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PERSONALISMO
EMMANUEL MOUNIER:
UMA FILOSOFIA PERSONALISTA
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projetar de uma nova Renascença. " �efaz�r a Renascenç�" : atitude . . . é uma filosofia, não é sistema. Pelo fato de precisar
eis 0 título do primeiro editorial de Esprtt assmado por Moumer. estruturas, é o personalismo uma filosofia e não apenas uma
Esta palavra de ordem, que vincula uma tarefa a uma cons atitude . . . Mas pelo fato de ser sua afirmação central a exis
ciência de crise assinala os marcos extremos do personalismo tência de pessoas livres e criadoras, êle introduz no cerne de
de 1932 · não s� trata liminarmente, de analisar uma noção, de tais estruturas um princípio de imprevisibilidade que remove
descreve� uma estrut�ra, mas de influir na história por um tôda veleidade de sistematização definitiva" (Le Personnalisme,
certo tipo de pensamento de combate. pág. 6 ) .
Tal intenção vai além daquilo que habitualmente enten A mim me parece, portanto, ter o pensamento d e Emma
demos por uma "filosofia"; ousaria dizer que �mmanuel �ou nuel Mounier de 1932 e 1950 sido um movimento orientado
nier foi o pedagogo, o educador de uma geraçao; com? Peg�y. de um projeto de civilização "personalista" a uma interpretação
Mas seria preciso retirar destas palavras sua dupla hm!!açao; "personalista" das filosofias da existência. O sentido de tal
0 referirem-se a uma infância que nos propomos a conduztr a
translação de acento será delineado com precisão no curso do
idade adulta' e o vincularem-se a uma função de ensino, a um presente estudo.
corpo social já diferenciado (como se diz, por exemplo, a "Edu
cação Pública" ) ; ou ainda diria eu que Mounier p�egou uma
conversão se fôsse possível transplantar essa expressao das co CONVERSÃO PESSOA E PEDAGOGIA COMUNITÁRIA
munidade� religiosas para o plano mais largo de uma civilização
tomada em conjunto. Projetar uma civilização supõe por certo que uma civili
O personalismo: de início, uma pedagogia da vida comu zação é, em parte - e parte decisiva - obra de homens. Fa
nitária vinculada a uma conversão da pessoa. zer, desfazer, refazer a Renascença é tarefa do homem. O per
Em 1932-34, essa intenção mais ou menos do que uma sonalismo se entendia como "o conjunto dos consentimentos pri
"filosofia" no sentido de que o projeto de uma nova época his
P
tórica im licava uma "filosofia" e talvez diversas "filosofias"
mordiais em que se pode fundamentar uma civilização devotada
à pessoa humana" (Manifeste . . , pág. 8 ) .
.
ou menos humana, se escuta antes de tudo o chamado sôbre-hu çãü, ou, mais exatamente, um contrapólo; sob êsse têrmo, iden
mano da história . . . Nosso objetivo longínquo continua a ser tificou Mounier a coalisão de diversas tendências em aparência
aquêle que nos atribuímos em 1932: após quatro séculos de disparatadas, mas entre as quais circula a mesma corrente as
erros, pacientemente, coletivamente, refazer a Renascença" cendente: o desordenado das imagens superficiais, dos diversos
(ibidem, pág. 1 5 ) . personagens entre os quais se divide o homem sem interiori
Esta convicção preliminar de que uma civilização emerge dade, a complacência nessas imagens, a avareza fundamental
por fôrça das opções e consentimentos, aliás mais vividos e de um ser sem generosidade, a segurança na qual êle se enquista,
"atuados" do que refletidos, por fôrça dos valôres em marcha, e por fim a fria reivindicação, racionalista e jurídica, com a
eis o que Mounier denominava "primazia do espiritual", embora qual êle se protege. Dêsse modo coagula-se um "mundo" do
opondo-o com violência ao espiritualismo que desterra o espí indivíduo que é simultâneamente o mundo da aparência e da
rito em outro mundo. Mas essa convicção, Mounier não a consideração, o mundo do dinheiro, o mundo da impersonali
assumiu de saída como problema sociológico preliminar, como dade, o mundo do juridicismo.
questão especulativa da forma: quais são as relações dialéticas Se o mundo do burguês, do qual o indivíduo é o perfil
entre as opções dos homens e os ônus econômicos, políticos, limite, é um mundo baseado no "menos" (amar menos e ser
ideológicos? Esta convicção êle a arriscou e jogou ao mesmo menos) , o mundo do fascista é o mundo do "pseudo" : selli
tempo na leitura do acontecimento e no projeto de tarefa a entusiasmo é uma pseudogenerosidade, seu nacionalismo uma
empreender. Nesse sentido ela pertence antes à ordem da pra pseudo-originalidade, seu racismo uma pseudoconcreção, sua
xis que da the01·ia: é assim que se estimula qualquer conversão, agressividade uma pseudofôrça. Tal foi o grande equívoco dos
qualquer pedagogia, qualquer Reforma. anos de 1933 a 1939, cuja impostaria foi desmascarada em defi
ílste mesmo estilo prático se reconhece na própria eluci nitivo em Buchenwald.
