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ESCOLA DE FRANKFURT
A Escola de Frankfurt surgiu do Instituto de
Pesquisa Social, fundado em Frankfurt no início da
década de 1920 e tem como seus principais
representantes Theodor Adorno, Max Horkheimer,
Herbert Marcuse, Walter Benjamin, Erich Fromm e
Jügen Habermas, este último considerado como
pertencente à segunda geração dessa escola.

Imediatamente após esses acontecimentos


temos a consolidação dos Estados Unidos da América
com sua sociedade de consumo como uma potência
econômica e a crise de 1929 que quase acaba com toda
economia globalizada.

Para entendermos o que eles produziram e


porque decidiram escrever sobre o que escreveram, nós
temos que ter em mente o que eles viram e viveram no
seu tempo.
A escola começa na década de 20, mas
obviamente eles nasceram um pouco antes e puderam
presenciar a consolidação de uma nova sociedade e com
isso várias mudanças de comportamentos.

Os caras estavam alí, no início do século XX.


Tínhamos, em decorrência da Revolução Industrial, a
produção de bens de consumo em larga escala, Há a ascensão dos regimes totalitários do
consequência disso, a guerra por mercados e depois a nazismo e do fascismo culminando na Segunda Guerra
guerra de verdade, a Primeira Guerra Mundial que Mundial (1939-1945) que deixou a humanidade
durou de 1914 a 1918. perplexa com o holocausto.

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1. THEODOR ADORNO
A Filosofia de
Theodor Adorno (1903-
1969), considerada uma
das mais complexas do
século XX, fundamenta-
se na perspectiva da
dialética.

Dialética do esclarecimento

Uma das suas importantes obras, a Dialética do


Esclarecimento (1947), escrita em colaboração com Max
Horkheimer durante a segunda guerra mundial, é uma
crítica da razão instrumental, conceito fundamental
Então pessoal, é em meio a tudo isso que a deste último filósofo, ou, o que seria o mesmo, uma
escola emerge com a pretensão de tentar explicar o que crítica, fundada em uma interpretação negativa do
levou uma civilização dita racional a cometer tanta Iluminismo, de uma civilização técnica e da lógica
barbaridade, e com isso, apresentavam um modo novo cultural do sistema capitalista (que Adorno chama de
de pensar sobre a sociedade. “indústria cultural”).
Dessa maneira, eles passaram a analisar que tipo Também uma crítica à sociedade de mercado
de racionalidade é essa que direcionou a humanidade à que não persegue outro fim que não o do progresso
autodestruição e ajudou a criar meios de dominação técnico e o lucro.
social, semelhante à dominação proporcionada sobre a A atual civilização técnica, surgida do espírito
natureza através do método científico. do Iluminismo e do seu conceito de razão, não
Nesse sentido, se opuseram ao pensamento representa mais que um domínio racional sobre a
tradicional produzido pelos filósofos desde Descartes natureza, que implica paralelamente um domínio
até o iluminismo, e se destacaram por sua teoria crítica (irracional) sobre o homem; os diferentes fenômenos
que atacava principalmente essa razão iluminista que de barbárie moderna (fascismo e nazismo) não seriam
estava no cerne da fundação da sociedade (mundo) outra coisa que não mostras, e talvez as piores
moderna. manifestações, desta atitude autoritária de domínio
Diferentemente do caráter especializado da sobre o outro.
ciência, que disseca a realidade para estudar suas partes Em sua Dialética Negativa, Adorno intenta
de maneira separada, os pensadores dessa escola mostrar o caminho de uma reforma da razão mesma,
discutiram sobre vários temas de caráter tanto filosófico com o fim de libertá-la deste lastro de domínio
quanto sociológico, tais como autoridade, autoritário sobre as coisas e os homens, lastro que ela
autoritarismo, totalitarismo, família, cultura de massa, carrega desde a razão iluminista.
liberdade, o papel da ciência e da técnica. Seu pensamento opõe-se à filosofia dialética
Isso porque entendiam que a pesquisa social inspirada em Hegel, que reduz a sistema todas as coisas
não pode se dissolver em várias pesquisas especializadas através do pensamento, superando suas contradições
e setoriais. Para eles, a sociedade deve ser pesquisada (crítica também do Positivismo, que deseja assenhorar-
“como um todo” nas relações que se ligam através dos se da natureza por intermédio do conhecimento
âmbitos econômicos, culturais e psicológicos. científico).
É aqui que se instaura a ligação entre hegelianismo A razão só deixa de ser dominadora se aceita a
(totalidade e dialética), marxismo (crítica social) e dualidade de sujeito e objeto, interrogando e
freudismo (estudo do inconsciente que domina esse ser interrogando-se sempre o sujeito diante do objeto, sem
racional que se diz consciente de si mesmo), que saber sequer se pode chegar a compreendê-lo por
influenciará a obra dos pensadores da Escola de inteiro.
Frankfurt. Da Crítica da Razão, Adorno chega também à
A teoria crítica desenvolvida por eles pretende crítica da linguagem. Para Adorno, toda linguagem
fazer emergir as contradições fundamentais da conceitual realiza alguma forma de violência cognitiva,
sociedade capitalista e apontar para “um pois nunca é possível conformar totalmente às palavras
desenvolvimento que leve a uma sociedade sem aos objetos e sentimentos tais como eles são
exploração”. (contradição do "não-idêntico").
Como alternativa e complemento à linguagem
conceitual, Adorno valoriza a linguagem artística, a qual
consegue expressar as irracionalidades, contradições e
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estranhamentos dos sujeitos, sem violentá-las por meio Interessada nos homens apenas enquanto
de conceitos. Ao erigir os seus próprios significados, consumidores ou empregados, a indústria cultural reduz
cada obra de arte cria o seu mundo interno (ser-para- a humanidade, em seu conjunto, assim como cada um
si), sem necessidade de se espelhar em objetos externos de seus elementos, às condições que representam seus
e incorrer em violência cognitiva. interesses.
Para ele, o conceito de técnica não deve ser A indústria cultural traz em seu bojo todos os
pensado de maneira absoluta: ele possui uma origem elementos característicos do mundo industrial moderno
histórica e pode desaparecer. e nele exerce um papel específico, qual seja, o de
Ao visarem à produção em série e à portadora da ideologia dominante, a qual outorga
homogeneização, as técnicas de reprodução sacrificam sentido a todo o sistema.
a distinção entre o caráter da própria obra de arte e do Adorno fala como a ideologia capitalista, e sua
sistema social. cúmplice, a indústria cultural contribuíram eficazmente
Desse modo, se a técnica passa a exercer imenso para falsificar as relações entre os homens, bem como
poder sobre a sociedade, tal ocorre, segundo Adorno, dos homens com a natureza, de tal forma que o
graças, em grande parte, ao fato de que as resultado final constitui uma espécie de anti-
circunstâncias que favorecem tal poder são iluminismo.
arquitetadas pelo poder dos economicamente mais
fortes sobre a própria sociedade.
Em decorrência, a racionalidade da técnica
identifica-se com a racionalidade do próprio domínio.
Essas considerações evidenciariam que, não só o
cinema, como também o rádio, não devem ser tomados
como arte. “O fato de não serem mais que negócios –
escreve Adorno – basta-lhes como ideologia”.
Enquanto negócios, seus fins comerciais são
realizados por meio de sistemática e programada
exploração de bens considerados culturais. Tal
exploração Adorno chama de “indústria cultural”.

Indústria cultural

O termo foi empregado pela primeira vez em Considerando-se que o iluminismo tem como
1947, quando ele publicou a Dialética do finalidade libertar os homens do medo, tornando-os
Esclarecimento, juntamente com Max Horkheimer. A senhores e liberando o mundo da magia e do mito, e
expressão “indústria cultural” visa a substituir “cultura admitindo-se que essa finalidade pode ser atingida por
de massa”, pois esta induz ao engodo que satisfaz os meio da ciência e da tecnologia, tudo levaria a crer que
interesses dos detentores dos veículos de comunicação o iluminismo instauraria o poder do homem sobre a
de massa. ciência e sobre a técnica.
Os defensores da expressão “cultura de massa”
querem dar a entender que se trata de algo como uma
cultura surgindo espontaneamente das próprias massas.
Adorno diverge frontalmente dessa
interpretação e explica que a indústria cultural é um
sistema político e econômico que tem por
finalidade produzir bens de cultura como filmes,
livros, música popular, programas de TV, entre
outros, como mercadoria e como estratégia de
dominação social.
Ao aspirar à integração vertical de seus
consumidores, não apenas adapta seus produtos ao
consumo das massas, mas, em larga medida, determina Mas ao invés disso, liberto do medo mágico, o
o próprio consumo. homem tornou-se vítima de novo engodo: o progresso
Quer dizer, as pessoas pensam estar da dominação técnica. Esse progresso transformou-se
consumindo o que querem quando na verdade em poderoso instrumento utilizado pela indústria
estão consumindo o que o sistema quer que eles cultural para conter o desenvolvimento da consciência
consumam. das massas.

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A indústria cultural nas palavras do próprio lei de talião, ou a pretendida práxis política radical
Adorno “impede a formação de indivíduos autônomos, renova o terror do passado”.
independentes, capazes de julgar e de decidir Criticando a práxis brutal da sobrevivência, a
conscientemente”.
O próprio ócio do homem é utilizado pela
indústria cultural com o fito de mecanizá-lo, de tal
modo que, sob o capitalismo, em suas formas mais
avançadas, a diversão e o lazer tornam-se um
prolongamento do trabalho.
Para Adorno, a diversão é buscada pelos que
desejam esquivar-se ao processo de trabalho
mecanizado para colocar-se, novamente, em condições
de se submeterem a ele.
Criando “necessidades” ao consumidor (que
deve contentar-se com o que lhe é oferecido), a obra de arte, para Adorno, apresenta-se, socialmente,
indústria cultural organiza-se para que ele compreenda como antítese da sociedade, cujas antinomias e
sua condição de mero consumidor, ou seja, ele é apenas antagonismos nela reaparecem como problemas
e tão-somente um objeto daquela indústria. internos de sua forma.
Desse modo, instaura-se a dominação natural e
ideológica. Tal dominação tem sua mola motora no 2. MAX HORKHEIMER
desejo de posse constantemente renovado pelo Em 1939,
progresso técnico e científico, e sabiamente controlado Horkheimer (1895-1973)
pela indústria cultural. afirma que “o fascismo é a
Nesse sentido, o universo social, além de verdade da sociedade
configurar-se como um universo de “coisas”, moderna”. Mas acrescenta
constituiria um espaço hermeticamente fechado. Nele, logo que quem não quer falar
todas as tentativas de liberação estão condenadas ao do capitalismo deve calar
fracasso. também sobre o fascismo. E
Contudo, Adorno não desemboca numa visão isso porque, em sua opinião,
inteiramente pessimista, e procura mostrar que é o fascismo está dentro das
possível encontrar-se uma via de salvação. Esse tema leis do capitalismo: por trás da “pura lei econômica” -
aparece desenvolvido em sua última obra, intitulada que é a lei do mercado e do lucro -, está a “pura lei do
Teoria Estética. poder”.
E o comunismo, que é capitalismo de Estado,
A arte como saída constitui uma variante do Estado totalitário. As
organizações proletárias de massa também constituíram
No livro Teoria Estética, Adorno oscila entre estruturas burocráticas e, na opinião de Horkheimer,
negar a possibilidade de produzir arte depois de nunca foram além do horizonte do capitalismo de
Auschwitz e buscar nela refúgio ante um mundo que o Estado. Aqui, o princípio do plano substituiu o do
chocava, mas que ele não podia deixar de olhar e lucro, mas os homens continuam como objetos de
denominar. administração, de administração centralizada e
Essa postura foi extremamente criticada pelos burocratizada.
movimentos de contestação radical, que o acusavam de O lucro por um lado e o controle do plano por
buscar refúgio na pura teoria ou na criação artística, outro geraram repressão sempre maior. Portanto, o que
esquivando-se assim da práxis política. estrutura a sociedade industrial é uma lógica pérfida. E
A seus críticos, Adorno responde que, embora a intenção do trabalho de Horkheimer intitulado Eclipse
plausível para muitos, o argumento de que contra a da razão. Crítica da razão instrumental (1947) é a de
totalidade bárbara não surtem efeito senão os meios examinar o conceito de racionalidade que está na base
bárbaros, na verdade não releva que, apesar disso, da cultura industrial moderna, e procurar estabelecer se
atinge-se um valor limite. esse conceito não contém defeitos que o viciam de
A violência que há cinquenta anos podia parecer modo essencial.
legítima àqueles que nutrissem a esperança abstrata e a
ilusão de uma transformação total está, após a A razão instrumental
experiência do nazismo e do horror stalinista,
inextricavelmente imbricada naquilo que deveria ser Digamos logo que, segundo Horkheimer, o
modificado: “ou a humanidade renuncia à violência da conceito de racionalidade que está na base da civilização

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industrial é podre na raiz. A doença da razão está no 1) A natureza é concebida hoje, mais do que
fato de que ela nasceu da necessidade humana de nunca, como simples instrumento do homem; é o
dominar a natureza. objeto de exploração total, a qual a razio não atribui
Essa vontade de dominar a natureza, de nenhum objetivo e que, portanto, não conhece limites.
compreender suas “leis” para submetê-la, exigiu a 2) O pensamento que não serve aos interesses
instauração de uma organização burocrática e de um grupo constituído ou aos objetivos da produção
impessoal, que, em nome do triunfo da razão sobre a industrial considera-se inútil e supérfluo.
natureza, chegou a reduzir o homem a simples 3) Essa decadência do pensamento favorece a
instrumento. obediência aos poderes constituídos, sejam eles
representados pelos grupos que controlam o capital, ou
pelos grupos que controlam o trabalho.
4) A cultura de massa procura “vender” aos
homens o modo de vida que já levam e que odeiam
inconscientemente, ainda que o louvem com palavras.
5) Não só a capacidade de produção do operário
é hoje comprada pela fábrica e subordinada às
exigências da técnica, mas também os chefes dos
sindicatos estabelecem sua medida e a administram.
6) A deificação da atividade industrial não
conhece limites. O ócio é considerado uma espécie de
Ao progresso dos recursos técnicos, que vício, quando vai além da medida do que é necessário
poderiam servir para “iluminar” a mente do homem, para restaurar as forças e permitir retomar o trabalho
acompanha um processo de desumanização, de tal com maior eficiência.
modo que o progresso ameaça destruir precisamente o 7) O significado da produtividade é medido
objetivo que deveria realizar: a indica do homem. E a com critérios de utilidade em relação a estrutura de
ideia do homem, isto é, sua humanidade, sua poder, não mais em relação as necessidades de todos.
emancipação, seu poder de crítica e de criatividade Nessa situação desesperada, o maior serviço
acham-se ameaçados porque o desenvolvimento do que a razão poderia prestar a humanidade seria o da
“sistema” da civilização industrial substituiu os fins denúncia do que é comumente chamado de razão.
pelos meios e transformou a razão em instrumento para Escreve ainda Horkheimer: “Os verdadeiros
atingir fins, dos quais a razão não sabe mais nada. indivíduos de nosso tempo são os mártires que
Em outros termos, o pensamento pode servir passaram por infernos de sofrimento e degradação em
para qualquer objetivo, bom ou mau. E instrumento de sua luta contra a conquista e a opressão, não mais as
todas as ações da sociedade, mas não deve procurar personagens da cultura popular, infladas pela
estabelecer as normas da vida social ou individual, que publicidade. Aqueles heróis, que ninguém cantou,
se supõe serem estabelecidas por outras forças. expuseram conscientemente sua existência individual a
A razão, portanto, não nos dá mais verdades destruição sofrida por outros sem ter consciência disso,
objetivas e universais as quais possamos nos agarrar, como vítimas dos processos sociais. Os mártires
mas somente instrumentos para objetivos já anônimos dos campos de concentração são o símbolo
estabelecidos. Não é ela que fundamenta e estabelece o de uma humanidade que luta para vir à luz. A função da
que sejam o bem e o mal, como base para orientarmos filosofia é a de traduzir o que eles fizeram em palavras
nossa vida; quem decide sobre o bem e o mal é agora o que os homens possam ouvir, ainda que suas vozes
“sistema”, ou seja, o poder. mortais tenham sido reduzidas ao silêncio pela tirania”.
A razão, tendo renunciado à sua autonomia,
tornou-se um instrumento. A nostalgia do “totalmente outro”

A filosofia como denúncia da razão instrumental Marxista e revolucionário quando jovem,


Horkheimer foi se afastando pouco a pouco de suas
Diante desse vazio terrível, procurasse remediá- posiq6es juvenis.
lo voltando a sistemas como a astrologia, a ioga ou o Não podemos absolutizar nada (deve-se
budismo; ou então são propostas adaptações populares recordar que Horkheimer é de origem judaica) e,
de filosofias clássicas objetivistas ou, ainda, portanto, também não podemos absolutizar o
recomendam-se para o uso moderno as ontologias marxismo. Todo ser finito - e a humanidade é finita -
medievais. que se pavoneia como o valor último, supremo e único,
As panaceias, porém, não deixam de ser torna-se ídolo, que tem sede de sacrifícios de sangue.
panaceias. A realidade, no entanto, é que: Marxista por ser contrário ao nacional-
socialismo, Horkheimer desde o início nutriu dúvidas
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sobre o fato de se a solidariedade do proletariado 3. HERBERT MARCUSE


pregada por Marx era verdadeiramente o caminho para É impossível uma civilização não-repressiva?
chegar a urna sociedade justa. Na realidade - observa
Horkheimer em A nostalgia do totalmente Outro (1970) - as Eros e civilização
ilusões de Marx logo vieram à tona: “A situação social (1955) desenvolve um dos
do proletariado melhorou sem a revolução, e o interesse temas mais importantes do
comum não é mais a transformação radical da pensamento de Freud, ou
sociedade, e sim a melhor estruturação material da seja, a teoria freudiana de
vida”. E, na opinião de Horkheimer, existe uma que a civilização se baseia na
solidariedade que vai além da solidariedade de repressão permanente dos
determinada classe: é a solidariedade entre todos os instintos humanos.
homens, a solidariedade que deriva do fato de que todos Como escrevia
os homens devem sofrer, devem morrer e são finitos. Freud, “a felicidade não é
um valor cultural”. E, comenta Marcuse (1898-1979),
Se assim é, então “todos nós temos em comum isso no sentido de que “a felicidade está subordinada a
um interesse originariamente humano, qual seja, o de um trabalho que ocupa toda a jornada, a disciplina da
criar um mundo no qual a vida de todos os homens seja reprodução monogâmica, ao sistema constituído das
mais bela, mais longa, mais livre da dor e, gostaria de leis e da ordem. O sacrifício metódico da libido e seu
acrescentar, mas não posso acreditar nisso, um mundo desvio imposto inexoravelmente, para atividades e
que seja mais favorável ao desenvolvimento do expressões socialmente úteis, são a cultura”.
espirito”.
Diante da dor do mundo e diante da injustiça,
não podemos ficar inertes. Mas nós, homens, somos
finitos. Por isso, embora não devamos nos conformar,
também não podemos pensar que algo histórico – uma
política, uma teoria, um Estado - seja algo absoluto.
Nossa finitude, ou seja, nossa precariedade, não
demonstra a existência de Deus. Entretanto, existe a
necessidade de uma teologia, não entendida como
ciência do divino ou de Deus, e sim como “a
consciência de que o mundo é fenômeno e, portanto,
não a verdade absoluta que só a realidade última pode
Na opinião de Freud, a história do homem é a
ser. A teologia – e aqui devo me expressar com muita
história de sua repressão. A cultura ou civilização impõe
cautela - é a esperança de que, apesar dessa injustiça que
constrições sociais e biológicas ao indivíduo, mas essas
caracteriza o mundo, possa acontecer que essa injustiça
constrições são a condição preliminar do progresso.
não seja a última palavra”.
Deixados livres para seguir seus objetivos
Assim para Horkheimer, portanto, a teologia é
naturais, os instintos fundamentais do homem seriam
expressão de uma nostalgia segundo a qual o assassino
incompatíveis com toda forma duradoura de
não possa triunfar sobre sua vítima inocente. Portanto,
associação: “Os instintos, portanto, devem ser
nostalgia de justiça perfeita e consumada. Esta jamais
desviados de sua meta, e inibidos em seu objetivo. A
poderá ser realizada na história, diz Horkheimer.
civilização começa quando se renuncia eficazmente ao
Com efeito, ainda que a melhor sociedade viesse
objetivo primário: a satisfação integral das
a substituir a atual desordem social, não será reparada a
necessidades”.
injustiça passada e não se anulará a miséria da natureza
Essa renúncia ocorre na forma de
circunstante.
deslocamento:
Entretanto, isso não significa que devamos nos
render aos fatos, como, por exemplo, ao fato de que DE PARA
nossa sociedade se torna sempre mais sufocante.
Satisfação Satisfação
Segundo Horkheimer, nós ainda não vivemos em uma
sociedade automatizada. Ainda podemos fazer muitas Imediata Adiada
coisas, mesmo que mais tarde essa possibilidade venha
a ser-nos tirada. Prazer Limitação do prazer
E o que o filósofo deve fazer é criticar a ordem Alegria (jogo) Fadiga (trabalho)
constituída para impedir que os homens se percam
naquelas ideias e naqueles modos de comportamento Receptividade Produtividade
que a sociedade lhes propicia em sua organização.
Ausência de repressão Segurança

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Marcuse diz que Freud descreveu essa mudança fica abandonado a si mesmo: é controlado e guiado;
como a transformação do princípio do prazer em consciente das possibilidades da derrocada do sistema,
princípio de realidade, e as vicissitudes dos instintos o poder sufoca as potencialidades libertadoras e
são as vicissitudes da estrutura psíquica na civilização. perpetua um estado de necessidade doravante não mais
E com a instituição do princípio de realidade, o ser necessário.
humano - que, sob o princípio do prazer, fora pouco E assim, já tecnicamente possível, a utopia
mais do que mistura de tendências animais, tornou-se permanece inalcançável. Daí a importância da filosofia,
Eu organizado. que, embora sem dizer como será o reino da utopia, no
Para Freud, a modificação repressiva dos entanto o anuncia, ao mesmo tempo em que denuncia
instintos é consequência “da eterna luta primordial pela os obstáculos em seu caminho.
existência que continua até nossos dias. Sem a
modificação, ou melhor, o desvio dos instintos, não se O homem de uma dimensão
vence a luta pela existência e não seria possível
nenhuma sociedade humana duradoura. Entretanto, diz O escrito mais conhecido de Marcuse é O homem
Marcuse, Freud considera eterna a luta primordial pela de uma dimensão, de 1964. O homem de uma dimensão é
existência, acreditando, com isso, num antagonismo o homem que vive em uma sociedade de uma dimensão,
eterno entre o princípio do prazer e o princípio de sociedade justificada e coberta pela filosofia de uma
realidade. A convicção de que é impossível uma dimensão. A sociedade de uma dimensão é sociedade sem
civilização não repressiva representa uma pedra angular oposição, ou seja, sociedade que paralisou a crítica
da construção teórica freudiana. através da criação de um controle total.
Precisamente contra essa eternização e
absolutização do contraste entre o princípio do prazer
e o princípio de realidade é que se voltam os golpes
críticos de Marcuse, no sentido de que, em sua opinião,
esse contraste não é metafísico ou eterno, devido a certa
misteriosa natureza humana considerada em termos
essencialistas. Esse contraste é muito mais produto de
uma organização histórico-social especifica. Freud
mostrou que a falta de liberdade e a constrição foram o
preço pago por aquilo que se fez, pela "civilização" que
se construiu. A filosofia de uma dimensão é a filosofia da
Mas disso não deriva necessariamente que o racionalidade tecnológica e da lógica do domínio; é a
preço a ser pago seja eterno. negação do pensamento crítico, da “lógica do
protesto”; é a filosofia “positivista” que justifica “a
“Eros” libertado racionalidade tecnológica”.
Na sociedade tecnológica avançada, “a máquina
O progresso tecnológico gerou as premissas produtiva tende a se tornar totalitária enquanto
para a libertação da sociedade em relação à obrigação determina não somente as ocupações, as habilidades e
do trabalho, pela ampliação do tempo livre, pela os comportamentos socialmente requeridos, mas
mudança da relação entre tempo livre e tempo também as necessidades e as aspirações individuais”. E,
absorvido pelo trabalho socialmente necessário (de como universo tecnológico, a sociedade industrial avançada
modo que este se torne apenas meio para a libertação “é um universo político, o último estágio da realização de
de potencialidades hoje reprimidas): “Expandindo-se um projeto histórico específico, ou seja, a experiência,
sempre mais, o reino da liberdade torna-se a transformação e a organização da natureza como
verdadeiramente o reino do jogo, do livre jogo das mero objeto de domínio”.
faculdades individuais. Assim libertadas, elas geram Ela alcança a mais alta produtividade e a utiliza
formas novas de realização e de descoberta do mundo, para perpetuar o trabalho e o esforço; nela, a
que, por seu turno, darão nova forma ao reino da industrialização mais eficiente pode servir para limitar e
necessidade e à luta pela existência”. manipular as necessidades. Escreve Marcuse: “Quando
O reino da necessidade (centrado no princípio se alcança esse ponto, a dominação, sob a forma de
do desempenho e da eficiência, que suga toda a energia opulência e liberdade, estende-se a todas as esferas da
humana) será então substituído por uma sociedade não vida privada e pública, integra toda oposição genuína e
repressiva, que reconcilia natureza e civilização, na qual absorve em si toda alternativa”. Em suma, a sociedade
se afirma a felicidade do Eros libertado. tecnológica avançada cria um verdadeiro universo
No progresso tecnológico, portanto, estão as totalitário; em uma sociedade madura, mente e corpo
condições objetivas para a transformação radical da são mantidos em um estado de mobilização permanente
sociedade. No entanto, o progresso tecnológico não para a defesa desse mesmo universo.
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Por tudo isso, a luta pela mudança deve tomar nietzscheana no jovem Benjamin. Enquanto adepto da
outros caminhos, não mais os indicados por Marx: “As Teoria Crítica foi marcado tanto por Georg Lukács,
tendências totalitárias da sociedade unidimensional quanto pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht, gosto
tornam ineficazes os caminhos e meios tradicionais de que traduz sua natureza por um lado artística, por outro
protesto”. intelectual.
Seja como for, a questão, porém, não se Adorno já chamava a atenção para sua
apresenta como desesperadora, pois, abaixo da base personalidade austera, quase inflexível, mas também
popular conservadora, existe a camada dos muito educada, tendendo mais para a vibração artística
marginalizados e dos estrangeiros, dos explorados e que para a insensibilidade científica, embora ele
perseguidos de outras raças e de outras cores, dos valorizasse muito a esfera da razão. Seu grande amigo,
desempregados e dos deficientes. Eles ficam fora do Gerschom Gerhard Scholem, com quem ele trava
processo democrático. Sua presença, mais do que conhecimento em 1915, logo percebeu no jovem alguns
nunca, prova quanto é imediata e real a necessidade de traços inequívocos de melancolia, tema, aliás, muito
pôr fim a condições e instituições intoleráveis. Daí por presente na teoria benjaminiana. Além disso, para
que sua oposição é revolucionária, ainda que sua completar a caracterização deste grande filósofo, é
consciência não o seja. Sua oposição golpeia o sistema preciso acrescentar também sua veia poética e sua
de fora dele e, por isso, não é desviada pelo sistema; é natureza mística.
urna força elementar que infringe as regras do jogo e, Benjamin foi um intenso admirador da língua e
assim fazendo, mostra tratar-se de um jogo com cartas da cultura francesas, as quais dominava perfeitamente.
marcadas. Quando eles se reúnem e andam pelos Ele traduziu para a língua alemã obras fundamentais de
caminhos, sem armas e sem proteção, para reivindicar Charles Baudelaire e de Marcel Proust. Sua produção
os mais elementares direitos civis, sabem que tem de literária foi também um espelho de suas crenças, à
enfrentar cães, pedras e bombas, prisão, campos de primeira vista paradoxais. As obras mais célebres são A
concentração e até a morte. O fato de que eles começam Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica (1936)
a se recusar a tomar parte no jogo pode ser o fato que e a incompleta Paris, Capital do século XIX. A Tarefa do
marca o início do fim de um período. Tradutor é essencial para quem estuda Literatura.
Isso não quer dizer, em absoluto, que as coisas Em 1934, Benjamin foge para a Itália, onde
serão assim. O que se diz é que “o fantasma está permanece por um ano, tentando fugir da ascensão do
novamente presente, dentro e fora das fronteiras das Nazismo na Alemanha. Neste período já haviam se
sociedades avançadas”. E o que a teoria crítica da estabelecido algumas divergências entre Benjamin e a
sociedade pode fazer é o seguinte: ela “não possui Escola de Frankfurt. Em 1940, na margem espanhola
conceitos que possam preencher a lacuna entre o da fronteira entre França e Espanha, tentando
presente e seu futuro; não tendo promessas a fazer nem atravessar os Pireneus, possivelmente com medo de ser
resultados a mostrar, ela permanece negativa. Desse capturado pelos nazistas, proibido de seguir adiante,
modo, ela quer manter-se fiel aqueles que, sem Benjamin comete suicídio. O filósofo não resiste à
esperança, deram e dão a vida pela grande recusa”. intensidade da pressão emocional e, movido pelo ardor
de seu lado melancólico e apaixonado, opta pela morte.
4. WALTER BENJAMIM Seu aspecto racional não é forte o bastante para contê-
Walter Benjamin, lo. Neste mesmo ano ele cria sua última obra, Teses Sobre
nasceu em Berlim, a 15 de o Conceito de História. Sua produção intelectual marcou a
julho de 1892, no âmago de produção de vários filósofos que o sucederam.
uma família judia de
comerciantes. Posteriormente A tarefa da crítica
ele se tornaria ensaísta, crítico
de literatura, tradutor, filósofo Para a posteridade, a enorme produção de
e sociólogo da cultura, sendo Benjamin significou o estabelecimento de um marco no
um dos membros mais pensamento e na crítica Olhando retrospectivamente
importantes da Escola de para o século 20, podemos dizer que ele de fato realizou
Frankfurt. um de seus projetos pessoais mais arrojados. Como ele
Ele foi profundamente formulou em uma carta a seu grande amigo Gershom
influenciado por doutrinas Scholem, de janeiro de 1930, ele achava que conseguira
aparentemente díspares, como o materialismo marxista, o objetivo de “ser considerado como o primeiro crítico
o idealismo de Hegel e a mística judaica de Gershom da literatura alemã”. Este reconhecimento na época era
Scholem. Ainda adolescente, simpatizava com o na verdade muito tímido, restrito a um pequeno círculo
socialismo, integrando o Movimento da Juventude de leitores especializados. Hoje este círculo cresceu a
Livre Alemã e escrevendo para a publicação deste ponto de podermos com razão falar de um
grupo. É possível perceber então uma certa inspiração
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“reconhecimento” de sua posição privilegiada como econômica. A partir de seu encontro com o marxismo
crítico. de Lukács, isto tornou-se cada vez mais patente em seus
Benjamin estava ciente, como ele escreveu na ensaios e textos de crítica de arte. Aliás, se ele se
mesma carta, que para tornar-se este “primeiro crítico” identificou tão rapidamente com o marxismo de
era necessário “recriar a crítica como gênero”. Este Lukács, foi também porque ambos, este e Benjamin,
gênero encontrava-se então na Alemanha desprezado, vinham de uma profunda relação com o romantismo
não era considerado como sério. alemão. Mas Benjamin foi mais longe que seus colegas
No mesmo ano, Benjamin diagnosticava que de geração, justamente porque ao invés de “superar”
uma das causas que havia levado a crítica alemã à crise seu romantismo, manteve-se fiel a ele por toda sua vida.
naquela época, era a “ditadura da resenha como forma Se ele tenta nos anos de 1930 demarcar uma
de pesquisa crítica”. Ele mencionou então, como um posição contra este seu romantismo, é justamente
contra-modelo do passado, as “Características” dos porque ele não conseguiu superá-lo totalmente.
irmãos Schlegel. A crítica de Benjamin era, portanto, antes de
Como um dos caminhos para a saída da crise da mais nada, um ato de reflexão que se desdobrava em
crítica, ele cobrava dos críticos uma aproximação entre cinco níveis, articulando-os. O primeiro nível incluía
a abordagem filológica e uma autêntica reflexão crítica. uma auto-reflexão (ele sempre refletia sobre sua própria
Este termo indicava para ele uma reflexão tanto no atividade de crítico, sobre o local e o papel da crítica na
sentido de uma teoria das formas, como de uma teoria sociedade).
da história. Em segundo lugar, destaca-se uma leitura
Sem falsa-modéstia ele escreveu então que se a detalhada e uma reflexão sobre a obra criticada (que era
situação da crítica alemã estava se transformando, isto sempre analisada não a partir de um modelo a-histórico,
ocorria em parte devido aos seus enormes esforços. E, mas sim de seu próprio Ideal a priori, nas palavras de
de fato, Benjamin então, com 38 anos, já fizera bastante Novalis).
para o aprimoramento da crítica. Ele não apenas Em terceiro lugar, encontramos uma reflexão
publicara dois ensaios de peso sobre a literatura alemã, sobre a história da arte e da literatura, na qual Benjamin,
seu “O conceito de crítica de arte no romantismo alemão” (1919) dentro de uma forte tradição alemã, desenvolveu muitas
e o “Origem do drama barroco alemão” (de 1925, publicado vezes (como no livro Sobre o barroco e no seu ensaio sobre o
em 1928), como compusera uma profunda análise narrador, de 1936) o tema da teoria dos gêneros
das Afinidades eletivas de Goethe (1922), além de mais de literários.
cerca de uma centena de artigos de crítica, sobretudo Em quarto lugar, nota-se sempre uma reflexão
sobre literatura alemã e francesa. crítica sobre a sociedade, ou seja, a crítica foi praticada
Com o fracasso de seu plano de entrar para a em Benjamin a partir do seu presente e voltada para ele,
universidade, ele se entregara de corpo e alma a este sem a ilusão positivista de se poder penetrar no passado
projeto de crítica. Isto significou para ele uma vida “tal como ele aconteceu”.
atribulada, com enormes dificuldades econômicas. Para Por fim, e articulando todos os níveis anteriores,
a posteridade, a sua enorme produção, paradoxalmente devemos destacar a teoria da história de Benjamin com
derivada desta mesma situação precária, significou o a sua crítica aos modelos da evolução histórica, tanto
estabelecimento de um marco no pensamento e na liberais como marxistas, que acreditavam em um
crítica. avanço constante e positivo do devir da história.
Esta última, em Benjamin, nunca foi limitada à Benjamin opôs a este modelo uma imagem da história
literatura ou às obras de arte consagradas. Ele entendeu como acúmulo de catástrofes.
em primeiro lugar o conceito de crítica no seu sentido Contra o positivismo daqueles que pregavam
kantiano, de crítica da possibilidade de conhecimento. (inocentemente ou não) uma crítica apolítica, Benjamin
Neste ponto seu pensamento já se aproxima do dos demonstrou que não existe um campo fora do político.
românticos Schlegel e Novalis que cobravam da A arte e sua crítica são médium-de-reflexão não
filosofia kantiana uma expansão do seu conceito de apenas do sistema estético, mas, antes, de toda a
experiência. Com estes autores ele via na crítica um sociedade. Neste sentido, ele extrapolou
médium-de-reflexão. programaticamente o âmbito da crítica da literatura e da
Trocando em miúdos, assim como os arte.
românticos viam na “romantização” do mundo um Sua atividade crítica não pode ser inteiramente
projeto de superação das barreiras entre o universo compreendida, se não levarmos em conta seus seminais
criativo e penetrado de fantasia das artes, e, por outro textos críticos dirigidos à questão do poder e do direito,
lado, a vida prosaica cotidiana, do mesmo modo, assim como a sua crítica do que ele denominou de
Benjamin propõe para a crítica um projeto tanto concepção “burguesa”, ou seja, instrumental, da
estético quanto político. linguagem.
O ato da crítica era visto por ele como um meio Além disso, Benjamin refletiu também em
de crítica de todo o sistema cultural e de sua base vários importantes ensaios críticos sobre questões
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como a da coleção e do colecionismo. Seus escritos cristalizarem em museus e parques temáticos. É o viés
voltados para a recordação de sua infância são conservador da cultura como mercadoria que o faz, ao
profundamente inovadores, na medida em que qual Benjamin opõe sua visada da cultura como
desconstroem criticamente os modelos da autobiografia documento e testemunho da barbárie.
e introduzem uma modalidade da auto-escritura mais Seu projeto de historiografia calcada no
fragmentada e voltada para uma “topografia da colecionismo (que tem por princípio o arrancar de seus
memória”. objetos do falso contexto para inseri-los dentro de uma
O fundamental dentro do universo das críticas nova ordem comandada pelos interesses de cada
de Benjamin, quando ele voltava seu potente intelecto presente) e, por outro lado, inspirado no trabalho do
para as obras que eram publicadas na sua época (como catador (que se volta para o esquecido e considerado
as de Proust, Kafka, Döblin, Kraus, Brecht etc.), ou inútil) ainda hoje pode ser comparado a um pólen que
para reedições de obras consagradas ou não (de Goethe, guarda uma assombrosa força de germinação.
Kleist, Hebel etc.) é que ele sempre realizou uma crítica
que era, ao mesmo tempo, teoria da literatura. A obra de arte na modernidade
É este talvez o legado mais importante de sua
produção crítica: ele mostrou a infecundidade da crítica O ensaio “A obra de arte na era de sua
apenas filológica, assim como a limitação da crítica reprodutibilidade técnica” analisa questões como a noção de
meramente imanente, ou ainda, da crítica biográfica. autenticidade e o valor de culto das obras de arte.
Crítica para ele só existia enquanto capacidade Apesar de ter sido escrito a pelo menos meio século,
de se articular (delicadamente, ou às vezes, como todo ainda hoje é um texto de muita importância.
o peso histórico exigido por seu objeto de análise), a O ponto central desse estudo encontra-se na
imanência da obra com a reflexão histórico-crítica. As análise das causas e consequências da destruição da
mostras mais eloquentes desta concepção são a “aura” que envolve as obras de arte, enquanto objetos
introdução “crítico-epistemológica” do seu livro sobre individualizados e únicos. A “aura” corresponde a
o drama barroco alemão, e as reflexões que absoluta singularidade de algo, relacionando-se a sua
acompanham as notas de seu trabalho que ficou condição de exemplar único dentro de um contexto que
inconcluso sobre as passagens de Paris. lhe dá sentido e justificação.
Benjamin escreveu no seu último texto, A obra de arte sempre pôde ser reproduzível,
dedicado à crítica da noção de progresso, que “nunca discípulos “imitavam” seus mestres para difusão da
existiu um documento da cultura que não fosse ao obra ou visando lucro. Porém a reprodução técnica da
mesmo tempo um [documento] da barbárie”. obra de arte é algo novo, que foi possível com a
Com Benjamin aprendemos que cultura é a xilografia (gravura em madeira), muitos anos antes da
partir de meados do século 20 toda ela como que imprensa. Logo, a litografia (tipo de gravura que
transformada em um documento e, mais ainda, ela envolve a criação de marcas ou desenhos sobre
passa a ser lida como testemunho da barbárie. Esta uma matriz de pedra calcária ou placa de metal com um
noção é essencial, porque com este autor vemos não lápis gorduroso) permitiu a arte colocar-se no mercado
apenas uma tremenda expansão nos critérios de seleção, suas produções não somente em massa, mas sob a
como também a afirmação radical de um modo de forma de criações sempre novas.
interpretar esses documentos.
Sua teoria da história e da cultura descortina o
passado e suas ruínas, sobre as quais construímos nosso
presente, como um único e gigantesco arquivo. Quando
se fala de arquivo, não se pode esquecer que a toda
inscrição deve-se associar um modo de leitura e de
interpretação, de outro modo teríamos um arquivo
literalmente morto.
O elemento político domina todos os
momentos do trabalho no arquivo, da seleção,
passando pela conservação e pelo acesso, chegando à
leitura dos documentos. A história para Benjamin,
como é conhecida, é aproximada do modelo do
colecionador e do catador de papéis. O historiador deve
acumular os documentos que são como que Com a litografia, as artes gráficas situarem-se no
apresentados diante do tribunal da história. mesmo nível da imprensa, ilustrando a vida cotidiana;
Em Benjamin, a cultura como arquivo e logo, com a fotografia, a arte situou-se no mesmo nível
memória, devido ao viés crítico e revolucionário de seu que a palavra oral. A partir daí a responsabilidade era do
modo de leitura, não deixa a sociedade e sua história se olho e não mais da mão do artista.
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Benjamin diz que a obra de arte tem ou um


