação à "conversão cristã" (págs. 23-24).
152
]53
A primeira iniciativa do cristão, s-ob a conduta do "�ava­ intenção civilizadora das primeiras pesquisas e sem vincular-lhes
leiro vestido de sombra", é tomar a encontrar aquela qualidade a dupla autocrítica sugerida pelo encontro de Marx e Nietzsche.
do trágico cristão digna do diálogo com Nietzsche: trági�o de O personalismo aperfeiçoou seu alcance filosófico de dupla
paradoxo - pois que é preciso m.orr�r ao mundo e nel: se maneira: de um lado, pondo-se em confronto com as ciências
empenhar' afligir-se pelo pecado e rejubi1ar-se pelo homem novo . do homem, com os processos objetivos, portanto, para a eluci­
Mas que decadência' dêsse trágico ao "espírito de nôvo-rico" dação da pessoa. Doutro lado, situando-se em relação às filo­
do cristão ordinário' à "tristeza terna e algo estúpida" do con­ sofias da existência. As duas emprêsas são convergentes, con­
trito à "náusea de viver dos desfavorecidos ou dos anêmicos .J
forme se verá.
do �ombate espiritual", à "rovardia espiritual" e à "morna e Deve-se dar precedência ao Traité du caractere em relação
estéril pureza" dos vir�uos?s! . . . aos dois outros livrinhos, ainda que só por sua amplitude; mas
A segunda iniciativa e descobnr no cerne do cnstmmsmo .

principalmente, porque sob muitos aspectos êle é comparáv�l


autêntico êsse momento que transborda do trágico e o distingue, aos livros habituais dos filósofos. Isto se deve antes de mais
afinal' do desespêro: "Existe no cerne do cristianismo, para nada às circunstâncias em que foi escrito; ns lazeres forçados
além da ascese do paradoxo, da angústia e do aniquilamento, da prisão e o longo retiro de Di�nlefit col<:cavam Em':'anuel
uma ascese da simplicidade, da disponibilidade, da paciência, Mounier em atitude assemelhada a dos psiCologos e filosofas?
da humildade fiel, da doçura e, deve-se mesmo dizer, da fra­ a obra nascida dessas circunstâncias excepcionais mostra aquilo
queza, da fraqueza sobrenatural" (pág. 37). É mesmo, segundo
Mounier, nesse fletir-se do trágico à "fraqueza" que se encon­ que poderia ter sido a obra teórica que Mounier sacrificou em
tra a armadilha da insipidez, da falta de côr, da vileza e de benefício do movimento Esprit. O ponto de vista da obra, por
tôdas as fugas. outro laoo, situa-o na fronteira do conhecimento objetivo e da
"Há uma côr e uma fôrça vital no instante que se perde
, , compreensão existencial, na fronteira d� ci.ê�cia � do "m�stério
realmente antes de serem reencontradas no fim da liberdade es­
pessoal". As inumeráveis leituras de psi�OfisiO]og�a, de psico�a­
_
tologia, de psicanálise, de caracterol�gm, de psico�o _
piritual. Existe um primeiro empobrecimento real de nossa hu­ �Ia soem]
manidade pela Fé" (pág. 37). etc. fazem dêsse tratado uma vasta smtese onde multiplas dis­
É então preciso ainda que o cristão aprofunde o sentido
cipÚnas objetivas se integram sob a direção do tema personalista.
de sua humildade e a dissocie impiedosamente dêsse servilismo O interêsse dêsse livro está, pois, em pôr à prova a capa­
que assume tantas faces desprezíveis: neo-realismo e legalismo, cidade compreensiva da noção de pessoa do ponto de vista do
gôsto pelas direções espirituais que nos livram de escolher, e ,. conhecimento objetivo. Seria, pois, errado encerrar o persona­
essa resignação aos acontecimentos denunciada por Marx . . . lismo num confronto com o existencialismo; seu alcance não é
O verdadeiro cristão é aquêle homem livre e altivo que só se liminarmente polêmico, mas integrativo: ! pessoa transcende por
dobra diante de Deus e não desanima no caminho "do abai­ certo o objetivo, mas antes de tudo a ele se assemelha e com
xar-se ao afrontar" (pág. 8 1 ) . êle se confronta.