dação do tema personalista: desde o início evita Emmanuel Mou Assim o mundo da pessoa se reconquista graças à sua per
nier começar por definições abstratas; orienta-se antes, por um da e caricatura.
certo tato concreto, por entre fórmulas de civilização, exercendo
uma espécie de "discernimento dos espíritos". :Bsse tato procede
antes de mais nada de maneira crítica: tôdas as pesquisas per 2. O Mundo da Pessoa
sonalistas de antes da guerra começam pelo "estudo crítico das
for�as de �ivilização cujo ciclo se encerra ou daquelas que, por É ainda como "mundo da" pessoa que esta é antecipada
melO de onentações primeiras, procuram se lhes suceder" (ib; de modo positivo. Por certo, já em 1932, encontramos fórmu
dem, pág. 1 5 ) . A maneira própria de Emmanuel Mounier é las tendentes a uma definição estrutural, tal como se há de
de reassumir êsses tipos de civilizacão em "formas puras" "dou encontrar com freqüência após a guerra: assim a pessoa se
trinas limite", "direções experimentais" (Révolution pe;sonna opõe ao indivíduo como a unidade viva para além dos perso
liste . . , pág. 75) . nagens, com "o centro invisível ao qual tudo se vincula" (Révo
lution personnaliste . . . , pág. 69 ) , como a "cifra única", que
.
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apenas uma "emergência histórica" nova' (Manifeste . . , págs.
. a mentalidade total da ' 'pedagogia" personalista que é mister
.
·
d as vezes I'nsistido . na conti- confrontar com a mentalidade total da praxis comunista.
8, 13-1 4). Que êle tenha o mais
nuidade entre sua fé cristã e sua indag a � ão per� onali
,
�.
s�a, � c sa O que o personalismo reprova no marxismo é, precisa
natural do ponto de vista �es �a m� sma md
agaç �o, mats vme . a mente, ser menos que um despertar, que uma pedagogia. Na
,.
da à pedagogia do que à cnten_ologi� a ; peda �ogia e em. Moum:r,
çao
época do Manifeste au Service du personnalisme, tinha essa crí
por temperamento, mais sens1vel a contm"':tdade da " msptra tica certo sabor idealista; dirigia-se particularmente contra a
tinuidade das noçõe s. Mas, todas as vezes que o mentalidade "cientificista" do marxismo; sua ·enfeudação ao
que à discon
problema da colaboração com u� . não-cristão ascen?e ao pn positivismo torna-o " a filosofia derradeira duma era histórica
.
meiro plano, é tal autonomia de ehca concreta que ele Invoca que viveu sob o signo das ciências físico-matemáticas, do racio
E então, nem mesmo se diz que só ao cristão caiba função nalismo particular e assaz estreito que daí nasceu, do sistema
fecundadora nessa tarefa de descobrir em comum o mundo da inumano e centralizado de indústria, que provisoriamente lhe
pessoa; tem sucedido que as cristandades de f�to; �s cristan�ade� encarna as aplicações técnicas" ( ibidem, pág. 5 2 ) . Mas atrás
estabelecidas, bloquearam certas aberturas histoncas da fe; dai dêsse processo de cunho teórico, o que está em causa é o sen
acontecer que tal heresia, tal pensamento descristianizado, se tido da açã-o revolucionária; a verdadeira questão é esta: em
encontrem em melhor situação para libertar o setor de valor que se apóiam afinal os marxistas para realizarem o homem
que tais cristandades omitiram ou mesmo mascararam. Eis nôvo? No efeito futuro das mudanças econômicas, políticas, e
por que, se o personalismo é uma pedagogia, o cristão não é não na atração que os valôres pessoais exercem desde agora
obrigatoriamente o pedagogo do agnóstico, mas aprende sem sôbre os homens revolucionários. Só uma revolução material
cessar com o não-cristão o que êsse poder civilizador do homem radicada num despertar personalista teria significado e oportu
ético ao qual a cristandade de fato tantas vêzes o "dessensi nidade. O marxismo não é uma educação, mas um amestra
biliza". Da mesma forma, está o cristão muitas vêzes bastante menta (ibidem, pág. 60) : eis por que é "um otimismo do ho
atrasado em relação ao não-cristão, por exemplo na linha da mem coletivo que mascara um pessimismo radical da pess-oa"
compreensão da história, da dinâmica social e política (Révo (ibidem) .
lution personnaliste, págs. 103, 1 1 5, 121-131, 140-143 ) . É justamente aqui que se situa o cerne do debate: a con
vicção do personalismo que não se vai ao encontro da pesssoa
se ela não é, originàriamente, itquilo que faz exigência, que
4. Personalismo e marxismo exerce pressão através da revolta dos famintos e dos humilha
dos. O perigo duma revolução que não erige sua própria fina
É aqui que se pode legitimamente inserir o debate de Mou lidade como fonte, como meio, é envilecer o homem, a pretexto
nier com o marxismo : da mesma forma como seu personalismo, de libertá-lo e renovar apenas a fisionomia de suas alienações.