valor de culto ou de exposição, quanto menor o valor
de culto maior o valor de exposição. A unicidade da
obra de arte é idêntica à sua inserção no contexto da
tradição, e esta tradição é viva e extraordinariamente
variável.
A chapa fotográfica ou o arquivo de
computador permite-nos ter quantas copias quisermos,
a questão de autenticidade das copias, segundo
Benjamin, não tem nenhum sentido. No momento em
que o critério da autenticidade deixa de ser aplicado à
produção artística, toda função social da arte se
transforma, em vez de fundar-se no ritual, passa a
fundar-se em outra práxis: a política.
Com o progresso das técnicas de reprodução, À medida que as obras de arte se emancipam do
sobretudo do cinema, a aura, dissolvendo-se nas várias seu uso ritual, aumentam as ocasiões para que elas sejam
reproduções do original, destituiria a obra de arte de seu expostas. A imagem era algo quase sagrado, apenas
status de raridade. algumas pessoas tinham aceso para realização de rituais,
É muito mais fácil você encontrar um “original”
o dono de uma imagem continuou tendo status de
do filme Matrix no shopping do que a Monalisa original poder por muito tempo, porém com a fotografia,
em qualquer lugar que seja. Não é mesmo? Essa qualquer um podia apreciá-las ou até produzi-las. Agora
raridade confere toda essa “aura” que envolve a obra de podemos conhecer lugares ou obras que não
arte. poderíamos sem a fotografia e os meios de
Para Benjamin, a partir do momento em que a comunicação.
obra fica excluída da atmosfera aristocrática e religiosa, A Monalisa, por
que fazem dela uma coisa para poucos e um objeto de exemplo, poucos tiveram a
culto, a dissolução da aura atinge dimensões sociais. chance de contemplá-la de
Essas dimensões seriam resultantes da estreita relação perto, mesmo que atrás de
existente entre as transformações técnicas da sociedade um grosso vidro, mas quem
e as modificações da percepção estética. não a conhece?
Benjamin nos apresenta o conceito de aura, Segundo Benjamin
como sendo uma figura singular, composta de a exponibilidade de uma obra
elementos espaciais e temporais, seria como um halo de arte cresce em tal escala,
misterioso e inapreensível das imagens; a aparição única com vários métodos de reprodutibilidade técnica, que a
de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. mudança de ênfase de um pólo para outro corresponde
Para Benjamin esta aura foi se perdendo com a a uma mudança qualitativa comparável à que ocorreu
fotografia, diante do valor de exposição. na pré-história.
Segundo ele as primeiras fotografias remetem à
Como na pré-história a preponderância
captação de mistérios nas intimidades dos rostos absoluta do valor de culto conferido à obra levou-a a
fotografados. Mas com o avanço do processo negativo- ser concebida em primeiro lugar como instrumento
positivo, a popularização da fotografia e o mágico, e só mais tarde como obra de arte, do mesmo
barateamento do aparelho tivemos a decadência da aura modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu
e as tentativas malsucedidas de sua recriação, o valor de exposição atribui-lhe funções inteiramente
“mistério” da fotografia se perdeu. novas, entre as quais a “artística”, a única de que temos
A reprodutibilidade técnica da obra de arte consciência.
altera a relação das massas com a arte. Uma das funções Já o cinema representaria
revolucionárias do cinema será a de tornar um meio de expressão
reconhecíveis como idênticos os aproveitamentos absolutamente incomparável.
artístico e científico da fotografia, até agora divergentes, A reprodutibilidade técnica
na maioria dos casos. do filme tem seu fundamento
Segundo Benjamin o valor único da obra de arte imediato na técnica de sua
“autêntica” tem sempre um fundamento teológico, por produção. Não se permite
mais remoto que seja. O objeto de arte como ídolo apenas a difusão em massa da
perde-se na era da reprodutibilidade. As mais antigas obra cinematográfica, como a
obras de arte surgiram com o fim de culto, para torna obrigatória, pois a
exprimir uma cultura e um significado em determinado produção de um filme é cara.
povo e lugar.
Em 1927, calculou-se que um filme de longa metragem,
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para ser rentável, precisaria atingir um público de nove FENOMENOLOGIA


milhões de pessoas.
Apesar das dificuldades financeiras, numa
perspectiva externa, o cinema falado estimulou 1. FENOMENOLOGIA: UM MÉTODO PARA
interesses nacionais, visto de dentro se “VOLTAR ÀS PRÓPRIAS COISAS”
internacionalizou a produção cinematográfica numa
escala ainda maior. Escreve Heidegger em Ser e tempo: “A expressão
Para o cinema é menos importante o ator 'fenomenologia' significa, antes de mais nada, um
representar diante do público outro personagem, que conceito de método [...]. O termo expressa um lema que
ele representar a si mesmo diante do aparelho. O poderia ser assim formulado: voltemos às próprias coisas! E
cinema renuncia aos valores eternos, pois tem que ser isso em contraposição às construções desfeitas no ar e
cada vez melhor para o público, cada vez mais perfeito. às descobertas casuais. Em contraposição a aceitação de
O corpo do interprete cinematográfico perde a conceitos só aparentemente justificados e aos
substância sendo privado da realidade diante das problemas aparentes que se impõem de uma geração a
câmeras. outra como verdadeiros problemas”.
A crise da democracia foi como uma crise nas
condições de exposição do político. A metamorfose do
modo de exposição pela técnica de produção é visível
também na política. A crise da democratização pode ser
interpretada como crise nas condições de exposição do
político profissional. O político quer se expor de forma
imediata, em pessoa, diante de certos representantes, ou
seja, seu objetivo é o mesmo que o ator, se tornar
“mostrável” para a sociedade.
O cinegrafista utiliza o procedimento técnico para
fazer a cena parecer real, já o pintor vê em sua obra a
distância entre a realidade dada e ele próprio. O
cinegrafista mergulha na realidade. A pintura desfruta
do que é tradicional sem criticar, critica-se o que é novo
sem desfrutar. O filme de sucesso já é o mais exposto,
é o que mais pessoas assistiram.
A análise de Benjamin mostra que as técnicas de
reprodução das obras de arte, provocando a queda da
aura, promovem a liquidação do elemento tradicional Portanto, a palavra de ordem da fenomenologia
da herança cultural; mas, por outro lado, esse processo é a do retorno às próprias coisas, indo além da verbosidade
contém um germe positivo. É que possibilidade de dos filósofos e de seus sistemas construídos no ar. Mas
reprodução em massa democratiza a cultura e faz com como se fará para construir uma filosofia que se
que o contato com a obra de arte não seja um privilégio sustente? Para cumprir essa tarefa, é preciso partir de
apenas da elite. dados indubitáveis para com base neles construir depois
Desse modo, na medida em que possibilita um o edifício filosófico. Em suma, procuram-se evidências
outro relacionamento das massas com a arte, esta pode estáveis para colocar como fundamento da filosofia:
ser um instrumento de politização e com isso um meio “sem evidencia não há ciência”.
eficaz de renovação das estruturas sociais. Um filme Dirá Husserl nas Pesquisas lógicas: “Os limites da
que contém uma forte crítica social é um bom exemplo evidência apodítica representam os limites de nosso
disso na medida em que faz a classe oprimida pensar a saber. Assim, é preciso buscar coisas manifestas,
sua realidade social. fenômenos tão evidentes que não possam ser negados”.
Essa, portanto, é a intenção de fundo da
fenomenologia, intenção que os fenomenólogos
procuram realizar através da descrição dos
“fenômenos” que se anunciam e se apresentam à
consciência depois de feita a epoché, isto é, depois de
postos entre parênteses as nossas persuasões
filosóficas, os resultados das ciências e as convicções
engastadas naquela nossa atitude natural que nos impõe
a crença na existência de um mundo de coisas.

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Em outros termos, é preciso suspender o juízo Diferentemente do psicólogo, o fenomenólogo não


sobre tudo o que não é apodítico nem objeto de manipula dados de fato, mas essências; não estuda fatos
controvérsia até se conseguir encontrar aqueles “dados” particulares, senão ideias universais; não se interessa
que resistem aos reiterados assaltos da epoché. E os pelo comportamento moral desta ou daquela pessoa,
fenomenólogos encontram esse ponto de aproximação mas pretende conhecer a essência da moralidade e
da epoché, o resíduo fenomenológico - como o chamaria talvez ver se a moral é ou não fruto de ressentimento.
Husserl -, na consciência: a existência da consciência é
imediatamente evidente. Direção idealista e direção realista da
fenomenologia
A fenomenologia é descrição das essências
eidéticas O fenomenólogo, em suma, cumpre tarefas
bem diferentes das dos cientistas. A consciência é
A partir dessa evidência, os fenomenólogos “intencional”, é sempre consciência de alguma coisa
pretendem descrever os modos típicos como as coisas e os que se apresenta de modo típico: a análise desses modos
fatos se apresentam à consciência. E esses modos típicos é precisamente a função do fenomenólogo, que
típicos são precisamente as essências eidéticas. A se pergunta e indaga sobre o que a consciência
fenomenologia não é ciência de fatos, e sim ciência de transcendental entende por amor, percepção,
essências. religiosidade, justiça, comunidade, simpatia, e assim por
Para o fenomenólogo não interessa a análise diante.
desta ou daquela norma moral, porém compreender Nesse ponto, a fenomenologia podia tomar
por que esta ou aquela norma são normas morais e não, duas direções: a idealista ou a realista. Os significados
por exemplo, normas jurídicas ou regras de ou essências dos objetos, das instituições e dos valores
comportamento. Da mesma forma, o fenomenólogo são constituídos e postos pela consciência, ou o olhar
não se interessara (ou, pelo menos, não se interessara do teórico desinteressado os intui enquanto dados
principalmente) em examinar os ritos e os hinos desta objetivos?
ou daquela religião; ao contrário, ele se interessará por Husserl tomará o caminho do idealismo. Assim,
compreender o que á a religiosidade, ou seja, o que o pensador que estabeleceu como programa da
transforma ritos e hinos tão diferentes em ritos e hinos fenomenologia o do retorno às próprias coisas, no fim
“religiosos”. se encontrará com a realidade única que é a consciência:
Naturalmente, o fenomenólogo também a consciência transcendental, que “constitui” os
produzirá analises mais especificas sobre o que significados das coisas, das ações, das instituições e o
caracteriza essencialmente, por exemplo, o pudor, a sentido do mundo (aqui, transcendental quer dizer
santidade, o amor, a justiça, o remorso ou os tipos de kantianamente o que está na nossa consciência
sociedade, mas, em todo caso, sua ciência é enquanto algo independente da sensibilidade e,
precisamente ciência de essências. portanto, a priori, mas funcionalmente ordenado para a
Tais essências se tornam objeto de estudo se o “constituição” da experiência).
pesquisador, estabelecendo-se na atitude de espectador O movimento fenomenológico é uma vasta e
desinteressado, liberta-se das opiniões preconcebidas e, articulada corrente de pensamento, da qual se destacam,
sem se deixar envolver pela banalidade e pelo óbvio, além de Husserl, o pensamento de Heidegger, as
saiba “ver” e consiga intuir (e descrever) aquele análises de Sartre e de Merleau-Ponty.
universal pelo qual um fato é aquilo e não outra coisa. Deve-se dizer ainda que a influência dos
Nós distinguimos um texto mágico de um texto fenomenólogos sobre a psicologia, a antropologia, a
científico, mas como conseguimos faze-lo senão psiquiatria, a filosofia moral e a filosofia da religião foi
porque utilizamos discriminantes essenciais, senão e continua sendo notável. Por isso, é reconhecido que
porque, talvez até sem termos consciência disso, o movimento fenomenológico constitui um
sabemos o que é magia e o que é ciência? Como acontecimento decisivo no âmbito da filosofia
podemos dizer que este é um ato de simpatia, aquele contemporânea.
um gesto de ira, este outro um comportamento
desesperado ou aquele outro ainda um comportamento Às origens da fenomenologia
de santidade, se não houvesse precisamente essências,
ou seja, ideias essenciais, de simpatia, de ira, de A fenomenologia nasce com Husserl como
desespero ou de santidade? polêmica antipsicologista. Uma das ideias fundamentais
Eis, portanto, o que a fenomenologia pretende de Husserl e da fenomenologia é a da
ser: ciência fundamentada estavelmente, voltada a análise e a intencionalidade da consciência. Foi precisamente
descrição das essências. Com base nisso, podemos em relação a esses dois núcleos problemáticos que
compreender como a fenomenologia se distingue da Husserl se inspirou em dois pensadores de nível
análise psicológica ou da análise científica. notável, isto é, Bernhard Bolzano e Franz Brentano.
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Bolzano (1781-1 848), ano apareceram as Pesquisas lógicas. É de 1911 A filosofia


matemático e filósofo, padre como ciência rigorosa; e Ideias para uma fenomenologia pura e
católico e professor de filosofia uma filosofia fenomenológica é de 1913.
da religião na Universidade de Em 1916 passou a
Praga até 1819, nos deixou duas ensinar em Friburgo, onde
importantes obras: 0s paradoxos permaneceu até 1928, ano
do infinito (1851), e a Doutrina da em que foi posto de licença.
ciência (1837). Como emérito, não pôde
O primeiro trabalho prosseguir sua atividade
exerceu influencia notável sobre a história do didática porque, sendo
pensamento matemático. Já o segundo elabora a judeu, foi obstaculizado
doutrina da “proposição em si” e da “verdade em si”. pelo regime nazista. A lógica
A proposição em si é o puro significado lógico formal e a lógica transcendental é
de um enunciado, não dependendo do fato de ele ser de 1929. Em 1931 foram
expresso ou pensado. Já a verdade em si é dada por publicadas suas
qualquer proposição válida, seja ou não expressa ou conferências parisienses, sob o título de Meditações
pensada. Assim, a validade de um princípio lógico, cartesianas.
como o da não-contradição, permanece tal tanto se o Morreu em 1938 e deixou grande quantidade de
pensarmos ou não, tanto se o expressarmos com inéditos (cerca de quarenta e cinco mil páginas
palavras ou por escrito, como se não o expressarmos. estenografadas). Dessa grande massa de manuscritos
As proposições em si podem derivar uma da outra e foram extraídos vários livros, o mais conhecido e
podem entrar em contradição: elas são parte de um importante dos quais é A crise das ciências europeias e a
mundo lógico-objetivo e são independentes das fenomenologia transcendental, publicado em 1950.
condições subjetivas do conhecer.
Brentano (1838- A intuição eidética
1917), também padre
católico que depois As proposições universais e necessárias são
abandonou a Igreja, foi condições que tornam possível uma teoria, sendo
professor na Universidade diferentes das proposições obtidas indutivamente da
de Viena. Escreveu muito experiência. Na base desses dois tipos de proposições,
sobre Aristóteles (A Husserl distingue entre intuição de um dado de fato e
psicologia de Aristóteles, 1867; intuição de uma essência.
O cristianismo de Aristóteles, Husserl está persuadido de que nosso
1882; Aristóteles e sua visão do mundo, 1911; A doutrina de conhecimento começa com a experiência, ou seja, com
Aristóteles sobre a origem do espirito humano, 1911); todavia, a experiência de coisas existentes, de fatos. A experiência
sua obra de maior sucesso foi A psicologia do ponto de vista nos oferece continuamente dados de fato, os dados de
empírico (1874). É nesta última obra que Bretano afirma fato com os quais nos vemos às voltas na vida cotidiana,
o caráter intencional da consciência. e dos quais a ciência também se ocupa. Um fato é o que
Na escolástica, intentio significava o conceito acontece aqui e agora; um fato é contingente, podendo ser
enquanto indica algo diferente de si. Segundo Brentano, ou não ser.
precisamente, a intencionalidade é o que tipifica os Mas, quando um fato (este som, esta cor etc.) se
fenômenos psíquicos, que sempre se referem a algo nos apresenta à consciência, juntamente com o fato
diferente de si próprio. Eles se distinguem em três captamos uma essência (o som, a cor etc.). Nas ocasiões
classes fundamentais, que são a representação, o juízo e mais díspares, podemos ouvir os sons mais diversos
o sentimento. Na representação, o objeto é puramente (clarim, violino, piano etc.), mas neles reconhecemos
presente; no juízo, ele é afirmado ou negado; no algo de comum, uma essência comum. No fato sempre se
sentimento, ele é amado ou odiado. capta uma essência. O individual se anuncia para a
consciência através do universal.
2. EDMUND HUSSERL Quando a consciência capta um fato aqui e agora,
ela capta também a essência: esta cor é caso particular da
Husserl nasceu em Prossnitz (na Morávia), em essência "cor", este som é caso particular da essência
1859. Estudou matemática em Berlim e laureou-se em "som", este ruído é caso particular da essência "ruído"
1883 com uma tese sobre o cálculo das variações. etc.
Em Viena, seguiu as aulas de Brentano. Em As essências, portanto, são os modos típicos do
1891, publicou a Filosofia da aritmética. aparecer dos fenômenos. E não é que nós abstraiamos
Livre-docente em Halles em 1887, foi nomeado as essências da comparação de coisas semelhantes,
professor de filosofia em Gottingen em 1901. Neste como queriam os empiristas, uma vez que a semelhança
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já é essência. Não abstraímos a ideia ou essência de mais variar, caso contrário já não se estaria tratando do
“triângulo” da comparação de muitos triângulos: o que mesmo conceito.
ocorre é que este, esse e aquele são triângulos porque É óbvio que essas essências não existem
são casos particulares da ideia de triângulo. Este somente no interior do mundo perceptivo: fatos como
triângulo isóscele desenhado no quadro-negro existe recordações, esperanças ou desejos também tem sua
aqui e agora, com estas dimensões e não outras. Esse é essência, isto é, se apresentam à consciência de modo
um dado de fato particular. Mas nele captamos uma típico. Além disso, a distinção entre o fato (que é um isto)
essência. e uma essência (que é um “o que”) permite a Husserl
E o conhecimento das essências não é justificar a lógica e a matemática.
conhecimento mediato, obtido, como se repete, por As proposições lógicas e matemáticas são juízos
meio da abstração ou comparação de vários fatos. Para universais e necessários porque são relações entre
comparar vários fatos, é preciso já ter captado uma essências. E sendo relações entre essências, as
essência, isto é, um aspecto pelo qual eles são proposições lógicas e matemáticas não recorrem a
semelhantes. experiência como fundamento de sua validade.
O conhecimento das essências é uma intuição. O fato de a consciência poder efetivamente
É uma intuição diferente daquela que nos permite referir-se a essências ideais não legitima somente uma
captar os fatos particulares. É a ela que Husserl chama análise dos modos típicos em que se apresentam os
intuição eidética ou intuição da essência. Trata-se de fenômenos perceptivos, nem apenas a distinção das
conhecimento distinto do conhecimento do fato. Os proposições lógicas e matemáticas das propriedades das
fatos particulares são casos de essências eidéticas. Essas ciências empíricas; o fato da referência às essências
essências eidéticas, portanto, não são objetos ideais abre à fenomenologia a exploração e a descrição
misteriosos ou evanescentes. do que Husserl chama de “ontologias regionais”.
É verdade que só os fatos particulares são reais, Nesse sentido, “regiões” são a natureza, a
e que os universais não são reais como os fatos sociedade, a moral e a religião. O estudo dessas
particulares. Os universais, isto é, as essências, são ontologias regionais se propõe captar e descrever as
conceitos, ou seja, objetos ideais que, porém, permitem essências, isto é, as modalidades típicas com que
classificar, reconhecer e distinguir os fatos particulares, aparecem à consciência os fenômenos morais, por
dos quais a consciência, quando eles se lhe apresentam, exemplo, ou os fenômenos religiosos. À essas
reconhece o “aqui e agora”, mas também o “o quê”. ontologias regionais, Husserl contrapõe a ontologia
formal, que depois identifica com a lógica.
Ontologias regionais e ontologia formal
A intencionalidade da consciência
A fenomenologia pretende ser ciência de
essências e não de dados de fato. Ela é fenomenologia, A fenomenologia, portanto, é ciência das
ou seja, “ciência dos fenômenos”, mas seu objetivo é o essências, isto é, dos modos típicos do aparecer e do
de descrever os modos típicos com os quais os manifestar-se dos fenômenos da consciência, cuja
fenômenos se apresentam à consciência. E essas característica fundamental é a da intencionalidade.
modalidades típicas (pelas quais este som é um som e A consciência, com efeito, é sempre consciência
não uma cor ou um ruído, ou pelas quais este desenho é de alguma coisa. Quando eu percebo, imagino, penso
de um triângulo e não de outra coisa) são precisamente ou recordo, eu percebo, imagino, penso ou recordo
as essências. alguma coisa. Por isso se pode ver, diz Husserl, que a
A fenomenologia, portanto, é ciência de distinção entre sujeito e objeto dá-se imediatamente. O
experiência, não, porém, de dados de fato. Os objetos sujeito é um eu capaz de atos de consciência como
da fenomenologia são as essências dos dados de fato, perceber, julgar, imaginar e recordar; o objeto, ao
são os universais que a consciência intui quando os contrário, é o que se manifesta nesses atos, ou seja,
fenômenos a ela se apresentam. E nisso consiste a corpos percebidos, imagens, pensamentos,
redução eidética, isto é, a intuição das essências, quando, recordações.
na descrição do fenômeno que se apresenta à Por isso, devemos distinguir ainda o aparecer de
consciência, sabemos prescindir dos aspectos empíricos um objeto do objeto que aparece. E se é verdade que
e das preocupações que nos ligam a eles. conhecemos o que aparece, para Husserl também é
Nesse sentido, as essências são invariáveis. E verdade que vivemos o aparecer do que aparece. Husserl
são obtidas através do que, nos escritos póstumos de chama de noese o ter consciência, e noema aquilo de que
Husserl, denomina-se “método da variação eidética”. se tem consciência. E entre os diversos noemas, como
Toma-se determinado exemplo de um conceito que se sabemos, Husserl distingue claramente os fatos das
quer explicar e depois, pouco a pouco, se introduzem essências.
variações nas propriedades, as quais são submetidas a A consciência, portanto, é intencional. Como
variações até se chegar a um ponto em que não se pode escreve Husserl, “a intencionalidade é o que caracteriza
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consciência de modo significativo. Nossos atos porém, não possuem evidencia constritiva e,
psíquicos têm a característica de se referirem sempre a um consequentemente, devem ser postas entre parênteses.
objeto, pois sempre fazem aparecer objetos”. Não é que o filósofo duvide delas: ele muito
Entretanto, deve-se notar que, em Husserl, o mais as põe fora de uso, não as utilizando como
caráter intencional da consciência, em si mesmo, não fundamento de sua filosofia, uma vez que, se a filosofia
implica concepção realista. Em outros termos: a quer ser ciência rigorosa, deve pôr como seu
consciência refere-se a outra coisa; isto, porém, não fundamento apenas o que é indubitavelmente evidente.
significa que essa outra intencionalidade da consciência Por conseguinte, da minha persuasão de que o mundo
deixa pendente a controvérsia entre realismo e existe, eu não devo deduzir nenhuma proposição
idealismo. filosófica, pelo motivo de que a existência do mundo,
O que importa, no entanto, é descrever o que fora da consciência que a percebe, não é de modo
efetivamente se dá à consciência, o que nela se nenhum indubitável.
manifesta e nos limites em que se manifesta. E o que se Como homem, o filósofo crê na existência do
manifesta e aparece é o fenômeno, em que por mundo e, ainda como homem, não pode deixar de crer
“fenômeno” não devemos entender a “aparência” em muitas outras coisas na vida prática, mas, como
contraposta à “coisa em si”: eu não ouço a aparência de filósofo, ele não pode partir delas.
uma música, eu escuto a música; eu não sinto a E não pode partir tampouco dos resultados a
aparência de um perfume, eu sinto o perfume; nem pesquisa científica, em virtude do fato de que, embora
tenho a aparência de uma recordação, eu tenho uma procedendo crítica e rigorosamente no seu âmbito, as
recordação. ciências interpretam, aceitando-os “ingenuamente”, os
Consequentemente, o “princípio de todos os dados da experiência comum, sem se perguntar se eles
princípios”, enunciado por Husserl, é o seguinte: “Toda resistem à pressão da epoché, ou seja, se são realidades
intuição que apresenta originariamente alguma coisa é, indubitáveis.
por direito, fonte de conhecimento; tudo aquilo que se Portanto, nem as doutrinas filosóficas, nem os
apresenta a nós originariamente na intuição (que, por resultados da ciência, nem as crenças da atitude natural,
assim dizer, se nos oferece em carne e osso) deve ser até as mais óbvias, podem constituir pontos de partida
assumido assim como se apresenta, mas também indubitáveis, que são precisamente aquilo de que
apenas nos limites em que se apresenta”. necessita a filosofia concebida como ciência rigorosa.
Todas essas crenças, pois, devem ser postas entre
Epoché parênteses.
Mas existe alguma coisa da qual não se possa
Mediante o princípio acima mencionado, duvidar e que não se deixa pôr entre parênteses? Se
Husserl pensava fundamentar a fenomenologia como existe, o que é isso que pode resistir a epoché? Pois bem,
ciência rigorosa, como ciência voltada para as coisas, para Husserl, o que resiste aos ataques da epoché, ou seja,
para as próprias coisas; uma ciência que está voltada o que não se pode pôr entre parêneses, é a consciência
para ver como são as coisas. ou subjetividade. Aquilo cuja existência é
“Vamos às coisas!” torna-se o lema da absolutamente evidente é o cogito com seus cogitata, a
fenomenologia. E é precisamente a fim de ir às coisas, consciência à qual se manifesta tudo aquilo que aparece.
as coisas em carne e osso, ou seja, a fim de encontrar A consciência, portanto, é o resíduo
pontos sólidos e dados indubitáveis, coisas tão fenomenológico que resiste aos continuados assaltos da
manifestas a ponto de não poderem ser postas em epoché. Mas a consciência, prossegue Husserl, não é
dúvida e sobre as quais poder fundar uma concepção apenas a realidade mais evidente, e sim também
filosófica consistente, que Husserl propõe a epoché ou realidade absoluta, é o fundamento de toda realidade, é
redução fenomenológica, como método da filosofia. aquela realidade que não há necessidade de existir. O
Epoché (que é a transliteração do termo usado mundo, diz Husserl, é “constituído” pela consciência.
pelos céticos gregos para indicar a suspensão do juízo)
significa justamente suspender o juízo em primeiro A crise das ciências européias e o “mundo da
lugar sobre tudo aquilo que nos dizem as doutrinas vida”
filosóficas com seus debates metafísicos, depois
igualmente sobre tudo o que nos dizem as ciências, Em 1950, apareceu postumamente A crise das
sobre aquilo que cada um de nós afirma e pressupõe na ciências europeias e a fenomenologia transcendental. Esta é a
vida quotidiana, isto é, sobre as crenças que compõem última obra de fôlego de Husserl, na qual trabalhou até
aquilo que Husserl chama de atitude natural. próximo da morte.
A atitude natural do homem é feita de A crise das ciências, obviamente, não é a crise
persuasões variadas, úteis e necessárias à vida cotidiana. de sua cientificidade, e sim crise do que elas, as ciências
E a primeira dessas persuasões é a de que vivemos em em geral, têm significado e podem significar para a
um mundo de coisas existentes. Essas persuasões, existência humana. Escreve Husserl: “A exclusividade
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com que, na segunda metade do século XIX, a visão de significado em Duns Escoto. Professor por alguns anos na
conjunto do mundo do homem moderno se deixou Universidade de Marburgo, em 1929 Heidegger
determinar pelas ciências positivas, e com que se deixou sucedeu a Husserl na cátedra de filosofia em Friburgo,
deslumbrar pela 'prosperidade' que daí derivava, dando sua aula inaugural sobre 0 que é a metafisica?
significou o afastamento dos problemas decisivos para Do mesmo ano é o
uma autêntica humanidade. As meras ciências de fatos ensaio Sobre a essência do
criam meros homens de fato”. fundamento (escrito para o
O objeto da crítica de Husserl são o naturalismo volume miscelâneo publicado
e o objetivismo, a pretensão pela qual a verdade científica em comemoração dos setenta
é a única verdade válida, e a ideia a ela ligada de que o anos de Husserl), bem como o
mundo descrito pelas ciências seria a verdadeira livro Kant e o problema da
realidade. metafisica. Nesse entretempo,
E Husserl traça a história dessa pretensão e em 1927, saíra o trabalho
dessa ideia, a começar por Galileu e Descartes. Mas, fundamental de Heidegger, Ser e tempo.
escreve ele, “na miséria de nossa vida [...] tal ciência não Em 1933, Heidegger, que aderira ao nazismo,
tem nada a nos dizer. Em princípio, ela exclui aqueles torna-se reitor da Universidade de Friburgo,
problemas que são os mais candentes para o homem, o pronunciando o discurso A autoafirmação da universidade
qual, em nossos tempos atormentados, sente-se à mercê alemã. Mas pouco depois se demitiu do cargo de reitor.
do destino; os problemas do sentido e do não-sentido Seus escritos posteriores a esse período são:
da existência humana em seu conjunto”. Na opinião de Holderlin e a essência da poesia (1937), A doutrina de Platão
Husserl, em sua generalidade e em sua necessidade, sobre a verdade (1942), republicado em 1947, juntamente
esses problemas exigem solução racionalmente com a Carta sobre o humanismo; A essência da verdade (1943);
fundada. Caminhos interrompidos (1950); Introdução à metafisica 1953);
Eles “concernem ao homem em seu 0 que é a filosofia? (1956), A caminho rumo à linguagem
comportamento diante do mundo circundante, (1959); Nietzsche (1961), em dois volumes. Heidegger
humano e extra-humano, o homem que deve escolher morreu em 1976.
livremente, o homem livre de plasmar-se a si mesmo e
ao mundo que o circunda”. Da fenomenologia ao existencialismo
Então Husserl pergunta: “O que tal ciência tem
a dizer sobre a razão e sobre a não-razão, o que tem ela O objetivo declarado de Ser e tempo é o de uma
a dizer sobre nós, homens, enquanto sujeitos dessa ontologia capaz de determinar adequadamente o
liberdade? Obviamente, a mera ciência de fatos não tem sentido do ser. Mas, para alcançar esse objetivo, é
nada a nos dizer a esse respeito: ela, precisamente, preciso analisar quem é que se propõe a pergunta sobre
abstrai de qualquer sujeito”. o sentido do ser. Enquanto Ser e tempo se resume em
O drama da época moderna é o drama que uma analítica existencial sobre aquele ente (o homem) que
começou com Galileu, ele recortou do mundo-da-vida se propõe a pergunta sobre o sentido do ser, os escritos
a dimensão físico-matemática, que depois passou a ser de 1930 em diante abandonam a proposição originária:
considerada como vida concreta. “Galileu vive na não se trata mais de analisar aquele ente que procura
ingenuidade da evidência apodítica”. caminhos de acesso ao ser, mas sim o próprio ser e sua
Naturalmente, a filosofia reconhece a função da auto revelação. E aqui, precisamente, reside a
ciência e da técnica, mas a função da filosofia “é a de “reviravolta” do pensamento de Heidegger, que, no
libertar a história da fetichização da ciência e da segundo período de sua filosofia, prescinde da
técnica”. Vista desse modo, “a fenomenologia é existência, que se torna uma determinação não essencial
filosofia primeira que se liberta da clausura do mundo, do ser. Escreve ele: “A história do ser rege e determina
anulando-o, para descobrir na humanidade a liberdade toda condição e situação humana”.
de se transcender em direção a novos horizontes”.
O ser-aí e a analítica existencial
3. MARTIN HEIDEGGER: DA
FENOMENOLOGIA AO EXISTENCIALISMO A intenção da obra Ser e tempo, diz Heidegger, é
“a elaboração concreta do problema do sentido do ser”.
O expoente principal da filosofia da existência é Entretanto, o problema do sentido do ser propõe
Martin Heidegger. Nascido em Messkirch em 1889, imediatamente a interrogação: “A respeito de qual ente
estudou teologia e filosofia, laureou-se em filosofia em deve ser compreendido o sentido do ser?”
1914 com uma tese sobre A doutrina do juízo no Pois bem, prossegue Heidegger, se o problema
psicologismo. do ser deve ser proposto explicitamente em toda a sua
Em 1916, como tese de habilitação ao ensino transparecia, então [...] torna-se necessário evidenciar as
universitário, publicou A doutrina das categorias e do maneiras de penetração no ser, de compreensão e de
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posse conceitual de seu sentido, bem como a solução existência é essencialmente transcendência, identificada
da possibilidade de escolha correta do ente exemplar e por Heidegger com a ultrapassagem. Desse modo, para
a indicação do caminho autêntico de acesso a esse ente. ele, a transcendência não é um entre os muitos possíveis
Penetração, compreensão, solução, escolha, acesso - comportamentos do homem, e sim sua constituição
são momentos constitutivos da busca e, ao mesmo fundamental: o homem é projeto e as coisas do
tempo, modos de ser de determinado ente, mais “mundo” são originariamente utensílios em função do
precisamente daquele ente que, nós que o buscamos, já projetar humano.
somos. Tudo isso nos introduz à tratação da
Por tudo isso, a elaboração do problema do ser característica fundamental do homem que Heidegger
significa, portanto, o tornar-se transparente de um ente, chama de ser-no-mundo. O homem está-no-mundo. Mas,
pôr aquele que busca em seu ser. E nisso consiste a como o homem é constitutivamente projeto, o mundo
analítica existencial. - diferentemente do que pensava Husserl - não é
O homem, portanto, é o ente que se propõe a originariamente uma realidade a contemplar, e sim
pergunta sobre o sentido do ser. Por isso, a proposição muito mais um conjunto de instrumentos “para” o
correta do problema do sentido do ser requer uma homem, um conjunto de utensílios, ou seja, de coisas a
explicitação preliminar daquele ente que se propõe a utilizar, à mão, e não de coisas a contemplar como
pergunta sobre o sentido do ser: e “esse ente, que nós presentes.
mesmos já somos sempre, e que tem, entre as outras A existência é poder-ser, projeto,
possibilidades de ser, a de buscar, nós o indicamos com transcendência em relação ao mundo: estar-no-mundo,
o termo Ser-aí (Dasein, em alemão)”. portanto, significa originariamente fazer do mundo o
Considerado em seu modo de ser, o homem é projeto das ações e dos comportamentos possíveis do
precisamente Da-sein, ou seja, Ser-aí. E o “da” (aí) indica homem.
o fato de que o homem está sempre em uma situação, A transcendência institui o projeto ou esboço
lançado nela e em relação ativa com ela. O Ser-aí, isto de um mundo: ela é um ato de liberdade - aliás, para
é, o homem, não é somente aquele ente que propõe a Heidegger, é a própria liberdade. Entretanto, se é
pergunta sobre o sentido do ser, mas é também aquele verdade que qualquer projeto se radica em um ato de
ente que não se deixa reduzir à noção de ser aceita pela liberdade, também é verdade que todo projeto limita
filosofia ocidental, que identifica o ser com a imediatamente o homem que se encontra dependente
objetividade, ou seja, como diz Heidegger, com a das necessidades e limitado pelo conjunto daqueles
simples-presença. utensílios que é o mundo. Estar-no-mundo, pois,
As coisas são certamente diversas uma da outra, significa para o homem cuidar das coisas necessárias a
mas todas são objetos colocados diante de mim: e nesse seus projetos, e ter a ver com uma realidade-utensílio,
seu estar presente a filosofia ocidental viu o ser. meio para sua vida e para suas ações.
Mas o homem não pode se reduzir a objeto Sendo o Ser-aí constitutivamente projeto, o
puro e simples no mundo; o Ser-aí jamais é uma mundo existe como conjunto de coisas utilizáveis: o
simples-presença, uma vez que ele é precisamente mundo vem a ser graças a seu ser utilizável. O ser das
aquele ente para o qual as coisas estão presentes. coisas equivale ao seu ser utilizadas pelo homem. O homem,
O modo de ser do Ser-aí é a existência: “A portanto, não é um espectador do grande teatro do
'natureza', a 'essência' do Ser-aí consiste em sua mundo: o homem está no mundo, envolvido nele, em
existência”. A essência da existência é dada pela suas vicissitudes. E transformando o mundo, ele forma
possibilidade, que não é possibilidade lógica vazia nem e se transforma a si mesmo.
simples contingência empírica. O ser do homem é A atitude teórica e contemplativa do espectador
sempre uma possibilidade a atuar e, consequentemente, o desinteressado (na qual Husserl tanto insistira, bem
homem pode escolher-se, isto é, pode conquistar-se ou como a tradição filosófica ocidental em geral) é
perder-se. somente um aspecto da mais ampla e geral
Neste sentido, o Ser-aí (ou homem) é “o ente utilizabilidade das coisas. As coisas são sempre
que depende de seu ser” e “a existência é decidida, no instrumentos: se for conveniente, poderão ser vistas
sentido da posse ou da ruína, somente por cada Ser-aí como instrumentos que satisfazem um prazer estético;
individual”. mas, se o consideramos útil, poderão ser vistas
“objetivamente”, isto é, cientificamente, tendo como
O ser-no-mundo fundo um projeto total.
O homem compreende uma coisa quando sabe
O homem é aquele ente que se interroga sobre o que fazer dela, do mesmo modo como compreende a
o sentido do ser. O homem não pode reduzir-se a si mesmo quando sabe o que pode fazer consigo, isto é,
simples objeto, isto é, a simples estar-presente. O modo quando sabe o que pode ser.
de ser do homem é a existência. A existência é poder-
ser. Mas poder-ser significa projetar. Por isso, a
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O ser-com-os-outros e da curiosidade, a terceira característica da existência