Dêsse modo, ela coincide parcialmente com � noção de
3. Pessoa e caráter
"estrutura" a que psicólogos, psiquiatras, caracterologos con­
temporâneos dão prevalência em relação à no�ão de ��e�e�t?.
Mas no momento em que esposa estas pesqmsas, o m1steno
Não se poderia abordar os livros mais especialmente "filo: pessoal" possibilita o esbôço de uma crítica da ':edução das es­
sófic-os" - o Traité du caractere, a /ntroducüon aux existen­ truturas a tipos, a realidades puramente estatisllcas: o tipo _
tialismes, o Personnalisme 13 -sem ter presente ao espírito a exprimiria principalmente o contôrno exterior de uma Iimitaçã� ,
13 Taité du Caractere, Ed. du Senil 1946. - lntroduction aux Exis· o desígnio do malôgro da personalidade antes que o procedi­
tentialismes, Denoel, 1946 . - Le Pe;sonnalisme, col. Que sais-je? P. mento de uma fôrça plástica interior: "Não somos típicos,
U . F., 1950. senão na medida em que deixamos de ser plenamente pessoais"
154
155

I'
(pág. 4 1 ) . Do mesmo modo, embora em coincidência parcial tre o de cima e o de baixo, entre o exterior e o interior, a fim
com os esquemas sintéticos dos patologistas, o tema da pessoa de contra-restar de todos os modos o dualismo sempre a re­
fornece matéria para se resistir ao imperialismo clínico: "Não nascer. Focaliza-se dêsse modo longamente os movimentos pri­
é a perturbação geradora, mas o tema gerador de um psiquismo mitivos da emotividade, que representam "a sacudidela psicoló­
individual que apresentamos como objeto último para o carac­ gica em sua raiz", em seguida as modalidades da fôrça psi­
terólogo" (pág. 44) . cológica e tôdas as "atitudes primeiras, tomadas ao nível do
De maneira mais ampla, recusa-se Mounier a deixar que fluxo vital" que exprimem o acolhimento vital, isto é, o esbôço
o caráter se encerre em meros dados. Deseja mostrar como o de resposta da pessoa às provocações do meio, mas conspiram
eu afirmante retoma seu próprio caráter, ora pela adição de ainda com as faculdades capazes de sacudir (lembro as belís­
seu ritmo e inclinação, ora pela compensaçã-o de suas fraquezas, simas páginas consagradas ao conjugado generosidade-avareza
mas sempre coroando seu sentido por uma operação de valori­ (págs. 332-336), que estão perfeitamente no estilo de nosso
zação. Essa caracterologia aberta confina de início com a ética: amigo - Já está uma das intuições fundamentais que coman­
se o caráter se recebe e se deseja de maneira indivisa: não é dam tanto os estados ético-econômicos sôbre o dinheiro e sôbre
mais possível ter dêle uma ciência apenas objetiva: é-lhe ne­ a propriedade quanto as reflexões metafísicas sôbre a criação
cessária a intuição que gera a simpatia e a vontade que forma e o dom). Então, mas só então, é que vem situar-se a luta pelo
decisões. Dêsse ponto de vista, as observações mais bergso­ real, não ainda no sentido estreito de teoria do conhecimento,
nianas (por exemplo, o parentesco do caracterólogo mais com mas conforme tôda a amplidão de nosso embate com os múl­
o romancista do que com o naturalista) (pág. 42) ; a compreen­ tiplos meios de comportamento, sem excetuar êsse "real mais
são como interpretação pessoal de uma significação pessoal real que o real" que só a imaginação pode sondar.