interpretado, no após-guerra sobretudo, como uma das filoso Esta crítica fundamental contém em germe tôdas as outras, na
fias da existência, se presta a um debate com aquilo que se con ordem da explicação histórica, bem como no plano da tática
vencionou denominar existencialismo em sentido estrito, assim revolucionária, e hoje da estratégia mundial. Mas só a recon
também o projeto primitivo de uma civilização se presta a um quistamos ao recuperar, para além de tôda "teoria" persona
confronto com o marxismo. Seu senso agudo dos determinis lista, sua intenção educativa. Em particular, torno a encontrar
mos a serem compreendidos e orientados leva-o até os limites essa censura entre a pedagogia de Mounier e a praxis comu
do "realismo socialista"; "por ter captado a confiança do mun nista, quando êle se recusa a considerar como normativa a
do da miséria" (Manifeste, pág. 43 ) , não pode o marxismo ser única história escrita realmente pelo Partido Comunista: um<J
abordado como os valôres negativos do mundo burguês e os pedagogia também se abre para as possibilidades do homem
pseudovalôres fascistas. Mas, sobretudo, para além de todo que o estreito êxito histórico exclui. O sentido duma ética con
confronto acadêmico de noção a noção, de teoria a teoria, é creta é, precisamente, transcender, por fôrça de tôda sua exi-
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gência revolucionária, o fio exíguo da história efetiva, n �o con� ��lism_e d �, 1950 vinculam-se a essa terceira linha, propriamente
fiando "o tesouro espiritual da Humanidade a êsse cantao par filosoflca , na qual o acento se desloca dos problemas de civi
tidário nesse cantão da duração temporal!" (Révolution person lização e revolução para os problemas sobretudo teóricos de
naliste, pág. 140 ) . estrutura e estatuto existencial da pessoa.
DO EDUCADOR AO FILÓSOFO
1. uAntipurismo" e (<otimismo trágico".
I
para ser por êste recriada . . . O hom� m. se vê h�ie cha;nado a 2. Em prol de um cristianismo dos fortes
ser o demiurgo do mundo e de sua propna cond1çao, (pag. 75).
Aqui atinge a reflexão o ponto decisivo: essa história Tal grau de proximidade em relação ao movimento da his
c-onstitutiva de um destino tomado em conjunto terá acaso sen tória conduziria um espírito fácil à divinização do homem. Mas
tido? Orienta-se tal sentido para algo de melhor? Esse algo quanto mais acentuava Mounier seu parentesco com a dialética
melhor terá como caminho por excelência o desenvolvimento marxista, tanto mais êle se reequilibrava por um senso abrupto,
das ciências e das técnicas? E finalmente o sentido dessa as virulento, da transcendência cristã. Eis por que não se deve
censão será para o homem "a missão gloriosa de ser o autor tomar La Petite Peur du XX• Siecle sem L'Affrontment chré
de sua própria ascensão?" (pág. 1 04 ) . Eis o complexo de ques tien. Este livro foi escrito em Dienlefit, no inverno de 1943-
tões que constitui o problema do progresso. Emmanuel Mou 1944, símbolo de tanta pobreza material e de ascese interior.
nier aborda-o concedendo um crédito de confiança, embora se Outro, que não eu, dirá o que foi em Emmanuel Mounier o
reserve o direito de criticar antes um certo otimismo inicial cristã-o ; quanto a mim, só buscarei nesse livro, tão duro para
que um pessimismo inicial. Todo êsse livro tende a substituir, o cristão ordinário, tão exigente, suas incidências filosóficas.
na alma do leitor, o regime afetivo do "pessimismo ativo" pela Pode-se dizer que êle, por inteiro, uma meditação sôbre a vir
disposição contrária do "otimismo trágico", isto é, o clima da tude da fôrça, da qual tratou São Tomás, depois dos Padres.
confiança corrigido pela experiência do combate indeciso e obs Não é por acaso que essa obra é possuída pela idéia fixa de
curecido pela possibilidade do malôgro. Não se deve acusar Nietzsche como a Petite Peur o é pela de Marx. Pois só o
Mounier de ter sistematizado sua apologia do progresso : suas cristão que tem algo a retrucar a Nietzsche é cristão assaz duro
páginas mais lúcidas são aquelas em que se faz a distinção da para não mais se deixar dissolver na parcela de marxismo que
escatologia cristã do progresso face ao racionalismo do século assume. Nêle se acha a articulação dos dois primeiros grupos
XVIII ou face à dialética marxista. Em particular, o emprêgo de meditações publicadas após a guerra. Nietzsche propõe ao
que se faz do Apocalipse, na primeira e na terceira conferên cristão um problema que no fundo o atinge mais perto do cora
cias, conduz-nos a atribuir ao otimismo posição privilegiada, ção que o marxismo; pois ,o argumento anticristão do marxismo
mas com m] reservas que não temos o direito de negligenciar. ainda permanece muito sociológico para produzir comoção
A bem dizer, o "clima" , o "tom" que Mounier designa pelo
maior: respondeu-me depressa demais que Marx só havia conhe
nome de otimismo trágico é algo mais complexo do que poderia cido uma caricatura do cristianismo, uma cristandade decaden
parecer à primeira vista: traz no bôjo duas tendências prestes
te, que se apressava em cobrir os privilégios da burguesia com
a se disso�iarem; uma, que permanece em primeiro plano, tende
_
para o ot1m1smo como resultante final do drama; a outra mais um Evangelho pervertido da resignação. Ao passo que Nietzs
discreta, tende para o sentimento de ambigüidade da hi�tória, che é aquêle que, para além do malôgro sociológico da cristan
em cujo seio se digladiam o melhor e o pior. Emmanuel Mou dade, pretende descobrir um malôgro de origem, vinculado à
nier pôs sem dúvida em cena um debate de interêsse de histo existência cristã como tal; "Será verdade que o cristianismo,
riadores� soc�ólogos,Jilósofos, teólogos; a questão que deixa em capaz de lançar um clarão tranqüilo sôbre as civilizações enve
aberto e a mterseçao duma teologia bíblica e duma filosofia lhecidas e as vidas em declínio, é um veneno para as muscula
profana de história, na encruzilhada do otimismo como ba turas jovens, um inimigo da fôrça viril e da graça natural ( . . . ) ?