inautêntica é o equívoco: a individualidade das situações,
Se o ser-no-mundo é um existencial, também o em uma existência devorada pelo palavrório e pela
ser-com-os-outros é um existencial. Não há “um sujeito curiosidade, desvanece na neblina do equívoco. A
sem mundo” e, ao mesmo tempo, não existe “um eu existência inautêntica é existência anônima: é a
isolado sem os outros”. Os outros não são inferidos existência do “se diz” e do “se faz”.
como outros “eus”; eles são dados, ao invés, como A análise existencial revela que a existência
outros “eus”, desde a origem. Sendo a existência anônima é um poder ser constitutivo do homem. E,
constitutivamente abertura, desde a origem os outros segundo Heidegger, o que se encontra na base desse
“eus”, como tais, participam do mesmo mundo no qual poder-ser é a dejeção, ou seja, a queda do homem no
eu vivo. plano das coisas do mundo. Entretanto, existe a voz da
consciência, que chama à existência, quando então nós
colocamos não mais no plano “ôntico” ou
“existentivo”, e sim no plano “ontológico” ou
“existencial”, procurando o sentido do ser dos entes,
isto é, o sentido do seu existir.
A voz da consciência traz de novo o homem
envolvido pelos cuidados para diante de si mesmo,
remetendo-o a questão do que ele é no mais profundo
o seu ser e que não pode ocultar. Como já sabemos, a
existência é poder-ser; e é nesse poder-ser que se baseia
o projetar ou transcender do homem. Mas todo projetar
leva o homem ao nível das coisas e do mundo.
Tudo isso quer dizer que os projetos e as
Por outro lado, assim como o ser-no-mundo do escolhas do homem, no fundo, são todos equivalentes:
homem se expressa pelo cuidar das coisas, do mesmo posso dedicar minha vida ao trabalho, ao estudo, a
modo o seu ser-com-os-outros se expressa pelo cuidar riqueza ou a qualquer outra coisa, mas posso ser
dos outros, coisa que constitui a estrutura basilar de toda homem seja escolhendo uma possibilidade, seja
possível relação entre os homens. E o cuidar dos outros escolhendo outra. E por essa razão que, considerando
pode tomar duas direções: na primeira, procura-se como última e decisiva uma dessas escolhas ou
subtrair os outros de seus cuidados; na segunda, possibilidades, o homem se decide por e se dispersa em
procura-se ajudá-los a conquistar a liberdade de assumir uma existência inautêntica.
seus próprios cuidados. No primeiro caso, temos um Entretanto, entre as várias possibilidades, há
simples “estar junto” e estamos diante de uma forma uma diferente das outras, à qual o homem não pode
inautêntica de coexistência; no segundo caso, ao escapar: trata-se da morte. Posso decidir dedicar minha
contrário, temos um autêntico “coexistir”. vida a um objetivo ou a outro, posso escolher uma
profissão ou outra, mas não posso deixar de morrer. E
O ser-para-a-morte, existência inautêntica e então, quando a morte se torna realidade, não há mais
existência autêntica existência. Isso nos faz entender que, enquanto há o
existente, a morte é possibilidade permanente, e essa é
O Ser-aí é e tem de ser; isto é, o homem se a possibilidade de que todas as outras possibilidades se
encontra sempre em uma situação e enfrenta essa tornem impossíveis.
situação graças a seu projetar. Mas, quando volta seus Diz Heidegger: “Enquanto possibilidade, a
“cuidados” para o plano “ôntico” ou “existentivo”, isto morte não dá ao homem nada a realizar”. Ela é a
é, ao plano dos entes em sua factualidade, o homem
permanece na existência inautêntica. Nesta, o homem
manipula as coisas, utiliza-as e estabelece relações
sociais com outros homens. Todos esses projetos,
porém, em uma espécie de vertigem, atiram o homem
para o nível dos fatos. A utilização das coisas se
transforma em fim em si mesma. A linguagem se
transforma então no palavrório da existência anônima
subjacente ao axioma “as coisas são assim porque assim
se diz”.
Essa existência anônima procura encher o vazio
que a caracteriza, recorrendo continuamente ao novo:
ela se afoga na curiosidade. E, por fim, além do palavrório

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possibilidade da impossibilidade de todo projeto e, com determinações do tempo (passado, presente e futuro) a
isso, de toda existência: com efeito, com a morte, não fundamental é o futuro: “O projetar-se-adiante para o
há outras possibilidades a escolher nem novos projetos 'em-vista-de-si-mesmo', projetar-se que se baseia no
a realizar. futuro, é característica essencial da existencialidade. Seu
A voz da consciência, por conseguinte, nos sentido primário é o futuro”.
remete ao sentido da morte e revela a nulidade de todo Entretanto, o cuidado, que antecipa as
projeto: na perspectiva da morte, todas as situações possibilidades, surge do passado e o implica. E entre
singulares aparecem como possibilidades que podem se passado e futuro estão o ocupar-se com as coisas que é
tornar impossíveis. Desse modo, a morte impede que o presente. Essas três determinações do tempo
alguém se fixe em uma situação, mostra a nulidade de encontram seu significado em seu ser “fora de si”: o
todo projeto e funda a historicidade da existência. futuro é um pretender-se, o presente é estar preso as
A existência autentica, portanto, é um ser-para- coisas e o passado é retornar à situação de fato para
a-morte. Somente compreendendo a impossibilidade da aceitá-la.
morte como possibilidade da existência, e somente Essa é a razão pela qual Heidegger chama os
assumindo essa possibilidade com decisão antecipada, três momentos do tempo de êxtase, entendido em seu
o homem encontra seu ser autêntico. sentido etimológico de “estar fora”.
Em todo caso, as três determinações do tempo
A coragem diante da angústia mudam com base no fato de se tratar de tempo
autêntico ou de tempo inautêntico, sendo o tempo
O “viver para a morte” constitui, portanto, o autêntico o da existência autentica e o tempo
sentido autêntico da existência. O “viver-para-a-morte” inautêntico tipificado pela preocupação com o sucesso,
nos afasta do estar submerso nos fatos e nas é a atenção para com o êxito; ao passo que na existência
circunstâncias. A antecipação da morte (que não autentica, que assume a morte como possibilidade que
significa de modo algum realiza-la pelo suicídio) dá qualifica a existência, o futuro é um viver para a morte
sentido ao ser dos entes, mediante a experiência do seu que não permite ao homem ser envolvido pelas
nada possível. possibilidades mundanas.
Essa experiência, no entanto, não se tem por E se o passado autêntico é o não aceitar
obra de ato intelectivo, e sim, muito mais, por meio do passivamente a tradição, mas confiar nas possibilidades
sentimento especifico que é a angústia: “O ser-para-a- que a tradição nos oferece e reviver a possibilidade do
morte é essencialmente angústia”. A angústia põe o homem que já foi, o presente autêntico é o instante, em
homem diante do nada, do nada de sentido, isto é, do que o homem repudia o presente inautêntico (onde o
não-sentido dos projetos humanos e da própria homem é absorvido sem descanso pelas coisas a fazer)
existência. e decide seu destino.
Existir autenticamente implica ter a coragem de Dessa análise do tempo, entre outras coisas,
olhar de frente a possibilidade do próprio não-ser, de derivam algumas consequências importantes no
sentir a angústia do ser-para-a-morte. A existência pensamento de Heidegger:
autentica, por conseguinte, significa a aceitação da 1) Os significados do tempo usados no
própria finitude. E é a essa aceitação que nos conclama pensamento comum e na ciência (a databilidade e a
a voz da consciência: a aceitação da nossa própria medida científica do tempo) constituem tempo
finitude e negatividade. inautêntico, já que remetem à existência lançada entre
A existência inautêntica e anônima, ao as coisas do mundo.
contrário, tem medo da angústia diante da morte, de 2) A existência autentica é a existência
modo que, para escapar a angústia, a existência anônima angustiada, que vê a insignificância de todos os projetos
ocupa-se muito com as coisas e afunda no reino do se e fins do homem. Essa insignificância torna todos os
(man): “a existência anônima e banal não tem a coragem projetos equivalentes. Pondo o homem diante da
da angústia diante da morte”. E isso pode ser visto no equivalente nulidade dos fins, a angústia dá ao indivíduo
fato de que a existência anônima banaliza a angústia no a possibilidade de aceitar o próprio tempo e a ele
medo: “o medo é uma angústia que decaiu ao nível do permanecer fiel, ou seja, assumir como próprio o
mundo, inautêntica e oculta para si mesma como destino da comunidade humana a qual pertence, em
angústia”. Sempre se tem medo de alguma coisa; ao uma espécie de amor fati.
passo que nos angustiamos por nada: na angústia está Em outros termos, o homem que vive
presente o nada, com seu poder de aniquilação. autenticamente continua a viver a vida, por assim dizer,
banal de seu tempo e de seu povo, mas a vive com todo
O tempo aquele afastamento próprio de quem, com a experiência
antecipadora da morte, teve a revelação do nada dos
Dado que a existência é possibilidade e projeto, projetos humanos e da existência humana.
escreve Heidegger em Ser e tempo, entre as
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A metafísica ocidental como “esquecimento do levar a filosofia de sua deformação “humanista” até o
ser” “mistério” do Ser, a seu desvelar-se originário. Mas
onde ocorre esse desvelar-se do Ser? Diz Heidegger que
A tarefa declarada de Ser e tempo é a de o ser se desvela na linguagem, não na linguagem
determinar o sentido do Ser. Entretanto, essa científica própria dos entes, ou na linguagem
interrogação - que se desdobrou na analítica existencial, inautêntica do palavrório, e sim na linguagem autentica
ou seja, na análise das estruturas da existência - teve da poesia.
como resultado o de que o sentido do ser não pode ser Escreve ele na Carta sobre o humanismo: “A
obtido pela interrogação de um ente. linguagem é a casa do ser. E nessa morada habita o
A análise da existência mostra que a existência homem. Os pensadores são os guardiões dessa
autentica é o nada de todo projeto e o nada da própria morada”. Na forma autoral da poesia, a palavra tinha
existência. A análise do Ser-aí, isto é, daquele ente caráter “sacral”: língua originária, a poesia deu nomes
privilegiado que se propõe a pergunta sobre o sentido às coisas e fundou o Ser.
do ser, não revela o sentido do Ser, e sim o nada da Essa fundação do Ser, porém, especificada por
existência. Heidegger em Holderlin e a essência da poesia (1937), não é
Essas considerações são explicitadas por obra do homem, e sim dom do Ser. Na linguagem do
Heidegger em sua Introdução à metafisica (1953), que se poeta, não é o homem que fala, e sim a própria
apresenta como crítica radical da metafísica clássica. linguagem - e, nela, o Ser. Consequentemente, a justa
De Aristóteles a Hegel e ao próprio Nietzsche, atitude do homem em relação ao ser é a do silêncio para
a metafísica clássica fez o que a analítica existencial ouvi-lo; o abandono ao Ser é o único comportamento
mostrou ser impossível: procurou o sentido do Ser correto. O homem deve, portanto, tornar-se livre para
indagando os entes. a verdade, concebida como desvelamento do Ser. E,
A metafísica identificou o ser com a assim, liberdade e verdade se identificam. E, como a
objetividade, isto é, com a simples presença dos entes. verdade, também a liberdade é dom do Ser ao homem,
Desse modo, ela não é metafísica, senão “física” uma iniciativa do Ser.
absorvida pelas coisas, que esqueceu o ser e que, aliás,
leva ao esquecimento desse esquecimento. A técnica e o mundo ocidental
Heidegger diz que Platão foi o primeiro
responsável pela degradação da metafísica a física. Os São, portanto, os “pensadores essenciais”
primeiros filósofos (Anaximandro, Parmênides, (como Anaximandro, Parmênides, Heráclito e
Heráclito) conceberam a verdade como um desvelar-se Holderlin) as testemunhas ou os ouvintes da voz do Ser,
do Ser, como provaria o sentido etimológico de alétheia, e não a metafísica ocidental. O senhor do ente não é o
onde lantháno (velar) é precedido do alfa privativo. pastor do Ser. Mas o homem ocidental, precisamente
Entretanto, Platão rejeitou a verdade como “não- por força daquela “física” que pretendia ser
ocultamento” do Ser e subverteu a relação entre Ser e “metafísica”, transformou-se em senhor do ente.
verdade, baseando o Ser na verdade, no sentido de que A reviravolta operada por Platão no conceito de
a verdade estaria no pensamento que julga e estabelece verdade e, com isso, no destino da metafísica, explica o
relações entre os próprios “conteúdos” ou “ideias”, e destino do Ocidente e o primado da técnica no mundo
não no ser que se desvela ao pensamento. Desse modo, moderno.
o ser deveria se finalizar e relativizar para a mente A técnica não é instrumento neutro nas mãos
humana, aliás, para a linguagem dela. do homem, que pode usá-la para o bem ou para o mal,
nem constitui acontecimento acidental no Ocidente.
A linguagem da poesia como linguagem do ser Para Heidegger, a realidade é que a técnica é o resultado
natural daquele desenvolvimento pelo qual, esquecendo
Entretanto, o patrimônio de palavras, de regras o Ser, o homem se deixou arrastar pelas coisas,
lógicas, gramaticais e sintáticas, que é a linguagem, tornando a realidade puro objeto a dominar e a
estabelece limites intransponíveis ao que podemos desfrutar. E esse comportamento, que não se deterá
dizer. sequer quando chega, como acontece hoje, a ameaçar
A linguagem do homem pode falar dos entes, as bases da própria vida, é comportamento que se
mas não do ser. Por isso, a revelação do ser não pode ser tornou onívoro; trata-se de uma fé, a fé na técnica como
obra de um ente, ainda que privilegiado como o Ser-aí, domínio sobre tudo.
mas só pode se dar através da iniciativa do próprio ser.
Aí reside a “reviravolta” do pensamento de Heidegger. 4. HANNA ARENDT
O homem não pode desvelar o sentido do Ser.
Ele deve ser o pastor do Ser e não o senhor do ente. E Hannah Arendt nasce de família judaica em
sua dignidade “consiste em ser chamado pelo próprio Hannover, dia 14 de outubro de 1906. Entre 1924 e
Ser para ser o guarda de sua verdade”. Por isso, é preciso
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1929 foi estudante universitária em Marburg e em Anti-semitismo, imperialismo e totalitarismo


Freiburg na Brisgóvia, e sucessivamente em Heidelberg.
Frequentou os cursos As origens do totalitarismo é uma obra que divide-
de literatura grega, teologia e se em três partes:
filosofia. Laureou-se em 1928, 1) O antissemitismo;
apresentando uma dissertação 2) O imperialismo;
sobre santo Agostinho. 3) O totalitarismo.
Em 1933 abandonou a Escreve Arendt: “O antissemitismo (não o
Alemanha nazista e se refugiou simples ódio contra os judeus), o imperialismo (não a
em Paris, onde entrou em simples conquista), o totalitarismo (não a simples
contato com os pensadores ditadura) demonstraram, um depois do outro, um mais
mais conhecidos da época. brutalmente que o outro, que a dignidade humana tem
Na França foi ativa na organização para a necessidade de nova garantia, que se pode encontrar
emigração na Palestina das crianças judias. Foi presa em apenas em um novo princípio político, em nova lei
1940, mas conseguiu fugir, e em 1941 foi para os sobre a terra, destinada a valer para toda a
Estados Unidos. Escreveu muito e em diversas revistas. humanidade”.
Ensinou em numerosas Universidades, entre as quais Em primeiro lugar, todavia, é preciso
Berkeley, Princeton, Columbia. compreender; e compreender “significa [...] examinar e
Em 1967 foi nomeada professora de filosofia carregar conscientemente o fardo que nosso século nos
política na New School for Social Research em Nova colocou sobre as costas, não negar sua existência, não
York, a “filial americana no exilio”, por assim dizer, da nos submeter supinamente a seu peso”.
Escola de Frankfurt. Arendt quer compreender como o
Morreu em Nova York dia 4 de dezembro de antissemitismo “tenha podido se tornar o catalisador,
1975. Sua influência sobre a cultura europeia, assim primeiro do movimento nazista, depois de uma guerra
como sobre a americana, foi e ainda é muito forte. mundial, e por fim da criação da fábrica da morte”.
Fundamental é compreender, além disso, que os
Uma filosofia em defesa da liberdade regimes totalitários baseiam sua política sobre a ideia de
alcançar o fim último, que é “a conquista do mundo”; e
Sua obra mais conhecida em 1951; trata-se de tal fim os totalitaristas “jamais o perdem de vista, por
As origens do totalitarismo. De 1958 é o livro A condição mais remoto que possa parecer, e por mais gravemente
humana. Em 1963 Arendt publica aquele que se tornou que suas exigências 'ideais' possam contrastar com a
seu livro mais conhecido: Eichmann em Jerusalem: Um necessidade do momento".
relato sobre a banalidade do mal. Este é um livro sobre o Justamente por isso - afirma Arendt – “eles não
processo que teve lugar em Jerusalém, e que viu como consideram [...] nenhum país como perpetuamente
imputado um dos máximos responsáveis pelo estrangeiro, mas, ao contrário, todo país como um
Holocausto. potencial território seu”. E da “questão judaica”
Foi a publicação dos Pentagon Papers - os serviram-se os nazistas para seu escopo: “Obrigando-os
quarenta e seis volumes da História do processo decisional [os judeus] a deixar o Reich sem passaporte e sem
americano sobre a política no Vietnam - que, segundo dinheiro, se traduzia na realidade a lenda do hebreu
Arendt, fez com que "o famoso vazio de credibilidade, errante; e obrigando-os a assumir um comportamento
que nos acompanhou por seis longos anos, tenha de hostilidade intransigente contra o Terceiro Reich, os
improvisamente se aberto tanto a ponto de se tornar nazistas providenciavam o pretexto para imiscuir-se nos
um abismo [...]. O ponto crucial [...] não é apenas que a assuntos internos de qualquer país estrangeiro”.
política da mentira quase nunca haja se voltado contra Mais em profundidade e mais em particular,
o inimigo [...], mas também que estava destinada Arendt faz ver que os campos de concentração e de
principalmente, senão exclusivamente, ao consumo extermínio servem para o regime totalitário como
interno, à propaganda nacional, e tinha em particular a laboratórios para a verificação de sua pretensão de
finalidade de enganar o Congresso”. domínio absoluto sobre o homem [...]. O domínio total,
Adversária irredutível dos regimes totalitários, que visa a organizar os homens em sua infinita
Hannah Arendt foi fustigadora implacável das carências pluralidade e diversidade como se todos juntos
e tortuosidades das sociedades democráticas; atenta constituíssem único indivíduo, é possível apenas se cada
para captar o novo, mas sem a ele sucumbir, viu com pessoa for reduzida a imutável identidade de reações, de
bons olhos as lutas dos estudantes, principalmente modo que cada um destes feixes de reações: possa ser
pelos direitos civis. Postumamente foi publicado o trocado com qualquer outro. É assim - afirma Arendt -
volume incompleto A vida da mente. que o totalitarismo procura fabricar algo que não existe,
isto é, um tipo humano semelhante aos animais, cuja
única “liberdade” consistiria em “preservar a espécie”.
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E chega-se a esse inferno (propagandeado implacável da presença constante de outros sobre a


como o paraíso) tanto com a doutrinação das elites como cena pública” - pensemos no amor: “o amor,
com o terror dos campos de concentração, que diferentemente da amizade, morre, ou melhor, apaga-se
“servem, além de ao extermínio e à degradação dos no momento em que aparece em público”.
indivíduos, para realizar o horrendo experimento de Todavia, Arendt insiste sobre o fato de que a
eliminar, em condições cientificamente controladas, a verdade não encontra sua sede na profundidade íntima
própria espontaneidade como expressão do do homem; a verdade é antes um fato público fruto não
comportamento humano e de transformar o homem de introspecção, ou de vida contemplativa, e sim de vita
em um objeto, em algo que nem sequer os animais são”. activa, e “como nossa sensibilidade em relação a
A Alemanha de Hitler e a Rússia de Stalin realidade se funda sobretudo sobre a aparência, e portanto
quiseram tornar “supérfluos os homens”. E por trás de sobre a existência de um domínio público em que as coisas podem
tudo isso encontra-se, justamente, a ideologia totalitária: emergir da existência latente, também o lusco-fusco que ilumina
ela exige a punição sem o reato, o desfrutamento sem o nossas vidas privadas e íntimas deriva em última análise da luz
proveito e o trabalho sem o produto; é a justificação de muito mais forte do domínio público”.
uma sociedade que é “um lugar onde quotidianamente
se cria a insensatez”. 5. JEAN PAUL SARTRE

A ação como atividade política por excelência Testemunha atenta e arguta de nosso tempo,
Jean-Paul Sartre, nascido em Paris em 1905, realizou
Contra as ideologias que reduzem o homem a seus estudos na Escola Normal Superior e ensinou
objeto, esmagando-o sob as atrocidades das torturas, e filosofia nos liceus de Le Havre e Paris até o início da
contra as ideologias que, como o materialismo última guerra, exceto em um período que passou em
histórico, o aniquilam nos abismos do determinismo e Berlim (1933-1934), onde estudou a fenomenologia e
do fatalismo, Arendt vê o homem como fonte escreveu A transcendência do Ego.
espontânea de livres iniciativas, como início de ações
criativas.
Em A condição humana ela escreve: “Com o
termo vita activa, proponho designar três atividades
humanas fundamentais: a atividade trabalhadora, o
operar e o agir”.
A atividade trabalhadora “corresponde ao
desenvolvimento biológico do corpo humano [...] e
assegura não só a sobrevivência individual, mas também
a vida da espécie. O operar é a práxis não absorvida pelo
ciclo vital e que produz um “mundo artificial” de coisas,
“claramente distinto do ambiente natural”. A ação - Convocado para o serviço militar, foi
afirma Arendt - é “a única atividade que põe em relação aprisionado pelos alemães e levado para a Alemanha.
direta os homens sem a mediação de coisas materiais [e] Voltando logo depois para a França, fundou o grupo de
corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato resistência intelectual “Socialismo e Liberdade”,
de que mais homens, e não o homem, vivem sobre a juntamente com Merleau-Ponty.
terra”. No imediato pós-guerra, seu pensamento se
São sempre os homens individuais que agem; a impõe ao público mundial durante cerca de duas
ação e interação: “viver” e “estar entre os homens” décadas (graças sobretudo a seu “teatro de situações”),
eram sinônimos para os romanos - lembra Arendt -, e influindo amplamente na sociedade e nos costumes.
para eles os sinônimos eram “morrer” e “deixar de estar Nas últimas duas décadas de sua vida, Sartre não
entre os homens”. teve descanso: as viagens políticas (como a viagem a
A ação significa iniciativa, nascimento ou início Cuba, onde encontrou Fidel Castro e Che Guevara, e a
de algo de novo, e “uma vez que a ação é a atividade viagem a Moscou, onde foi recebido por Kruschev) não
política por excelência, a natalidade, e não a lhe impediram o frenético trabalho de filósofo,
mortalidade, pode ser a categoria central do romancista, ensaísta, dramaturgo, conferencista e
pensamento político enquanto se distingue do roteirista cinematográfico. Sartre morreu em 1980.
pensamento metafisico”. Sua obra é bastante extensa e variada:
E é a ação - salienta Arendt - que cria e conserva 1 - Romances
os organismos políticos, e deste modo ela permite a a) A náusea (1938);
lembrança, isto é, a história. A ação, além disso, desloca b) A idade da razão (1945);
a vida do indivíduo sobre o lado público. Sem dúvida há c) O adiamento (1945);
coisas “que não podem suportar a luz violenta e d) A morte na alma (1949);