(pág. 45) são inseparáveis, não só das análises estruturais por É muito digno de -observação que Mounier não tenha acen­
elas perlustradas, mas da pedagogia de conjunto do personalis­ tuado o momento voluntário no conjunto de nossas réplicas às
mo: "Só existe conhecimento do homem numa aspiração de provocações do ambiente; a vontade não é para êle senão a
humanismo conforme a Essência do homem" (pág. 58). "Só impaciência face ao obstáculo na ponta do nosso agir. "A
aquêles que nutrem em relação ao homem aspirações de futuro vontade nada mais é que o próprio ato da pessoa considerada
se acham qualificados para decifrar os mistérios do homem vi­ mais sob seu aspecto ofensivo, do que seu aspecto criador"
vo" (pág. 58) . Assim, a intuição se acha vinculada simultâ­ (pág. 472) . Em suma, êsse tratado é o menos voluntarista pos­
neamente à ciência objetiva, mas também a uma "ciência de I
·' sível, no que se acha de acôrdo com o conjunto de um pensa­
combate" (prefácio). i mento que procura alimentar o poder de afirmação do eu, infe­
É , portanto, essa intenção discreta que liga êsse livro de riormente, no que toca ao impulso vital - superiormente, no
ciência ao personalismo. Em compensação, é de se temer que que diz respeito a uma graça criadora - e lateralmente, no
o pêso dos conhecimentos aflorados não lhe entorpeça o im­ que diz respeito às provocações de outrem. Eis por que o
pulso. Mas faz bem mergulhar na espessura dêsse grande livro; livro não se encerra com aquela avaliação das "grandezas e
assimila-se pouco a pouco seu ritmo próprio, pelos longos misérias da vontade" (págs. 467-477), mas volta à lide em
meandros nos quais seu curso se espraia e parece que tal rumo duas ocasiões: a que lhe oferece o próximo, e a que lhe é for­
fôra exigido pelo assunto: é preciso de início partir do mais necida pelo espaço com tôdas as coisas capazes de serem pos­
baixo e do mais exterior - das "ambiências" sociais e orgâni­ suídas. Assim o "dramático outrem" e "o ter" acrescentam no­

1
cas - para mostrar um homem enquadrado, enraizado, que vas faces a essa compreensão multidimensional do caráter. Ou­
só domina o meio ao qual "pertence" (é êste o tema condutor tras surgem ainda, na linha da valorização, da inteligência e da
da psicofisiologia do caráter, como também da psicologia dos vida religiosa; mas o que é digno de nota é que, nesse tratado
meios geográficos, sociais, profissionais, culturais) : mas era do homem total, as perspectivas não se somam umas às outras,

)
também necessário multiplicar os intermediários psicológicos en- mas se postulam numa reciprocidade sempre reversível: assim
156 157
0 "caráter original" está a agir desde a mais obscura escolha êsse desígnio de mostrar a amplidão presente e a coerência
das provocações iniciais por parte do próp�io v�vente, en:J.u.ant� tradicional dos existencialismos não é estranha às preocupações
que inversamente a vocação passa pelos cammhos e limites fundamentais do movimento Esprit: aproximando o persona­
que debuxam a invencível figura do caráter: lismo cristão de uma das grandes tradições existencialistas e
Tal é a íntima solicitação dessa -obra tao complexa. ao m-ostrar, por um lado, uma origem comum a tôdas as rela­
Vê-se ao mesmo tempo em que sentido a pessoa é caráter: ções existencialistas, uma maneira comum de situar os proble­
0 caráter é outra denominação da pessoa, quando ela se acha mas e os temas comuns, continua Mounier a trabalhar por uma
diante das ciências do homem e atesta seu poder de incorporar união que respeite um pluralismo filosófico, mas conserve uma
e transcender simultâneamente tôdas as dimensões do conheci­ intenção central.
mento antropológico. �ste desígnio tem a servi-lo um método original; em lugar
de escrever uma série de monografias consagradas aos diferen­
tes existencialismos, cada uma das quais teria exigido uma ver­
4. Pessoa e existência dadeira crítica das fontes, das influências e das filiações, prefere
Mounier pôr em evidência "certos temas diretores" comuns em
Congregar e transcender o objeto: tal é precisamente o sen­ tôrno dos quais faz modular sucessivamente as diversas tra­
tido da existência para uma crítica do conhecimento e para uma dições.