lanço � ositivo, em face dos olhos humanos, e da esperança ( . . . ) Traria acaso o cristianismo em seu bôjo alguma fraqueza
como ftrme certeza de um sentido oculto. Mas uma vez mais liminar cujos efeitos emergem enfim à luz depois de terem
sua tarefa própria é pôr-nos de sobreaviso contra uma aborda sido retardadas pela lentidão e a complexidade da história?"
gem especulativa do problema, desvinculada da crítica do mun (págs. 1 1 e 14) .
do contemporâneo e isolada do problema central da Revolução Emmanuel Mounier procura servir-se da "conversão atéia"
do século XX. como provação à "conversão cristã" (págs. 23-24).
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A primeira iniciativa do cristão, s-ob a conduta do "�ava intenção civilizadora das primeiras pesquisas e sem vincular-lhes
leiro vestido de sombra", é tomar a encontrar aquela qualidade a dupla autocrítica sugerida pelo encontro de Marx e Nietzsche.
do trágico cristão digna do diálogo com Nietzsche: trági�o de O personalismo aperfeiçoou seu alcance filosófico de dupla
paradoxo - pois que é preciso m.orr�r ao mundo e nel: se maneira: de um lado, pondo-se em confronto com as ciências
empenhar' afligir-se pelo pecado e rejubi1ar-se pelo homem novo . do homem, com os processos objetivos, portanto, para a eluci
Mas que decadência' dêsse trágico ao "espírito de nôvo-rico" dação da pessoa. Doutro lado, situando-se em relação às filo
do cristão ordinário' à "tristeza terna e algo estúpida" do con sofias da existência. As duas emprêsas são convergentes, con
trito à "náusea de viver dos desfavorecidos ou dos anêmicos .J
forme se verá.
do �ombate espiritual", à "rovardia espiritual" e à "morna e Deve-se dar precedência ao Traité du caractere em relação
estéril pureza" dos vir�uos?s! . . . aos dois outros livrinhos, ainda que só por sua amplitude; mas
A segunda iniciativa e descobnr no cerne do cnstmmsmo .
I'
(pág. 4 1 ) . Do mesmo modo, embora em coincidência parcial tre o de cima e o de baixo, entre o exterior e o interior, a fim
com os esquemas sintéticos dos patologistas, o tema da pessoa de contra-restar de todos os modos o dualismo sempre a re
fornece matéria para se resistir ao imperialismo clínico: "Não nascer. Focaliza-se dêsse modo longamente os movimentos pri
é a perturbação geradora, mas o tema gerador de um psiquismo mitivos da emotividade, que representam "a sacudidela psicoló
individual que apresentamos como objeto último para o carac gica em sua raiz", em seguida as modalidades da fôrça psi
terólogo" (pág. 44) . cológica e tôdas as "atitudes primeiras, tomadas ao nível do
De maneira mais ampla, recusa-se Mounier a deixar que fluxo vital" que exprimem o acolhimento vital, isto é, o esbôço
o caráter se encerre em meros dados. Deseja mostrar como o de resposta da pessoa às provocações do meio, mas conspiram
eu afirmante retoma seu próprio caráter, ora pela adição de ainda com as faculdades capazes de sacudir (lembro as belís
seu ritmo e inclinação, ora pela compensaçã-o de suas fraquezas, simas páginas consagradas ao conjugado generosidade-avareza
mas sempre coroando seu sentido por uma operação de valori (págs. 332-336), que estão perfeitamente no estilo de nosso
zação. Essa caracterologia aberta confina de início com a ética: amigo - Já está uma das intuições fundamentais que coman
se o caráter se recebe e se deseja de maneira indivisa: não é dam tanto os estados ético-econômicos sôbre o dinheiro e sôbre
mais possível ter dêle uma ciência apenas objetiva: é-lhe ne a propriedade quanto as reflexões metafísicas sôbre a criação
cessária a intuição que gera a simpatia e a vontade que forma e o dom). Então, mas só então, é que vem situar-se a luta pelo
decisões. Dêsse ponto de vista, as observações mais bergso real, não ainda no sentido estreito de teoria do conhecimento,
nianas (por exemplo, o parentesco do caracterólogo mais com mas conforme tôda a amplidão de nosso embate com os múl
o romancista do que com o naturalista) (pág. 42) ; a compreen tiplos meios de comportamento, sem excetuar êsse "real mais
são como interpretação pessoal de uma significação pessoal real que o real" que só a imaginação pode sondar.
