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Imagem dialética e imagem crítica: conceitos

benjaminianos para pensar arte e emancipação

Bianca Ardanuy Abdala

RESUMO ABSTRACT
Este artigo é uma apresentação do conceito de This article is a presentation of Walter Benjamin’s
“imagem dialética”, enquanto ponto de convergência "dialectical image", as a point of convergence in his
no vasto pensamento de Walter Benjamin. Na method. In the general formulation presented here, it is
formulação geral aqui exposta, busca-se iniciar a sought to begin the reflection on the role of aesthetic
reflexão sobre o papel da experiência estética nas experience in the possibilities of emancipation in late
possibilidades de emancipação do sujeito no capitalism. A starting point for articulations with the
capitalismo tardio. Propõe-se um ponto de partida contemporary situation is proposed through the concept
para articulações com a situação contemporânea of "critical image" by Georges Didi-Huberman.
através do conceito de “imagem crítica”, elaborado
por Georges Didi-Huberman. Keywords: Aura; Flâneur; Benjamin; Art; Dialectical
Image.
Palavras-chave: Aura; Flâneur; Benjamin; Arte;
Imagem Dialética.

http://dx.doi.org/10.18830/issn.2238362X.n1.2018.3
“A Arte é o meio mais seguro tanto de alienar-se do mundo como de penetrar nele”1
Goethe

Goethe, F.W. Maximes et


1
Introdução acadêmico com o fim da ditadura militar, quando as
ideias puderam circular sem a mesma repressão. A
réflexions, trad. G. Bianquis,
Este texto é uma apresentação do conceito de pesquisa sobre o autor cresceu, embora o clima
París: Gallimard, 1 943, p. 67.
“imagem dialética”, enquanto ponto de esperançoso pós-eleições diretas brasileiras tenha
convergência no vasto pensamento de Walter desaparecido e a preocupação com os efeitos do
2
Benjamin (1892-1940). Na formulação geral aqui processo de globalização tenha se imposto.
Associo a abordagem
exposta, busca-se iniciar a reflexão sobre o papel da
benjaminiana da arte moderna à
filosofia da práxis de Gramsci. O experiência estética nas possibilidades de No campo da arquitetura e urbanismo, de onde
filósofo da práxis “não só emancipação do sujeito no capitalismo tardio. Ciente falamos, Walter Benjamin passou a ser mais citado, na
compreende as contradições, da abrangência do pensamento benjaminiano – que última década, com a popularização da flâneurie como
mas coloca a si mesmo como transita simultaneamente pelos campos da história, tipo de “errância urbana”6. O que vale citar, em meio
elemento da contradição, eleva arte, filosofia, teoria literária, etc. – propõe-se um às tendências da disciplina e ao mesmo tempo à parte
este elemento a princípio de ponto de partida para articulações com a situação delas, é como a figura alegórica do flâneur7 pode
conhecimento e, contemporânea através de provocações e promover o debate sobre a experiência na metrópole
consequentemente, de ação” apontamentos de possíveis atualizações dessa moderna e contemporânea. Na cidade
(GRAMSCI, 201 1 , p. 204). “estética crítica” que, certamente não por acaso, tem espetacularizada de hoje, restam potências
despertado interesse no tempo presente. Importam emancipatórias ao sujeito? Deve-se tentar
3 menos, portanto, detalhes de sua obra e mais a desobscurecer a história, contestar a história oficial.
Georges Didi-Huberman, filósofo
elaboração de um panorama que indicie o método Refletir sobre o que seu pensamento pode nos mostrar
e historiador da arte, leciona na
aberto de construção de outra história, através da na situação contemporânea, o que de velho
École des hautes études en
práxis2. Cabe enunciar a releitura do filósofo Georges permanece no novo e com a crítica se transforma, o
sciences sociales. Publicou vários
livros sobre a história e a teoria Didi-Huberman3 de “imagem dialética” como que tem potencial de reinvenção.
das imagens, num amplo campo “imagem crítica”.
de estudos que vai da
Walter Benjamin, pensador alemão vinculado ao
e choque
renascença até a arte
contemporânea, e que Instituto de Pesquisa Social (mais tarde conhecido É no conto de Poe que se origina a “estética do
compreende os problemas de como Escola de Frankfurt) contribuiu decisivamente choque” de Benjamin. O choque8 sofrido pelo flâneur
iconografia científica do século para reflexões acerca das transformações na é a consciência da modernidade, iminência do
XIX e seus usos pelas correntes modernidade. Entretanto foi só com o Movimento abismo. A solidão em meio à multidão, a
artísticas do século XX. Estudantil de 1968 que a Teoria Crítica da Escola de mecanização da vida, as velocidades aumentadas,
Frankfurt teve êxito, ao despontar como alternativa a as transformações na paisagem urbana, enfim, o que
4 qualquer pensamento que compactuasse com o Baudelaire apresenta e Benjamin lê como uma nova
Também como reação aos
nazismo, o que ainda predominava na geração sensibilidade, em constante estado de alerta perante
movimentos da esquerda alemã
anterior de sobreviventes da Segunda Guerra. O a ameaça da catástrofe9.
que adotaram a ação direta
caráter heterodoxo do marxismo de Benjamin
como prática de luta, a fase O texto de Poe torna inteligível a
tardia da Escola de Frankfurt, funcionou como propulsor de ideias que trabalharam
verdadeira relação entre selvageria e
com Jürgen Habermas (1 929 -), se para a ruptura geracional com o pensamento nazista,
disciplina. Seus transeuntes se
caracterizou pelo assim como a presença da má consciência alemã, o
comportam como se, adaptados à
enfraquecimento da insistência sentimento trágico de culpa, nos primeiros intelectuais
automatização, só conseguissem se
nos potenciais de transformação, da Escola de Frankfurt, como Theodor Adorno. Apesar
expressar de forma automática. Seu
como tinha sido até Adorno. da crítica de Adorno à incapacidade do movimento
comportamento é uma reação a
estudantil de lidar com as reações a essa ruptura e os choques. (BENJAMIN, 1994, p. 126).
5 desdobramentos da Escola de Frankfurt terem se dado
José Guilherme Merquior foi o pelo caminho mais consensual4, o momento foi de A ambiguidade do flâneur complexifica a situação do
primeiro a publicar sobre abertura para ideias reprimidas pelo regime nazista. sujeito perante a modernidade, o transforma em
Benjamin no Brasil, em 1 969. Ver massa, coloca um tipo de resistência passiva e confusa,
MERQUIOR, José Guilherme.  Arte
Seguindo o mesmo princípio, no Brasil as primeiras ao mesmo tempo sensível e atenta, relação de
e Sociedade em Marcuse, Adorno
traduções e estudos surgiram na década de 19705, mas distanciamento da consciência de si e busca por ela.
e Benjamin. Ensaio Crítico sobre
o pensamento de Benjamin só se disseminou no meio Esse olhar de alegorista do flâneur vê a cidade como