ontologia: será pois suficiente trazer à luz essa crítica e essa Se percorrermos êsses "temas diretores", aparecem clara­
ontologia para inaugurar um confronto com as filosofias da mente dois pontos: em primeiro lugar o personalismo uão se
existência. integra às filosofias existencialistas senão em prol de um estoi­
Mas aí o personalismo transpõe para êsse nôv-o plano de rar da filosofia tradicional e em particular da filosofia universi­
referência tudo quanto adquiriu anteriormente à irrupção dos tária: o fim do privilégio, da teoria do conhecimento é o sinal
existencialistas na França, sobretudo sua experiência de uma mais visível dêsse estouro. A problemática do conhecimento
ligação liminar entre pensamento e ação. assim se pode exprimir: como pode uma coisa ser objeto para
Dêsse ponto de vista o Introduction aux existentialismes um sujeito? Em estilo idealista: que é que, do lado do sujeito,
tem um interêsse próprio para a pesquisa doutrinai. Excelente, torna possível o surgir, para êle, de um objeto? Uma proble­
aliás, como introdução histórica, procura êsse livrinho manter mática do conhecimento aborda sem dúvida o homem, mas só
aberto, com o maior ângulo possível, o leque dos existencialis­ sublinhando nêle êsse aspecto que toma possível uma ordem
mos, impedindo que êle se reduza ao de Jean-Paul Sartre (pág. do lado das coisas. É, portanto, em suma, a coerência de um
8 ) . � então em ampla tradição existencialista que se recoloca muudo que se conhece e explica que constitui a preocupação
o personalismo: "Em têrmos gerais, poderíamos caracterizar da teoria do conhecimento, mesmo quaudo só se trata do su­
êsse pensamento como uma reação da filosofia do homem con­ jeito e de suas possibilidades como sujeito. As filosofias da
tra o excesso da filos-ofia das idéias e da filosofia das coisas" existência procuram tôdas recolocar o cognoscente no existente,
(pág. 8 ) . o sujeito uo homem. A omissão do existente é aqui o "pecado
É interessante vermos Emmanuel Mounier, tão zeloso em original filosófico" (pág. 1 9 ) . Esta reintegração da problemá­
proceder a uma ruptura na linha da civilização, dedicando-se ao tica clássica do conhecer no seio de uma problemática mais
contrário a sublinhar a continuidade filosófica da tradição na ampla traz ao primeiro plano a questão da condição humana
qua! se apóia. Isto não nos deve surpreender: já em 1932, tomada em coujunto; devolve-se a prioridade a uma drama­
havm Emmanuel Mounier acentuado que era sôbre um fundo turgia, na qual a liberdade e o corpo, a morte e a falta, a paixão
de Pf!rmanência de valôres que se debuxava a "Revolução per­ e o hábito, a história e a vida privada são as principais provo­
sonalista e comunitária", que essa revolução devia proporcionar cações da reflexão. Face a esta renovação, sente-se tanto me­
uma nova realização histórica a antiga exigência. Além disso, nos estranho quanto é certo que para tal contribuiu. Eis por
158
I 159
que os "temas diretores" da Introducti on aux existentialismes tente, tal como lá se acha; a própria idéia do nada ainda se
. �lte
são parentes chegados dos temas doa1tstaTr ·

,
du carac t"ere e d o
'

segundo a expressao_
inscreve no registro ontológico, de mesmo que as "cifras" se­
gundo Jaspers e o "mistério" segundo Gabriel Mareei.
Personnalisme. O "despertar person
de 1936, soa como o "despertar filosófico" do existencialismo O encontro de Emmanuel Mounier com a ontologia exis­
(págs. 1 5 e 154-155 ) . tencialista me parece ser isto: a intenção educativa de sna obra
Mas é chegado o momento da segunda observaçao: a des­ transborda de uma problemática pràpriamente filosófica - uma
_

peito dêsse parentesco, subsistem certas diferenç�� na intenção crítica e uma ontologia - mas, segundo a expressão proposta
inicial; mesmo quando subordin_am uma problemal!ca de conhe­ mais acima, possui ela valor de matriz filosófica; é capaz de
cimento a uma exegese da condição humana, conservam os exis­ uma filosofia. De que modo?