(pág. 45) são inseparáveis, não só das análises estruturais por É muito digno de -observação que Mounier não tenha acen
elas perlustradas, mas da pedagogia de conjunto do personalis tuado o momento voluntário no conjunto de nossas réplicas às
mo: "Só existe conhecimento do homem numa aspiração de provocações do ambiente; a vontade não é para êle senão a
humanismo conforme a Essência do homem" (pág. 58). "Só impaciência face ao obstáculo na ponta do nosso agir. "A
aquêles que nutrem em relação ao homem aspirações de futuro vontade nada mais é que o próprio ato da pessoa considerada
se acham qualificados para decifrar os mistérios do homem vi mais sob seu aspecto ofensivo, do que seu aspecto criador"
vo" (pág. 58) . Assim, a intuição se acha vinculada simultâ (pág. 472) . Em suma, êsse tratado é o menos voluntarista pos
neamente à ciência objetiva, mas também a uma "ciência de I
·' sível, no que se acha de acôrdo com o conjunto de um pensa
combate" (prefácio). i mento que procura alimentar o poder de afirmação do eu, infe
É , portanto, essa intenção discreta que liga êsse livro de riormente, no que toca ao impulso vital - superiormente, no
ciência ao personalismo. Em compensação, é de se temer que que diz respeito a uma graça criadora - e lateralmente, no
o pêso dos conhecimentos aflorados não lhe entorpeça o im que diz respeito às provocações de outrem. Eis por que o
pulso. Mas faz bem mergulhar na espessura dêsse grande livro; livro não se encerra com aquela avaliação das "grandezas e
assimila-se pouco a pouco seu ritmo próprio, pelos longos misérias da vontade" (págs. 467-477), mas volta à lide em
meandros nos quais seu curso se espraia e parece que tal rumo duas ocasiões: a que lhe oferece o próximo, e a que lhe é for
fôra exigido pelo assunto: é preciso de início partir do mais necida pelo espaço com tôdas as coisas capazes de serem pos
baixo e do mais exterior - das "ambiências" sociais e orgâni suídas. Assim o "dramático outrem" e "o ter" acrescentam no
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cas - para mostrar um homem enquadrado, enraizado, que vas faces a essa compreensão multidimensional do caráter. Ou
só domina o meio ao qual "pertence" (é êste o tema condutor tras surgem ainda, na linha da valorização, da inteligência e da
da psicofisiologia do caráter, como também da psicologia dos vida religiosa; mas o que é digno de nota é que, nesse tratado
meios geográficos, sociais, profissionais, culturais) : mas era do homem total, as perspectivas não se somam umas às outras,
)
também necessário multiplicar os intermediários psicológicos en- mas se postulam numa reciprocidade sempre reversível: assim
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0 "caráter original" está a agir desde a mais obscura escolha êsse desígnio de mostrar a amplidão presente e a coerência
das provocações iniciais por parte do próp�io v�vente, en:J.u.ant� tradicional dos existencialismos não é estranha às preocupações
que inversamente a vocação passa pelos cammhos e limites fundamentais do movimento Esprit: aproximando o persona
que debuxam a invencível figura do caráter: lismo cristão de uma das grandes tradições existencialistas e
Tal é a íntima solicitação dessa -obra tao complexa. ao m-ostrar, por um lado, uma origem comum a tôdas as rela
Vê-se ao mesmo tempo em que sentido a pessoa é caráter: ções existencialistas, uma maneira comum de situar os proble
0 caráter é outra denominação da pessoa, quando ela se acha mas e os temas comuns, continua Mounier a trabalhar por uma
diante das ciências do homem e atesta seu poder de incorporar união que respeite um pluralismo filosófico, mas conserve uma
e transcender simultâneamente tôdas as dimensões do conheci intenção central.
mento antropológico. �ste desígnio tem a servi-lo um método original; em lugar
de escrever uma série de monografias consagradas aos diferen
tes existencialismos, cada uma das quais teria exigido uma ver
4. Pessoa e existência dadeira crítica das fontes, das influências e das filiações, prefere
Mounier pôr em evidência "certos temas diretores" comuns em
Congregar e transcender o objeto: tal é precisamente o sen tôrno dos quais faz modular sucessivamente as diversas tra
tido da existência para uma crítica do conhecimento e para uma dições.