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experiências, anseiam por um mundo a Escola Neohegeliana de
fantasmagoria através do véu da multidão (KOTHE,
em que possam afirmar de forma tão Frankfurt. Rio de Janeiro, Tempo
1978, p. 78). A empatia do flâneur com a mercadoria
pura e clara a sua pobreza a exterior e a Brasileiro, 1 969. A primeira tese
sugere sua reificação e, portanto, sua morte enquanto sobre Benjamin defendida no
interior, que daí nasça alguma coisa que
sujeito pré-moderno. A nova subjetividade Brasil foi de Flávio René Kothe,
se veja (BENJAMIN, 2012, p. 89).
representada pelo homem da multidão antecipa a em 1 975, na FFLCH USP, sob a
posição do indivíduo na sociedade do espetáculo10. O trabalho alienado é alheio a qualquer experiência. orientação de Antônio Cândido.
Um processo de modificação de percepções iniciado Segundo Marx, o trabalho é alienado não só na relação Ver KOTHE, Flávio René.
com o fenômeno das massas, encarnado pelo do sujeito com o objeto, mas na relação do sujeito Benjamin & Adorno: Confrontos.
indivíduo contemporâneo incapaz de experimentar: consigo mesmo e consequentemente na relação com São Paulo: Ática, 1 978.
os outros sujeitos (MARX, 1985, p. 167). No ensaio
O flâneur é um homem abandonado no 6
Experiência e pobreza13, Benjamin discorre sobre a
meio da multidão. Isso o coloca na A errância urbana foi
decadência da experiência em sua época,
mesma situação da mercadoria. Apesar incorporada enquanto
de não ter consciência dessa [...] para introduzir um novo conceito, metodologia de pesquisa e
particularidade, ela nem por isso deixa positivo, de barbárie. Senão vejamos fundamentação teórica de
de atuar sobre ele. Penetra-o como um aonde essa nova pobreza leva o bárbaro. pesquisas no campo. O termo foi
narcótico que o compensa de muitas Leva-o a começar tudo de novo, a voltar cunhado pela arquiteta e
humilhações. O transe a que se entrega ao princípio, a saber viver com pouco, a estudiosa de arte brasileira
o flâneur é o da mercadoria exposta e construir algo com esse pouco, sem Paola Berenstein Jacques. Creio
vibrando no meio da torrente dos olhar nem à esquerda, nem à direita que a popularização deve-se às
compradores (BENJAMIN, 2015, p. 57). (BENJAMIN, 2012, p. 87). suas publicações.