tencialismos um tom especulativo, teórico, que continua a apa­ A intenção que a anima supõe, em filosofia, um tato, ou
rentá-los à tradição das filosofias clássicas. A crítica do "sis­ melhor, um discernimento, quando ela se projeta ao plano duma
tema" e da "objetividade"' atesta a permanência do problema crítica é uma ontologia.
das relações entre o cognoscente e o mundo. O existencialismo Não é mais sômente na Introduction aux existencialismes
é pois, liminarmente, uma filosofia clássica: J? Or s_?a reflex�o que é preciso descobrir atuante tal discernimento, mas também
sôbre os limites do conhecer revelados pela s1tuaçao do exis­ em Traité du caractere e no Personnalisme. Orienta para um
tente humano; daí a importância de suas discussões sôbre o bom emprêgo da "dramática existencialista", os temas da an­
universal e o particular, a essência e a existência, o conceito gústia, do irracionalismo, da experiência e da presença do nada
e os "existenciais", o mistério e '0 problema; da mesma forma, no ser.
0 problema importante continua a ser o da verdade, - mesmo 1 .0. Antes de mais nada, mais do que qualquer dos exis­
quando se fala de verdade do existente, de verdade subjetiva; tencialismos, acentua Mounier o vínculo e a tensão entre pessoa
ou, em outras palavras, o problema continua a ser o da razã-o e natureza, ou, como tantas vêzes o diz êle próprio, a matéria.
(Karl J aspers diz que a philosophie perenis é por inteiro um Fiel às suas primeiras análises sôbre o conjugado pessoa-indi­
hino à razão) - mesmo quando se opõe extremadamente a víduo, continua a simbolizar por um conjugado de noções dnas
"razão daquilo que tudo abarca, ao entendimento anônimo e direções mais que dois planos; uma direção de emergência ou
analisador. - A filosofia existencialista deseja uma apreensão de transcendência e uma direção de imersão on de incorpora­
nova da objetividade, a elaboração de uma nova inteligibilidade, ção, e continua a referir êsse duplo movimento às atitudes da
e, arriscando por vêzes a expressão, uma nova "lógica filo­ civilização. Não obstante, depois de mais de 1 5 anos, a pers­
sófica,. pectiva ontológica tornou-se mais importante: o personalismo
Parece-me então que o caráter ativo, prospectivo, do per­ "particulariza estruturas" (Le Personnalisme, pág. 6) e bnsca
sonalismo continua a distingui-lo do caráter crítico do existen­ sob o nome de pessoa "o modo especialmente humano da exis­
cialismo; o gôsto de promover uma ação sobrepuja finalmente tência" (ibidem, pág. 9 ) . O têrmo "natureza" ou "matéria" é
o de elucidar significados. doravante mais compreensivo que o de indivíduo e sugere uma
Mais radicalmente, aparenta-se o existencialismo, de nôvo, dialética mais ampla, que, numa nota saída em Esprit, Mounier
à filosofia clássica por sua procura de uma nova ontologia, denominava antropocósmica 14 o otimismo trágico da Petite Peur
único elemento capaz de protegê-lo da tagarelice e do patético
postiço. Para êle a questão fundamental é esta: que significa 14 L'Homme et l'Univers (relatório), maio de 1949, págs. 746�7: o
ser para mim, ser para outrem, ser para o mundo, qual é o homem recapitulação e verbo do universo: "�le hominiza e integra na
ser de todo ente, o ser em geral? Esta última questão, lembra divinização do universo inteiro . . . , êle continua por assim dizer o im·
Heidegger, não se esgota, mas apenas se prepara pela exegese pulso primordial da criação." Mounier não esquece nisso, não obstante,
as ameaças que, por causa da queda original, pesam sôbre essa aven·
da condição humana; já é nela que eston a pensar quando pro­ tura. E essa perspectiva antropocósmica que se abre no final de Ln.
curo elucidar o estatuto do homem como contingente, ali exis- Petite Peur du XXe siCcle.