ontologia: será pois suficiente trazer à luz essa crítica e essa Se percorrermos êsses "temas diretores", aparecem clara
ontologia para inaugurar um confronto com as filosofias da mente dois pontos: em primeiro lugar o personalismo uão se
existência. integra às filosofias existencialistas senão em prol de um estoi
Mas aí o personalismo transpõe para êsse nôv-o plano de rar da filosofia tradicional e em particular da filosofia universi
referência tudo quanto adquiriu anteriormente à irrupção dos tária: o fim do privilégio, da teoria do conhecimento é o sinal
existencialistas na França, sobretudo sua experiência de uma mais visível dêsse estouro. A problemática do conhecimento
ligação liminar entre pensamento e ação. assim se pode exprimir: como pode uma coisa ser objeto para
Dêsse ponto de vista o Introduction aux existentialismes um sujeito? Em estilo idealista: que é que, do lado do sujeito,
tem um interêsse próprio para a pesquisa doutrinai. Excelente, torna possível o surgir, para êle, de um objeto? Uma proble
aliás, como introdução histórica, procura êsse livrinho manter mática do conhecimento aborda sem dúvida o homem, mas só
aberto, com o maior ângulo possível, o leque dos existencialis sublinhando nêle êsse aspecto que toma possível uma ordem
mos, impedindo que êle se reduza ao de Jean-Paul Sartre (pág. do lado das coisas. É, portanto, em suma, a coerência de um
8 ) . � então em ampla tradição existencialista que se recoloca muudo que se conhece e explica que constitui a preocupação
o personalismo: "Em têrmos gerais, poderíamos caracterizar da teoria do conhecimento, mesmo quaudo só se trata do su
êsse pensamento como uma reação da filosofia do homem con jeito e de suas possibilidades como sujeito. As filosofias da
tra o excesso da filos-ofia das idéias e da filosofia das coisas" existência procuram tôdas recolocar o cognoscente no existente,
(pág. 8 ) . o sujeito uo homem. A omissão do existente é aqui o "pecado
É interessante vermos Emmanuel Mounier, tão zeloso em original filosófico" (pág. 1 9 ) . Esta reintegração da problemá
proceder a uma ruptura na linha da civilização, dedicando-se ao tica clássica do conhecer no seio de uma problemática mais
contrário a sublinhar a continuidade filosófica da tradição na ampla traz ao primeiro plano a questão da condição humana
qua! se apóia. Isto não nos deve surpreender: já em 1932, tomada em coujunto; devolve-se a prioridade a uma drama
havm Emmanuel Mounier acentuado que era sôbre um fundo turgia, na qual a liberdade e o corpo, a morte e a falta, a paixão
de Pf!rmanência de valôres que se debuxava a "Revolução per e o hábito, a história e a vida privada são as principais provo
sonalista e comunitária", que essa revolução devia proporcionar cações da reflexão. Face a esta renovação, sente-se tanto me
uma nova realização histórica a antiga exigência. Além disso, nos estranho quanto é certo que para tal contribuiu. Eis por
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I 159
que os "temas diretores" da Introducti on aux existentialismes tente, tal como lá se acha; a própria idéia do nada ainda se
. �lte
são parentes chegados dos temas doa1tstaTr ·
,
du carac t"ere e d o
'
segundo a expressao_
inscreve no registro ontológico, de mesmo que as "cifras" se
gundo Jaspers e o "mistério" segundo Gabriel Mareei.
Personnalisme. O "despertar person
de 1936, soa como o "despertar filosófico" do existencialismo O encontro de Emmanuel Mounier com a ontologia exis
(págs. 1 5 e 154-155 ) . tencialista me parece ser isto: a intenção educativa de sna obra
Mas é chegado o momento da segunda observaçao: a des transborda de uma problemática pràpriamente filosófica - uma
_
peito dêsse parentesco, subsistem certas diferenç�� na intenção crítica e uma ontologia - mas, segundo a expressão proposta
inicial; mesmo quando subordin_am uma problemal!ca de conhe mais acima, possui ela valor de matriz filosófica; é capaz de
cimento a uma exegese da condição humana, conservam os exis uma filosofia. De que modo?
tencialismos um tom especulativo, teórico, que continua a apa A intenção que a anima supõe, em filosofia, um tato, ou
rentá-los à tradição das filosofias clássicas. A crítica do "sis melhor, um discernimento, quando ela se projeta ao plano duma
tema" e da "objetividade"' atesta a permanência do problema crítica é uma ontologia.
das relações entre o cognoscente e o mundo. O existencialismo Não é mais sômente na Introduction aux existencialismes
é pois, liminarmente, uma filosofia clássica: J? Or s_?a reflex�o que é preciso descobrir atuante tal discernimento, mas também
sôbre os limites do conhecer revelados pela s1tuaçao do exis em Traité du caractere e no Personnalisme. Orienta para um
tente humano; daí a importância de suas discussões sôbre o bom emprêgo da "dramática existencialista", os temas da an
universal e o particular, a essência e a existência, o conceito gústia, do irracionalismo, da experiência e da presença do nada
e os "existenciais", o mistério e '0 problema; da mesma forma, no ser.
0 problema importante continua a ser o da verdade, - mesmo 1 .0. Antes de mais nada, mais do que qualquer dos exis
quando se fala de verdade do existente, de verdade subjetiva; tencialismos, acentua Mounier o vínculo e a tensão entre pessoa
ou, em outras palavras, o problema continua a ser o da razã-o e natureza, ou, como tantas vêzes o diz êle próprio, a matéria.