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2 - Escritos para o teatro Não há nenhum ser necessário que possa explicar a
a) As moscas (1943); existência: a contingência não é falsa fisionomia,
b) A portas fechadas (1945); aparência que pode se dissipar; é o absoluto e, por
c) A prostituta respeitosa (1946); conseguinte, a perfeita gratuidade”.
d) Mãos sujas (1948); É a essa tese que Sartre queria chegar: “Tudo é
e) O diabo e o bom Deus (1951); gratuito: este jardim, esta cidade, eu mesmo. E quando
f) Nekrassov (1956); acontece de nos darmos conta disso, nosso estômago
g) Os sequestrados de Altona (1960). se revira e tudo se põe a flutuar [. . .] eis a náusea”.
A vida de Roquentin torna-se privada de
3 - Panfletos políticos sentido; nenhum objetivo consegue mais orientá-la; ele
a) O antissemitismo (1946); existe como uma coisa, como todas as coisas que
b) Os comunistas e a paz, (1952); emergem, na experiência da náusea, em sua gratuidade
e em seu absurdo: um sujeito sem sentido cancela de
4 - Obras filosóficas repente o sentido de todas as coisas e passam a faltar
a) O ser e o nada. Ensaio de uma ontologia instruções para seu uso. A náusea de Sartre não está
fenomenológica, (1943); longe da angústia de Heidegger.
b) A transcendência do Ego (1936);
c) A imaginação (1936); O “em si”, e o “para-si”, o “ser” e o “nada”
d) Ensaio de uma teoria das emoções (1939);
e) O imaginário. Psicologia fenomenológica da Se a experiência da náusea revela a gratuidade
imaginação (1940). das coisas e do homem reduzido a coisa e submerso nas
f) O existencialismo é um humanismo (1946); coisas, a analise desenvolvida em O ser e o nada revela,
g) Crítica da razão dialética (1960). antes de mais nada, que a consciência é sempre
Onisciência de algo, de algo que não é consciência. Em
A náusea diante da gratuidade das coisas outras palavras, o exame da experiência mostra-nos que
desde o início o ser-em-si, isto é, os objetos que
Sartre iniciou sua atividade de pensador com transcendem a consciência, não são a consciência. Eu
análises de psicologia fenomenológica relativas ao eu, a tenho consciência dos objetos do mundo, mas nenhum
imaginação e as emoções. Retoma de Husserl a ideia de desses objetos é minha consciência: a consciência “é um
intencionalidade da consciência, censurando-o, porém, nada de ser e, ao mesmo tempo, um poder nulificante,
por ter caído no idealismo e no solipsismo com o seu o nada”.
sujeito transcendental. O mundo é o “em-si”, é o dado “misturado de
Em A transcendência do Ego, Sartre afirma que “o si mesmo”, “opaco a si mesmo porque cheio de si
eu não é um habitante da consciência”, pois ele “não mesmo”, absolutamente contingente e gratuito (como
está na consciência, mas fora dela, no mundo: é um ente precisamente revela a náusea).
do mundo como o eu de outro”. Diante do “em si” está a consciência, que Sartre
O homem, diz Sartre, é o ser cujo aparecimento denomina o “para-si”. A consciência está no mundo, no
faz com que exista um mundo. O mundo não é a “ser-em-si”, mas é radicalmente diferente dele, não está
consciência. A consciência é abertura para o mundo; a ligada a ele. A consciência, que vem a ser a existência ou
consciência está encarnada na densa realidade do o homem, é, portanto, absolutamente livre. O “em si”
universo; o mundo pode ser visto como um conjunto é “o ser que é o que é”; a consciência não é um objeto.
de utensílios. Mas o mundo não é a existência. E O ser é pleno e completo; a consciência é vazia de ser,
quando o homem não tem mais objetivos, o mundo fica é possibilidade - e a possibilidade não é realidade. A
privado de sentido. consciência é liberdade.
Essa é a tese expressa por Sartre em A náusea, Escreve Sartre em O Ser e o nada: “A liberdade
na qual o autor opõe o absurdo aos valores positivos da não é um ser; ela é o ser do homem, isto é, o seu nada
filosofia clássica. O herói do romance é Antoine de ser”. A liberdade é constitutiva da consciência: “Eu
Roquentin, que, refletindo sobre as razões de sua estou condenado a existir para sempre além dos
própria existência e do mundo que o circunda, tem a moventes e dos motivos de meu ato: estou condenado
experiência reveladora da náusea. a ser livre”.
A náusea é o sentimento que nos invade quando Uma vez lançado à vida, o homem é
descobrimos a contingência essencial e o absurdo do responsável por tudo o que faz do projeto fundamental,
real. E Roquentin põe essa descoberta nas seguintes isto é, da sua vida. E ninguém tem desculpas: se
palavras: “O essencial é a contingência. Quero dizer falirmos, falimos porque escolhemos a falência.
que, por definição, a existência não é a necessidade. Procurar desculpas significa estar de mé-fé: a má-fé
Existir é estar ali, simplesmente; os seres aparecem, se apresenta o desejado como necessidade inevitável.
deixam encontrar, mas nunca se pode deduzi-los [...].
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O homem, portanto, se escolhe; sua liberdade A possibilidade de um sentido menos negativo


não é condicionada; e ele pode mudar seu projeto da consciência humana já aparece no ensaio O
fundamental a qualquer momento. E assim como a existencialismo é um humanismo (1946). Nesse escrito,
náusea constitui a experiência metafísica que revela a Sartre também identifica o homem com sua liberdade;
gratuidade e o absurdo das coisas, da mesma forma a o homem não está de modo algum sujeito ao
angústia é a experiência metafísica do nada, isto é, da determinismo; sua vida não se assemelha à da planta,
liberdade incondicionada. Com efeito, o homem, e só o cujo futuro já está “escrito” na semente; o homem é o
homem, é “o ser para o qual todos os valores existem”. demiurgo de seu futuro.
Todavia, estabelecido isso, não é preciso muito Em suma, o homem não é uma essência fixa: ele
para ver que, então, “todas as atividades humanas são é muito mais o que projeta ser. Nele, a existência
equivalentes [...] e que todas estão destinadas em precede a essência. Contudo, “se, na realidade, a
principio à falência. No fundo, é a mesma coisa existência precede a essência, nunca será possível explicá-la
embriagar-se na solidão ou conduzir os povos”. em referência a uma natureza humana dada e não
As coisas do mundo são gratuitas, e um valor modificável; em outras palavras, não há determinismo;
não é superior a outro. As coisas são desprovidas de o homem é livre, o homem é liberdade”.
sentido e fundamento, e as ações dos homens são Por outro lado, “se [...] Deus não existe, nós não
desprovidas de valor. Em suma, a vida é aventura encontramos diante de nós valores e ordens em
absurda, onde o homem se projeta continuamente além condições de legitimar nossa conduta. Assim, nem atrás
de si mesmo, como que para poder tornar-se Deus. nem diante de nós, em um domínio luminoso de
Escreve Sartre: “O homem é o ser que projeta ser valores, temos justificações ou desculpas. Estamos sós,
Deus”, mas, na realidade, ele se mostra como aquilo que sem desculpas. É isso o que eu expresso com a
é, “uma paixão inútil”. afirmação de que o homem está condenado a ser livre.
Condenado porque não se criou por si mesmo e, no
O “ser-para-os-outros” entanto, livre, porque, uma vez lançado ao mundo, é
responsável por tudo aquilo que faz”.
O homem ou “ser-para-si” é também “ser-para- A liberdade defendida por Sartre é uma
outros”. O outro não tem necessidade de ser inferido liberdade absoluta, e a responsabilidade que ele,
analogicamente a partir de mim mesmo. O outro revela- consequentemente, atribui ao homem, é total. Estas
se como outro naquelas experiências em que ele invade palavras resumem bem a convicção de fundo de Sartre:
o campo de minha subjetividade e, de sujeito, me “O homem, sem nenhum socorro e apoio, está
transforma em objeto de seu mundo. condenado a cada instante a inventar o homem [...]. O
Em suma, o outro não é aquele que é visto por homem inventa o homem”.
mim, mas muito mais aquele que me vê, aquele que se A liberdade é absoluta e a responsabilidade é
torna presente a mim, para além de qualquer dúvida, total. Mas já estamos em 1946: Sartre tem atrás de si
mantendo-me sob a opressão de seu olhar. uma guerra terrível e a experiência da Resistência; mas,
Sartre analisa com habilidade magistral aquelas diante dele, está a grande questão da reconstrução.
experiências típicas do olhar-alheio, que geralmente são Todas essas coisas não passam em vão,
as experiências da inferioridade, como a vergonha, o deixando um trago em seu pensamento, onde se
pudor, a timidez. Quando outro entra subitamente no delineia uma moral social com base na relação entre a
mundo de minha consciência, minha experiência se liberdade de cada um e a liberdade dos outros: “eu sou
modifica: não tem mais seu centro em mim, e vejo-me obrigado - escreve ele - a querer ao mesmo tempo
como elemento de um projeto que não é meu e não me minha liberdade e a liberdade dos outros, e não posso
pertence. tomar minha liberdade como fim se não tomar
O olhar de outro me fixa e me paralisa, ao passo igualmente como fim a liberdade dos outros”.
que, quando o outro estava ausente, eu era livre, isto é,
era sujeito e não objeto. Quando aparece o outro, Crítica da razão dialética
portanto, nasce o conflito: “o conflito é o sentido
original do ser-para-outros”. Diz ainda Sartre: “Minha Minha liberdade, porém, não depende somente
queda original é a existência do outro”. E também faz da liberdade dos outros. Ela também é condicionada
uma das personagens de A portas fechadas pronunciar a por situações precisas, com as quais os projetos
famosa expressão: “o inferno são os outros”. fundamentais dos homens têm de se defrontar. É com
base nisso que Sartre enfrenta a questão das relações
O existencialismo é um humanismo entre seu existencialismo e o marxismo, como mostram
vários ensaios escritos para a revista “Tempos
Nos anos seguintes a O ser e o nada, Sartre modernos” (revista dirigida pelo próprio Sartre) e,
atenuou sempre mais o tom desesperado de sua sobretudo, a obra Crítica da razão dialética (da qual só
filosofia inicial, como veremos a seguir. apareceu a primeira parte, Teoria dos conjuntos práticos).
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Na realidade, afirma Sartre, “dizer de um Militante da Resistência durante a ocupação


homem o que ele é significa dizer o que ele pode, e nazista, depois da guerra
reciprocamente: as condições materiais de sua tornou-se professor na
existência circunscrevem o campo de suas Sorbonne, posteriormente na
possibilidades [...], de modo que o campo do possível é Escola Normal e, por fim, a
o objetivo em direção ao qual o agente ultrapassa sua partir de 1952, tornou-se titular
situação objetiva. E esse campo, por sua vez, depende de filosofia no Callége de
estritamente da realidade social e histórica”. France.
Com base nisso, podemos compreender por Desde a fundação,
que Sartre afirma firmemente aderir sem reservas à participou do comitê de direção
teoria do materialismo histórico, para a qual, como diz da revista “Tempos modernos”,
Marx, “o modo de produção da vida material domina embora as suas relações com Sartre logo se tenham
em geral o desenvolvimento da vida social, política e transformado em polêmica apaixonada.
intelectual”. Entretanto, se Sartre adere ao materialismo As principais obras de Merleau-Ponty são: A
histórico, ele rejeita, porém, o materialismo dialético. estrutura do comportamento (1942) e A fenomenologia da
Em suma, para Sartre, o marxismo não é de percepção (1945). Além disso, também são notáveis suas
modo nenhum “o materialismo dialético, se com este se coletâneas de ensaios: Humanismo e terror (1947), Senso e
entende a ilusão metafísica de descobrir uma dialética contra-senso (1948), As aventuras da dialética (1955) e Sinais
da natureza. Essa dialética pode efetivamente existir, (1960).
mas é preciso reconhecer que não temos a mínima
prova disso”. A relação “consciência” e “corpo”, e “homem” e
Em suma, Sartre não aceita as três leis da “mundo”
dialética propostas por Engels como regras que
guiariam o desenvolvimento da natureza, da história e
do pensamento. A admissão dessas leis gerais do devir
implicaria um otimismo ingênuo que proclamaria um
finalismo de tipo hegeliano e, o que é ainda mais
inadmissível, reduziria o homem a simples instrumento
passivo da grande máquina dialética, incapaz de se
subtrair ao mais rígido determinismo.
A doutrina da dialética é um dogma - e o dogma
não hesita em se opor aos fatos. É essa a razão por que,
diante de toda experiência possível, o marxista não
muda de opinião. O marxista transformou o marxismo
em “saber eterno” e, desse modo, “a busca totalizadora
deu lugar a uma escolástica da totalidade”. O princípio
heurístico “procurai o todo através das partes”
transformou-se em prática terrorista: “liquidar a
particularidade”. Merleau-Panty é um existencialista sobre o qual
Com base nessas premissas, podemos são muito acentuadas as influências tanto da
compreender, diz Sartre, por que o marxismo “não sabe fenomenologia como da psicologia científica e da
mais nada: seus conceitos são impostos; seu fim não é biologia.
mais o de adquirir conhecimentos, mas de se constituir Também para Merleau-Ponty a existência é ser-
a priori como saber absoluto”. no-mundo, isto é, “certa maneira de enfrentar o
E como o marxismo, com a teoria dialética, mundo”. Mas esse ser-no-mundo é anterior a
dissolveu os homens “em um banho de Ácido contraposição entre alma e corpo, entre o psíquico e o
sulfúrico”, “o existencialismo pôde renascer e se manter físico. A interpretação causal das relações entre alma e
porque afirmava a realidade dos homens, como corpo é rejeitada por Merleau-Ponty. Ele vê nessa
Kierkegaard afirmava sua própria realidade contra relação muito mais uma dualidade dialética de
Hegel”. comportamentos. Ou melhor: alma e corpo indicam níveis
de comportamento do homem, dotados de significado diverso.
6. MAURICE MARLEAU-PONTY: ENTRE Escreve Merleau-Ponty em A estrutura do
EXISTENCIALISMO E FENOMENOLOGIA comportamento: “Nem o psíquico em relação ao vital, nem
o espiritual em relação ao psíquico podem ser
Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), ensinou considerados como substâncias ou mundos novos”. Na
filosofia em escolas secundárias. realidade, escreve ele, “trata-se de 'oposição funcional'

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que não pode ser transformada em 'oposição mundo em que vive e pelo passado que viveu. Assim,
substancial' “. “jamais existe determinismo e jamais existe escolha
Na representação das relações entre alma e absoluta; eu jamais sou coisa e jamais sou consciência
corpo, portanto, Merleau-Ponty não aceita “nenhum nua”. A realidade é que nós escolhemos nosso mundo
modelo materialista, mas também nenhum modelo e o mundo nos escolhe. Por isso, é desviante o dilema
espiritualista, como o contido na metáfora cartesiana do que afirma que “nossa liberdade [...] ou é total ou não
artesão e de seu utensilio. Não se pode comparar o existe”.
órgão a um instrumento, como se ele existisse e pudesse A liberdade existe, não porque algo me solicite,
ser pensado à parte de seu funcionamento integral, nem mas, ao contrário, porque de repente estou fora de mim
se pode comparar o espírito a um artesão que o use: isso e aberto para o mundo. Ou seja, a liberdade existe, mas
seria recair em uma relação puramente extrínseca [...]. O é condicionada, porque “somos uma estrutura
espírito não utiliza o corpo, mas se faz por meio dele”. psicológica e histórica”, porque “estamos misturados
Compreende-se muito bem, por conseguinte, a ao mundo e aos outros em confusão inextricável".
centralidade do tema da percepção. Segundo nosso Nossa liberdade, portanto, não destrói a
filósofo, todas as ciências inserem-se em um mundo situação, mas nela se insere. E é por essa razão que as
completo e “real”, sem se dar conta de que a experiência situações permanecem abertas, já que a inserção do
perceptiva tem valor constitutivo em relação a este homem nelas poderá configurá-las de um ou de outro
mundo. Assim, encontramo-nos diante de um campo modo, obviamente enquanto as situações o permitirem.
de percepções vividas que são anteriores ao número, à E nesta dimensão a liberdade condicionada do homem
medida, ao espaço, à causalidade e que, porém, não se assume um significado construtivo positivo.
apresenta como visão prospectiva de objetos dotados
de propriedades estáveis, de mundo e de espaço
objetivos. O problema da percepção consiste em ver
como é que, através desse campo, chega-se ao mundo
intersubjetivo, do qual, pouco a pouco, a ciência precisa
as determinações.
Em tal programa de análises, torna-se central o
conceito de corpo, já que “meu corpo (...) é meu ponto
de vista sobre o mundo’, “o corpo é nosso meio geral
de ter um mundo”. A percepção é a inserção do corpo
no mundo.
E se, por um lado, a percepção tem o caráter da
“totalidade”, por outro lado ela permanece sempre
“aberta”, remetendo sempre a um além de sua
manifestação singular, prometendo-nos outros ângulos
de visão e, com isso, “algo mais a ver”.
Portanto, o significado das coisas no mundo e do
próprio mundo permanece aberto ou, como diz
Merleau-Ponty, ambíguo. E essa ambiguidade ou abertura
é constitutiva da existência.

A liberdade “condicionada”

Se é errado conceber a relação entre a


consciência e o corpo como relação causal entre duas
substâncias, também é errado, portanto, ter uma
concepção análoga sobre as relações entre o sujeito e o
mundo. Mas, para Merleau-Ponty, também é errado
conceber uma relação de causalidade entre o homem e
a sociedade. Por isso, se Sartre está fora de rumo com
sua ideia da liberdade absoluta, também é errada a teoria
marxista da primazia causal do fato econômico sobre a
constituição do homem e da sociedade.
Na opinião de Merleau-Ponty, o homem é livre
e não existe estrutura, como a econômica, que possa
anular sua liberdade constitutiva. Mas a liberdade do
homem é liberdade condicionada: condicionada pelo
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FILOSOFIA ANALÍTICA não influenciado pela filosofia e pela religião, supõe que
seja real. Com a sensação de escapar de uma prisão, nos
permitimos pensar que a grama é verde, que o sol e as
1. BERTRAND RUSSEL estrelas existiriam ainda que ninguém tivesse
consciência de sua existência. E foi assim que o mundo,
que até então fora sutil e lógico, de repente tornou-se
Bertrand Arthur William Russell (1872-1970)
rico, variado e só1ido”.
nasceu em Ravenscroft, nas proximidades de Tintern,
em Monmouthshire. Depois da morte precoce de seus
pais, foi acolhido na casa de sua avó, “Lady John”, O atomismo lógico
escocesa e presbiteriana, que defendeu os direitos dos
irlandeses e atacou a política imperialista da Grã- Foi desse modo, portanto, que Russell se
Bretanha na África. libertou das cadeias do idealismo e voltou a trilha do
Russell recebeu sua educação inicial de tradicional empirismo da filosofia inglesa. E passaria a
preceptores particulares agnósticos, aprendeu contribuir para essa concepção empírica e realista da
perfeitamente o francês e o alemão e, na biblioteca de filosofia com toda uma longa série de livros relativos a
seu avô, adquiriu gosto pela história e descobriu na vitais e difíceis questões de gnosiologia e epistemologia:
geometria de Euclides as alegrias que podem ser dadas 0s problemas da filosofia (1912), Nosso conhecimento do mundo
pelo rigor e a clareza da matemática. externo (1914), Misticismo e lógica (1918), A análise da mente
(1921), A análise da matéria (1927) e 0 conhecimento humano:
seu objetivo e seus limites (1948).
Embora em um desenvolvimento que viu
mudados alguns de seus pontos de vista, Russell sempre
sustentou que a filosofia não pode ser fecunda se estiver
afastada da ciência. E o Russell da década de 1960 via
sua própria concepção do mundo como “uma
concepção resultante da síntese de quatro ciências
diferentes, ou seja, a física, a fisiologia, a psicologia e a
lógica matemática”.
Russell fixa em 1899-1900 a data fundamental
de seu trabalho filosófico: foi nessa época que ele
adotou “a filosofia do atomismo lógico e a técnica de
Aos dezoito anos, porém, ingressou como Peano na lógica matemática [...]. A reviravolta desses
aluno no Trinity College de Cambridge, que lhe revelou anos representou urna revolução, ao passo que as
“um mundo novo”. Mais tarde, sempre no Trinity, teve mudanças posteriores tiveram o caráter de uma
como discípulo L. Wittgenstein, o inspirador do evolução”.
neopositivismo do Círculo de Viena e mestre O atomismo lógico pretendia ser urna filosofia
reconhecido do movimento analítico-linguístico hoje emergente da simbiose entre um empirismo radical e
conhecido como Cambridge-Oxford-Philosophy. urna lógica perspicaz.
Falando do encontro com Wittgenstein, Russell disse A lógica oferece as formas-padrão do raciocínio
que representou para ele “uma das aventuras correto e o empirismo oferece premissas, que são
intelectuais mais excitantes de minha vida”. proposições atômicas ou proposições complexas,
Posteriormente, Russell e Wittgenstein afastaram-se construídas a partir das primeiras. A proposição
cada vez mais, até romperem completamente a atômica descreve um fato, afirma que uma coisa tem
amizade. certa qualidade ou que determinadas coisas em certas
No Trinity, Russell foi hegeliano. Mas em 1898, relações. Um fato atômico, por seu turno, é o que torna
com a ajuda de Moore, libertou-se do idealismo. verdadeira ou falsa urna proposição atômica. “Sócrates
Escreve ele: “Em Cambridge, li Kant e Hegel, bem é ateniense” é uma proposição atômica, que expressa o
como a Lógica de Bradley, que me influenciou fato de Sócrates ser cidadão ateniense. “Sócrates é
profundamente. Durante alguns anos, fui discípulo de marido de Xantipa” é outra proposição atômica.
Bradley, mas, em torno de 1898, mudei meus pontos de “Sócrates é ateniense e marido de Xantipa” é
vista, em grande parte por causa das argumentações de proposição complexa ou molecular. Veremos essas
G. E. Moore [...]. Ele assumiu a guia da rebelião, e eu o ideias retornarem no Tractatus logico-philosophicus, de
segui com a sensação de libertação. Bradley sustentava L. Wittgenstein.
que qualquer coisa em que o senso comum crê é mera Em 1903 publicou Os princípios da matemática,
aparência. Nós passamos ao extremo oposto: passamos onde se propõe “a mostrar, em primeiro lugar, que toda
a pensar que é real qualquer coisa que o senso comum, a matemática procede da lógica simbólica, depois de

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descobrir, tanto quanto possível, quais são os princípios é, os objetos indicados pelas expressões denotativas. Em
da própria lógica simbólica”. suma, ainda que não existam realmente, as montanhas
Pois bem, enquanto ilustrava o primeiro de ouro, as quimeras e os círculos quadrados devem de
objetivo com o livro citado, Russell pretendeu alguma forma ter algum tipo de existência se as
desenvolver o segundo com os Principia mathematica, três expressões que os denotam são parte de enunciados que
grandes volumes elaborados em colaboração com A. N. tem significado e são verdadeiros, como é o caso da
Whitehead, publicados respectivamente em 1910,1912 afirmação “o círculo quadrado não existe”.
e 1913. Russell se rebelou contra o reino das sombras
Juntamente com o alemão Gottlob Frege, ele de Meinong. E, para evitar os becos sem saída e os
considera enigmas a que tais expressões denotativas levam,
a) que a matemática pode ser reduzida a um propôs uma análise que visava a fazer desaparecer tais
ramo da lógica; expressões, de modo que, ao invés de dizer “a
b) que “a matemática pura é a classe de todas as montanha de ouro não existe”, se possa dizer que “não
proposições da forma 'p implica q' ”; há nenhuma entidade que, ao mesmo tempo, seja de
c) que não existem conceitos típicos da ouro e seja montanha”. Tal análise elimina a locução
matemática que não possam ser reduzidos a conceitos “uma montanha de ouro” e consequentemente elimina
lógicos (de lógica das classes) e também qualquer razão de crer que o objeto por ela
d) que, com maior razão, não existem indicado tenha algum tipo de existência.
procedimentos de cálculo e de derivação dentro da A frase “o círculo quadrado não existe” torna-
matemática que não possam ser resumidos em se "jamais é verdadeiro que x seja circular, y seja
derivações de caráter puramente formal. quadrado e não seja sempre falso que x e y se
identifiquem”. Como se vê, nas reconstruções de
A teoria das descrições Russell desaparecem as expressões denotativas, e
desaparecem as formas do verbo “existir” e do verbo
Próximo a Frege no programa logicista, Russell, “ser” em função não-copulativa.
em sua reação ao idealismo, também está de acordo Exposta em 1905, essa teoria foi depois
com Frege ao sustentar o realismo platônico para os desenvolvida nos Principia mathematica onde Russell
objetos da matemática: os números, as classes, as distingue entre descrições indefinidas ou ambíguas (“um
relações etc., tem existência independente do sujeito e da homem”, “alguém que caminha” etc.) e descrições definidas
experiência. Uma relação como “Se A = B e B = C, (“o primeiro rei de Roman”, “o assim e assado” etc.).
então A = C” existe independentemente do sujeito que Por esse caminho, Russell pensava eliminar os
a pensa: existe e é sempre verdadeira. paradoxos metafísicos da “existência” e os paradoxos
Entretanto, há uma questão importante sobre a dos não-existentes. Em suma, a teoria das descrições de
qual, naquela época, Russell se distanciou de Frege. Russell afirma essencialmente que as expressões
Trata-se da sua Teoria das descrições (1905). Frege fizera denotativas são incompletas, ou seja, são incapazes de
notar que expressões como “a estrela da manhã” e “a ter significado por si sós e se distinguem claramente dos
estrela vespertina”, embora indicando o mesmo planeta nomes próprios (que, tomados isoladamente, têm
Vênus, dizem coisas diferentes, apresentando sentidos significado).
diferentes.
Consequentemente, ele distinguira entre O embate contra o segundo Witgestein e a filosofia
sentido e significado ou, em termos clássicos, entre analítica
conotação e denotação ou intensão e extensão. As
duas expressões têm o mesmo significado ou a mesma Atento analista da linguagem, durante toda a sua
denotação, ou seja, indicam o mesmo objeto, ao passo vida Russell submeteu ao “microscópio da lógica toda
que o seu sentido ou conotação, isto é, o que dizem uma série de questões filosoficamente relevantes e
desse objeto, é diferente. amiúde difíceis e complicadas. Mas o fez preocupado
Ora, Alexius Meinong também refletira sobre sempre com a relação que a linguagem deve ter com os
esses problemas e sobre o status de certas frases como fatos, se deve haver conhecimento válido.
“a montanha de ouro não existe” ou “o círculo Naturalmente, Russell tem consciência dos
quadrado não existe”. limites do empirismo. Com efeito, o empirismo pode ser
Trata-se de proposições verdadeiras que, em definido com a afirmação de que “todo conhecimento
alguns casos, podem também ser úteis. Mas eis o sintético baseia-se na experiência”. Mas esse princípio
problema: como pode uma proposição ser verdadeira e não se baseia na experiência. Consequentemente, o
ter significado se ela se refere ao nada? Pensou-se então empirismo é uma teoria que mostra suas inadequações.
que deveria haver algum sentido em que existam tanto E, no entanto, diz Russell, entre as teorias
as montanhas de ouro como os círculos quadrados, isto disponíveis, o empirismo é a teoria melhor. Contrário

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ao pragmatismo, Russell também era avesso aqueles A moral e o cristianismo


neopositivistas (Neurath, Hempel e outros) que
pareciam ter esquecido que o objetivo das palavras “é o Persuadido de que os valores não podem ser
de se ocupar de coisas diferentes das palavras”. deduzidos logicamente do conhecimento, Russell foi
Mas Russell reservou seus ataques mais ferozes tenaz defensor da liberdade do indivíduo contra toda
ao “segundo” Wittgenstein e a filosofia da linguagem. ditadura e contra os abusos do poder. Sensível às
Como se verá nas páginas dedicadas tanto ao injustiças sociais, Russell também foi convicto defensor
“segundo” Wittgenstein como à filosofia analítica, as do pacifismo.
acusações de Russell caem substancialmente fora do Com suas dilacerações e seus sofrimentos,
alvo, já que a filosofia analítica preocupa-se com as amiúde inúteis, a vida irredutível e obstinada levou
palavras, precisamente porque a filosofia analítica está Russell do céu da matemática a terra dos homens
atenta para uma relação não enevoada ou ilusória entre sofredores.
as palavras e as coisas, ou melhor, entre as palavras e a Adversário das injustiças do capitalismo, Russell
vida. não foi menos duro em relação aos métodos do
Sobre o movimento analítico em seu conjunto, bolchevismo. Em Teoria e pratica do bolchevismo (1920),
disse Russell: “Pelo que entendi, a doutrina consiste em podemos ler: “O sectarismo e a crueldade mongólica de
sustentar que a linguagem da vida cotidiana, com as Lênin (com quem Russell manteve longa conversa em
palavras usadas em seu significado comum, basta para 1920) gelaram-me o sangue nas veias”. Em 1952,
a filosofia, pois esta não teria necessidade de termos Russell pediu ao governo norte-americano que fosse
técnicos ou de mudanças de significado nos termos libertado Morton Sobell (acusado por Rosenberg em
comuns. Não consigo absolutamente aceitar essa 1951), que fora condenado a trinta anos de prisão por
opinião. espionagem. Em 1954, apoiado por Einstein,
Sou contrário a ela: promoveu uma campanha contra os armamentos
a) porque é insincera; atômicos. Durante a crise de Cuba, escreveu a Kennedy
b) porque é suscetível de desculpar a ignorância e a Kruschev duas cartas memoráveis. Alguns meses
da matemática, da física e da neurologia naqueles que mais tarde, escreveu ao Izvestia para combater a
tiveram somente uma educação clássica; hostilidade russa em relação aos judeus.
c) porque é apresentada por alguns com o tom Pacifista durante a Primeira Guerra Mundial,
de retidão cerimoniosa, como se a oposição a ela fosse colocou-se do lado dos aliados na Segunda Guerra.
pecado contra a democracia; Horrorizado com os crimes nazistas, criou
d) porque torna esmiuçada e superficial a posteriormente a “Fundação Atlântica da Paz” para
filosofia; despertar a consciência das massas contra a guerra dos
e) porque torna quase inevitável a perpetuação Estados Unidos no Vietnã, e inspirou o “Tribunal
entre os filósofos daquela atitude confusa que eles Russell” para desmascarar os crimes de guerra contra o
retomaram do senso comum”. Vietnã.
Em suma, Russell acredita que os filósofos da Pacifista coerente e desmistificador corajoso,
linguagem estão praticando a mística do uso comum. E Russell pagou pessoalmente por seus ideais. Foi
rejeita o fato de que os oxfordianos consideram a processado várias vezes, esteve preso, enfrentou a
linguagem comum como o banco de prova de qualquer impopularidade, foi-lhe tirada a cátedra de filosofia no
outra linguagem. Claro, na linguagem comum não City College de Nova Iorque.
queremos de modo algum “ficar discorrendo sobre o Russell defendeu o amor livre. Casou-se quatro
sol que surge e que cai. Mas os astrônomos acham vezes e, evidentemente, divorciou-se três. Em 1927,
melhor uma linguagem diferente, e eu sustento que uma juntamente com a segunda mulher, Dora Winefred
linguagem diferente também é preferível m filosofia”. Black, chegou a fundar uma escola baseada em
A outra acusação que Russell faz a Oxford é que princípios educativos “revolucionários”: nela, rapazes e
a filosofia que nela se faz “parece urna disciplina moças liam aquilo que quisessem, nunca eram punidos,
desprovida de relevância e de interesse. Discutir ao tomavam banho juntos, e corriam nus pelo parque. A
infinito o que os tolos entendem quando dizem tolices escola faliu.
pode ser divertido, mas é muito difícil que seja No fundo, para Russell, somente as afirmações
importante”. tautológicas da matemática e as afirmações sintéticas
São duas, portanto, as acusações que Russell das ciências empíricas têm sentido. E com base nesses
levanta contra a filosofia analítica: por um lado, ela fundamentos, é óbvio que caem por terra toda fé, toda
praticaria o culto ao uso comum da linguagem, a visão metafísica do mundo e toda religião. Como todas
despeito de toda linguagem técnica; por outro lado, ao as outras religiões, ele considerou o cristianismo do
invés de buscar o sentido das coisas e da realidade, ela ponto de vista teórico, como um conjunto de contra-
se ocuparia de modo estéril com o sentido das palavras. sensos e, do ponto de vista ético, como implicando

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moral desumana e obscurantista. A respeito desse “A proposição é uma função de verdade das
ponto, porém, surge a forte suspeita de que Russell não proposições elementares”.
tenha querido reconhecer outra interpretação histórica “A forma geral da função de verdade é [r, x,
do cristianismo diferente da visão imperante na N(x)]: essa é a fórmula geral da proposição”.
Inglaterra, no cinzento período da época vitoriana. “Aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”.
Russell dedicou sua vida a um mundo novo, no Em uma primeira consideração, encontramos
qual, como fazia questão de dizer, “o espirito criativo é no Tractatus uma ontologia: “O mundo divide-se em
vivaz, e em que a vida é uma aventura cheia de alegria e fatos”. Mas o próprio fato é divisível: “Aquilo que
de esperança [...], um mundo no qual o afeto tenha livre acontece, o fato, é a existência de fatos atômicos”. E os
trânsito, e onde a crueldade e a inveja tenham sido fatos atômicos, por seu turno, são constituídos por
afugentadas pela felicidade e pelo desenvolvimento objetos simples: estes são substância do mundo. “O
livre e solto de todos aqueles instintos que constroem a fato atômico é uma combinação de objetos (entidades,
vida e a enchem de delicias intelectuais”. coisas)”. “O objeto é simples”. “Os objetos constituem
Russell também escreveu uma brilhante História a substância do mundo. Por isso não podem ser
da filosofia ocidental (4 vols., 1934), onde tenta mostrar compostos”. “O fixo, o consistente e o objeto são uma
que “Os filósofos são o resultado de seu meio social”. só coisa”. “O objeto é o fixo, o consistente; a
configuração é o mutável, o instável".
2. LUDWIG WITTGESTEIN
Realidade e linguagem
Ludwig Wittgenstein (1889-1951) nasceu em
Viena. Encaminhado pelo pai (Karl Wittgenstein, À teoria da realidade corresponde a teoria da
fundador da indústria do aço no império dos linguagem. Segundo o Wittgenstein do Tractatus (ou,
Hasburgos) foi estudar engenharia. Em 1911 foi para como se diz, o “primeiro” Wittgenstein), a linguagem é
Cambridge para estudar os fundamentos da uma representação projetiva da realidade. “Nós
matemática, sob a guia de Bertrand Russel. fazemos representações dos fatos”. “A representação é
um modelo da realidade”. E “o que a representação
deve ter em comum com a realidade para poder
representá-la – exata ou falsamente -, segundo seu
próprio modo, é a forma de representação”. Sem
dúvida, diz Wittgenstein, “à primeira vista não parece
que a proposição - assim como, por exemplo, a que está
estampada no papel - seja representação da realidade de
que trata. Mas a notação musical também não parece à
primeira vista, representação da música, assim como
nossa escritura fonética (ou letras) também não parece
uma representação de nossa linguagem falada. E, no
entanto, esses símbolos se revelam, também no sentido
comum do termo, como representações daquilo que
Em 1930 tornou-se professor no Trinity representam”. “O disco fonográfico, o pensamento
musical, a notação, as ondas sonoras, estão todos, entre
College, iniciando sua atividade de ensino superior. Em
1939, sucedeu a G. E. Moore na cátedra de filosofia. si, naquela relação interior representativa que se
estabelece entre língua e mundo. O que é comum a
todas essas coisas é a estrutura lógica (como, na fábula,
As teses fundamentais
os dois jovens, seus dois cavalos e seus lírios, que são
todos, em certo sentido, uma só coisa)”.
O Tractatus logico-philosophicus saiu em 1921, em Por conseguinte, o pensamento ou proposição
alemão e foi publicado em inglês em 1922, representa ou espelha projetivamente a realidade. E a
acompanhado do texto alemão, com uma introdução de cada elemento constitutivo do real corresponde outro
Bertrand Russell. elemento no pensamento. A realidade consta de fatos
As teses fundamentais do Tractatus são as que se resumem em fatos atômicos, compostos por seu
seguintes: turno de objetos simples.
“O mundo é tudo o que acontece”. Analogamente, a linguagem é formada de
“O que acontece, o fato, é a existência dos fatos proposições complexas (moleculares), que podem ser
atômicos”. divididas em proposições simples ou atômicas
“A representação lógica dos fatos é o (elementares), não ulteriormente divisíveis em outras
pensamento”. proposições.
“O pensamento é a proposição exata”.