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nela se inclui (págs. 30-32) , bem como tôdas � s reflexõ� s sôbre do dinheiro e da propriedade ainda se achava no estado de
uma unidade de destino e vocação da Humamdade (pags. 47- filigrana e dá ocasião a que essas categorias essenciais apa­
50 e 101 ) . reçam como que mutiladas e pervertidas pelo isolamento : os
2.o. o "tema do outro" que retém lugar tão grande em temas existencialistas "ignoram as disposições de repouso, aco­
todos os existencialismos encontra eco semelhante no persona­ lhimento, dom, que são também constitutivas de seu ser".
lismo: mas o sentimento liminar do vínculo entre o pessoal e Da mesma forma, não acentua o Personnalisme o tema
0 comunitário comporta-se também aqui como detector crítico de liberdade, como o Traité du caractere não estabelecia os
no dédalo das análises existencialistas. Não é por acaso que fundamentos do monopólio da vontade; recolocar a liberdade
a originalidade da pessoa se exprime em primeiro lugar na na "estrutura total da pessoa" (pág. 72), é não apenas jun­
comunhão e não na solidão (Le Personnalisme, págs. 35 e gi-la às suas condições - liberdade condicional, diz um capí­
segs.). O que importa é, pois, reencontrar as inferências onto­ tulo, como recordação da coletânea escrita durante a guerra -
lógicas dos "atos originários" pelos quais o eu se abre a ou­ mas também reconhecer os valôres que constituem sua "emi­
trem, passando da preocupação de si mesmo à disponibilidade, nente dignidade" (págs. 83 e segs.) : "Minha liberdade não é
da avareza ao dom. só algo que brota, é algo de ordenado, ou, melhor ainda, algo
Mas no momento em que Emmanuel Mounier se acha tão que se convoca" (pág. 79 ) ; minha liberdade é a de uma pessoa
próximo de Gabriel Mareei, mais uma vez se volta contra todo "situada", mas sobretudo "valorizada". Mounier avizinha-se
"anticoletivismo espiritual" e procura nos aparelhos técnicos e aqui de Seheler, de Buber, de Hartmann, de Gabriel Mareei
abstratos do social a mola básica do comunitário. Observo mes­ - mas na medida de seu estilo próprio: a crítica do burguês
mo que o último livro de Mounier tem como nenhum outro a e da felicidade e a "ascese comunitária" proposta antes da guer­
preocupação do "racional": "Se o pensamento não se toma ra continuam a formar a substância concreta dessa filosofia dos
comunicável e, portanto, impessoal, sob determinado aspecto, valôres.
êle deixa de ser pensamento para se tornar delírio. A ciência 4.0• Finalmente, para Mounier, a liberdade "não é o ser
e a razão objetivas são os suportes indispensáveis da inter-sub­ da pessoa, mas a maneira pela qual a pessoa é tudo aquilo que
jetividade. Da mesma forma, o direito é um mediador neces­ é e o é de modo mais pleno que pela necessidade" (pág. 82 ) ;
sário" (pág. 46). É nesse mesmo espírito que o livro acentua "a pessoa não é o ser; é movimento de ser em direção a ser e
a idéia de uma unidade espácio-temporal do gênero humano, não tem consistência senão no ser que objetiva" (pág. 85). Os
compreendida pelo menos como "movimento para a unificação valôres são precisamente significações de ação que balizam êsse
do universo pessoal". movimento para o ser.
Isso explica a resistência de Mounier às análises de Sartre: Está aqui justamente a principal linha de ruptura com
as de olhar, por exemplo; o olhar de outrem não me cristaliza Sartre.