(Karl J aspers diz que a philosophie perenis é por inteiro um Fiel às suas primeiras análises sôbre o conjugado pessoa-indi
hino à razão) - mesmo quando se opõe extremadamente a víduo, continua a simbolizar por um conjugado de noções dnas
"razão daquilo que tudo abarca, ao entendimento anônimo e direções mais que dois planos; uma direção de emergência ou
analisador. - A filosofia existencialista deseja uma apreensão de transcendência e uma direção de imersão on de incorpora
nova da objetividade, a elaboração de uma nova inteligibilidade, ção, e continua a referir êsse duplo movimento às atitudes da
e, arriscando por vêzes a expressão, uma nova "lógica filo civilização. Não obstante, depois de mais de 1 5 anos, a pers
sófica,. pectiva ontológica tornou-se mais importante: o personalismo
Parece-me então que o caráter ativo, prospectivo, do per "particulariza estruturas" (Le Personnalisme, pág. 6) e bnsca
sonalismo continua a distingui-lo do caráter crítico do existen sob o nome de pessoa "o modo especialmente humano da exis
cialismo; o gôsto de promover uma ação sobrepuja finalmente tência" (ibidem, pág. 9 ) . O têrmo "natureza" ou "matéria" é
o de elucidar significados. doravante mais compreensivo que o de indivíduo e sugere uma
Mais radicalmente, aparenta-se o existencialismo, de nôvo, dialética mais ampla, que, numa nota saída em Esprit, Mounier
à filosofia clássica por sua procura de uma nova ontologia, denominava antropocósmica 14 o otimismo trágico da Petite Peur
único elemento capaz de protegê-lo da tagarelice e do patético
postiço. Para êle a questão fundamental é esta: que significa 14 L'Homme et l'Univers (relatório), maio de 1949, págs. 746�7: o
ser para mim, ser para outrem, ser para o mundo, qual é o homem recapitulação e verbo do universo: "�le hominiza e integra na
ser de todo ente, o ser em geral? Esta última questão, lembra divinização do universo inteiro . . . , êle continua por assim dizer o im·
Heidegger, não se esgota, mas apenas se prepara pela exegese pulso primordial da criação." Mounier não esquece nisso, não obstante,
as ameaças que, por causa da queda original, pesam sôbre essa aven·
da condição humana; já é nela que eston a pensar quando pro tura. E essa perspectiva antropocósmica que se abre no final de Ln.
curo elucidar o estatuto do homem como contingente, ali exis- Petite Peur du XXe siCcle.
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nela se inclui (págs. 30-32) , bem como tôdas � s reflexõ� s sôbre do dinheiro e da propriedade ainda se achava no estado de
uma unidade de destino e vocação da Humamdade (pags. 47- filigrana e dá ocasião a que essas categorias essenciais apa
50 e 101 ) . reçam como que mutiladas e pervertidas pelo isolamento : os
2.o. o "tema do outro" que retém lugar tão grande em temas existencialistas "ignoram as disposições de repouso, aco
todos os existencialismos encontra eco semelhante no persona lhimento, dom, que são também constitutivas de seu ser".
lismo: mas o sentimento liminar do vínculo entre o pessoal e Da mesma forma, não acentua o Personnalisme o tema
0 comunitário comporta-se também aqui como detector crítico de liberdade, como o Traité du caractere não estabelecia os
no dédalo das análises existencialistas. Não é por acaso que fundamentos do monopólio da vontade; recolocar a liberdade
a originalidade da pessoa se exprime em primeiro lugar na na "estrutura total da pessoa" (pág. 72), é não apenas jun
comunhão e não na solidão (Le Personnalisme, págs. 35 e gi-la às suas condições - liberdade condicional, diz um capí
segs.). O que importa é, pois, reencontrar as inferências onto tulo, como recordação da coletânea escrita durante a guerra -
lógicas dos "atos originários" pelos quais o eu se abre a ou mas também reconhecer os valôres que constituem sua "emi
trem, passando da preocupação de si mesmo à disponibilidade, nente dignidade" (págs. 83 e segs.) : "Minha liberdade não é
da avareza ao dom. só algo que brota, é algo de ordenado, ou, melhor ainda, algo
Mas no momento em que Emmanuel Mounier se acha tão que se convoca" (pág. 79 ) ; minha liberdade é a de uma pessoa
próximo de Gabriel Mareei, mais uma vez se volta contra todo "situada", mas sobretudo "valorizada". Mounier avizinha-se
"anticoletivismo espiritual" e procura nos aparelhos técnicos e aqui de Seheler, de Buber, de Hartmann, de Gabriel Mareei
abstratos do social a mola básica do comunitário. Observo mes - mas na medida de seu estilo próprio: a crítica do burguês
mo que o último livro de Mounier tem como nenhum outro a e da felicidade e a "ascese comunitária" proposta antes da guer
preocupação do "racional": "Se o pensamento não se toma ra continuam a formar a substância concreta dessa filosofia dos
comunicável e, portanto, impessoal, sob determinado aspecto, valôres.