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Essas proposições elementares constituem o Entretanto, em nossos dias, essa imagem do Tractatus
correspondente dos fatos atômicos. E são combinações foi justamente abandonada.
de nomes, correspondentes aos objetos: “O nome Wittgenstein não apenas não foi membro do
significa o objeto. O objeto é seu significado”. Para Círculo de Viena e nunca participou das suas sessões,
exemplificar, “Sócrates é ateniense” é uma proposição mas também nunca foi neopositivista. Suas intenções
atômica, que descreve o fato atômico de que Sócrates é eram bem diversas das intenções dos neopositivistas.
ateniense; já “Sócrates é ateniense e mestre de Platão” Na realidade, em 1919 (portanto, três anos antes
é proposição molecular, que reflete o fato molecular de que M. Schlick, o fundador do Círculo de Viena, fosse
que Sócrates é ateniense e mestre de Platão. chamado a Viena), Wittgenstein escreveu uma carta a L.
A proposição atômica é a menor entidade von Ficker, com o qual estava tratando da publicação
linguística da qual se pode proclamar o verdadeiro ou o do Tractatus. Entre outras coisas, podemos ler nessa
falso. O fato atômico é o que torna verdadeira ou falsa carta: “Talvez lhe seja útil que eu lhe escreva algumas
uma proposição atômica. O fato molecular é uma palavras sobre o meu livro: com efeito, o senhor não
combinação de fatos atômicos que torna verdadeira ou extrairá grande coisa de sua leitura, essa é minha opinião
falsa uma proposição molecular. exata. De fato, o senhor não o compreendera; o tema
lhe parecerá totalmente estranho. Na realidade, porém,
A parte “mística” do Tractatus ele não lhe é estranho, já que o sentido do livro é um
sentido ético. Certa vez, pensei em incluir no prefacio uma
São essas, em resumo, as ideias centrais do proposição, que agora de fato não está lá, mas que
Tractatus. Mas Wittgenstein se dá conta de que, embora escreverei neste momento para o senhor, porque talvez
a ciência represente projetivamente o mundo, constitua para o senhor uma chave para a compreensão
entretanto, além da ciência e do mundo, “há do trabalho. Com efeito, eu queria escrever que meu
verdadeiramente o inexprimível. Mostra-se; é aquilo que trabalho consiste em duas partes: aquilo que escrevi e,
é místico”. “O que é místico não é como o mundo é, mas além disso, tudo aquilo que não escrevi. E precisamente
que ele é”. esta segunda parte é a importante [...]”.
“O sentido do mundo deve se encontrar fora Ou seja, o que não está escrito, o que não é dito
dele. No mundo, tudo é como é, e acontece como porque não é dizível cientificamente é a parte mais
acontece: nele não há nenhum valor - e, se houvesse, importante: a ética e a religião. E é assim que se
não teria nenhum valor”. reconciliam em um todo consistente a lógica e a
E “nós sentimos que, ainda que todas as “filosofia” do Tractatus com a mística do próprio
possíveis perguntas da ciência recebessem resposta, os Tractatus.
problemas de nossa vida não seriam sequer arranhados. Este era o problema de fundo de Wittgenstein:
Sem dúvida, não resta então nenhuma pergunta - e esta “Poder encontrar um método qualquer para reconciliar
é precisamente a resposta”. “O problema da vida a física de Hertz e Boltzmann com a ética de
resolve-se quando se desvanece”. Nessas afirmações Kierkegaard e Tolstoi”.
consiste precisamente a denominada parte mística do Mas os neopositivistas, devido a seus interesses
Tractatus. e perspectivas, não souberam ver esse problema
profundo e condenaram como contra-senso a mística
A interpretação não neopositivistas do Tractatus de Wittgenstein.
Toda uma geração considerou Wittgenstein
Lido, discutido, pesquisado nos pressupostos e positivista, já que ele tinha em comum com os
nos diversos núcleos teóricos, interpretado com base positivistas algo de enorme importância: traçara uma
em perspectivas diversas, o Tractatus foi um dos livros linha de separação entre aquilo de que se pode falar e
filosóficos mais influentes do século XX. E a influência aquilo que se deve calar, coisa que os positivistas
mais consistente foi a que exerceu sobre os também haviam feito. A diferença está apenas no fato
neopositivistas, que, embora rejeitando a parte mística, de que eles não tinham nada sobre o que calar. O
aceitaram sua antimetafísica, retomaram a teoria da positivismo sustenta - e esta é sua essência - que aquilo
tautologicidade das assertivas lógicas, interpretaram as de que podemos falar é tudo o que conta na vida.
proposições atômicas como protocolos das ciências Wittgenstein, ao contrário, crê
empíricas e assumiram sua ideia de que a filosofia é apaixonadamente que tudo o que conta na vida humana
atividade clarificadora da linguagem cientifica e não é precisamente aquilo sobre o qual, no seu modo de ver,
doutrina. devemos calar. Apesar disso, quando ele toma grande
Tanto mediante a Introdução de Bertrand Russell cuidado em delimitar o que não é importante, não é a
ao Tractatus como mediante a interpretação dos costa daquela ilha que ele quer examinar tão
neopositivistas, o Tractatus foi visto pela maior parte dos acuradamente, e sim os limites do oceano.
estudiosos como a bíblia do neopositivismo.

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A volta à filosofia A teoria dos “jogos de língua”

As Investigações filosóficas se iniciam com uma


crítica cerrada ao esquema tradicional de interpretação
que vê a linguagem como um conjunto de nomes que
denominam ou designam objetos, nomes de coisas e de
pessoas, unidos pela aparelhagem lógico-sintática
constituída por termos como “e”, “o”, “se” ... “então”
etc.
É obvio que, assim concebendo a linguagem, o
compreender se reduz a dar explicações que se
resumem em definições ostensivas, que postulam toda
aquela série de atos e processos mentais que deveriam
explicar a passagem da linguagem à realidade. Como se
vê, a teoria da representação, o atomismo lógico e o
mentalismo estão estreitamente conjugados.
Na realidade, porém, o jogo linguístico da
No Prefacio ao Tractatus, Wittgenstein escrevia denominação não é de modo nenhum primário. Com
que “a veracidade das ideias aqui transmitidas é efeito, se eu digo, indicando uma pessoa ou um objeto,
intocável e definitiva” e pensava “ter, no essencial, “este é Mário” ou “isto é vermelho”, haverá sempre
resolvido definitivamente os problemas”. Desse modo, para quem me escuta certa ambiguidade, já que não sabe
Wittgenstein calou-se. Os problemas estavam a que propriedade da pessoa ou do objeto me referi.
definitivamente resolvidos. Por isso, em 4 de julho de “Dizendo ‘cada palavra desta linguagem designa alguma
1924, Wittgenstein escrevia a J. M. Keynes (que, coisa’, não dizemos absolutamente nada”, escreve
juntamente com o matemático F. P. Ramsey, Wittgenstein nas Observações sobre os fundamentos
preocupava-se em fazer o filósofo austríaco retornar a da matemática. “Pensa-se que aprender a linguagem
Cambridge): “O senhor me pergunta se pode fazer algo consista em denominar objetos, isto é, homens, formas,
para tornar-me novamente possível o trabalho cores, dores, estados de espirito, números etc. A
científico. Não, a esse respeito não há mais nada a fazer; denominação é semelhante a pendurar em um a coisa
com efeito, não tenho mais nenhum forte impulso um cartãozinho com um nome. Pode-se dizer que isso
interior para tal ocupação. Tudo o que eu realmente é uma preparação para o uso da palavra. Mas para que
tinha a dizer, já o disse. E, com isso, a fonte se esgotou. nos prepara?”.
Isso pode soar estranho, mas é assim mesmo”. A teoria da representação sustenta que, com
Na realidade, não seria assim por muito tempo. nossa linguagem, nós fazemos apenas uma coisa:
Em janeiro de 1929 Wittgenstein estava novamente em denominamos. Mas Wittgenstein está persuadido de
Cambridge. E o retorno a Cambridge era o retorno à que, “ao contrário, com nossas proposições, fazemos as
filosofia. Em suma, Wittgenstein percebeu que os coisas mais diversas. Basta pensar nas exclamações,
problemas filosóficos não haviam sido definitivamente com suas tão diferentes funções: Agua! Fora! Ai!
resolvidos. Não devemos esquecer três coisas em Socorro! Lindo! Não! E agora, ainda estão dispostos a
relação a seu retorno à filosofia: chamar essas palavras de ‘denominação de objetos’?”.
a) os encontros que Wittgenstein manteve com Com a linguagem, fazemos as coisas mais
alguns membros do Círculo de Viena; variadas. Os “jogos linguísticos” são inumeráveis: “São
b) os “inumeráveis colóquios” que Wittgenstein inumeráveis os tipos diferentes de emprego de tudo o
diz ter mantido com Ramsey, tendo por objeto a revisão que chamamos ‘sinais’, ‘palavras’, ‘proposições’. E essa
dos Principia matemáticas e as teses do Tractatus sobre a multiplicidade não é algo fixo ou algo dado de uma vez
lógica e sobre os fundamentos da matemática; por todas, mas novos tipos de linguagem, novos jogos
C) o contato com “a linguagem real das linguísticos, como poderíamos dizer, surgem
crianças” das escolas primárias. continuamente, enquanto outros envelhecem e são
Esses três fatos - a reflexão sobre a matemática esquecidos (uma imagem aproximada disso poderia ser
intuicionista, os colóquios com Ramsey e a linguagem dada pelas mudanças da matemática)”.
das crianças levaram Wittgenstein a assumir nova
perspectiva teórica na interpretação da linguagem. E, O princípio de uso e a filosofia como terapia
em um esforço intenso, Wittgenstein afasta-se das linguística
soluções do Tractatus e elabora sua nova perspectiva
filosófica, da qual as Investigações filosóficas representam o A linguagem é um conjunto de jogos de
documento mais elaborado. linguagem. O significado de uma palavra é seu uso. E o

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uso tem regras. Por outro lado, “seguir uma regra é 3. EPISTEMOLOGIA CONTEMPORÂNEA
análogo a obedecer a uma ordem: somos adestrados 3.1 NEOPOSITIVISMO
para obedecer à ordem”. “Seguir uma regra, fazer urna
comunicação, dar urna ordem ou jogar urna partida de A reflexão sobre o método cientifico conhece,
xadrez sio hábitos (usos, instituições)”. E essas regras nos anos que intercorrem entre as duas guerras, um
que aprendemos através do adestramento são públicas: impulso decisivo. O principal centro para a filosofia da
“No sentido em que existem processos (também ciência foi nesse período, a Universidade de Viena,
processos psíquicos) característicos do compreender, o onde um grupo de intelectuais se reuniram, a partir de
compreender não é processo psíquico”. 1924, ao redor de Moritz Schlick, dando vida ao que se
Mas uma imagem nos mantinha prisioneiros. E tornou o Círculo de Viena, cuja atividade, que consistia
ela fez com que o mundo de nossa mente se povoasse de discussões, seminários, congressos, publicações,
de espectros, isto é, de problemas filosóficos: “Eles não durou até pela metade da década de 1930. A tomada do
são naturalmente problemas empíricos, mas problemas poder por Hitler levou consigo também o fim do
que se resolvem penetrando na operação de nossa Círculo de Viena, enquanto significou a diáspora de
linguagem de forma a reconhecê-la, contra uma forte neopositivistas.
tendência a subentendê-la. Os problemas não se
resolvem mais produzindo novas experiências, mas sim
ajustando aquilo que já nos é conhecido há tempo. A
filosofia é batalha contra o encantamento de nosso
intelecto, por meio de nossa linguagem”.
“Os problemas filosóficos surgem quando falta
a linguagem”. E esses problemas se resolvem
dissolvendo-os. “Quando os filósofos usam uma
palavra – ‘saber’, ‘ser’, ‘objeto’, ‘eu’, ‘proposição’,
‘nome’ – e tentam captar a essência da coisa, devemos
sempre perguntar: essa palavra é efetivamente usada
assim na linguagem, na qual tem sua pátria?”.
“Nós utilizamos as palavras, no seu emprego
metafísico, na trilha do seu emprego cotidiano”. E isso Paralelamente ao Círculo de Viena, e em ligação
porque a linguagem “faz parte de nossa história natural, estreita de intenções, desenvolveu-se o assim chamado
como o caminhar, o comer, o beber, o brincar”. Círculo de Berlim ou Sociedade para a filosofia
A linguagem opera sobre o fundo de científica.
necessidades humanas, na determinação de um
ambiente humano. E como “o significado de uma O manifesto do neopositivismo
palavra é seu uso na linguagem”, a função da filosofia é
puramente descritiva. Como na psicanálise, a diagnose É em 1929 que, com a assinatura de Neurath,
é a terapia: “o filósofo trata uma questão como uma Hahn e Carnap, aparece o manifesto do Círculo de
doença”. Viena, pequeno volume com o título A concepção cientifica
Não busqueis o significado, buscai o uso - do mundo, cujas linhas programáticas eram:
repetia Wittgenstein em Cambridge. E acrescentava: “O 1) a formulação de uma ciência unificada,
que vos dou é a morfologia do uso de uma expressão. compreendendo todos os conhecimentos provenientes
Demonstro que ela tem usos com os quais jamais da física, das ciências naturais etc.;
havíeis sonhado. Em filosofia, as pessoas sentem-se 2) o meio para tal fim devia consistir no uso da
forçadas a ver um conceito de determinado modo. Pois logica matemática;
o que faço é propor ou até inventar outros modos de 3) contribuir para o esclarecimento dos
considerá-lo. Sugiro possibilidades nas quais jamais conceitos e das teorias da ciência empírica e para o
havíeis pensado. Acreditáveis que só existisse uma esclarecimento dos fundamentos da matemática.
possibilidade ou, no máximo, duas. Mas eu vos fiz O princípio fundamental do neopositivismo -
pensar em outras possibilidades. Além disso, mostrei que é, justamente, a filosofia do Círculo de Viena - é o
que era absurdo esperar que o conceito se adequasse a princípio de verificação, segundo o qual têm sentido
possibilidades tão restritas assim. Desse modo, vos apenas as proposições que podem empiricamente ser
libertei de vossa cãibra mental; agora, podeis olhar em verificadas, ou seja, apenas as proposições que podem
volta, no campo do uso da expressão, e descrever seus se reduzir ou traduzir na linguagem “coisificada” da
diversos tipos de uso”. Em suma, a filosofia é a terapia física: ou seja, têm sentido unicamente as proposições
das doenças da linguagem. “Qual é o teu objetivo em da ciência empírica (física, química, geografia, história,
filosofia? Indicar à mosca o caminho de saída de dentro geologia etc.).
da garrafa”.
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A antimetafísica aceitas no corpus da ciência; se, ao contrário, está de


acordo com as outras proposições, então está “correta”.
Daí a antimetafísica dos neopositivistas
vienenses, para os quais as afirmações metafísicas junto A linguagem física como linguagem da ciência
com as religiosas são simplesmente não-sentidos, unificada
justamente pela razão de que não são verificáveis.
Carnap dirá que “nem Deus nem diabo algum poderão Embora fortemente influenciado por Neurath,
jamais dar-nos uma metafisica”, e que “Os metafísicos Carnap achou que as formulações deste eram “de modo
são musicistas sem talento musical”. nenhum irrepreensíveis”. Carnap não insistiu sobre a
redução da linguagem a fato físico nem rejeitou a
função simbólica dos sinais; ele, porém, aceitou
totalmente a tese da universalidade da língua fiscalista.

Em Filosofia e sintaxe lógica (1935) Carnap


Do mesmo parecer foram, em relação a escreve: “Nós, nas discussões no Círculo de Viena,
antimetafísica, Schlick e os outros frequentadores do chegamos a concepção de que a linguagem física é a
Círculo. Para Neurath, mais especificamente, a rejeição linguagem-base de toda a ciência, uma linguagem
da metafísica constituía uma batalha, justamente como universal que abraça os conteúdos de qualquer outra
se se tratasse de marchar contra um inimigo político. E linguagem científica”.
Hans Reichenbach dirá que é um fato decididamente E a linguagem física deve ser a linguagem da
positivo o abandono de qualquer metafísica ou poesia ciência unificada (na qual entram também a psicologia,
em conceitos. a sociologia, enfim, as chamadas “ciências do espírito”)
por causa de sua intersensualidade, intersubjetividade e
Da fase semântica à sintática universalidade. E se para Carnap - que naquele tempo
trabalhava na Sintaxe lógica da linguagem - a questão da
Tendo admitido o princípio de verificação, o relação entre linguagem e realidade não interessava
trabalho filosófico sério não consistira mais na muito, ela constituía o problema mais candente para
construção de teorias metafísicas, e sim muito mais na Schlick: para ele uma linguagem não contraditória não
análise dos conceitos e das teorias científicas. E de é suficiente para dar razão da ciência; de fato, também
grande valor foram as contribuições dos filósofos uma fábula bem engenhada pode ser não contraditória,
vienenses na análise das teorias cientificas e na mas não é ciência. Dentro do neopositivismo vienense
discussão de seu significado filosófico. E isso enquanto Schlick teve a função dialética de se remeter
a discussão sobre a base empírica da ciência - ou seja, continuamente aos fatos.
seus protocolos ou afirmações-de-observação -, que
pareceu estar cheia de solipsismo (a observação de A liberalização do neopositivismo
alguma coisa é sempre a observação feita por um
indivíduo), levou Neurath, seguido em parte por O princípio de verificação comporta
Carnap, a inverter a orientação semântica do Círculo na dificuldades que não foram de fato protegidas. Com
direção sintática ou, como foi dito, fisicalísta: a efeito, ele é um princípio cripto-metafisico;
linguagem e assumida como um fato físico; e eliminada autocontraditório (diz que tem sentido apenas as
sua função de representação projetiva dos fatos; e à proposições que podem empiricamente ser verificadas,
verdade como correspondência com os fatos mas o próprio princípio é uma proposição não
substituiu-se a verdade como coerência entre verificável e, portanto, também ele é insensato); e
proposições. De modo que uma proposição é “não- incapaz, sendo indutivo, de dar conta das afirmações
correta” se ela não está de acordo com as outras universais da ciência.
proposições reconhecidas pelos cientistas e por eles já E enquanto pelo fim da década de 1920 Ludwig
Wittgenstein - cujo Tractatus lógico-philosophicus havia

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incitado os neopositivistas a construção de uma 3) a ciência é um evento essencialmente


linguagem perfeita - voltava a filosofar e não via mais histórico;
“o sentido de uma proposição no método de sua 4) a ciência possui um “inevitável caráter
verificação”, e sustentava que o significado de uma social”.
palavra ou de uma expressão está no uso que dela se Em O materialismo racional, Bachelard constata
faz; em 1934 Karl Popper rejeitava o critério de amargamente que “a ciência não tem a filosofia que
verificação - que é um critério de significância -, e merece”. A filosofia está sempre atrasada em relação as
propunha a falsificabilidade como critério de mudanças do saber cientifico. E Bachelard procura
demarcação entre ciência e não ciência. opor a “filosofia dos filósofos” a “filosofia produzida
Nesse tempo, com o transplante do pela ciência”.
neopositivismo nos Estados Unidos, o neo-empirismo O que caracteriza a filosofia dos filósofos são
se liberalizava e o próprio Carnap, em Controlabilidade e atributos como a unidade, o fechamento e a
significado (1936), em vez de verificabilidade falará de imobilidade, ao passo que os traços marcantes da
controlabilidade e conformabilidade: “Diremos que “filosofia científica” (ou filosofia criada pela ciência)
uma proposição é controlável se, de fato, conhecemos são a falta de unidade ou centro, a abertura e a
um método para proceder à sua eventual confirmação; historicidade. Diz Bachelard em A filosofia do não:
ao passo que diremos que é confirmável, se soubermos “Pediremos aos filósofos que rompam com a ambição
sob quais condições ela em linha de princípio seria de encontrar um só ponto de vista para julgar uma
confirmada”. ciência tão vasta e tão mutável como a física”.
Para Bachelard, a filosofia das ciências é
3.2 GASTON BACHELARD filosofia dispersiva, distribuída: “Dever-se-ia fundar
uma filosofia do pormenor epistemológico, uma
Gaston Bachelard nasceu na França meridional, filosofia diferencial, para contrapor a filosofia integral
em 1884. Suas obras epistemológicas apareceram em dos filósofos. Essa filosofia diferencial seria
um momento em que a filosofia da ciência (o encarregada de medir o futuro de um pensamento”.
neopositivismo vienense e o operacionalismo norte- Esse tipo de filosofia diferencial “é a única filosofia
americano) se apresenta como concepção aberta. Toda outra filosofia estabelece seus princípios
antimetafísica e a-histórica. como intangíveis, suas verdades primeiras como totais
É bem verdade que Bachelard continuaria seu e adquiridas. Toda outra filosofia se orgulha de seu
trabalho de epistemólogo e historiador da ciência fechamento”.
também depois da Segunda Guerra Mundial, mas deve-
se dizer que ainda nesse momento, enquanto ainda não É a ciência que instrui a razão
se havia difundido o pensamento de Popper e de sua
Escola, a filosofia científica (isto é, a filosofia ligada a Em O racionalismo aplicado, Bachelard afirma que
ciência e que pretendia dar conta da ciência) ainda era o “a epistemologia deve ser tão móvel quanto a ciência”.
neopositivismo. Porém, é óbvio que, para haver uma filosofia dispersiva,
distribuída, aberta, diferencial e móvel, é necessário
A ciência não tem a filosofia que merece penetrar nas práticas científicas, em vez de julgá-las do
exterior - em suma, é preciso que o filosofo tenha
A epistemologia de Bachelard, devido a época confiança no cientista, que ele próprio seja cientista
em que surgiu e se desenvolveu, representa o antes de ser filósofo.
pensamento, prenhe de novidade, de um filósofo Na opinião de Bachelard, existem poucos
solitário (ainda que não isolado) que, dentro da tradição pensamentos filosoficamente mais variados do que o
francesa de reflexo sobre a ciência, ultrapassa a filosofia pensamento científico. E o papel da filosofia da ciência
“oficial” da ciência de sua época (o neopositivismo) e é o de recensear essa variedade e mostrar como os
propõe, como escreveu Althusser, um não-positivismo filósofos aprenderiam se quisessem meditar sobre o
radical e deliberado. pensamento cientifico contemporâneo.
Com base nisso, devemos registrar logo que os Enquanto os neopositivistas procuravam um
pontos fundamentais de seu pensamento podem ser princípio rígido (o princípio da verificação) capaz de
reduzidos a quatro: separar claramente a ciência da não-ciência, Bachelard
1) o filósofo deve ser “contemporâneo” à não aceita um critério a priori que tenha a presunção de
ciência de seu próprio tempo; captar a essência da cientificidade. Não é a razão
2) tanto o empirismo de tradição baconiana filosófica que domestica a ciência, e sim muito mais “a
como o racionalismo idealista são incapazes de dar ciência que instrui a razão”.
conta da prática científica real e efetiva; Assim, contrariamente aos neopositivistas,
Bachelard não aceita um princípio que estabeleça a priori

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a cientificidade das ciências, nem a rejeição da história perguntas. Tem respostas para tudo. No entanto, o
feita pelos próprios neopositivistas. Por outro lado, espírito cientifico “nos proíbe ter opiniões sobre
combate a filosofia dos filósofos, porém não considera questões que não compreendemos, sobre questões que
a metafisica como insensata ou indiferente para a não sabemos formular claramente. Antes de mais nada,
ciência, como o fizeram os filósofos do Círculo de é preciso saber propor os problemas”. Para o espírito
Viena. Escreve ele: “O espírito pode mudar a científico, toda teoria é a resposta a uma pergunta.
metafisica, mas não pode prescindir da metafisica”. E E o sentido e a construção do problema são as
se é verdade que “um pouco de metafisica nos afasta da características primeiras do espirito científico: o
natureza, muita metafisica nos aproxima dela”. conhecimento vulgar é feito de respostas, o
Por aí pode-se ver que Bachelard não nutre conhecimento científico vive na agitação dos
preconceitos antifilosóficos ou antimetafísicos em problemas. “O eu científico é programa de experiências, ao
nome da ciência. Ele é avesso à filosofia não passo que o não-científico é problemática já constituída”.
contemporânea da ciência e arremete contra os
filósofos que “pensam antes de estudar”, e sob cuja Não há verdade sem erro corrigido
pena “a relatividade degenera em relativismo, a hipótese
em suposição, o axioma em verdade primeira”. E esses Há mais, porém; diferentemente das rotinas
juízos depreciativos em relação à “filosofia dos incorrigíveis da experiência comum, o conhecimento
filósofos” brotam da firme vontade de Bachelard de dar científico avança através de sucessivas retificações as
à filosofia uma oportunidade para que se torne teorias anteriores: “não há verdade sem erro retificado”. Mas,
contemporânea da ciência. afirma Bachelard em O novo espirito científico, para além
do sentimento psicológico, “o espírito científico é
As “rupturas epistemológicas” essencialmente retificação do saber, ampliação dos
esquemas do conhecimento. Ele julga seu passado
Para Bachelard, não podemos considerar a histórico, condenando-o. Sua estrutura é a consciência
ciência independentemente de seu devir. E o “real de seus erros históricos. Do ponto de vista científico, o
científico” não é imediato e primário. Ele precisa verdadeiro é pensado como retificação histórica de um
receber um valor convencional. É preciso que ele seja longo erro, e a experiência como retificação da ilusão
retomado em um sistema teórico. Aqui, como em toda comum e primitiva”.
parte, é a objetivação que domina a objetividade. Uma verdade sobre o fundo de um erro: essa
O “dado cientifico”, portanto, é sempre relativo é a forma do pensamento científico, cujo método “é
a sistemas teóricos. O cientista nunca parte da método que busca o risco. A dúvida está na frente do
experiência pura. No tocante a isso, escreve Bachelard método e não atrás, como em Descartes. E esse é o
em A formação do espírito científico: “Conhece-se contra um motivo por que posso dizer sem grandiloquência que o
conhecimento anterior, destruindo conhecimentos pensamento cientifico é pensamento empenhado. Ele
malfeitos e superando o que, dentro do próprio espírito, põe continuamente em jogo sua própria organização.
constitui um obstáculo a espiritualização. O espírito Há mais: paradoxalmente, parece que o espírito
nunca é jovem quando se apresenta à cultura científica. científico vive na estranha esperança de que o próprio
Ao contrário, é muito velho, porque tem a idade de seus método se choque com xeque-mate vital. E isso porque
preconceitos. Ter acesso à ciência significa rejuvenescer um xeque-mate tem por consequência o fato novo e a
espiritualmente, quer dizer aceitar brusca mudança que ideia nova”.
deve contradizer um passado”. As hipóteses cientificas podem sofrer xeques-
Segundo Bachelard, essas sucessivas contradições mates; o espírito não-científico, ao contrário, é aquele
do “passado” são autênticas rupturas epistemológicas, que se torna “impermeável aos desmentidos da
que, de vez em quando, comportam a negação de algo experiência”. Esta é a razão por que as rotinas
fundamental (pressupostos, categorias centrais, incorrigíveis e as ideias vagas são sempre verificáveis. E
métodos) que sustentava a pesquisa na fase anterior. A essa é a razão por que é anticientífica a atitude de quem
teoria da relatividade e a teoria quântica, pondo em sempre encontra um modo de comprovar sua teoria, ao
discussão os conceitos de espaço, tempo e causalidade, invés de mostrá-la errada e, portanto, retificá-la.
representariam algumas das mais flagrantes
confirmações da ideia de ruptura epistemológica. O “obstáculo epistemológico”
A história da ciência, portanto, avança por meio
de sucessivas rupturas epistemológicas. Mas, O conhecimento científico avança por meio de
contrariamente a muitos outros, entre os quais Popper, rupturas epistemológicas sucessivas. É desse modo que
Bachelard sustenta que também existe ruptura entre ele se aproxima da verdade: “não encontramos
saber comum e conhecimento cientifico. O nenhuma solução possível para o problema da verdade,
conhecimento vulgar tem sempre mais respostas do que senão a de ir descartando erros cada vez mais sutis”.