Incapaz de elaborar experiência autêntica (Erfahrung), Essa necessidade de recomeço radical pautou muitas 7
que contenha algum conhecimento transmissível, o formas artísticas nessa virada moderna. Benjamin cita O flâneur foi caracterizado por
indivíduo moderno busca se proteger contra os o precursor da arquitetura moderna Adolf Loos e o Baudelaire a partir do conto O
choques sempre presentes no mundo exterior. O pintor Paul Klee como exemplos dessa ruptura14, além homem da Multidão (1 840), de
excesso de estímulos faz pairar sobre ele o spleen11, a de algumas vanguardas artísticas do século XX, que Edgard Allan Poe. No pequeno
melancolia que o faz indiferente, sedado. Sobra assumem a pobreza de experiência e o esfacelamento conto, Poe narra em primeira
pessoa a perseguição a um velho
apenas vivência (Erlebnis), de quem carrega em si a da tradição, construindo uma nova linguagem, não
que caminha sozinho pelas ruas
experiência coletiva do choque da modernidade. A para descrever a realidade, mas para transformá-la a
de Londres, alheio à multidão
indiferença do indivíduo blasé, que se protege dos partir de suas contradições.
frenética. Em Elogio aos Errantes
choques, caracteriza o sujeito impedido de (201 4), Jacques apresenta e
experimentar. A questão está na incapacidade de A mutação da arte na modernidade é teorizada por contextualiza os tipos de
transformar vivência em experiência coletiva e Benjamin ao redor do conceito de aura, consagrado errâncias urbanas, justificando-
também de experimentar verdadeiramente a no ensaio A Obra de arte na era de sua as uma sob orientação contra-
experiência coletiva transmitida. Último capaz de reprodutibilidade técnica (1936), no qual é definido hegemônica. As errâncias
experimentar a cidade, o flâneur de Baudelaire contém como “aparição única de algo distante”. O caráter urbanas criticam o urbanismo
em si o indivíduo blasé de Simmel12, ambiguamente. único da obra teria dado lugar a sua multiplicidade, moderno e acontecem em Paris
graças às novas possibilidades de reprodução simultaneamente às três fases
mecânica. A arte que vigorava até então, carregada de de seu desenvolvimento. A
Pobreza de experiência e perda valores arcaicos e sacralidade, tem o que Benjamin
primeira modernização (meados
da aura chama de “valor de culto”. A arte moderna,
do século XIX ao início do século
XX), com a reforma urbana do
No capitalismo a infraestrutura impacta na produção reprodutível para as massas e sem “sacralidade”, tem prefeito Haussmann, Baudelaire
cultural: a divisão do trabalho subtrai o tempo e a “valor de exposição”. Analogamente ao processo de escreve sobre as transformações
sensibilidade vital para a experiência autêntica. metamorfose da mercadoria em Marx, seu valor de ocorridas na cidade. O flâneur
Assim, o que tem condições para ser transmitido, troca se sobrepõe ao valor de uso15. Para Benjamin, a aparece em Spleen de Paris
está fragmentado, quebrado, descontinuado. A relação aurática (entre obra e receptor) implica na (1 869) e As Flores do Mal (1 861 ), e
estética do choque é formada por esses fragmentos inacessibilidade. “Em lugar da recepção contemplativa é recriado nos anos 1 930 por
e descontinuidades que surgem da pobreza de característica do indivíduo burguês, deve surgir uma Benjamin. As flanâncias seriam
experiência: recepção característica das massas, ao mesmo tempo portanto o primeiro tipo de
distraída e racionalmente verificadora. Em lugar de errância urbana na modernidade.
Pobreza de experiência: a expressão não O segundo momento, das
basear-se no ritual, ela se funda, daí por diante, na
significa que as pessoas sintam a deambulações, (de 1 930 a 1 940)
política”. (BÜRGER, 2008, p.62)
nostalgia de uma nova experiência. Não, fez parte das vanguardas
o que elas anseiam é libertar-se das modernas, e consistiam em