êle deixa de ser pensamento para se tornar delírio. A ciência 4.0• Finalmente, para Mounier, a liberdade "não é o ser
e a razão objetivas são os suportes indispensáveis da inter-sub da pessoa, mas a maneira pela qual a pessoa é tudo aquilo que
jetividade. Da mesma forma, o direito é um mediador neces é e o é de modo mais pleno que pela necessidade" (pág. 82 ) ;
sário" (pág. 46). É nesse mesmo espírito que o livro acentua "a pessoa não é o ser; é movimento de ser em direção a ser e
a idéia de uma unidade espácio-temporal do gênero humano, não tem consistência senão no ser que objetiva" (pág. 85). Os
compreendida pelo menos como "movimento para a unificação valôres são precisamente significações de ação que balizam êsse
do universo pessoal". movimento para o ser.
Isso explica a resistência de Mounier às análises de Sartre: Está aqui justamente a principal linha de ruptura com
as de olhar, por exemplo; o olhar de outrem não me cristaliza Sartre.
como objeto senão na medida de minha própria indisponibili Não só Mounier lhe faz uma crítica quanto ao método,
dade; crispado sôbre mim mesmo, percebo que as tentativas por ter admitido como exemplares e canônicas, para tôda exe
alheias me atropelam, mas então "é num projeto prévio de in gese da condição humana as experiências autênticas de "não
disponibilidade, e não na minha liberdade de sujeito que apre esperança" que reuniu de modo sistemático. "Esta fúria contra
endo o outro como objeto, é na mesma disposição que me o ser acaso não traduziria o ressentimento de ter falhado na
reduzo a recebê-lo como invasor (lntroduction aux existencia quilo que Gabriel Mareei denomina vínculo nupcial do homem
lismes, pág. 1 03 ) . com a vida?" (lntroduction aux existencialismes, pág. 60) . Mas,
3.0. É, por conseqüência, com muita sobriedade, e como atrás dêsse desaeôrdo de método, existe verdadeira oposição
uma "pulsação complementar" da vida pessoal, que Mounier metafísica: "O absurdismo filosófico comporta uma espécie de
introduz os temas do recolhimento, do segrêdo, da singulari chantagem lírica. Pela maneira com que por vêzes conduz o
dade, da ruptura. A crítica anterior da vida privada, do mundo debate, parece que não se possa procurar razão ou ser no mundo
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senão por uma sorte d e covardia ou inf� tilismo filosófico, que Teve Emmanuel Mounier, como nenhum daqueles que sou
uma posição só se p ossa defender a p�rllr do m?m�nto .em Slue be reunir em tôrno de si, o sentido pluridimensional do tema
se torna insustentavel. Ponhamos cobro a tais m1Im1daçoes. da pessoa. Mas a mim me parece que o que nos atraiu para
Não há mais audácia em negar tudo do que em negar menos" êle é algo de mais secreto que um tema de muitas faces -
(ibidem, pág. 62) . Tornamos a topar aqui as observações do a rara concordância entre duas tonalidades do pensamento e
Affrontement Chrétien: o discernimento é débil lâmina a sepa da vida: a que êle próprio chamava de fôrça, na esteira dos
rar 0 trágico do desespêro. No fundo, para Mounier, o exis antigos moralistas cristãos, ou ainda a virtude do nos pormos
tencialismo sartriano melhor se denominaria inexistencial, por frente a frente- e a generosidade ou abundância do coração,
não ter reconhecido e saudado a generosidade e a superabun que corrige a crispação da virtude da fôrça por algo de agra
dância que atestam, no cerne da pessoa, que sua existência lhe ciado e delicado; é a sutil aliança de uma bela virtude "ética"
é paradoxalmente dada na intimidade de seu querer. Êste dom com uma bela virtude "poética" que fazia de Emmanuel Mou
do ser torna possível uma verdade para o existente, uma comuw nier êsse homem ao mesmo tempo irredutível e que se dava.
nhão entre os existentes e mesmo uma natureza do existente
que seja o estilo permanente de suas invenções e revoluções.
Se fôsse mister resumir os acôrdos e divergências em estado
nascente que assinalam as duas palavras pessoa e existência,
poderíamos dizer duas coisas:
Pessoa e existência se referem em primeiro lugar a duas
ordens de preocupações que não se correspondem de modo
exato : de um lado, uma preocupação ético-política, uma inten
ção "pedagógica" vinculada a uma crise de civilização; do -outro,
uma reflexão crítica e ontológica em tensão com uma tradição
''filosófica' ' clássica.
Por outro lado, a pessoa é uma maneira de designar uma
das interpretações da existência, uma vez que nos coloquemos
no plano pràpriamente crítico e ontológico das filosofias da exis
tência: a palavra acentua então certos aspectos da existência
que a intenção pedagógica do personalismo mantém implícitos:
são aquêles que ainda há pouco acentuávamos, e que dizem
respeito às condições materiais de realização da existência hu
mana ao caminho comunitário de tal realização, sua orientaçã-o
pelos valôres, seu fundamento no ser, que lhe é mais interior
que ela própria.
Fomos conduzidos a subordinar todos os pontos de vista
novos sôbre a pessoa ao mais antigo; uma pesquisa ética con
creta, diretamente assentada na "Revolução do século XX". O
confronto instituído pelo Traité du caractere com as ciências
objetivas do homem indica uma outra direção de investigação
que não se deixa abordar na problemática existencialista. As
s�m, pessoa e indivíduo, pessoa e caráter, pessoa e existência,
sao expressões que assinalam setores diferentes de pesquisa.
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