como objeto senão na medida de minha própria indisponibili­ Não só Mounier lhe faz uma crítica quanto ao método,
dade; crispado sôbre mim mesmo, percebo que as tentativas por ter admitido como exemplares e canônicas, para tôda exe­
alheias me atropelam, mas então "é num projeto prévio de in­ gese da condição humana as experiências autênticas de "não
disponibilidade, e não na minha liberdade de sujeito que apre­ esperança" que reuniu de modo sistemático. "Esta fúria contra
endo o outro como objeto, é na mesma disposição que me o ser acaso não traduziria o ressentimento de ter falhado na­
reduzo a recebê-lo como invasor (lntroduction aux existencia­ quilo que Gabriel Mareei denomina vínculo nupcial do homem
lismes, pág. 1 03 ) . com a vida?" (lntroduction aux existencialismes, pág. 60) . Mas,
3.0. É, por conseqüência, com muita sobriedade, e como atrás dêsse desaeôrdo de método, existe verdadeira oposição
uma "pulsação complementar" da vida pessoal, que Mounier metafísica: "O absurdismo filosófico comporta uma espécie de
introduz os temas do recolhimento, do segrêdo, da singulari­ chantagem lírica. Pela maneira com que por vêzes conduz o
dade, da ruptura. A crítica anterior da vida privada, do mundo debate, parece que não se possa procurar razão ou ser no mundo
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senão por uma sorte d e covardia ou inf� tilismo filosófico, que Teve Emmanuel Mounier, como nenhum daqueles que sou­
uma posição só se p ossa defender a p�rllr do m?m�nto .em Slue be reunir em tôrno de si, o sentido pluridimensional do tema
se torna insustentavel. Ponhamos cobro a tais m1Im1daçoes. da pessoa. Mas a mim me parece que o que nos atraiu para
Não há mais audácia em negar tudo do que em negar menos" êle é algo de mais secreto que um tema de muitas faces -
(ibidem, pág. 62) . Tornamos a topar aqui as observações do a rara concordância entre duas tonalidades do pensamento e
Affrontement Chrétien: o discernimento é débil lâmina a sepa­ da vida: a que êle próprio chamava de fôrça, na esteira dos
rar 0 trágico do desespêro. No fundo, para Mounier, o exis­ antigos moralistas cristãos, ou ainda a virtude do nos pormos
tencialismo sartriano melhor se denominaria inexistencial, por frente a frente- e a generosidade ou abundância do coração,
não ter reconhecido e saudado a generosidade e a superabun­ que corrige a crispação da virtude da fôrça por algo de agra­
dância que atestam, no cerne da pessoa, que sua existência lhe ciado e delicado; é a sutil aliança de uma bela virtude "ética"
é paradoxalmente dada na intimidade de seu querer. Êste dom com uma bela virtude "poética" que fazia de Emmanuel Mou­
do ser torna possível uma verdade para o existente, uma comuw nier êsse homem ao mesmo tempo irredutível e que se dava.
nhão entre os existentes e mesmo uma natureza do existente
que seja o estilo permanente de suas invenções e revoluções.
Se fôsse mister resumir os acôrdos e divergências em estado
nascente que assinalam as duas palavras pessoa e existência,
poderíamos dizer duas coisas:
Pessoa e existência se referem em primeiro lugar a duas
ordens de preocupações que não se correspondem de modo
exato : de um lado, uma preocupação ético-política, uma inten­
ção "pedagógica" vinculada a uma crise de civilização; do -outro,
uma reflexão crítica e ontológica em tensão com uma tradição
''filosófica' ' clássica.
Por outro lado, a pessoa é uma maneira de designar uma
das interpretações da existência, uma vez que nos coloquemos
no plano pràpriamente crítico e ontológico das filosofias da exis­
tência: a palavra acentua então certos aspectos da existência
que a intenção pedagógica do personalismo mantém implícitos:
são aquêles que ainda há pouco acentuávamos, e que dizem
respeito às condições materiais de realização da existência hu­
mana ao caminho comunitário de tal realização, sua orientaçã-o
pelos valôres, seu fundamento no ser, que lhe é mais interior
que ela própria.
Fomos conduzidos a subordinar todos os pontos de vista
novos sôbre a pessoa ao mais antigo; uma pesquisa ética con­
creta, diretamente assentada na "Revolução do século XX". O
confronto instituído pelo Traité du caractere com as ciências
objetivas do homem indica uma outra direção de investigação
que não se deixa abordar na problemática existencialista. As­
s�m, pessoa e indivíduo, pessoa e caráter, pessoa e existência,
sao expressões que assinalam setores diferentes de pesquisa.
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