Imagemdialéticaeimagemcrítica:conceitosbenjaminianosparapensararteeemancipação 29
ações surrealistas, dadaístas, de Antes da criação da categoria da aura, Benjamin reflete tempo no qual as obras são inseridas17. O que mais
deambulações aleatórias que sobre a natureza, interpretação e crítica de arte no importa, para o pensador, não é o que o passado teria
evidenciavam as experiências ensaio intitulado As afinidades eletivas de Goethe a dizer ao presente, mas o motivo do interesse do
físicas no espaço urbano real, ao (1922)16. Partindo da distinção entre “teor factual” e presente em certos eventos do passado (GAGNEBIN,
mesmo tempo criticavam
“teor de verdade” na obra de arte, o autor considera 2014, p.201). É o confronto entre passado (memória)
algumas das ideias urbanísticas
que no momento de sua concepção, ambos os teores e presente que permite o desvelamento do elemento
do início dos CIAM ( Congrès
estariam unidos na obra e que estes vão se separando: oculto do passado na atualidade (Aktualität). Essa
Internationaux d’Architecture
Moderne). O terceiro momento, “teor factual e o teor de verdade, que inicialmente se outra história só se torna possível através de um
das derivas (fim dos 1 950-1 960), encontravam unidos na obra, separam-se na medida processo de rememoração, no sentido de
é uma crítica aos pressupostos em que ela vai perdurando, uma vez que este último reivindicação de um esquecimento, como acontece
básicos dos CIAM e do sempre se mantém oculto, enquanto aquele se coloca no sonho. Despertar é consolidar essa ruptura. E para
modernismo, pelos situacionistas em primeiro plano” (BENJAMIN, 2009, p. 12-13). O despertar do sonho é preciso despertar para o sonho18.
(JACQUES, 201 2, p. 32-33). ponto de partida da crítica corresponderia a um Daí a consciência de si se faz necessária na
estranhamento nascido do confronto entre o teor reivindicação da memória esquecida, oprimida, de
8 factual da obra e o momento histórico ao qual sofrimento e exploração. O rememorado então se
Ligado ao “trauma” em Freud: pertence o crítico. “Neste sentido, a história das obras choca com o presente, faz emergir as contradições da
“Pode-se mesmo dizer que o prepara a sua crítica e, em consequência, a distância realidade e se impõe como alegoria19 que mostra a
termo "traumático" não tem histórica aumenta o seu poder” (BENJAMIN, 2009, p. história como ruína de algo que não aconteceu:
outro sentido que econômico.
13). A investigação deste estranhamento apresenta-
Chamamos assim a uma Mas a própria história é uma ruína
se como única maneira de desvelar seu teor de
experiência vivida que leva à alegórica: ruína enquanto resto das
verdade. No momento dialético do pensar, “a crítica
vida da alma, num curto espaço possibilidades possíveis (e, talvez,
de tempo, um acréscimo de levaria a obra à consciência de si mesma” (KOTHE,
desejáveis), das quais ela só concretizou
estímulos tão grande que sua 1976, p. 17). Para Benjamin a verdade “funda-se na
uma; nesta concretização, porém, se
liquidação ou elaboração, pelos codificação histórica”, está em constante movimento
encontra o índice das outras histórias
meios normais e habituais, e mutação: é a verdade de um específico tempo,
possíveis. Precisamente daí surge a
fracassa, o que não pode deixar nascida de seu confronto com o tempo da obra. Essa possibilidade ontológica do encontro da
de acarretar perturbações relação de distâncias de tempos, de passado que obra de arte com a história (KOTHE,
duradouras no funcionamento fulgura no agora da obra, caracteriza o “índice 1976, p. 47).
energético”. FREUD, Sigmund. histórico”.
1 91 6-1 7: A General Introduction to A memória involuntária20 não obedece à cronologia
Psychoanalysis. SE 1 5 e 1 6.
linear. Essa sobreposição de temporalidades no
Historiografia dos vencidos e “agora” fulgura na “imagem dialética” e sua
9 imagem dialética alegorização lhe confere legibilidade e
Ver os ensaios compilados em
O pensador marxista Michael Löwy inicia o prefácio reconhecimento do tempo histórico presente:
BENJAMIN, Walter. Baudelaire e a
de O capitalismo como religião (1921) afirmando a “Somente a tentativa de parar o tempo pode permitir
Modernidade/ Walter Benjamin.
Trad. João Barrento. Belo posição singular de Walter Benjamin na história do a uma outra história vir à tona, a uma esperança de ser
Horizonte: Autêntica, 201 5. pensamento moderno: “é o primeiro seguidor do resguardada em vez de soçobrar na aceleração
materialismo histórico a romper radicalmente com imposta pela produção capitalista” (GAGNEBIN, 2014,
10 a ideologia do progresso linear” (BENJAMIN, 2013, p. 98). O realismo da arte moderna está em seu caráter
Ver DEBORD, Guy. A Sociedade do p. 7). Benjamin rejeita o culto ao progresso, uma vez alegórico, quando denuncia a crueldade destruidora
Espetáculo (1 967), texto crítico à que a técnica estaria a serviço da classe dominante da organização capitalista, mais do que quando se
sociedade de imagética de e que a história oficial seria constituída por suas pretende totalizar simbolicamente. A negatividade da
consumo. vitórias. O progresso, portanto, não guiaria a alegoria para ele é “denúncia e abrigo da esperança”.
sociedade à superação do capitalismo, somente à Nas palavras de Benjamin:
11 catástrofe: “A catástrofe é o progresso, o progresso
O índice histórico das imagens diz, pois,
Ver BAUDELAIRE, Charles. O é a catástrofe. A catástrofe é o contínuo da história”
Spleen de Paris: pequenos não apenas que elas pertencem a uma
(BENJAMIN apud LÖWY, 2002, p. 205). Assim,
poemas em prosa. Porto Alegre: determinada época, mas, sobretudo,
subverter a noção tradicional de história, por meio
L&M, 201 6 e os ensaios de Walter que elas só se tornam legíveis numa
de uma “historiografia dos vencidos”, abre para
Benjamin sobre Baudelaire. determinada época. E atingir essa
possibilidades de caráter emancipatório.
legibilidade constitui um determinado
12 ponto crítico específico do movimento
No livro das Passagens, sua última e inacabada obra, em seu interior. Todo o presente é
Ver SIMMEL, Georg. A Metrópole e
Benjamin questiona a eficácia das abordagens determinado por aquelas imagens que
a vida mental. In: VELHO, Otavio
historiográficas justificadas pela contextualização do lhe são sincrônicas: cada agora é o agora