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Entretanto, o progresso da ciência, essa concepções absolutas e totalizantes da realidade e a


continua retificação dos erros anteriores, especialmente imporem à ciência princípios intangíveis.
as retificações que constituem autênticas rupturas, não A tese de Bachelard é de que a evolução do
são passos que se efetuam com facilidade, em virtude conhecimento não tem fim, e de que a filosofia deve ser
do seu choque com o que Bachelard chama de instruída pela ciência. Isso pode até perturbar o filosofo.
“obstáculos epistemológicos”. No entanto, é necessário chegar a essa conclusão se
Podemos dizer que o obstáculo epistemológico quisermos definir a filosofia do conhecimento científico
é uma ideia que impede e bloqueia outras ideias: hábitos como filosofia aberta, como a consciência de espírito
intelectuais cristalizados, a inércia que faz estagnar as que se fundamenta trabalhando sobre o desconhecido,
culturas, teorias cientificas ensinadas como dogmas, os e procurando no real o que contradiz conhecimentos
dogmas ideológicos que dominam as diversas ciências - anteriores.
eis alguns obstáculos epistemológicos.
a) O primeiro obstáculo a superar é o de 3.3 KARL POPPER
derrubar a opinião: “A opinião, por direito, está sempre
errada. A opinião pensa mal, não pensa, traduz Karl Popper, nascido em Viena em 1902,
necessidades por conhecimentos. Decifrando os faleceu na Inglaterra em 1994. Na capital austríaca
objetos segundo sua utilidade, impede-se de conhecê- estudou filosofia, matemática e física.
los. Não se pode basear nada na opinião: antes de mais
nada, é preciso destrui-la”.
b) Outro obstáculo é a falta de genuíno sentido
dos problemas, sentido que se perde quando a pesquisa
se encerra na casca dos conhecimentos dados como
adquiridos e não mais problematizados. Mediante o
uso, diz Bachelard, as ideias se valorizam indevidamente.
E esse é um verdadeiro fator de inércia para o espírito.
Por vezes, ocorre que uma ideia dominante polariza o
espírito em sua totalidade. “Ha cerca de vinte anos, um
epistemólogo irreverente dizia que os grandes homens
são uteis para a ciência na primeira metade de sua vida,
e nocivos na segunda metade”.
Obstáculos importantes e difíceis de remover Em 1928, formou-se em filosofia e em 1929,
são: habilitou-se para o ensino de matemática e da física nas
c) o obstáculo da experiência primeira, ou seja, escolas de Ensino Médio. Suas principais obras são:
da experiência que pretende se situar além da crítica; 1 - Lógica da descoberta científica (1935);
d) aquele que pode ser chamado obstáculo 2 - A miséria do historicismo (1944-1945);
realista, e que consiste na sedução da ideia de 3 - A sociedade aberta e seus inimigos (1945);
substância; 4 - Conjecturas e refutações (1962);
e) por fim, aquele que se pode chamar de 5 - Conhecimento objetivo (1972) .
obstáculo animista (“a palavra vida é palavra mágica. É São notáveis e sempre perspicazes suas
palavra valorizada”). contribuições em múltiplos anais de seminários e
Diante dessas realidades constituídas pelos simpósios. Membro da Royal Society, foi feito Sir em
obstáculos epistemológicos, Bachelard propõe uma 1965. Professor visitante em muitas universidades
psicanálise do conhecimento objetivo, voltada para a estrangeiras, suas obras foram traduzidas em mais de
identificação e para a remoção dos obstáculos que vinte línguas.
bloqueiam o desenvolvimento do espírito científico.
Tal catarse torna-se absolutamente necessária se Popper contra o neopositivismo
quisermos tornar possível o progresso da ciência, já que
se conhece sempre contra um conhecimento anterior.
Durante muito tempo, na literatura filosófica,
Popper apareceu associado ao neopositivismo. Chegou-
Ciência e história da ciência se a dizer até que foi membro do Círculo de Viena.
Entretanto, a exemplo de Wittgenstein, Popper nunca
Tudo isso mostra também a função da negação foi membro do Círculo. Em suas Réplicas aos meus críticos,
dentro de nossa atividade de conhecimento e dentro da o próprio Popper afirma que essa história é apenas
própria filosofia, que, na opinião de Bachelard, deve se lenda. E, em sua Autobiografia, admite a responsabilidade
configurar como filosofia do não, firme na rejeição das pela morte do neopositivismo.
pretensões dos velhos sistemas a se apresentarem como

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Com efeito, Popper não é neopositivista. E, Escreve Popper a esse propósito: “Hoje como
com toda razão, Neurath chamou Popper de “a então (isto é, nos tempos do Círculo de Viena), os
oposição oficial” do Círculo de Viena. analistas da linguagem são importantes para mim e não
Popper embaralhou todas as cartas com as quais apenas como opositores, mas também como aliados,
os neopositivistas estavam jogando seu jogo: substituiu porque parecem os únicos filósofos que continuaram a
o princípio de verificação (que é um princípio de manter vivas algumas tradições da filosofia racional. Os
significância) pelo critério de falsificabilidade (que é um analistas da linguagem acreditam que não existem
critério de demarcação entre ciência e não-ciência); problemas filosóficos genuínos, ou que os problemas
substituiu a velha e venerável, mas, em sua opinião, da filosofia – admitindo-se que existam – são problemas
impotente teoria da indução, pelo método dedutivo da referentes ao uso linguístico ou ao significado das
prova; deu uma interpretação diferente da interpretação palavras”.
de alguns membros do Círculo a respeito dos Mas Popper não concorda com esse programa,
fundamentos empíricos da ciência, afirmando que os tanto que afirma peremptoriamente que “devemos
protocolos não são de natureza absoluta e definitiva; deixar de nos preocupar com as palavras e seus
reinterpretou a probabilidade, sustentando que as significados para passar a nos preocupar com as teorias
melhores teorias cientificas (enquanto implicam mais e criticáveis, com os raciocínios e com sua validade”.
podem ser mais bem verificadas) são as menos
prováveis; rejeitou a antimetafísica dos vienenses, A indução não existe
considerando-a simples exclamação, e, entre outras
coisas, defendeu a metafísica como progenitora de Escrevia Popper: “Penso ter resolvido um
teorias científicas; problema filosófico fundamental: o problema da
Rejeitou também o desinteresse de muitos indução [...]. Essa solução tem sido extremamente
circulistas em relação a tradição e releu em novas bases fecunda, e tem-me permitido resolver grande número
filósofos como Kant, Hegel, Stuart Mill, Berkeley, de outros problemas filosóficos”. E ele resolveu o
Bacon, Aristóteles, Platão e Sócrates para chegar a uma problema da indução dissolvendo-o: “A indução não
estimulante releitura, em bases epistemológicas, dos existe. E a concepção oposta é um grande erro”.
pré-socráticos, vistos como os criadores da tradição de No passado, o termo “indução” era usado
discussão crítica. principalmente em dois sentidos:
Enfrentou seriamente autênticos e clássicos a) indução repetitiva ou por enumeração;
problemas filosóficos, como o das relações corpo- b) indução por eliminação.
mente ou como o do sentido ou não da história A ideia de Popper é que ambos os tipos de
humana; interessou-se pelo sempre emergente drama indução caem por terra. Escreve ele: “A primeira é a
da violência, e é um dos mais aguerridos adversários indução repetitiva (ou indução por enumeração), que
teóricos do totalitarismo; rejeitou a diferença entre consiste em observações frequentemente repetidas,
termos teóricos e termos observáveis; contra o observações que deveriam fundamentar algumas
convencionalismo de Carnap e Neurath, ou seja, a generalizações da teoria. É óbvia a falta de validade
chamada “fase sintática” do Círculo, fez valer, a ideia desse gênero de raciocínio: nenhum número de
reguladora da verdade. observações de cisnes brancos é capaz de estabelecer
Em suma, não há questão ventilada pelos que todos os cisnes são brancos (ou que é pequena a
vienenses em torno da qual Popper não pense diferente. probabilidade de se encontrar um cisne que não seja
Por tudo isso, Neurath estava certo ao chamar Popper branco). Do mesmo modo, por maior que seja o
de “a oposição oficial do Círculo de Viena”. número de espectros de átomos de hidrogênio que
observamos, nunca poderemos estabelecer que todos
Popper contra a filosofia analítica os átomos de hidrogênio emitem espectros do mesmo
tipo [...]. Portanto, a indução por enumeração está fora
Crítico em relação aos vienenses, mais de questão: não pode fundamentar nada”.
recentemente, em 1961, Popper também atacou, em Por outro lado, a indução eliminatória baseia-se
nome da unidade do método cientifico, as pretensões no método da eliminação ou rejeição das falsas teorias.
da Escola de Frankfurt de compreender a sociedade Diz Popper: “À primeira vista, esse tipo de indução
com categorias como a “totalidade” e a “dialética”. E pode parecer muito semelhante ao método da discussão
também não se mostrou mais suave em relação a crítica que eu defendo, mas, na realidade, é muito
Cambridge-Oxford-Philosophy. Omitindo alguns diferente. Com efeito, Bacon, Mill e os outros difusores
acenos esparsos aqui e ali em seus escritos, Popper desse método de indução acreditavam que, eliminando
precisou sua posição essencialmente contrária ao todas as teorias falsas, pode-se fazer valer a verdadeira
movimento analítico no prefácio à primeira edição teoria. Em outras palavras, não se davam conta de que
inglesa (1959) da Lógica da descoberta cientifica. o número de teorias rivais é sempre infinito, ainda que,
via de regra, em cada momento particular possamos
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tomar em consideração um número finito de teorias desprovida de pressupostos, de hipóteses, de suspeitas


[...]. O fato de, para cada problema, existir sempre e de problemas, em suma, uma tábula rasa, na qual
infinidade de soluções logicamente possíveis constitui refletir-se-ia depois o livro da natureza. Essa ideia é o
um dos fatos decisivos de toda a ciência, e é uma das que Popper chama de observativismo, e que ele
coisas que fazem da ciência uma aventura tão excitante. considera mito.
Com efeito, ele torna ineficazes todos os métodos O observativismo é mito filosófico, já que a
baseados nas meras rotinas, o que significa que, na realidade é que nós somos uma tábula plena, um
ciência, devemos usar a imaginação e ideias ousadas, quadro-negro cheio dos sinais que a tradição ou a
ainda que uma e outras devam ser sempre temperadas evolução cultural deixaram escritos.
pela crítica e pelos controles mais severos”. A observação sempre se orienta por
A indução, portanto, não existe. Por expectativas teóricas. Esse fato, diz Popper, “pode ser
conseguinte, não pode fundamentar nada, e, ilustrado com um simples experimento, que eu gostaria
consequentemente, não existem métodos baseados em de realizar, com vossa permissão, tomando a vos
meras rotinas. É erro pensar que a ciência empírica mesmos como cobaias. O meu experimento consiste
proceda com métodos indutivos. Normalmente, em pedir-vos para observar, aqui e agora. Espero que
afirma-se que uma inferência é indutiva quando todos vós estejais cooperando: observai! Temo, porém,
procede a partir de assertivas particulares, como os que algum de vos, ao invés de observar, experimente a
relatórios dos resultados de observações ou de forte vontade de perguntar-me: ‘O que queres que eu
experimentos, para chegar a asserções universais, como observe?’ Se essa é a vossa resposta, então meu
hipóteses ou teorias. No entanto, já em 1934 Popper experimento teve êxito. Com efeito, aquilo que estou
escrevia: “Do ponto de vista logico, não é nada obvio tentando evidenciar é que, tendo em vista a observação,
que se justifique inferir assertivas universais a partir de devemos ter em mente uma questão bem definida, que
assertivas singulares, por mais numerosas sejam estas podemos estar em condições de decidir através da
últimas. Com efeito, qualquer conclusão tirada desse observação.”
modo sempre pode se revelar falsa: por mais Um experimento ou prova pressupõe sempre
numerosos que sejam os casos de cisnes brancos que alguma coisa a experimentar ou a comprovar. E esse
possamos ter observado, isso não justifica a conclusão algo são as hipóteses (ou conjecturas, ideais e teorias)
de que todos os cisnes são brancos”. que inventamos para resolver os problemas. Purgada
A inferência indutiva, portanto, não se justifica dos preconceitos, a mente não será mente pura, afirma
logicamente. Popper, mas apenas mente vazia. Nós operamos
Também poder-se-ia atacar a questão da sempre com teorias, ainda que frequentemente não
indução a partir desta outra perspectiva. tenhamos consciência disso.
O princípio de indução é uma proposição
analítica (isto é, tautológica) ou uma assertiva sintética Problemas e criatividade; gênese e prova da
(isto é, empírica). Entretanto, “se existisse algo como hipótese
um princípio de indução puramente lógico, não existiria
nenhum problema de indução, porque nesse caso todas Portanto, segundo Popper, não existe
as inferências indutivas deveriam ser consideradas procedimento indutivo, e a ideia da mente como tábula
como transformações puramente lógicas ou rasa é um mito. Para Popper, a pesquisa não parte de
tautológicas, precisamente como as inércias da lógica observações, mas sempre de problemas, “de problemas
dedutiva”. práticos ou de uma teoria que se chocou com
Portanto, o princípio de indução deve ser uma dificuldades, ou seja, que despertou expectativas e depois
assertiva universal sintética. Mas, “se tentarmos as desiludiu”.
considerar sua veracidade como conhecida pela Um problema é uma expectativa desiludida. Em
experiência, então ressurgem exatamente os mesmos sua natureza lógica, um problema é uma contradição
problemas que deram origem à sua introdução. Para entre afirmações estabelecidas; o maravilhamento e o
justificá-la, devemos empregar inferências indutivas. E interesse são as vestimentas psicológicas daquele fato
para justificar estas últimas, devemos adotar um lógico que é a contradição entre duas teorias ou, pelo
princípio indutivo de ordem superior, e assim por menos, entre a consequência de uma teoria e uma
diante. Desse modo, a tentativa de basear o princípio de proposição que, presumivelmente, descreve um fato. E
indução na experiência acaba falindo, porque leva os problemas explodem justamente porque nós somos
necessariamente a um regresso infinito”. “memória” biológico-cultural, fruto de uma evolução,
primeiramente biológica e depois eminentemente
A mente não é tábula rasa cultural.
Com efeito, quando um pedaço de “memoria”,
Há outra ideia ligada a teoria da indução: a de ou seja, uma expectativa (hipótese ou preconceito),
que a mente do pesquisador deveria ser mente choca-se com outra expectativa ou com algum pedaço
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de realidade (ou fatos), então temos um problema. É Com efeito, se não for possível extrair de uma
assim que Popper descreve a correlação entre o teoria consequências passíveis de verificação factual, ela
conjunto de expectativas que é a nossa “memória” não é científica. Entretanto, deve-se observar aqui que
cultural e os problemas: “Por vezes, enquanto uma hipótese metafísica de hoje pode se tornar
descemos por uma escada, acontece-nos descobrir de científica amanhã (como foi o caso da antiga teoria
repente que esperávamos outro degrau (que não existe) atomista, metafísica nos tempos de Demócrito e
ou, ao contrário, que não esperávamos nenhum outro cientifica na época de Fermi).
degrau, quando na verdade ainda existe um. A Nessa extração de consequências da teoria sob
desagradável descoberta de nos termos enganado faz controle e no seu confronto com as assertivas de base
com que nos demos conta de ter alimentado certas (ou protocolos) que, pelo que sabemos, descrevem os
expectativas inconscientes. E mostra que existem “fatos”, consiste o método dedutivo dos controles.
milhares de tais expectativas inconscientes”. Controles que, numa perspectiva lógica, nunca
A pesquisa, portanto, inicia-se com os encontrarão um fim, já que, por mais confirmações que
problemas; buscamos precisamente a solução dos uma teoria possa ter obtido, ela nunca será certa, pois o
problemas. próximo controle poderá desmenti-la. Esse fato lógico
E para resolver os problemas, é necessária a se coaduna com a história da ciência, onde vemos
imaginação criadora de hipóteses ou conjecturas; teorias, que resistiram durante décadas, e décadas
precisamos de criatividade, da criação de ideias “novas acabarem por desmoronar sob o peso dos fatos
e boas”, boas para a solução dos problemas. contrários.
Aqui é necessário traçar uma distinção - na qual Na realidade, existe uma assimetria lógica entre
Popper insiste com frequência - entre contexto da verificação e falsificação: bilhões e bilhões de
descoberta e contexto da justificação. Uma coisa é o processo confirmações não tornam certa uma teoria (como, por
psicológico ou gênese das ideias; outra coisa, bem exemplo, a de que “todos os pedaços de madeira boiam
diferente da gênese das ideias, é sua prova. As ideias na água”), ao passo que apenas um fato negativo (“este
cientificas não têm fontes privilegiadas: podem brotar pedaço de ébano não boia na água”) falseia a teoria, do
do mito, das metafísicas, do sonho, da embriaguez etc. ponto de vista lógico. É com base nessa assimetria que
Mas o que importa é que elas sejam de fato Popper fixa a ordem metodológica da falsificação;
comprovadas. E é óbvio que, para que sejam provadas como uma teoria permanece sempre desmentível, por
de fato, as teorias cientificas devem ser prováveis ou mais confirmada que esteja, então é necessário tentar
verificáveis em princípio. falsificá-la, porque, quanto antes se encontrar um erro,
mais cedo poderemos eliminá-lo, com a formulação e a
O critério de falsificabilidade experimentação de uma teoria melhor do que a anterior.
Desse modo, a epistemologia de Popper reflete a força
A pesquisa inicia pelos problemas. Para resolver do erro. Como dizia Oscar Wilde, “experiência é o
os problemas, é preciso elaborar hipóteses como nome que cada um de nós dá aos seus próprios erros”.
tentativas de solução. Por tudo isso pode-se compreender muito bem
Uma vez propostas, as hipóteses devem ser a centralidade da ideia de falsificabilidade na
provadas. E essa prova se dá extraindo-se epistemologia de Popper: “Não exigirei de um sistema
consequências das hipóteses e vendo se tais científico que seja capaz de ser escolhido, em sentido
consequências se confirmam ou não. Se elas ocorrem, positivo, de uma vez por todas, mas exigirei que sua
dizemos que, no momento, as hipóteses estão forma lógica seja tal que ele possa ser posto em
confirmadas. Se, ao contrário, pelo menos uma evidência, por meio de verificações empíricas, em
consequência não ocorre, então dizemos que a hipótese sentido negativo: um sistema empírico deve poder ser
é falsificada. refutado pela experiência”.
Em outros termos, dado um problema P e uma Pode-se ver a adequação desse critério quando
teoria T, proposta como sua solução, nós dizemos: se T pensamos nos sistemas metafísicos, sempre verificáveis
é verdadeira, então devem se dar as consequências p,, (qual fato não confirma uma das tantas filosofias da
p,, p ,,..., p,; se elas se derem, confirmarão a teoria; se, história?) e nunca desmentíveis (qual fato poderia
ao contrário, não se derem, a desmentirão ou desmentir urna filosofia da história ou uma visão
falsificarão, ou seja, demonstrarão ser falsa. religiosa do mundo?)
Por aí se pode ver que, para ser provada de fato,
uma teoria deve ser provável ou verificável em Significado das teorias metafísicas
princípio. Em outras palavras, deve ser falsificável, ou
seja, deve ser tal que dela sejam extraíveis Diversamente do princípio de verificação, o
consequências que possam ser refutadas, isto é, critério de falsificabilidade não é um critério de
falsificadas pelos fatos. significância, mas, repetimos, um critério de
demarcação entre assertivas empíricas e assertivas não
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empíricas. Entretanto, dizer que uma assertiva ou um somente se torna possível decidir empiricamente entre
conjunto de assertivas não é científico não implica em ela e alguma teoria rival.
absoluto dizer que ele é insensato. Tendo escrito tudo isso em 1934, Popper, em
Foi por essa razão que, em 1933, Popper seu Postscript (esboçado desde 1957), a propósito dos
escreveu uma carta ao diretor da revista “Erkenntnis”, programas de pesquisa metafísicos, também dizia que o
dizendo entre outras coisas: “Tão logo ouvi falar do atomismo é um exemplo excelente de uma teoria
novo critério de verificabilidade do significado elaborado metafísica não controlável, cuja influência na ciência
pelo Circulo (de Viena), lhe contrapus meu critério de supera a de muitas teorias controláveis. O último e mais
falsificabilidade: critério de demarcação destinado a grandioso, até agora, foi o programa de Faraday,
demarcar sistemas de assertivas científicas dos sistemas Maxwell, Einstein, De Broglie e Schrodinger, de
perfeitamente significantes de assertivas metafisicas”. conceber o mundo em termos de campos contínuos.
Com efeito, nós compreendemos muito bem o Cada uma dessas teorias metafísicas funcionou
que querem dizer os realistas, os idealistas, os solipsistas como programa para a ciência, indicando a direção em
ou os dialéticos. Na realidade, afirma Popper, os que se poderiam encontrar teorias da ciência
neopositivistas tentaram eliminar a metafísica, adequadamente explicativas, e tornando possível a
lançando-lhe impropérios. Mas, com seu princípio de avaliação da profundidade de uma teoria. Em biologia,
verificação, reintroduziram a metafísica na ciência a teoria da evolução, a teoria da célula e a teoria da
(enquanto as próprias leis da natureza não são infecção bacteriana desenvolveram todas um papel
verificáveis). Mas o fato é que “não se pode negar que, semelhante, pelo menos por algum tempo. Em
ao lado das ideias metafísicas que obstaculizaram o psicologia, o sensismo, o atomismo (ou seja, a teoria
caminho da ciência, também houve outras, como o segundo a qual todas as experiências são compostas de
atomismo especulativo, que contribuíram para seu elementos últimos, como, por exemplo, os dados
progresso. E, olhando a questão do ponto de vista sensoriais) e a psicanalise deveriam ser recordados
psicológico, estou propenso a considerar que a como programas de pesquisa metafísicos.
descoberta cientifica é impossível sem a fé em ideias que Assertivas puramente existenciais também se
em natureza puramente especulativa e que, por vezes, revelaram, por vezes, inspiradoras e frutíferas na
são até bastante nebulosas - uma fé que é história da ciência, ainda que nunca tenham vindo a
completamente desprovida de garantias do ponto de tornar-se parte dela. Aliás, poucas teorias metafísicas
vista da ciência e que, portanto, dentro desses limites, é exerceram maior influência sobre o desenvolvimento
‘metafisica’ “. da ciência do que a afirmação puramente metafísica de
que existe uma substância que pode transformar os
Relações entre ciência e metafísica metais vis em ouro (isto é, uma pedra filosofal),
afirmação que, se não é falsificável, nunca foi verificada
Portanto, do ponto de vista psicológico, a pesquisa é e na qual ninguém mais acredita.
impossível sem ideias metafísicas que, por exemplo Portanto, do ponto de vista psicológico, a pesquisa
poderiam ser as ideias de realismo, de ordem do cientifica é impossível sem ideias metafísicas. Do ponto
universo ou de casualidade. de vista histórico, é um dado de fato que, ao lado das ideias
Do ponto de vista histórico vemos que, por vezes, metafísicas que obstaculizaram a ciência, há outras que
ideias que antes flutuavam nas regiões metafísicas mais representaram fecundos programas de pesquisa; e
altas podem ser alcançadas com o crescimento da existiram metafísicas que, com o crescimento do saber
ciência e, postas em contato com ela, podem se de fundo, transformaram-se em teorias verificáveis. E
concretizar. São exemplos de tais ideias: o atomismo; a esse fato histórico nos mostra claramente que, do ponto de
ideia de um ‘principio’ físico único ou elemento último vista lógico, o âmbito do verdadeiro não se identifica com
(do qual derivam os outros); a teoria do movimento da o âmbito do verificável.
terra (à qual Bacon se opunha, considerando-a fictícia);
a venerável teoria corpuscular da luz; a teoria da Contra a dialética, a “miséria do historicismo”
eletricidade como fluido (que foi revivida com a
hipótese de que a condução dos metais deve-se a um Os primeiros elementos da filosofia social de
gás de elétrons). Popper encontram-se no ensaio O que é a dialética? Esse
Todos esses conceitos e essas ideias metafisicas, escrito marca o momento em que Popper começa a se
ainda que em suas formas mais primitivas, foram de interessar pelos problemas de metodologia das ciências
ajuda na ordenação da imagem que o homem faz do sociais. E com base em sua concepção do método
mundo. E, em alguns casos, podem também ter levado científico, Popper afirma, entre outras coisas, que
a previsões cercadas de êxito. Entretanto, uma ideia enquanto, de um lado, a contradição lógica e a
desse gênero só adquire status científico quando é contradição dialítica não têm nada a partilhar, do outro
apresentada de forma que possa ser falsificada, ou seja, lado o método dialético é um subentendimento e
absolutização do método científico.
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No método científico com efeito não se tem A contraposição entre ciências sociais e ciências
como pretendem os dialéticos, nem uma produção naturais verifica-se unicamente porque, amiúde, não se
necessária da “síntese” nem a conservação necessária, entendem o método e o procedimento das ciências
nesta, da “tese” e da “antítese”. naturais. E o fato de que as ciências sociais sejam dessa
Além disso, Popper ainda diz que, enquanto natureza, ou seja, da mesma natureza que as ciências
teoria descritiva, a dialética se resume na banalidade do físicas, implica que, no plano da tecnologia social,
tautológico, ou então se qualifica como teoria que procede-se na solução dos problemas mais urgentes
permite justificar tudo, pois, não sendo falsificável, ela mediante uma série de experimentos, dispostos de
escapa à prova da experiência. Em essência, embora modo a corrigir objetivos e meios com base nos
parecendo onipotente, a dialética, na realidade, nada resultados conseguidos.
pode. Pois bem, com base nessa premissa, vejamos os
pontos básicos da conhecida obra de Popper, intitulada A sociedade aberta
A miséria do historicismo.
Esse ensaio concentra-se na crítica ao Desse modo, as teses metodológicas do
historicismo e ao holismo, na defesa da unidade historicismo, segundo Popper, constituem o suporte
fundamental do método cientifico nas ciências naturais teórico mais válido das ideologias totalitárias. E ele
e nas ciências sociais, e na consequente proposta de procura provar essa opinião nos dois volumes de A
uma tecnologia social racional, ou seja, gradualista. sociedade aberta e seus inimigos.
Segundo os historicistas, a função das ciências sociais Com essa obra, Popper passa da crítica
deveria ser a de captar as leis de desenvolvimento da metodológica ao ataque ideológico contra o
evolução da história humana, de modo que se possa historicismo, visto como filosofia reacionária e como
prever seus desdobramentos posteriores. defesa da “sociedade fechada” contra a “sociedade
Mas Popper sustenta que tais profecias aberta”, ou seja, como defesa de uma sociedade
incondicionadas não têm nada a ver com as predições totalitária concebida organicamente e organizada
condicionadas da ciência. O historicismo é capaz tribalmente segundo normas não modificáveis.
apenas de pretensiosas profecias políticas. Ao contrário, a sociedade aberta, em sua
concepção, configura-se inversamente como sociedade
Crítica do “holismo” baseada no exercício crítico da razão humana, como
sociedade que não apenas tolera mas também estimula,
O holismo é a concepção segundo a qual seria em seu interior e por meio das instituições
possível captar intelectualmente a totalidade de um democráticas, a liberdade dos indivíduos e dos grupos
objeto, de um acontecimento, de um grupo ou de uma tendo em vista a solução dos problemas sociais, ou seja,
sociedade e, paralelamente, do ponto de vista prático, tendo em vista reformas continuas.
ou melhor, político, transformar tal totalidade. Contra Mais precisamente, Popper concebe a
essa concepção holística, Popper observa que: democracia como a conservação e o aperfeiçoamento
a) por um lado, é grave erro metodológico continuo de determinadas instituições, particularmente
pensar que nós podemos compreender a totalidade, até as que oferecem aos governados a possibilidade efetiva
do menor e mais insignificante pedaço de mundo, visto de criticar seus governantes e substitui-los sem
que todas as teorias captam e não podem captar mais derramamento de sangue. Mas, com isso, Popper não
do que aspectos seletivos da realidade, e são por quer dizer que, precisamente por ser tal, o democrático
princípio sempre falsificáveis e, sempre por princípio, deva aceitar a subida dos totalitários ao poder.
infinitas em número; Escreve Popper: “A democracia apresenta um
b) do ponto de vista prático e operativo, o campo de batalha precioso para qualquer reforma
holismo se resolve no utopismo no que se refere à razoável, dado que permite a realização de reformas
tecnologia social, e no totalitarismo no que se refere à sem violência. Mas, se a defesa da democracia não se
prática política. tornar a preocupação predominante em toda batalha
Como se pode ver, Popper desenvolve a crítica particular travada nesse campo maior de batalha, as
ao historicismo e ao holismo em nome da unidade tendências antidemocráticas latentes, que sempre estão
fundamental do método cientifico que deve existir, presentes - e que recorrem aos que padecem dos efeitos
tanto nas ciências naturais como nas ciências sociais. Na estressantes da civilização -, podem provocar a
opinião do autor, as ciências procedem segundo o derrocada da democracia. Se a compreensão desses
modelo delineado na lógica da descoberta cientifica. Ou princípios ainda não estiver suficientemente
seja, procedem através da elaboração de hipóteses que desenvolvida, é preciso promovê-la. A linha política
formulamos para resolver os problemas que nos oposta pode ser fatal, pois pode implicar na perda da
preocupam e que é preciso submeter à prova da batalha mais importante, que é a batalha pela própria
experiência. democracia.

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Para Popper é democrática a sociedade que Por outro lado, a filosofia hegeliana, centrada
possui instituições democráticas. Mas é preciso ficar sobre a ideia de um inexorável desenvolvimento
atento, adverte ele, pois as instituições são como uma dialético da história e sobre o pressuposto da identidade
fortaleza: resistem se a guarnição for boa. entre o real e o racional, nada mais é do que a
justificação e a apologia do Estado prussiano e do
Fé na liberdade e na razão mito da horda.

Além disso, para Popper, os maiores ideais


humanitários são constituídos pela justiça e pela
liberdade. Mas ele constrói uma hierarquia em que a
liberdade vem antes da justiça, já que, em uma
sociedade livre, mediante a crítica intensa e reformas
sucessivas, também se poderá caminhar para a justiça,
ao passo que, na sociedade fechada, na tirania ou na
ditadura, onde não é possível a crítica, a justiça
tampouco será alcançada: aqui, haverá sempre a classe
privilegiada dos servos do tirano.
Para concluir, devemos dizer que, por trás de
tudo isso, por trás dessa defesa racional e apaixonada das
instituições democráticas, existe o que Popper chama
de fé na razão.
O racionalismo atribui valor à argumentação Popper vê no hegelianismo o arsenal conceitual
racional e à teoria, bem como ao controle com base na dos movimentos totalitários modernos: do nazismo e
experiência. Mas essa decisão em favor do racionalismo, da nefasta fé fascista, doutrina materialista e ao mesmo
por seu turno, não se pode demonstrar pela tempo mística, totalitária e simultaneamente tribal. E é
argumentação racional e pela experiência. ainda do hegelianismo que, segundo Popper, brotam os
Ainda que se possa submetê-la à discussão, ela piores aspectos do marxismo, ou seja, seu historicismo (a
repousa em ótima análise na decisão irracional, na fé, na pretensão de ter descoberto as leis que guiariam de
razio. Mas essa opção em favor da razão não é de ordem modo ferrenho toda a história humana) e seu
puramente intelectual, e sim de ordem moral. Ela totalitarismo.
condiciona toda a nossa atitude em relação aos outros O materialismo histórico (é a “estrutura
homens e em relação aos problemas da vida social. E econômica” que determina a “superestrutura
está estreitamente relacionada à fé na racionalidade do ideológica”) é uma absolutização metafísica de um
homem, no valor de cada homem. O racionalismo pode aspecto da realidade; a dialítica é um mito; e, além disso,
se acompanhar de uma atitude humanitária, muito os próprios marxistas proibiram as componentes
melhor do que o irracionalismo, com sua rejeição da teóricas do marxismo, que eram científicas, de se
igualdade dos direitos. Naturalmente, os indivíduos desenvolverem como ciência, uma vez que, diante das
humanos em particular são desiguais sob muitos refutações históricas da teoria, eles procuraram proteger
aspectos. a teoria com hipóteses ad hoc (compensam anomalias não
Isso, porém, não está em contraste com a previstas pelas teorias em sua forma original, ainda não
exigência de que todos sejam tratados do mesmo modo modificada), comportando-se como o médico que, em
e de que todos tenham direitos iguais. A igualdade vez de salvar o paciente, procura salvar com vários
diante da lei não é um fato, e sim uma instância política subterfúgios o seu diagnóstico, matando o paciente.
que repousa sobre uma opção moral. A fé na razão, A pergunta justa de teoria da política, diz
inclusive na razão dos outros, implica a ideia de Popper, não é: “quem deve comandar?”, porque
imparcialidade, de tolerância, de rejeição de toda nenhum homem, nenhum grupo, nenhuma raça e
pretensão autoritária. nenhuma classe pode arrogar-se o direito natural de
domínio sobre os outros. A pergunta justa é antes:
Os inimigos da sociedade aberta “como é possível controlar quem comanda e substituir
os governantes sem derramamento de sangue?” Este é
Justamente por isso Popper combate a sociedade o delineamento de quem constrói, aperfeiçoa e defende
fechada, ou seja, o Estado totalitário, teorizado em as instituições democráticas em favor da liberdade e dos
tempos e contextos diversos por pensadores como direitos de cada um e, portanto, de todos. E o
Platão, Hegel e Marx. Platão foi o Judas de Sócrates e delineamento de todos os que prezam de coração a
propôs, na opinião de Popper, um Estado petrificado, sociedade aberta.
estruturado sobre urna rígida divisão das classes e
dirigido pelo domínio exclusivo dos filósofos-reis.
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3.4 THOMAS KUHN tentativa esforçada e devotada de forçar a natureza


dentro dos quadros conceituais fornecidos pela
O conceito de “paradigma” educação profissional”.
Significa a pesquisa estavelmente baseada em
Thomas S. Kuhn integra a luta de conhecidos um ou mais resultados alcançados pela ciência do
epistemólogos pós-popperianos que desenvolveram passado, aos quais uma comunidade cientifica
suas teorias epistemológicas em contato sempre mais particular, por certo período de tempo, reconhece a
estreito com a história da ciência. capacidade de constituir o fundamento de sua práxis
ulterior.
Essa práxis ulterior - a ciência normal - consiste
em tentar realizar as promessas do paradigma,
determinando os fatos relevantes (para o paradigma),
confrontando (por exemplo, mediante medidas sempre
mais exatas) os fatos com a teoria, articulando os
conceitos da própria teoria, ampliando os campos de
aplicação da teoria.
Fazer ciência normal, portanto, significa
resolver quebra-cabeças, isto é, problemas definidos
pelo paradigma, que emergem do paradigma ou que se
inserem no paradigma, razão por que o insucesso da
solução de um quebra-cabeças não é visto como
insucesso do paradigma, mas muito mais como
insucesso do pesquisador, que não soube resolver uma
questão para a qual o paradigma diz (e promete) que
existe solução.
Em 1963 Kuhn publicou o livro A estrutura das
revoluções cientificas, sustentando que a comunidade
científica se constitui através da aceitação de teorias que
Kuhn chama de paradigmas. “Com esse termo –
escreve ele -, quero indicar conquistas científicas
universalmente reconhecidas, que por certo período
fornecem um modelo de problemas e soluções
aceitáveis aos que praticam certo campo de pesquisas”.
Na realidade, Kuhn utiliza o termo paradigma
em mais de um sentido. Entretanto, ele próprio explica
que a função do paradigma é hoje cumprida pelos
manuais científicos, por meio dos quais o jovem
estudante é iniciado na comunidade científica;
antigamente isso era realizado pelos clássicos da ciência,
como a Física de Aristóteles, o Almagesto de Ptolomeu,
os Principia e a Ótica de Newton, a Eletricidade de
Franklin ou a Química de Lavoisier. Por essa razão, a
astronomia ptolemaica (ou a copernicana), a dinâmica
aristotélica (ou a newtoniana) são todas paradigmáticas, a Essa é situação análoga à do jogador de xadrez
exemplo do fixismo de Lineu, da teoria da evolução de que, quando não soube resolver um problema e perde,
Darwin ou da teoria da relatividade de Einstein. acha que isso aconteceu porque ele não é capaz, e não
porque as regras do xadrez não funcionam.
“Ciência normal” e “ciência extraordinária” A ciência normal, portanto, é cumulativa
(constroem-se instrumentos mais potentes, efetuam-se
Assim como uma comunidade religiosa pode medidas mais exatas, precisam-se os conceitos da teoria,
ser reconhecida pelos dogmas específicos em que amplia-se a teoria a outros campos etc.) e o cientista
acredita, ou como um partido político agrega seus normal não procura a novidade. No entanto, a novidade
membros em torno de valores e finalidades específicos, deve aparecer necessariamente, pela razão de que a
da mesma forma é uma teoria paradigmática a que articulação teórica e empírica do paradigma aumenta o
institui uma comunidade científica, a qual, por força e conteúdo informativo da teoria e, portanto, a expõe ao
no interior dos temas paradigmáticos, realiza o que risco do desmentido (com efeito, quanto mais se diz,
Kuhn chama de ciência normal. A ciência normal é “a mais se está arriscado a errar; quem não diz nada, não