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de uma determinada cognoscibilidade. (org.) O Fenômeno Urbano. Rio
necessária. Para Benjamin a alegoria é também o outro
Nele, a verdade está carregada de tempo de Janeiro: Jorge Zahar, 1 967.
da história, isto é, a História que poderia ter sido e não
até o ponto de explodir. (...) Não é que o
foi: “Nunca, na História, esse outro pode ser expresso
passado lança sua luz sobre o presente 13
a não ser como outro” (KOTHE, 1976, p. 36).
ou que o presente lança luz sobre o Publicado no jornal Die Welt im
passado; mas a imagem é aquilo em que Wort (Praga), 7 de dezembro de
o ocorrido encontra o agora num Arte aurática e arte alegórica 1 933.
lampejo, formando uma constelação.
Em outras palavras: a imagem é a A categoria da aura reaparece no livro das Passagens
14
dialética na imobilidade. Pois, enquanto (sua última e inacabada obra), relacionada mais ao “Um artista tão complexo como o
a relação do presente com o passado é índice histórico que à técnica e à massificação. A pintor Paul Klee e outro tão
puramente temporal, a do ocorrido com síntese não totalizante da obra em si mesma é a programático como Loos –
o agora é dialética – não de natureza própria ligação de seu interior com o exterior22. Aura ambos rejeitam a imagem do
temporal, mas imagética. Somente as é “‘a aparição única de algo distante’, em que o ‘algo homem tradicional – tradicional,
imagens dialéticas são autenticamente distante’ é o ‘outro’ que se diz ‘aparecendo’” (KOTHE, solene, nobre, adornado com
históricas, isto é, imagens não arcaicas. A 1976, p. 43). O conceito de alegoria prenuncia o todas as oferendas no passado –
imagem lida, quer dizer, a imagem no conceito de aura. Alegoria é “indício de uma perda”. para se voltarem para o homem
agora da cognoscibilidade, carrega no Ao “dizer o outro”, ela afirma a possibilidade de contemporâneo, despojado e
mais alto grau a marca do momento gritando como um recém-
existência desse outro, ela é não-ser. O outro da
crítico, perigoso, subjacente a toda nascido nas fraldas sujas deste
alegoria é o outro reprimido, enquanto o outro da
tempo.” (BENJAMIN, 201 2, p. 87)
leitura. (BENJAMIN, 2006, p. 505 [N 3, 1]) aura é “uma superioridade sacralizadora sob a
aparência de proximidade”. O outro aurático é
15
A “iluminação profana” do despertar da imagem inacessível, o outro alegórico é acessível (KOTHE,
Ver a crítica de Adorno em sua
dialética é o “ato revolucionário como a redenção 1976, p. 38). Teoria Estética: “Se, no seio do
retroativa de atos fracassados do passado” (ZIZEK, capitalismo monopolista, se
2017, p. 109), momento de ruptura com o contínuo da A arte precisa se alegorizar para estabelecer uma “fase continua a saborear o valor de
história, que explicita suas contradições e produz intermediária” da arte moderna, que expresse o corte troca, e já não o valor de uso
“imagem dialética”. A constelação se forma quando da modernidade. Benjamin considera essa fase bem então a abstração torna-se para
duas ou mais imagens se conectam. Uma imagem é representada pelos Dadaístas, pela materialização da a obra de arte moderna a
ruptura, abertura e potência, universais e crueza presente na nova decadência, que funciona indeterminação irritante daquilo
emancipatórias, sem totalização. O movimento da como crítica intrínseca à própria obra, conferindo-lhe e para aquilo que ela deve ser, a
crítica consiste em rememorar para depois esquecer poder histórico ao trazer a realidade contraditória de cifra do que é.” (ADORNO, 1 970, p.
34).
e assim se redimir, salvando outra história, a história seu tempo presente.
verdadeira, “contracultural”, já que toda cultura é
16
produto da história e a história é opressão. A arte aurática, ligada ao arcaísmo, tradição, culto, e
A partir da leitura do romance
também à classe dominante, deixa de prevalecer. O
Afinidades Eletivas (1 809), de
O filósofo esloveno Slavoj Zizek, quando entrevistado declínio da aura teve então, por um lado, caráter
Goethe.
por um jornalista negro norte-americano em um democratizante ao rejeitar os valores burgueses e se
programa de televisão, comenta o “X” inventado por abrir para o novo a partir da pobreza de experiência.
17
Malcom X de acordo com o que entendemos por essa Quando, por exemplo, as obras dadaístas sacrificam Como exemplifica Anne Marie
suspensão histórica: o valor de mercado para romper com a aparência Gagnebin, tal contextualização é
totalizante, seu teor de verdade emerge. Para comum tanto ao historicismo
Esse X paradoxalmente abre para uma
Benjamin, o Dadaísmo foi a última forma de arte em clássico como ao marxismo
nova liberdade, é tudo o que os brancos
que os “barbarismos” crus afloraram, conforme segue trivial. (GAGNEBIN, 201 4, p.201 )
querem ser, não tribal primitivo, mas
em A Obra de arte na era de sua reprodutibilidade
universal, criando seu próprio espaço.
técnica23: 18
‘Nós negros, temos uma única chance
A “dialética do despertar”
de não retornarmos às nossas Toda criação de necessidades articula ideias de Marx, Proust e
particularidades, de sermos mais radicalmente nova e pioneira terá Freud.
universais e emancipados que os consequências muito para além do seu
próprios brancos’.21 objetivo. É o que se passa com o
19
dadaísmo, na medida em que sacrifica O conceito benjaminiano de
O “X” é o marco da ruptura com a história opressora,
os valores do mercado, tão próprios do alegoria é desenvolvido por
o gesto revolucionário que abre para a outra luta. O
cinema, em favor de intenções de maior Flávio Kothe em Para Ler
gesto do X acontece a partir de uma situação de relevo – de que, evidentemente, não Benjamin (1 976) e Alegoria .
pobreza de experiência, quando a alegorização se faz tem consciência na forma em que aqui

Imagemdialéticaeimagemcrítica:conceitosbenjaminianosparapensararteeemancipação 31
20 são descritas. Os dadaístas davam muito Nesta medida o Moderno é um mito
“ mémoire involontaire”, em menos importância à utilidade mercantil voltado contra si mesmo; a sua
Proust. Ver Em busca do tempo de suas obras de arte do que a intemporalidade torna-se catástrofe do
perdido , 1 91 3-1 927. impossibilidade de serem utilizadas instante que rompe a continuidade
como objeto de meditação temporal. O conceito de Benjamin de
21 contemplativa. (BENJAMIN, 2017, p. 41) “imagem dialética” encerra este
Zizek diz ao entrevistador Tavis momento. Mesmo quando o Moderno
Por outro lado, o princípio de montagem da estética conserva, enquanto técnicas, aquisições
Smiley, em 201 5: “ But this X
fragmentada do choque promove a massificação das tradicionais, estas são suprimidas pelo
paradoxically opens up a new
freedom for us, all that white formas artísticas através da sua reprodução. Fotografia choque que não deixa nenhuma
people want to be, not primitive e cinema se desenvolvem como linguagens essenciais herança intacta. Assim como a categoria
tribal, but universal, creating ao funcionamento da indústria cultural, embora os do Novo resultava do processo histórico,
their own space. We, black conteúdos claramente se distingam dentro das que dissolve primeiro a tradição
people, have a unique chance linguagens. O caráter mercadológico da arte, valor de específica e, em seguida, toda e
not to become, not to return to exposição, aumenta numa relação entre distração e qualquer tradição, assim o Moderno não
our particularities, to be more atenção. É o entretenimento. “O cinema restringe o é nenhuma aberração que se deixaria
universal, emancipated than valor de culto não só porque coloca o público numa corrigir, regressando a um terreno que já
white people themselves. You não existe e não mais deve existir; isto é
atitude de apreciação valorativa, mas também porque
see, this is the important thing paradoxalmente o fundamento do
no cinema não inclui o fator atenção. O público é um
for me. ” Tradução nossa. Vídeo
examinador, mas um examinador distraído” Moderno e confere-lhe o seu caráter
disponível em
(BENJAMIN, 2017, p. 45). Se a arte aurática está morta, normativo. (ADORNO, 1970, p. 35)
https:/ / www.youtube.com/ watch
?v=8iMH1 6pPq38. tudo é visível? Todas as imagens já foram vistas? O que
por uns foi considerado fim da arte, para outros A oposição enquanto finalidade torna a vanguarda
22 apareceu como ruínas violentas, propositalmente norma, para Adorno, que condiciona a sobrevivência
Onde se aproxima da “síntese chocantes. da arte enquanto arte à contínua superação da
figurativa” de Kant, num vanguarda a si mesma (KOTHE, 1978, p. 208-209).
esquema de representação Em Teoria da vanguarda, publicado em 1974, Peter Adorno não postula o fim da arte, mas sua necessidade
imagética que sintetiza o aparato Bürger explica que na obra vanguardista, o receptor de saltar para o vazio como única possibilidade de seu
conceitual. experimenta essa recusa do sentido como choque, renascimento. Ultrapassado o moderno, o que nos
que é intencionado pelo artista que pretende alertar resta?
23 o receptor para a necessidade de transformação de
Utilizada a 5ª. versão do ensaio, sua própria práxis vital. Para Bürger é questionável se Embora, de acordo com a tese hegeliana, o deus que
traduzida por João Barrento. a provocação não reforça as posturas existentes, além sacralizava a arte aurática tenha morrido,
Embora o título dessa tradução da impossibilidade de tornar duradouro esse tipo de características do templo sagrado estão conservadas
seja A Obra de arte na época da
efeito: “um choque assim, já quase institucionalizado, nos museus24. O cânone da arte, seu valor
possibilidade de sua reprodução
pode produzir um mínimo de efeito sobre a práxis vital mercadológico, ainda que a obra não seja
técnica , optei por adotar o título
do receptor. Ele acaba sendo ‘consumido’” (BÜRGER, comercializável, gera novo valor de culto por apoiar-
mais conhecido no Brasil, de
traduções de versões anteriores. 2012, p.145). Para Adorno, a obra vanguardista é a se na relação com os bens de consumo. Para Adorno,
única expressão autêntica possível do atual estado do “numa época de superprodução, o seu valor de uso se
mundo. Ela aparece como expressão historicamente torna também problemático e se submete finalmente
necessária da alienação na sociedade do capitalismo ao deleite secundário do prestígio, da moda e do
tardio (BÜRGER, 2012, p.152-153), ao mesmo tempo próprio caráter de mercadoria: paródia da aparência
em que ele critica esse momento da arte moderna em estética” (ADORNO, 1970, p. 27). Para Bürger, “a
sua Teoria Estética, escrita em 1968: construção benjaminiana da história ignora a
emancipação da arte frente ao sagrado operada pela
Os sinais da desorganização são o selo
burguesia.” Pode ter ocorrido uma ressacralização,
de autenticidade do modernismo;
rerritualização da arte, quando ela produz um ritual a
aquilo pelo qual ela nega
partir de si mesma. “Em vez de inserir-se na esfera do
desesperadamente o encerramento da
sagrado, ela assume o lugar da religião” (BÜRGER,
invariância. A explosão é um dos seus
2012, p.63).
invariantes. A energia antitradicionalista
transforma-se em turbilhão devorador.