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erra nunca; se fala pouco, arrisca-se a cometer poucos A “passagem” de um paradigma para outro
erros).
Tudo isso explica as anomalias que, em dado Na realidade, Kuhn afirma que “a transferência
momento, a comunidade cientifica tem de enfrentar e da confiança de um paradigma para outro é uma
que, resistindo aos reiterados assaltos paradigmáticos, experiência de conversão que não pode ser imposta pela
determinam a crise do paradigma. força”.
Com a crise do paradigma inicia-se o período de Mas então por que, e em que bases, se verifica
ciência extraordinária: o paradigma é submetido a um essa experiência de conversão?
processo de desfocamento, os dogmas são postos em Os cientistas em particular abraçam um novo
dúvida e, consequentemente, suavizam-se as normas paradigma por todo tipo de razões e, habitualmente,
que governam a pesquisa normal. por várias razões ao mesmo tempo. Algumas dessas
Em suma, postos diante de anomalias, os razões - como, por exemplo, o culto ao sol, que
cientistas perdem a confiança na teoria que antes contribuiu para converter Kepler ao copernicanismo -
haviam abraçado. A perda de um sólido ponto de encontram- se completamente fora da esfera da ciência.
partida se expressa pelo recurso à discussão filosófica Outras razões podem depender de idiossincrasias
sobre os fundamentos e a metodologia. Esses são os autobiográficas e pessoais.
sintomas da crise, que cessa quando, do cadinho Até a nacionalidade ou a reputação anterior do
daquele período de pesquisa desconjuntada que é a inovador e de seus mestres pode, por vezes,
ciência extraordinária, um novo paradigma consegue desempenhar papel importante.
emergir, e sobre ele se articulará novamente a ciência Provavelmente, a pretensão mais importante
normal, que, por seu turno, depois de um período de posta pelos defensores de um novo paradigma seja a de
tempo talvez bastante longo, levará a novas anomalias, estar em condições de resolver os problemas que
e assim por diante. levaram o velho paradigma à crise. Quando pode ser
posta legitimamente, essa pretensão constitui
As revoluções científicas frequentemente a argumentação a favor mais eficaz.
Além disso, deve-se considerar que, por vezes,
Kuhn descreve a passagem a um novo a aceitação de um novo paradigma não se deve ao fato
paradigma (da astronomia ptolemaica à copernicana, de que ele resolve os problemas que o velho paradigma
por exemplo) como urna reorientação gestáltica: não consegue resolver, e sim a promessas que dizem
quando abraça um novo paradigma, por exemplo, a respeito a outros campos. E existem até razões estéticas
comunidade cientifica manipula o mesmo número de que introduzem um cientista ou um grupo de cientistas
dados que antes, mas inserindo-os em relações a aceitar um paradigma. Entretanto, Kuhn afirma que
diferentes de antes. Além disso, a passagem de um nos debates sobre os paradigmas não se discutem
paradigma a outro, para Kuhn, é o que constitui uma realmente suas respectivas capacidades para resolver os
revolução científica. Mas - e esse é um dos problemas problemas, ainda que, com razão, normalmente sejam
mais candentes suscitados por Kuhn - como ocorre a utilizados termos que a eles se refiram.
passagem de um paradigma para outro? Essa passagem O ponto em discussão, ao contrário, consiste
realiza-se por motivos racionais ou não? em decidir que paradigma deve guiar a pesquisa no
futuro, em torno de problemas que, muitas vezes,
Pois bem, Kuhn afirma que “paradigmas nenhum dos dois competidores pode ainda pretender
sucessivos nos dizem coisas diferentes sobre os objetos seja capaz de resolver completamente. É preciso decidir
que povoam o universo e sobre o comportamento de entre formas alternativas de desenvolver a atividade
tais objetos”. E “precisamente por se tratar de urna científica e, dadas as circunstâncias, essa decisão deve-
passagem entre incomensuráveis, a passagem de um se basear mais nas promessas futuras do que nas
paradigma para outro, oposto, não se pode realizar com conquistas passadas.
um passo cada vez, nem imposto pela lógica ou por Quem abraça um novo paradigma desde o
uma experiência, neutra. Como a reorientação início, frequentemente o faz a despeito das provas
gestáltica, ela deve se dar toda de uma vez (ainda que fornecidas pela solução dos problemas. Ou seja, ele
não em um só instante), ou então não se realizará de deve ter confiança de que o novo paradigma, no futuro,
modo nenhum”. conseguira resolver muitos dos vastos problemas que
Assim, talvez Max Planck tenha razão quando, tem à sua frente, sabendo somente que o velho
em sua Autobiografia, fez questão de observar com paradigma não conseguiu resolver alguns. Uma decisão
tristeza que “uma nova verdade cientifica não triunfa desse tipo pode ser tomada apenas com base na fé.
convencendo seus opositores e fazendo-lhes ver a luz, Assim, para que um paradigma possa triunfar,
e sim muito mais porque seus opositores acabam por deve primeiro conquistar (as vezes, com base em
morrer, e cresce uma nova geração a ela habituada”. considerações pessoais ou em considerações estéticas
inarticuladas) “alguns defensores, que o desenvolverão
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até um ponto em que muitas argumentações sólidas 3.5 PAUL FEYERABEND


poderão ser produzidas e multiplicadas. Mas, quando
existem, essas argumentações também não são O livro de Feyerabend (1924-1994) Contra o
individualmente decisivas. Visto que os cientistas são método (1970) foi escrito na convicção de que “o
homens racionais, uma ou outra argumentação acabará anarquismo, embora não sendo talvez a filosofia política
por persuadir muitos deles. Não existe, porém, mais atraente, é sem dúvida um excelente remédio para
nenhuma argumentação em particular que possa ou a epistemologia e para a filosofia da ciência”.
deva persuadir a todos. O que se verifica não é tanto
uma única conversão de grupo, e sim muito mais um
progressivo deslocamento da distribuição da confiança
dos especialistas”.

O desenvolvimento ateleológico da ciência

Pergunta-se, porém: a passagem de um


paradigma para outro implica em progresso?
O problema é complexo. Entretanto, somente
durante os períodos de “ciência normal” é que o
progresso parece evidente e seguro, ao passo que
durante os períodos de revolução, quando as doutrinas
fundamentais de um campo estão mais uma vez em
discussão, surgem repetidamente dúvidas sobre a
possibilidade de continuação do progresso, se for
adotado este ou aquele dos paradigmas que se
confrontam.
Naturalmente, quando um paradigma se afirma,
seus defensores o encaram como progresso. Mas Kuhn
pergunta: progresso em que direção? Com efeito, diz ele,
o processo que vemos na evolução da ciência é um
processo de evolução a partir de estágios primitivos, o
que não significa, porém, que tal processo leve a
pesquisa sempre para mais perto da verdade ou em Em essência, segundo Feyerabend, é preciso
direção a algo. abandonar a quimera de que as normas “ingênuas e
“Seria necessário existir tal objetivo?” - simplistas” propostas pelos epistemólogos podem
pergunta-se ele -. Não é possível explicar a existência da explicar o “labirinto de interações” apresentado pela
ciência como o seu sucesso em termos de evolução a história real. A história em geral e a história das
partir do estado do conhecimento possuído pela revoluções em particular são sempre mais ricas em
comunidade em cada dado período de tempo? conteúdos, mais variadas, mais multilaterais, mais vivas
Adiantará verdadeiramente alguma coisa e mais ‘astutas’ do que pode ser imaginado até pelo
imaginar que exista uma explicação da natureza melhor historiador e pelo melhor metodólogo”.
completa, objetiva e verdadeira, e que a medida Consequentemente, o anarquismo
apropriada da conquista cientifica é a medida em que epistemológico de Feyerabend consiste na tese de que a
ela se aproxima desse objetivo final? Se aprendermos a ideia de um método que contenha princípios estáticos,
substituir a evolução na direção daquilo que queremos imutáveis e absolutamente obrigatórios como guia para
conhecer pela evolução a partir daquilo que a atividade cientifica se defronta com dificuldades
conhecemos, grande número de inquietantes problemas consideráveis quando é posta diante dos resultados da
pode se dissolver no curso desse processo. pesquisa histórica.
Assim como na evolução biológicas, também na Podemos ver que não existe uma norma isolada,
evolução da ciência nos encontramos diante de um por mais plausível e por mais solidamente radicada na
processo que se desenvolve constantemente a partir de epistemologia, que não tenha sido violada em alguma
estágios primitivos, mas que não tende a nenhum circunstância.
objetivo. Também se torna evidente que tais violações
não são acontecimentos acidentais, e que não são
resultado de um saber insuficiente ou de desatenções
que teriam podido ser evitadas. Ao contrário, vemos

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que tais violações são necessárias para o progresso adequadamente interpretados enquanto suas origens
científico. sociais permanecerem obscuras”.
Uma das características que mais chamam a A consciência do condicionamento social das
atenção nas recentes discussões sobre a história e a categorias e das produções mentais não é coisa recente.
filosofia da ciência é a tomada de consciência do fato de Assim, apenas para citar alguns pensadores do passado,
que acontecimentos e desdobramentos como a a teoria dos idola de Bacon é exemplo da consciência do
invenção do atomismo na antiguidade, a revolução condicionamento social do pensamento.
copernicana, o advento da teoria atômica moderna
(teoria cinética, teoria da dispersão, estereoquimica,
teoria quântica) e o surgimento gradual da teoria
ondulatória da luz só se verificaram porque alguns
pensadores decidiram não se deixar obrigar por certas
normas metodológicas “óbvias”, ou porque as
violaram involuntariamente.
Tal liberdade de ação, segundo Feyerabend, não
é somente um fato da história da ciência. Ela é tão
racional quanto absolutamente necessária para o
crescimento do saber. Mais especificamente, pode-se
demonstrar o seguinte: dada uma norma qualquer, por
mais “fundamental” ou “necessária” que ela seja para a
ciência, há sempre circunstâncias nas quais é oportuno
não somente ignorar a norma, mas também adotar seu
oposto.
Por exemplo, há circunstâncias nas quais é Mas essa consciência também pode ser
aconselhável introduzir, elaborar e defender hipóteses encontrada em Malebranche, Pascal, Voltaire,
ad hoc (compensam anomalias não previstas pelas teorias Montesquieu, Saint-Simon e, mais recentemente, em
em sua forma original, ainda não modificada), ou Nietzsche. Foi Maquiavel quem observou que se pensa
hipóteses cujo conteúdo seja menor em relação ao das de um modo na praça e de outro no palácio. E Marx, por
hipóteses alternativas existentes e empiricamente seu turno, estabeleceu como um dos fulcros de seu
adequadas, ou ainda, hipóteses autocontraditórias etc. pensamento a ideia de que “não é a consciência dos
Há inclusive circunstâncias - que, aliás, se homens que determina seu ser, mas, ao contrário, é o
verificam bastante frequentemente - nas quais o seu ser social que determina sua consciência”.
raciocínio perde seu aspecto orientado para o futuro, Pois bem, a sociologia do conhecimento assume
tornando-se até obstáculo para o progresso. e modifica criticamente essa conhecida afirmação de
Marx, no sentido de que, sem negar que exista a
3.6 KARL MANNHEIM influência da sociedade sobre o pensamento, a
sociologia do conhecimento considera que essa
Concepção parcial e total da ideologia influência não é determinação, e sim condicionamento.
Para Mannheim, o marxismo viu claramente
Aqui, delinearemos os traços de fundo das que por trás de toda doutrina se encerra a consciência
teorias de Karl Mannheim (1893-1947), o pensador que, de uma classe. Esse pensamento coletivo, que procede
mais do que qualquer outro, contribuiu (com seu de acordo com determinados interesses e situações
trabalho Ideologia e utopia, 1929) para a proposição dos sociais, Marx o chamou de ideologia.
problemas típicos da sociologia do conhecimento. Em Marx, a ideologia é um pensamento
A sociologia do conhecimento ou sociologia do subvertido (não são as ideias que dão sentido a
saber estuda os condicionamentos sociais do saber, realidade, mas sim a realidade social que determina as
“procurando analisar a relação entre conhecimento e ideias morais, religiosas, filosóficas etc.) e distorcido (o
existência”. burguês, por exemplo, propõe suas ideias como
O fato de pertencer a determinada classe, como, universalmente validas, embora elas sejam somente a
por exemplo, a classe burguesa ou proletária, implica o defesa de interesses particulares), que tende a justificar
que para as ideias morais, religiosas, políticas, e manter uma situação de fato.
econômicas, ou para o próprio modo de fazer ciência É a partir da concepção marxista de ideologia
de quem a ela pertence? E como são condicionadas as que Mannheim começa a tecer a rede de seus conceitos.
produções mentais de quem pertence a uma Igreja, a Antes de mais nada, ele distingue entre concepção
uma camada social, a um partido ou a uma geração em particular da ideologia e concepção total. Escreve
função dessa participação? Na realidade, escreve Mannheim que, “na primeira, incluímos todos aqueles
Mannheim, “há aspectos do pensar que não podem ser
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casos em que a ‘falsidade’ deve-se a um elemento que, invalidar a concepção burguesa do mundo não porque
intencional ou não, consciente ou inconsciente, ela seja um “engano político deliberado”, e sim porque
permanece em nível psicológico e não supera o plano determinada por uma situação social precisa. A
da simples mentira”. cosmovisão burguesa é filha direta de uma situação
Nessa concepção particular de ideologia, nos histórica e social. Mas, se o condicionamento social vale
referimos sempre a afirmações especificas que podem para o pensamento burguês, pergunta-se Mannheim,
ser vistas como deformações e falsificações, sem que não valerá também para o pensamento marxista?
por isso fique comprometida a integridade da estrutura Escreve Mannheim: “Pode-se mostrar
mental do sujeito. facilmente que aqueles que pensam em termos
Mas a sociologia do conhecimento socialistas e comunistas só identificam o elemento
problematiza precisamente essa estrutura mental em ideológico nas ideias de seus adversários, ao passo que
sua totalidade, tal como ela aparece nas diversas consideram suas próprias ideias como inteiramente
correntes de pensamento e nos vários grupos histórico- livres da deformação ideológica. Como sociólogos, não
sociais. Em outros termos, a sociologia do saber não temos nenhuma razão para deixar de aplicar ao
critica as simples afirmações que camuflam situações marxismo o que ele próprio descobriu, e para não
particulares; ao contrário, ela muito mais “as examina identificar, caso por caso, seu caráter ideológico”. E
em plano estrutural ou noológico, que não se apresenta precisamente quando alguém “tem a coragem de
de modo algum igual em todos os homens, mas é tal submeter não só o ponto de vista do adversário, mas
que a mesma realidade assume diversas formas e qualquer ponto de vista, inclusive o seu próprio, a
aspectos no curso do desenvolvimento social. análise ideológica, então se passa da crítica da ideologia à
sociologia do conhecimento propriamente dita. Sociologia do
conhecimento que realiza também outra distinção: a
distinção entre ideologia e utopia.

A concepção particular da ideologia mantém


suas analises “em nível puramente psicológico”,
enquanto a concepção total da ideologia refere-se à
ideologia de uma época ou de um grupo histórico-
social, como uma classe. A concepção total chama em
causa toda a cosmovisão da oposição (inclusive todo o
seu instrumento conceitual), compreendendo tais
conceitos como produto da vida coletiva de que Por ideologia, diz Mannheim, entendem-se “as
participa. Desmascaramos a ideologia parcial quando, convicções e ideias dos grupos dominantes, os fatores
por exemplo, dizemos ao adversário que essa sua ideia inconscientes de certos grupos que ocultam o estado
é somente uma defesa do seu posto de trabalho ou deste real da sociedade para si e para outros, exercendo,
ou daquele privilégio social, e estou descobrindo uma portanto, sobre ele função conservadora”.
ideologia total quando constato correspondência entre Já o conceito de utopia mostra uma segunda e
uma situação social e determinada perspectiva ou inteiramente oposta descoberta: “Existem grupos
consciência coletiva. subordinados tão fortemente empenhados na
transformação de determinada condição social, que só
O marxismo é “ideológico”? A distinção entre conseguem perceber na realidade os elementos que eles
ideologia e utopia tendem a negar. Seu pensamento é incapaz de um
diagnóstico correto da sociedade presente”.
Marx utilizou unilateralmente a descoberta do O pensamento de tais grupos nunca constitui
condicionamento social do pensamento. Ele procurou uma visão objetiva da situação, podendo ser usado

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somente como diretriz para a ação. É pensamento que conhecimento (ou seja, o condicionamento social do
dá as costas a tudo o que poderia ameaçar sua convicção pensamento) não leva necessariamente ao relativismo?
profunda ou paralisar seu desejo de revolução. São problemas que não podem ser evitados. E
Portanto, enquanto a ideologia é o pensamento Mannheim os enfrenta e tenta resolvê-los com sua
conservador que se ergue em defesa dos interesses teoria da intellighentzia e, vinculada a ela, a teoria do
adquiridos, a utopia é o pensamento voltado a destruir a relacionismo.
ordem existente. Assim, para Mannheim, a utopia é um O pensamento é socialmente condicionado, diz
projeto realizável; trata-se de uma “verdade prematura”. Mannheim, mas, consciente dos condicionamentos do
De tais utopias, também elas obviamente seu pensamento e dos condicionamentos das outras
condicionadas socialmente, Mannheim analisa quatro concepções do mundo, o intelectual, precisamente com
formas: base nesta sua consciência, conseguiria se desvincular
1) o quiliasmo orgiástico dos anabatistas; do condicionamento social.
2) o ideal liberal-humanitário que guiou o Em suma, na sua opinião, a intellighentzia seria
movimento da Revolução Francesa; um grupo relativamente independente daqueles
3) o ideal conservador; interesses sociais que interferem nas concepções de
4) a utopia socialista-comunista. mundo dos outros grupos, limitando-as. Em suma,
A ideologia é o pensamento da classe conscientes dos laços entre as diversas cosmovisões e a
“superior”, que detém o poder e procura não perdê-lo; existência social, os intelectuais estariam em condições
a utopia é o pensamento da classe “inferior”, que visa de chegar a “uma síntese das virias perspectivas” e,
libertar-se das opressões e tomar o poder. portanto, a uma visão mais objetiva da realidade. Daí a
teoria do relacionismo.
O “relacionamento” evita o “relativismo” Escreve Mannheim: “A sociologia do
conhecimento submete consciente e sistematicamente
Se o pensamento é socialmente condicionado, todo fenômeno intelectual, sem exceção, à pergunta:
então também a sociologia do conhecimento deve ser em relação a que estrutura social tais fenômenos
socialmente condicionada. E Mannheim está pronto a nascem e são válidos? A referência das ideias individuais
reconhecer esse condicionamento. Podemos a toda a estrutura histórico-social não deveria ser
identificar, com relativa precisão, as condições que confundida com um relativismo filosófico, que nega a
impelem as pessoas a refletir mais sobre o pensamento validade de todo modelo e a existência de uma ordem
do que sobre as coisas do mundo e mostrar que, nesse no mundo. Assim como o fato de que toda medida no
caso, não se faz tanta questão de uma verdade absoluta, espaço depende da natureza da luz não significa que
e sim muito mais do fato, em si mesmo alarmante, da nossas medidas sejam arbitrárias, e sim que elas são
mesma realidade que se apresenta diversamente para válidas em relação à luz, da mesma forma é o
diferentes observadores. relacionismo que se aplica às nossas discussões, e não o
Mannheim vê na base da gênese da sociologia relativismo e a arbitrariedade a ele implícita. O
do conhecimento “a intensificação da mobilidade relacionismo não significa que faltem critérios de
social”. Trata-se de uma mobilidade vertical e verdade na discussão. Segundo ele, entretanto, é
horizontal: a horizontal é “o movimento de uma próprio da natureza de certas afirmações o não
posição a outra ou de um lugar a outro, sem que ocorra poderem ser formuladas em absoluto, mas somente nos
mudança no estado social”; a vertical, ao contrário, termos da perspectiva posta por determinada situação”.
consiste em “rápido movimento entre as diversas Ora, considerando precisamente o exemplo
camadas, no sentido de ascensão ou de declínio social”. escolhido por Mannheim, podemos logo ver que há
Um e outro tipo de mobilidade contribuem para uma diferença abissal entre a relatividade dos
tornar as pessoas incertas em relação a sua concepção conhecimentos fornecidos pelas ciências naturais e o
do mundo e a destruir a ilusão, dominante nas relativismo das várias perspectivas em que,
sociedades estáticas, de que “tudo pode mudar, mas o habitualmente, se faz caminhar a sociologia do
pensamento permanece eternamente o mesmo”. Aí, conhecimento. Todo conhecimento cientifico é relativo
portanto, está a raiz social da sociologia do a época em que é proposto e provado: depende do
conhecimento: a dissolução das sociedades estáveis. saber anterior, dos instrumentos disponíveis na época
Chegando-se a esse ponto, resta enfrentar o etc. Entretanto, quando respeitadas as condições do
principal problema da sociologia do conhecimento. método cientifico, as teorias cientificas são universais e
Com efeito, se todo pensamento é socialmente válidas para todos, ainda que desmentíeis em período
condicionado, e se toda concepção do mundo é relativa posterior.
à condição social de seu portador, então onde está a O trabalho de Mannheim levantou toda uma
verdade? Não há mais nenhum critério para distinguir série de problemas, sobre os quais trabalharia
concepções verdadeiras de concepções falsas? O posteriormente a sociologia empírica, tanto européia
pressuposto fundamental da sociologia do como norte-americana.
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4. PRAGMATISMO No ensaio de 1877 A


O pragmatismo é a forma que o empirismo fixação da crença Peirce sustenta
assumiu nos Estados Unidos que os métodos para fixar a
crença são substancialmente
O pragmatismo nasceu nos Estados Unidos nas redutíveis a quatro:
últimas décadas do século passado, e sua força de
expressão, tanto na América quanto na Europa, chegou 1) o método da tenacidade;
a seu ponto máximo nos primeiros quinze anos do 2) o método da autoridade;
século XX. Do ponto de vista sociológico, o 3) o método do a priori;
pragmatismo representa a filosofia de uma nação 4) por fim, o método
voltada com confiança para o futuro, enquanto do científico.
ponto de vista da história das ideias ele se configura
como a contribuição mais significativa dos Estados 1) O método da tenacidade
Unidos à filosofia ocidental. O pragmatismo é a forma é o comportamento do
que o empirismo tradicional assumiu nos Estados avestruz, que esconde a cabeça
Unidos. na areia quando se aproxima o
perigo; é o caminho de quem está seguro somente na
aparência, ao passo que, em seu interior, está
espantosamente inseguro. E tal insegurança emerge
quando ele se defronta com outras crenças, reputadas
igualmente boas por outros. O impulso social, escreve
Peirce, é contra esse método.
2) O método da autoridade é o de quem, com a
ignorância, o terror e a inquisição, quer alcançar a
concordância de quem não pensa igual ou não pensa em
harmonia com o grupo ao qual pertence.
Este é um método que tem incomensurável
Com efeito, enquanto o empirismo tradicional, superioridade mental e moral sobre o método da
de Bacon a Locke, de Berkeley a Hume, considerava tenacidade, e seu sucesso tem sido grande e de fato
válido o conhecimento baseado na experiência e a ela sempre apresentou os mais majestosos resultados; este
redutível - concebendo a experiência como a é o método das fés organizadas. Mas nenhuma de tais
acumulação e organização progressiva de dados fés organizadas permaneceu eterna; na opinião de
sensíveis passados ou presentes -, para o pragmatismo Peirce, a crítica as corroeu e a história as redimensionou
a experiência é abertura para o futuro, é previsão, é e, de qualquer forma, as particularizou.
norma de ação. 3) O método do “a priori” é o de quem considera
Os representantes mais prestigiosos do que suas próprias proposições fundamentais estão de
movimento pragmatista nos Estados Unidos foram: acordo com a razão. Entretanto, observa Peirce, a razão
Charles Peirce, William James e John Dewey. de um filósofo não é a razão de outro filósofo, como o
demonstra a história das ideias metafísicas. O método a
4.1 CHARLES S. PEIRCE E OS priori leva ao insucesso, porque faz da pesquisa algo
PROCEDIMENTOS PARA FIXAR AS semelhante ao desenvolvimento do gosto, visto ser
CRENÇAS método que não difere de modo essencial do método
da autoridade.
Se o pragmatismo de William James teve mais 4) Assim, por um ou outro motivo, os três
sucesso na época, no entanto o pragmatismo de Charles métodos precedentes (da tenacidade, da autoridade e do
S. Peirce (1839-1914) exerceu e ainda em nossos dias a priori) não se sustentam.
exerce influência decididamente mais importante sobre Se quisermos estabelecer validamente as nossas
as pesquisas metodológicas e semiológicas. crenças, segundo Peirce, o método correto é o método
Para Peirce, o conhecimento é pesquisa. E a cientifico.
pesquisa se inicia com a dúvida. E a irritação da dúvida
que causa a luta para se obter o estado de crença, que é Dedução, indução e abdução
um estado de calma e satisfação. E nós procuramos
obter crenças, já que são esses hábitos que determinam Ora, na ciência, temos três diferentes modos
as nossas ações. fundamentais de raciocínio:
Pois bem, por quais caminhos ou a) a dedução;
procedimentos se passa da dúvida à crença? b) a indução; e aquela que Peirce chama de
c) abdução.
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a) A dedução é o raciocínio que não pode levar 4.2 O EMPIRISMO RADICAL DE WILLIAM
de premissas verdadeiras a conclusões falsas. JAMES
b) A indução é argumentação que, a partir do
conhecimento de que certos membros de uma classe, O pragmatismo é apenas um método
escolhidos ao acaso, possuem certas propriedades,
conclui que todos os membros da mesma classe Apesar de James (1842-1910) ser laureado em
igualmente as terão. A indução, diz Peirce, move-se na medicina e ter ensinado fisiologia e anatomia em
linha de fatos homogêneos; classifica e não explica. Harvard, foi ele quem lançou o pragmatismo como
C) O salto da linha dos fatos para a das suas filosofia em 1898. O pragmatismo de fato foi recebido
razões, ao contrário, temos com o tipo de raciocínio que e conhecido pelo público mais amplo nas concepções
Peirce chama de abdução, cujo esquema é o seguinte: propostas por James. Foi sob a sua liderança que o
1. Observa-se C, um fato surpreendente. pragmatismo se tornou conhecido no mundo. Com ele
2. Mas, se A fosse verdadeiro, então C seria temos a versão moral e religiosa do pragmatismo.
natural.
3. Portanto, há razões para suspeitar que A seja
verdadeiro.
Esse tipo de argumentação nos diz que, para
encontrar a explicação de um fato problemático,
devemos inventar uma hipótese ou conjectura, da qual
se deduzam consequências, que, por seu turno, possam
ser verificadas indutivamente, isto é,
experimentalmente.
Esse é o modo pelo qual a abdução mostra-se
intimamente relacionada com a dedução e a indução.
Por outro lado, a abdução mostra que as crenças
cientificas são sempre falíveis, já que as provas
experimentais sempre poderão desmentir as
consequências de nossas conjecturas: “Para a mente
cientifica, a hipótese deve ser o tempo todo provada”.

Como tornar clara as nossas ideias: a regra


pragmática

O método válido para fixar as crenças, portanto, Afirma James: “O pragmatismo é apenas
é o método cientifico, que consiste em formular método” que se configura, em primeiro lugar, como
hipóteses e submetê-las à verificação, com base em suas uma atitude de pesquisa, como “a disposição de afastar
consequências. Por outro lado, a regra válida para a o olhar das coisas primeiras, dos princípios, das
teoria do significado, isto é, a regra adequada para ‘categorias’, das pretensas necessidades e, ao contrário,
estabelecer o significado de um conceito, é a regra voltar os olhos para as coisas ultimas, os resultados, as
pragmática, segundo a qual um conceito se reduz a seus consequências, os fatos”.
efeitos experimentais concebíveis; estes efeitos O pragmatismo é método para alcançar a
experimentais se reduzem, por sua vez, a ações clareza das ideias que temos dos objetos. E esse método
possíveis (ou seja, a ações efetuáveis no momento em nos impõe “considerar quais efeitos práticos
que se apresentar a ocasião); e a ação se refere concebíveis essa ideia pode implicar, quais sensações
exclusivamente a aquilo que atinge os sentidos. podemos esperar e quais reações devemos preparar.
Do que foi dito torna-se evidente que o Nossa concepção desses efeitos, tanto imediata como
pragmatismo de Peirce não reduz de modo algum a remota, é então toda a concepção que temos do objeto,
verdade à utilidade, mas se estrutura muito mais como enquanto ela tiver significado positivo”.
uma lógica da pesquisa ou uma norma metodológica
que vê a verdade como por fazer, no sentido de A verdade de uma ideia se reduz a sua capacidade
considerar verdadeiras as ideias cujos efeitos de “operar”
concebíveis são comprovados pelo sucesso prático,
sucesso jamais definitivo e absoluto. A verdade, escreve A este ponto, parece que as ideias de James
Peirce, jaz no futuro. sobre o pragmatismo (expostas no ensaio Pragmatismo,
de 1907) não diferem das de Peirce. No entanto, as
coisas não são bem assim: para James, as ideias (que são

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parte da nossa experiência) tornam-se verdadeiras a que se expressa como energia seletiva já no ato
medida que nos ajudam a obter relações satisfat6ria elementar da sensação.
com as outras partes de nossa experiência, e a resumi- Por isso tudo, a velha noção de alma já não
las por meio de esquemas conceituais. servia para James. Mas ele também criticava os
Uma ideia é verdadeira quando nos permite associacionistas, que reduziam a vida psíquica a
andar adiante e leva-nos de uma parte a outra de nossa combinação das sensações elementares, e criticava os
experiência, ligando as coisas de modo satisfatório, materialistas, com sua pretensão de identificar os
operando com segurança, simplificando, fenômenos psíquicos com os movimentos da matéria
economizando esforços. cerebral.
Esta, diz ainda James, “é a concepção A consciência se apresenta para James como
‘instrumental’ da verdade, ensinada com tanto sucesso corrente contínua: ele fala de uma corrente de
em Chicago, a concepção tão brilhantemente difundida pensamento. E a única unidade que se pode detectar na
em Oxford: a veracidade de nossas ideias significa sua corrente de pensamento é aquela pela qual o
capacidade de ‘operar’”. Desse modo, a veracidade das pensamento difere em cada momento do momento
ideias era identificada com sua capacidade de operar, anterior, apropriando-o juntamente com tudo o que
com sua utilidade, tendo em vista a melhoria ou a tornar este último chama de seu. A “experiência pura” aparece
menos precária a condição vital do indivíduo. para ele como “o imenso fluxo vital que fornece o
Além disso, para James “a verdade de uma ideia material para a nossa reflexão ulterior”. Para James, a
não está em sua estagnante propriedade”. relação sujeito-objeto é derivada.
Há um processo de verificação que torna Conceber a mente como instrumento de
verdadeira uma ideia. “Uma ideia torna-se verdadeira, é adaptação ao ambiente foi a ideia que levou James a
tornada verdadeira pelos acontecimentos. Sua ampliação do objeto de estudo da psicologia: esse
veracidade é de fato acontecimento, processo: mais objeto não diria mais respeito somente aos fenômenos
exatamente, o processo de seu verificar-se, sua perceptivos e intelectivos, e sim também aos
verificação. As ideias verdadeiras, segundo James, “são condicionamentos sociais ou fenômenos como os
as que podemos assimilar, ratificar, confirmar e concernentes ao hipnotismo, a dissociação ou ao
verificar. E falsas são aquelas em relação as quais não subconsciente. James apenas realizou análises refinadas
podemos fazer o mesmo”. e críticas agudas sobre esses temas, mas também
As ideias ou teorias verdadeiras, para James, são prenunciou muitas doutrinas que depois seriam
aproximações melhores do que as ideias anteriores, desenvolvidas pelo comportamentalismo, pela
resolvendo os problemas de modo mais satisfatório. E psicologia da Gestalt e pela psicanálise.
“a posse da verdade, longe de ser fim, é apenas meio
para outras satisfações vitais”. A questão moral: como escolher entre ideias
contrastantes
Os princípios da psicologia e os instrumentos da
adaptação Presente em diversos escritos de James, a
questão ética é enfrentada explicitamente em dois
Em 1890, James publicou os dois volumes que escritos fundamentais para sua concepção pragmática:
constituem os Princípios de psicologia. O filósofo moral e a vida moral (1891), e A vontade de crer
James considera que uma fórmula que prestou (1897). Neste último ensaio, James levanta questões
amplos serviços à psicologia foi a fórmula spenceriana, como a dos valores, que não podem ser decididas
segundo a qual “a essência da vida mental e a essência recorrendo às experiências sensíveis. As questões
da vida corporal são idênticas, ou seja, ‘a adaptação das morais, antes de tudo, não são tais que sua solução
relações internas as externas’ ”. Essa formula pode ser possa esperar prova sensível. Com efeito, uma questão
considerada a encarnação da generalidade – comenta moral não é uma questão do que existe, mas daquilo que
James - mas, “como considera o fato de que as mentes é bom ou seria bom que existisse.
vivem em ambientes que agem sobre elas e sobre as A ciência pode nos dizer o que existe ou não
quais elas por seu turno reagem, já que, em suma, ela existe. Mas, para as questões mais urgentes, devemos
põe a mente no concreto de suas relações, tal formula é consultar as “razões do coração”. Há decisões que todo
imensamente mais fértil do que a velha ‘psicologia homem não pode deixar de tomar, dizem respeito ao
racional’, que considerava a alma como coisa separada sentido último da vida, ao problema da liberdade
e autossuficiente, e pretendia estudar somente sua humana ou de sua falta, da dependência ou não no
natureza e prioridade”. mundo em relação a uma inteligência ordenadora e
Na realidade, James faz da mente um regente, da unidade monística ou não do mundo todas
instrumento dinâmico e funcional para a adaptação questões teoricamente insolúveis, que só se podem
ambiental. A vida psíquica caracteriza-se por finalismo enfrentar mediante escolha pragmática.