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A análise de Flávio Kothe em Benjamin & Adorno: trecho do ensaio O que é o contemporâneo, escrito
Confrontos (1978) corrobora o apontamento de Adorno em 2006, pelo filósofo italiano Giorgio Agamben:
a uma tendência suicida da arte, manifesta em sua
De fato, a contemporaneidade se
inclinação à paródia, o que não significa que sua
escreve no presente assinalando-o antes
“aura” não consiga transformar-se, adequando-se à
de tudo como arcaico, e somente quem
era da reprodutibilidade técnica desde que ela exista
percebe no mais moderno e recente os
em constante superação de si mesma, numa tentativa
índices e assinaturas do arcaico pode
suicida que lhe confere maior vitalidade (KOTHE, 1978,
dele ser contemporâneo. Arcaico
p. 209). A tensão individual, a atenção oposta à
significa: próximo da arké, isto é, da
dispersão é para Adorno imprescindível na experiência origem. Mas a origem não está situada
estética, ou então regride-se ao fetichismo arcaico da apenas num passado cronológico: ela é
origem da arte. Ao reduzir a obra de arte a simples contemporânea ao devir histórico e não
factum, o consumidor pode projetar as suas emoções cessa em operar neste, como o embrião
no que lhe é apresentado, desqualificando a obra continua a agir nos tecidos do
(ADORNO, 1970, p. 28): organismo maduro e a criança na vida
psíquica do adulto. A distância – e, ao
O abalo intenso, brutalmente
mesmo tempo, a proximidade – que
contraposto ao conceito usual de
define a contemporaneidade tem o seu
vivência, não é uma satisfação particular
fundamento nessa proximidade com a
do eu, e é diferente do prazer. É antes
origem, que em nenhum ponto pulsa
um momento de liquidação do eu que,
com mais força que no presente.
enquanto abalado, percebe os próprios
(AGAMBEN, 2009, p. 69)
limites e finitudes. Esta experiência é
contrária ao enfraquecimento do eu,
que a indústria cultural promove. A ideia A questão da origem, Ursprung tanto em Heidegger
de um abalo profundo seria para ela como em Benjamin, é também central na leitura
uma loucura vã; [...] A fim de olhar um contemporânea que Georges Didi-Huberman faz de
pouquinho para lá da prisão, que ele Walter Benjamin. Sua análise retoma o conceito de
próprio é, o eu precisa, não de aura do livro das Passagens, onde a categoria está
dispersão, mas da mais extrema tensão; menos ligada às condições materiais e ao culto e mais
isso preserva o abalo profundo, de resto, ao poder das distâncias, do “olhar que a obra lança 24
um comportamento involuntário, da sobre nós” através do índice histórico que, como No ensaio Experiência e Pobreza
regressão. (ADORNO, 1970, p. 274) vimos, opera por um movimento dialético. A relação (1 933), Benjamin comenta o uso
dialética entre visível e invisível, aura como “espaço do vidro na arquitetura moderna
A dessacralização do novo culto ao capital se faz de jogo”, é mantida no pensamento de Didi- por ser o material “contra-aura”,
necessária. A década de 1960 marca o extrapolamento Huberman, no qual aura é dupla distância, “um inimigo dos segredos e da
dos suportes da arte nesse sentido, até diluir a fronteira espaçamento tramado do olhante e do olhado, do propriedade, que diminui as
distância, e as hierarquias,
entre arte e vida, apontando para falta de sentido da olhante pelo olhado” (DIDI-HUBERMAN, 1988, p. 147),
devassa a intimidade e contesta
própria arte. Toma-se como sentido a falta de sentido. mas também a distância entre o observador e o
a propriedade. Alguns arquitetos
Na discussão sobre a autonomia da arte, Bürger define observado e distância entre a obra e o indiciado. O usaram vidros em casas e
a intenção dos vanguardistas como a tentativa de “entre” um e outro é a inquietação promovedora de museus com intenção
direcionar a experiência estética (que se opõe à práxis crítica (DIDI-HUBERMAN, 1988, p. 71), que não deve se dessacralizadora, principalmente
vital) para a vida cotidiana. Aquilo que a ordem da propor a decifrar a obra, mas abri-la para o jogo ao longo dos anos 1 950 e 1 960,
sociedade burguesa (racional) mais contesta, deve ser dialético do índice, seguindo a filosofia da história de incluindo Lina Bo Bardi em sua
transformada em princípio de organização da vida Benjamin. Casa de Vidro, construída em
(BÜRGER, 2012, p. 72). 1 951 em São Paulo e na e
Para Didi-Huberman, memórias evocadas não são expografia do MASP, em 1 968. Os
mais arcaicas ou nostálgicas, mas críticas (DIDI- cavaletes de vidro sobre uma
Imagem crítica e imaginação HUBERMAN, 1988, p. 114). Ao desvincular a aura da base de concreto aparente, que
política tradição, a memória implica no olhar, valorizando o
servem de suportes para as
obras. Fora da parede, próximas
Ao longo da era “pós-moderna”, o problema arte- que o filósofo chama de “dialética do ver”, que
ao observador, sem barreiras, o
vida tem sido abordado de várias maneiras. A associamos ao que Benjamin chama de “espaço de nome do autor é escrito na parte
discussão é longa. Continuaremos a reflexão para a jogo”, quando valor de culto e valor de exposição não de trás do cavalete. A intenção
reformulação de uma pergunta sobre a possibilidade se colocam mais com indiferença perante a História. democratizante é evidente.
de experiência “histórico-estética”, a partir deste A experimentação que acontece nesse espaço (que é

Imagemdialéticaeimagemcrítica:conceitosbenjaminianosparapensararteeemancipação 33
25 também tempo) promove novas experimentações ao mesmo tempo ao mostrar, remete a algo distante.
Reproduzo nota do autor: emancipatórias. Por isso Didi-Huberman insiste no Nem tudo que se apresenta como arte tem teor de
“ Symptôma , em grego, é o que anacronismo enquanto ferramenta do olhar crítico, verdade. O que Didi-Huberman defende é que as
sucumbe ou cai com. É o
que atualiza os tempos pretéritos pela memória. Em imagens críticas demonstram a possibilidade de uma
encontro fortuito, a coincidência,
seu livro O que vemos, o que nos olha (1988), o autor imaginação política quando indiciam a história dos
o acontecimento que vem
perturbar a ordem das coisas – postula que não há que se escolher entre o que vemos vencidos, a partir de gestos que explicitam a
de forma previsível mas e o que nos olha. Há que se inquietar com o entre – indestrutibilidade do desejo.
soberana.” (DIDI-HUBERMAN, momento que não impõe nem o excesso de sentido,
201 5, p.65) nem a ausência cínica de sentido. “É quando o que A “tradição dos oprimidos” de Benjamin é recolocada
nos olha nos invade”. Para o autor, o “homem da na sociedade pós-industrial, de arte sem aura, mas
26 crença” é aquele que precisa do culto e o “homem da com sintoma, nova forma aurática “secularizada” da
Ver HEIDEGGER, Martin. A Origem tautologia”, o que não enxerga nada além do visível. era da superreprodutibilidade técnica, aquela à qual
da Obra de Arte. Trad. Idalina Nenhum dos dois consegue se abrir para a “imagem Adorno apontou. Sem ignorar a onipresença do
Azevedo e Manuel Antonio de crítica”, porque nenhum deles é crítico. capital, a situação tenebrosa como chama Agamben,
Castro. São Paulo: Edições 70, Didi-Huberman diz:
201 0. A partir de Benjamin, Didi-Huberman entende a obras
A arte não nos salva de nada. No pior
como desvelamento das contradições, imagens em
27 dos casos é uma forma de recobrir as
crise, cujo entre aurático se manifesta enquanto
Marx explica a “subjetividade coisas com um verniz e esquecer o que
sintoma: “A dificuldade sendo agora olhar o que
sem substância” nos Grundrisse está embaixo. A arte não ter valor em si.
permanece (visível), convocando o que desapareceu:
e Alain Badiou retoma em sua Especialmente porque é absorvida pelo
em suma, perscrutando os rastros visuais desse
“hipótese comunista”, mercado. (...) No melhor dos casos, a
desaparecimento, o que antes chamamos: seus
desenvolvida também por Zizek. arte provoca o impensado, o recalcado,
Ver sobre a radicalização do sintomas.”25 (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 65). O um real. E então, é magnífica no que isso
proletariado em ZIZEK, Slavoj. “lampejo” da imagem dialética de Benjamin é a abre de possibilidades e permite o
Primeiro como tragédia, depois “aparição” da nova aura que é sintoma, antitética em exercício de uma imaginação política.
como farsa . São Paulo: Boitempo, si mesma, negativa, ou seja, imagem crítica, que por (DIDI-HUBERMAN, 2016)
201 1 . sua vez transmite a crítica ao sujeito crítico que a narra.
Isso implica na consciência da perda que todo saber O exercício de imaginação política abre para o sentido
impõe: a obra de arte como ruína. Uma imagem que da “organização do pessimismo” no espaço das
critica a imagem – capaz, portanto, de um efeito, de imagens, como diria Benjamin. É preciso estar
uma “eficácia teórica – e, por isso, uma imagem que desperto para enxergar e produzir imagens contra-
critica nossas maneiras de vê-la, na medida em que, hegemônicas “duradouras do passageiro” e trazê-las
ao nos olhar, ela nos obriga a olhá-la verdadeiramente. à narração. As imagens em crise, os sintomas são, na
E nos obriga a escrever esse olhar, não para transcrevê- ordem capitalista, contradições necessárias e
lo, mas para constituí-lo” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. estruturantes que mostram o real da “subjetividade
172). sem substância”27 do proletário contemporâneo.
Deve-se radicalizar a noção de proletariado para um
Coloca-se aura na contemporaneidade enquanto nível existencial e catastrófico de descontinuação do
índice de transcendência, um jogo de distâncias que progresso. Somos todos pobres vivenciadores de
determina a própria natureza da obra de arte, ligado barbárie em meio à multidão, alguns ainda com um
ao que dizia Heidegger26. O acontecer da verdade na pouco de memória e imaginação, capazes de perceber
obra envolve que aquilo seja indiciado, sugerido, o caráter religioso do capitalismo.
numa ampliação da alegoria. Acontece mostrando e

34 Revista Estética e Semiótica | Volume 8 | Número 1


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