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Voltemos, porém, aos valores. Os fatos físicos 4.3 O INSTRUMENTALISMO DE JOHN


existem ou não existem e, enquanto tais, não são bons DEWEY
nem maus. O ser melhor não é relação física. A
realidade é que o bem e o mal só existem em referência A experiência não se reduz à consciência nem ao
ao fato de que satisfazem ou não às exigências dos conhecimento
indivíduos. Refletindo variedade enorme de
necessidades e impulsos diversos, essas exigências A filosofia de John Dewey (1859-1952), que foi
geram um universo de valores frequentemente em o mais significativo filósofo americano do século XX,
contraste. foi definida como “naturalismo”. É uma filosofia que
Então, como unificar e hierarquizar tais ideais, se move no leito do pragmatismo e se situa no quadro
variados e muitas vezes contrastantes? da tradição empirista.
A resposta de James a essa pergunta crucial é
que se devem preferir os ideais que, se realizados,
impliquem a destruição do menor número de outros
ideais e o universo mais rico de possibilidades.
Naturalmente, tal universo não é dado de fato, não é
absolutamente garantido, e se propõe como simples
norma que caracteriza a vontade moral enquanto tal.

A variedade da experiência religiosa e o universo


pluralista

Outra grande obra de William James é A


Entretanto, Dewey optou por chamar sua
variedade da experiência religiosa (1902), onde o autor
filosofia de instrumentalismo, que, em primeiro lugar,
propõe antes de mais nada uma rica fenomenologia da
experiência religiosa. se diferencia do empirismo clássico quanto ao conceito
fundamental de experiência. A experiência dos
James é contrário aos positivistas, que ligavam a
empiristas clássicos é simplificada, ordenada e
religião a fenômenos degenerativos. O empirista radical
purificada de todos os elementos de desordem e erro,
James não quer que a identificação das riquezas das
experiências humanas seja bloqueada por um juízo de reduzida a estados de consciência claros e distintos.
Dewey, em Experiência e natureza (1925), sustenta
valor qualquer. A vida religiosa é inconfundível; ela põe
que “a experiência não é consciência, e sim história”; ou
os homens em contato com uma ordem invisível e
seja, ela não se reduz a um estado de consciência claro
muda sua existência.
Segundo James, o estado místico é o momento e distinto. A experiência não se reduz tampouco ao
mais intenso da vida religiosa e age como se ampliasse conhecimento, ainda que o próprio conhecimento seja
parte da experiência, seja uma experiência. Ela, de fato,
o campo perceptivo, abrindo-nos possibilidades
inclui os sonhos, a loucura, a doença, a morte, a guerra,
desconhecidas ao controle racional. E a atitude mística
não pode se tornar garantia de uma determinada a confusão, a ambiguidade, a mentira e o horror; inclui
os sistemas transcendentais, e também os sistemas
teologia. Aliás, para James, a experiência mística deve
empíricos; inclui tanto a magia e a superstição como a
ser defendida pela filosofia.
ciência. Inclui tanto a inclinação que impede de
Aqui podemos ver como James passa da
descrição à avaliação da experiência mística, aprender da experiência como a habilidade que tira
partido de seus mais fracos acenos.
considerada como acesso privilegiado, inacessível pelos
Dewey propõe substancialmente a ideia de
meios comuns, ao Deus que potencializa nossas ações
experiência capaz de dar a mesma atenção que se tem
e que é “a alma e a razão interior do universo”, de um
universo pluralista, onde Deus (que não é o mal nem o para aquilo que é “nobre, honroso e verdadeiro”
também para o que, na vida humana, existe de
responsável pelo mal) é concebido como pessoa
“desfavorável, precário, incerto, irracional e odioso”.
espiritual que nos transcende e nos convoca a colaborar
Afirma ele: “Considerando o papel que a antecipação e
com ele.
Um universo pluralista (1909) é uma das últimas a memória da morte desempenharam na vida humana,
da religião às companhias de seguro, o que se pode dizer
obras de James, onde ele tenta libertar a experiência
religiosa da angústia do pecado - angústia arraigada na de uma teoria que define a experiência de tal modo a
ponto de fazer seguir-se logicamente que a morte nunca
tradição puritana da Nova Inglaterra - e onde,
precisamente, Deus é concebido como ser finito. Para seja matéria de experiência?”
Há mais, já que a não identificação entre
James, Deus não é o todo, ele é um Deus-companheiro.
experiência e conhecimento permite a Dewey realizar a
tentativa de solução do problema gnosiológico: com

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efeito, “há duas dimensões das coisas experimentadas; por outras ideias tranquilizadoras, como a imutabilidade
uma é a de tê-las outra é a de conhecê-las para tê-las de do ser, o processo universal, a racionalidade inerente ao
modo mais significativo e seguro”. universo, o universo regido por leis necessárias e
Na realidade, não é fácil conhecer as coisas que universais.
temos ou somos, sejam elas o sonho, o sarampo, a “De Heráclito a Bergson, há muitas filosofias
virtude, uma pena, o vermelho. O problema do ou metafísicas do universo. Somos gratos a essas
conhecimento é o problema de como encontrar o que filosofias, que mantiveram vivo aquilo que as filosofias
é necessário encontrar em torno dessas coisas para clássicas e ortodoxas deixaram de lado. Mas as filosofias
garantir, retificar ou evitar o fato de tê-las ou o de sê- do fluxo normal também indicam a intensidade com
las. que se deseja o que é seguro e estável. Elas deificaram a
Desse modo, para Dewey, enquanto o mudança, tornando-a universal, regular e segura.
ceticismo pode verificar-se (a fim de nos tornar curiosos Considerai o modo completamente laudatório com o
e indagadores) em qualquer momento em relação a qual Hegel, Bergsoe os filósofos evolucionistas do devir
qualquer crença ou conclusão intelectual, no entanto ele consideraram a mudança. Para Hegel, o devir é
é impossível acerca das coisas que nós temos e somos. processo racional que define uma lógica, mesmo nova
Um homem pode duvidar se está com sarampo, porque e estranha, e um absoluto, também este novo e
o sarampo é termo intelectual, classificação, mas não estranho, Deus. Para Spencer, a evolução é somente um
pode duvidar do que tem empiricamente - não, como processo transitório para obter o equilíbrio estável e
se diz, porque está imediatamente certo dele, mas universal de ajustamento harmonioso. Para Bergson, a
porque não é matéria de conhecimento, não é de modo mudança é a operação criadora de Deus ou é o próprio
algum questão intelectual, não é caso de verdade ou Deus”.
falsidade, de certeza ou de dúvida, mas somente de Para Dewey, essas filosofias são filosofias do
existência. medo, hiper-simplificadoras e des-responsabilizadoras.
Elas transformam um elemento da realidade na
Precariedade e risco da existência realidade em seu todo, confinando assim na aparência
(no secundário, errôneo, ilusório etc.) tudo o que não
A experiência é história, história voltada para o se revela compatível com seu respectivo esquema de
futuro, prenhe de futuro. E a filosofia, diferentemente imutabilidade, ordem, racionalidade, necessidade ou
da antropologia cultural, tem a função do perfeição do ser ou da realidade.
desmembramento analítico e da reconstrução sintética Além disso, são des-responsabilizadoras, já que
da experiência. Os fenômenos da cultura, apresentados presumem garantir metafisicamente a ordem, o
pelo antropólogo, constituem o material para o trabalho progresso ou a racionalidade, que, ao contrário,
do filósofo. constituem a tarefa fundamental da condução
Pois bem, uma característica da existência que inteligente da vida humana.
os fenômenos culturais põem em relevo é o seu caráter Em suma, para Dewey, é preciso ter a coragem
precário e arriscado. de denunciar a falência filosófica de metafísicas
Diz Dewev: “O homem vive em mundo consoladoras e ilusórias, que iludem precisamente a
aleatório; para dizê-lo cruamente, sua existência implica respeito da permanência estável de bens e valores, posse
o acaso. O mundo é o palco do risco: é incerto, instável, exclusiva de uma camada privilegiada. São metafísicas
terrivelmente instável”. Claro, seria fácil e confortante que aparentemente repelem a irracionalidade, a
insistir na boa sorte e nas alegrias inesperadas. desordem, o mal, o erro, coisas que não são aparências,
A comédia é tão genuína quanto a tragédia. Mas, e sim realidades que precisamos dominar e controlar,
observa Dewey, é sabido que "a comédia atinge uma embora com a consciência de que a existência
nota mais superficial que a tragédia. E o homem teme permanece, sempre e de qualquer modo, precária e
porque vive em um mundo temível, em um mundo que cheia de riscos.
dá medo. O próprio mundo é precário e perigoso: “Não
foi o temor em relação aos deuses que criou os deuses”. A teoria da pesquisa
O homem vive neste mundo: a natureza não
existe sem homem nem o homem existe sem a natureza. A luta para enfrentar o mundo e a existência tão
O homem está imerso na natureza. E, no entanto, ele é difíceis exige comportamentos e operações humanas
uma natureza capaz de, e destinada a, mudar a própria inteligentes e responsáveis. É aí que se inserem o
natureza e dar-lhe significado. instrumentalismo e a teoria da pesquisa.
É precisamente para se garantir contra a Segundo a maior parte dos sistemas filosóficos
instabilidade e a precariedade da existência o homem, tradicionais, a verdade é estática e definitiva, absoluta e
primeiro, recorreu a forças mágicas e construiu mitos eterna. Dewey, porém, não pensa assim. Dado seu
que, depois de terem caído, logo procurou substituir interesse pela biologia, ele vê o pensamento como

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processo de evolução; segundo ele, o conhecimento é Senso comum e pesquisa científica: as ideias como
processo chamado pesquisa, que, no fundo, consiste em instrumentos
uma forma de adaptação ao ambiente. O conhecimento
é prática que tem êxito. Êxito no sentido de que resolve A inteligência, portanto, é constitutivamente
os problemas postos pelo ambiente (entendendo este operativa. A razão não é meramente contemplativa: é
no sentido mais amplo). força ativa chamada a transformar o mundo em
Em sua grande obra Lógica: teoria da investigação conformidade com objetivos humanos.
(1938) Dewey sustenta que a função do pensamento A contemplação, sem dúvida, é ela própria uma
reflexivo é a de transformar uma situação na qual se tem experiência, mas, para Dewey, ela constitui a parte final,
experiências caracterizadas por obscuridade, dúvida, na qual o homem desfruta do espetáculo de seus
conflito, em suma, experiências perturbadas, em uma processos. O processo cognoscitivo não é
situação que seja clara, coerente, ordenada e contemplação, e sim participação nas vicissitudes de um
harmoniosa. mundo que deve ser mudado e reorganizado sem
Em poucas palavras, a investigação parte dos descanso.
problemas, isto é, de situações que implicam incerteza, Dewey comenta que o método experimental é
perturbação, dúvida e obscuridade. E Dewey se novo como recurso cientifico ou como meio
declarava desconcertado diante do fato de que pessoas sistematizado de criar o conhecimento e de garantir que
sistematicamente empenhadas nas investigações sobre seja conhecimento; entretanto, “como expediente
questões e problemas (como certamente são os prático, ele é tão antigo quanto a própria vida”. E é
filósofos) sejam tão pouco curiosas acerca da existência precisamente por essa razão que Dewey insiste na
e da natureza dos problemas. continuidade entre conhecimento comum e
Situações desse tipo, isto é, de dúvida e conhecimento cientifico.
obscuridade, tornam-se problemáticas quando se No escrito A unidade da ciência como problema social
tornam objeto de pesquisa, no sentido de que seja (1938), ele diz que a ciência, em sentido especializado, é
possível avançar alguma tentativa de solução, ainda que a elaboração de operações cotidianas, ainda que essa
vaga, já que caso contrário se teria o caos, e de que seja elaboração assuma frequentemente caráter muito
possível intelectualizar essa vaga sugestão, formulando técnico. E, ainda na Lógica, Dewey reafirma o fato de
o problema dentro de uma ideia que consista em que “a ciência tem seu ponto de partida necessário nos
antecipação ou previsões do que pode acontecer. objetos qualitativos, nos processos e nos instrumentos
A ideia proposta desenvolve-se em seus do senso comum, que é o mundo do uso, da fruição e
significados pelo raciocínio, que identifica as dos sofrimentos concretos”.
consequências da ideia, pondo-a em relação com o Depois, porém, pouco a pouco, através de
sistema das outras ideias e esclarecendo-a assim em seus processos mais ou menos tortuosos e inicialmente
aspectos mais diversos. A solução do problema, desprovidos de uma linha diretriz, formam-se e são
inserida e antecipada na ideia que depois foi transmitidos determinados procedimentos e
desenvolvida pelo raciocínio, dirige e articula o instrumentos técnicos.
experimento. E será precisamente o experimento que Vão sendo reunidas informações sobre as
dirá se a solução proposta deve ser aceita ou rejeitada coisas, sobre suas propriedades e seus
ou, ainda, corrigida, a fim de dar conta dos fatos comportamentos, independentemente de cada
problemáticos. aplicação imediata particular. Vamo-nos afastando
A propósito dos fatos, diferentemente do sempre mais das situações originarias de uso e fruição
antigo empirismo, Dewey observa que eles não são imediatos.
puros dados, pois não existem dados em si. Nada Não se ganha muito mantendo o próprio
constitui um dado senão em relação com uma ideia ou pensamento ligado ao tronco do uso com uma corrente
com um plano operativo que possa ser formulado em muito curta, sentencia Dewey. O importante é que,
termos simbólicos, desde os da linguagem comum até como quer que seja, o pensamento, isto é, as ideias,
os mais precisos e específicos da matemática, da física estejam ligadas à prática, porque as ideias – tanto
ou da química. lógicas como científicas - estão sempre em função de
Em suma, Dewey é da opinião de que tanto as problemas reais, ainda que abstratos, e porque é sempre
ideias como os fatos são de natureza operacional. As a prática que decide do valor de urna ideia.
ideias são operacionais porque não são mais que E as ideias são exatamente instrumentos em
propostas e planos de operação e intervenção sobre as nossa investigação. São instrumentos para resolver os
condições existentes; e os fatos são operacionais no problemas e para enfrentar um mundo ameaçador e
sentido de que são resultados de operações de uma existência precária. E, por serem instrumentos, há
organização e de escolha. muito pouco sentido em pregar a veracidade ou a
falsidade deles. As ideias são instrumentos que podem

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ser eficazes, relevantes ou não, danosos ou econômicos, objetivo da filosofia educar os homens a refletir sobre
mas não verdadeiros ou falsos. E o juízo final que se dá os valores humanos mais elevados, da mesma forma
em todo processo de pesquisa nada mais é do que uma como eles aprenderam a refletir sobre aquelas questões
“afirmação garantida”. que se inserem no âmbito da técnica.
Eis, portanto, o significado genuíno do Há, sem dúvida, o problema da determinação
instrumentalismo de Dewey: a verdade não é mais dos fins. Escreveu Dewey: “A ciência é indiferente ao
adequação do pensamento ao ser, mas se identifica fato de suas descobertas serem utilizadas para curar as
muito mais com “o poder comprovado de guia” de uma doenças ou difundi-las, para acrescer os meios para a
ideia e, em última análise, com “o corpo sempre promoção da vida ou para fabricar material bélico a fim
crescente das afirmações garantidas”, devendo-se ter de aniquila-la”. Por vezes, Dewey parece indicar como
em vista que essa garantia não é absoluta nem eterna, já fim último da vida dos homens um reino de Deus visto
que os resultados da pesquisa científica, bem como de como justiça, amor e verdade. Entretanto, é preciso
toda operação humana, são continuamente corrigíveis e insistir em um ponto de capital importância no
aperfeiçoáveis em relação às novas e cambiantes pensamento de Dewey: trata-se da não possibilidade de
situações em que o homem virá a se encontrar em sua distinguir entre meios e fins.
história. Para Dewey todo fim é também meio e todo
meio para atingir um fim é desfrutado ou percebido
A teoria dos valores também como fim. A atividade que produz meios e a
atividade que inventa e consuma os fins estão
Se as ideias comprovam seu valor na luta com intimamente ligadas uma a outra. O fim alcançado é
os problemas reais, e se cada indivíduo tem o direito- meio para outros fins. E a avaliação dos meios é
dever de dar sua contribuição à elaboração de ideias fundamental para todo fim real e genuíno, que não
capazes de guiar positivamente a ação humana, então queira ser vã fantasia, ainda que nobre e sugestiva. E as
está claro que as ideias morais, os dogmas políticos ou coisas que parecem fins são, com efeito, unicamente
os preconceitos do costume também não se revestem previsões ou antecipações do que pode ser levado a
de autoridade especial. Também eles devem ser existência em determinadas condições. Por isso, em
submetidos à verificação de suas consequências na Teoria da avaliação (1939), Dewey escreve que não existe
prática e devem ser responsavelmente aceitos, problema de avaliação fora da relação entre meios e
rejeitados ou mudados com base na análise de seus fins, o que vale não somente na ética, mas também na
efeitos. arte, onde a criação dos valores estéticos (a arte é
Dewey é relativista, não considera possível natureza transformada e não existe distinção entre
fundamentar valores absolutos. Os valores são belas-artes e artes úteis) requer a utilização de meios
históricos e a tarefa do filósofo é a de examinar as adequados.
“condições generativas” (isto é, as instituições e os
costumes ligados a estes valores) e de avaliar sua A teoria da democracia
funcionalidade na perspectiva de uma renovação, em
relação às necessidades que pouco a pouco irrompem Dewey é um relativista pelo fato de que, em sua
da vida associada dos homens. opinião, não existem métodos racionais para a
Existem valores de fato, isto é, bens determinação dos fins últimos. Por isso ele é
imediatamente desejados, e valores de direito, isto é, decididamente contrário aos filósofos utópicos que,
bens razoavelmente desejáveis. projetando suas visões ideais, não se preocuparam em
É precisamente função da filosofia e da ética dedicar uma investigação acurada aos meios necessários
promover a contínua revisão crítica, voltada para a para sua realização, e sequer em avaliar atentamente sua
conservação e o enriquecimento dos valores de direito. E desejabilidade moral efetiva.
está claro que, na perspectiva de Dewey, sequer estes A utopia gera normalmente o ceticismo ou o
últimos podem ter a pretensão de dignidade meta- fanatismo. O que é necessário, segundo Dewey, é
histórica, já que todo sistema ético é relativo ao meio propor metas concretas e descer dos fins remotos para
em que se formou e se tornou funcional. os mais próximos, realizáveis em condições históricas
A ética de Dewey é histórica e social: como na efetivas. Portanto, ele projeta o operar contínuo tendo
teoria da pesquisa, nela também desponta aquele em vista maior consciência e maior liberdade, no
sentido de interdependência e de unidade inter-relativa sentido de que a liberdade conquistada hoje cria
dos fenômenos, que se explicitará no conceito de situações graças às quais haveria mais liberdade amanhã,
interação entre indivíduo e meio físico e social. Assim, e no sentido de que minha liberdade faz crescer a dos
os valores também são fatos tipicamente humanos: são outros.
planos de ação, tentativas de resolver problemas que Consequentemente, Dewey é avesso à
brotam da vida associada dos homens. E constitui sociedade totalitária e convicto defensor da sociedade

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democrática. Para ele, a pressuposição de um fim Richard Rorty nasceu em New York em 1931.
absoluto dificulta a discussão, ao passo que a Estudou na Universidade de Chicago e na de Yale.
democracia representa discussão inteiramente livre. É “Dewey - disse ele – foi sem dúvida a figura mais
método que permite discutir toda finalidade, é debate influente durante toda a minha juventude; chamavam-
sem fim, é colaboração, é participação em finalidades no de filósofo da democracia, do New Deal, dos
conjuntas. intelectuais socialistas americanos: para quem quer que
A democracia é aquele modo de vida em que tenha frequentado uma universidade americana antes
todas as pessoas maduras participam da formação dos dos anos cinquenta, era impossível não percebe-lo”.
valores que regem a vida dos homens associados, modo E ainda: “Minha formação foi principalmente
de vida que é necessário tanto do ponto de vista do bem histórica. O encontro com a filosofia analítica ocorreu
social como da ética do desenvolvimento pleno dos em Princeton, quando eu já ensinava, e foi um
seres humanos como indivíduos. momento verdadeiramente intenso. Quando as ótimas
Em Liberalismo e ação social (1935), Dewey afirma obras de Wittgenstein mal estavam para serem
que o problema da democracia se torna o problema assimiladas”.
daquela forma de organização social que se estende a Foi justamente a leitura do “segundo”
todo campo e a todo caminho da vida, pelo qual as Wittgenstein que persuadiu Rorty a tomar distância do
forças individuais não deveriam ser simplesmente pensamento analítico dominante nos Estados Unidos.
libertadas de constrições mecânicas externas, mas Este pensamento - dirá Rorty - profissionalizou a
deveriam ser alimentadas, sustentadas e dirigidas. filosofia, reduziu-a a uma disciplina acadêmica que se
Com base nisso tudo, pode-se compreender a resolve na pesquisa obsessiva dos fundamentos do
aversão de Dewey pela sociedade planejada. O que ele conhecimento objetivo, tirou da filosofia toda
almeja e defende é a sociedade que se planeja dimensão histórica, arrancou-a dos problemas da vida.
constantemente a partir de seu interior, atenta, Auxiliado também pelas críticas internas ao
portanto, ao controle social mais amplo e articulado dos movimento analítico, Rorty se convenceu do
resultados. A diferença existente entre a sociedade esgotamento intrínseco da filosofia analítica (ou pós-
planejada, e a sociedade que se planeja filosófica, no sentido de estar distante da filosofia
constantemente é definida por Dewey nos termos tradicional) des-disciplinarizada e de andamento
seguintes: “A primeira requer desígnios finais impostos discursivo, à qual não cabe mais o papel de mãe ou de
de cima e que, portanto, se baseiam na força, física e rainha da ciência, sempre em busca de um vocabulário
psicológica, para fazer com que nos conformemos a definitivo e imortal sobre a base do qual sintetizar ou
eles. A segunda significa libertar a inteligência mediante descartar os resultados de outras esferas de atividade.
a forma mais vasta de intercâmbio cooperativo”. A filosofia pós-analítica, de preferência, se
Ligada à teoria da investigação, a teoria dos democratiza na forma de uma “crítica da cultura” que a
valores e a teoria da democracia de Dewey encontra-se vê transformada em uma disciplina entre as outras,
sua teoria da educação, entendida como reconstrução e fundada sobre critérios histórica e socialmente
reorganização continua da experiência, visando a contextuais, e preposta ao estudo comparado das
aumentar a consciência dos vínculos entre as atividades vantagens e das desvantagens das diversas visões do
presentes, passadas e futuras, nossas e alheias, e mundo.
aumentar a capacidade dos indivíduos para dirigir o A filosofia e o espelho da natureza (1979) foi o livro
curso da experiência futura. que no plano internacional tornou Rorty conhecido
como fundador do neopragmatismo. Em 1980 aparece
5. NEOPRAGMATISMO - RICHARD RORTY Consequências do pragmatismo. De 1989 é Contingência, ironia
e solidariedade, livro que se ocupa de questões éticas e
filosóficas.
Segundo Rorty, os ensaios coletados nesse livro
representam tentativas de delinear as consequências de
uma teoria pragmatista da verdade. E ainda: “Os
pragmatistas pensam que a tradição platônica tenha
esgotado a própria função. Os pragmatistas sustentam
que a maior aspiração da filosofia é a de não praticar a
filosofia. Não consideram que pensar na verdade sirva
para dizer algo de verdadeiro, nem que pensar no bem
sirva para agir do melhor dos modos, nem que pensar
na racionalidade sirva para ser racionais”.

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Dois mitos da tradição filosófica que confirma ou rejeita a pretensão da cultura restante.
O volume A filosofia e o espelho da natureza A filosofia, praticada como disciplina fundacional que
consiste na tentativa de desengonçar a pretensão garante a certeza dos fundamentos do conhecimento,
fundante da filosofia tradicional. foi consolidada pelos neokantianos. E no século XX,
Escreve Rorty, “Em geral os filósofos ainda segundo nosso filósofo, ela foi reproposta por
consideram sua disciplina como uma discussão de filósofos como Russell e Husserl que se propuseram a
problemas perenes, eternos. Alguns destes referem-se a mantê-la “rigorosa” e “cientifica”.
diferença entre seres humanos e os outros seres, e se No seu entendimento, o gênero de filosofia que
concentram nas questões que se referem a relação entre descende de Russell, justamente como a fenomenologia
mente e corpo. Outros problemas se referem à clássica de Husserl, é simplesmente uma tentativa
legitimação das pretensões de conhecimento e posterior de manter a filosofia na posição em que Kant
concentram-se nas questões que se referem aos a desejava pôr, ou seja, a de juiz das outras áreas da
‘fundamentos’ do conhecimento. Descobrir tais cultura, sobre a base de seu conhecimento especial dos
fundamentos significa descobrir algo sobre a mente e “fundamentos” dessas áreas.
vice-versa”. As coisas, ao seu ver, não param aqui, uma vez
Problemas eternos resolvidos por teorias perenes: eis a que também a filosofia analítica é uma variante
pretensão de fundo da filosofia tradicional, a qual se posterior da filosofia kantiana, uma variante
configura como filosofia fundacional em relação a toda caracterizada principalmente por considerar a
a cultura. E esta sua pretensão se apoia sobre o fato de representação como linguística muito mais que mental
que ela compreenderia os fundamentos do e, portanto, a filosofia da linguagem como a disciplina
conhecimento e encontraria tais fundamentos por meio que exibe os “fundamentos do conhecimento”, em vez
do estudo da mente, dos “processos mentais”. Eis, da “critica transcendental” ou da psicologia.
portanto, que a tarefa central da filosofia tradicional está Na base, portanto, do pensamento fundacional
na construção de uma teoria geral da representação acurada tradicional há uma ideia de mente, concebida como
tanto do mundo externo, como do modo com que a grande espelho que contém representações; voltando-
mente constrói essas representações. nos para nossa interioridade (Descartes) ou trazendo à
Tudo isso, afirma Rorty, nos mostra que existe superfície os a priori da experiência (Kant), a filosofia -
“uma imagem que mantém prisioneira a filosofia examinando e polindo novamente o grande espelho –
tradicional”: é a imagem da mente como um grande estaria depois em grau de chegar à posse dos
espelho, que contém representações diversas – fundamentos do conhecimento.
algumas acuradas, outras não - e pode ser estudado por A união destas três ideias de mente como espelho
meio de métodos puros, não empíricos”. da natureza, de conhecimento como representação acurada
Rorty comenta que se não houvesse a ideia da e de filosofia como busca e posse dos fundamentos do
mente como espelho, não haveria sequer a ideia do conhecimento “profissionalizou” a filosofia, tornando-
conhecimento como representação acurada; sem a a uma disciplina acadêmica restrita substancialmente à
ideia de conhecimento como representação acurada não epistemologia, isto é, à teoria do conhecimento, e a
teriam sentido os grandes esforços de Descartes e de propôs como uma fuga da história, uma vez que ela
Kant dirigidos a obter representações mais acuradas por quer ser pesquisa e posse de fundamentos válidos para
meio do exame, da reparação e do polimento do todo desenvolvimento histórico possível.
espelho. E, postos fora dessa estratégia, não teriam tido
sentido sequer as recentes teses segundo as quais a O abandono da filosofia do fundamento
filosofia consistiria de “analise conceitual”, ou de Pois bem, é sobre este pano de fundo que Rorty
“análise fenomenológica”, ou de “explicação dos olha para a obra daqueles que ele considera os três
significados”, ou de exame da “lógica de nossa filósofos mais importantes do século XX, ou seja, a
linguagem”, ou então da “estrutura da atividade obra de Dewey, de Wittgenstein e de Heidegger. Estes
constitutiva da consciência”. três filósofos tentaram, em um primeiro momento, a
construção de uma filosofia fundacional, propondo a
A filosofia fundacional formulação de “um critério último para o pensamento”.
De acordo com Rorty, devemos ao século Cada um dos três, todavia, no desenvolvimento
XVII, e em particular a Locke, a noção de uma “teoria do próprio pensamento percebeu quão ilusória era sua
do conhecimento” baseada sobre a compreensão dos primeira tentativa. E foi assim, então, que cada um dos
“processos mentais”. Devemos ao mesmo período, e três, na obra sucessiva, libertou-se da concepção
em particular a Descartes, a noção de “mente” como kantiana da filosofia como fundamento, e consumou
entidade separada em que se atuam os “processos”. seu próprio tempo a pôr em alerta contra essas
Devemos ao século XVIII, e em particular a tentações às quais eles próprios haviam cedido. Assim,
Kant, a noção da filosofia como tribunal da razão pura, sua obra sucessiva é terapêutica, mais que construtiva;

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mais edificante do que sistemática, dirigida a fazer o como para exorcizar a incerteza do futuro; os filósofos
leitor refletir sobre motivos que tem para filosofar, edificantes estão à espera e investigam algo de novo,
muito mais do que para lhe fornecer um novo programa prontos para se abrir à maravilha de que haja algo de
filosófico. novo sob o sol, algo que não seja uma acurada
Wittgenstein, Heidegger e Dewey deixam de representação daquilo que já havia, algo que (ao menos
lado, ao ver de Rorty, a noção de mente produzida no momento) não pode ser explicado e pode apenas ser
justamente por Descartes, Locke e Kant, e entendida descrito.
como um objeto de estudo especial, colocado no
espaço interno, que contém os elementos ou os A filosofia edificante
processos que tornam possível o conhecimento.
Wittgenstein, Heidegger e Dewey, todos os três, A filosofia edificante, portanto, deixa de lado a
concordam sobre o fato de que deve ser abandonada a tradição da filosofia sistemática, construtiva, normal,
noção do conhecimento como representação acurada, fundacional. Mas o que devemos entender mais
tornada possível por processos mentais especiais, e propriamente com tal filosofia edificante?
compreensível por meio de uma teoria geral da Pois bem, trata-se de um projeto de educação
representação. Todos os três abandonam as noções de ou formação - ou melhor, de edificação de nós mesmos
“fundamentos do conhecimento” e da filosofia como ou de outros – dirigido à descoberta de modos de falar
de algo que gira ao redor da tentativa cartesiana de novos, melhores, mais interessantes e mais frutuosos.
responder ao cético epistemológico. Isso no sentido de que a tentativa de edificar (nós
mesmos ou os outros) pode consistir na atividade
Filósofos sistemáticos e edificantes hermenêutica de realizar ligações entre nossa própria
A imagem neokantiana da filosofia como cultura e alguma cultura exótica ou algum período
profissão - imagem que se encontra implícita na imagem histórico, ou então entre nossa disciplina e outra
da mente ou da linguagem que espelham a natureza – disciplina que pareça perseguir objetivos
não se sustenta mais. A filosofia fundacional acabou; incomensuráveis com um vocabulário incomensurável.
como acabou, em suma, a filosofia entendida como Mas também pode consistir na atividade poética de
disciplina que julga as pretensões da ciência e da descobrir esses novos objetivos, novas palavras, novas
religião, da matemática e da poesia, da razão e do disciplinas.
sentimento, atribuindo a cada uma o lugar apropriado. A filosofia edificante torna própria, assim, a
É preciso, portanto, tomar outros caminhos; e, hermenêutica de Gadamer, na qual não há contraste -
para sair da “normalidade” da tradição, é preciso ser afirma Rorty - entre o desejo de edificação e o desejo
“revolucionário” (no sentido de Kuhn). E, todavia, de verdade; e na qual, todavia, salienta-se o fato de que
entre os filósofos revolucionários, Rorty distingue dois a pesquisa da verdade é um dos muitos modos com que
tipos: os que fundam novas escolas dentro das quais podemos ser edificados.
pode ser praticada a filosofia normal e profissionalizada E os objetivos da filosofia edificante são mais a
(um exemplo de tais filósofos são Husserl, e, antes dele, continuação de uma conversação do que a descoberta
Descartes e Kant); e aqueles que rejeitam a ideia de que da verdade, de uma verdade objetiva como “resultado
seu vocabulário possa um dia ser institucionalizado, ou normal do discurso normal”. “A filosofia edificante não
que seus escritos possam ser considerados é apenas anormal, mas também reativa, tendo sentido
comensuráveis com a tradição (exemplos desses apenas enquanto é um protesto contra a tentativa de
filósofos são o “último” Wittgenstein e o “último” truncar a conversação”.
Heidegger; e Nietzsche).
É a esse último tipo de filósofos que vai a Manter aberta a conversação da humanidade
aprovação de Rorty, filósofos que ele chama de As tentativas de truncar a conversação não
edificantes para distingui-los dos sistemáticos. A seu ver, os faltam. Com efeito, truncam a conversação todas as
grandes filósofos sistemáticos são construtivos e filosofias sistemáticas, que não fazem mais que
oferecem argumentações. Os grandes filósofos hipostatizar alguma descrição privilegiada em que se
edificantes são reativos e oferecem sátiras, paródias e presume ter captado de uma vez por todas a verdade, a
aforismos. Eles sabem que suas obras perdem sua realidade, o bem, visto que se estaria em posse da razão.
própria função essencial, quando é superado o período Por sua vez, os filósofos edificantes são do parecer que
em relação ao qual definiram sua própria reação. Eles presunções desse tipo equivaleriam ao congelamento da
são intencionalmente periféricos. cultura, o que significaria a desumanização dos seres
Os filósofos sistemáticos pretendem construir humanos.
um saber, uma ciência para a eternidade; os filósofos Segundo Rorty, que para os filósofos edificantes
edificantes destroem em benefício de sua própria a própria ideia de atingir “a totalidade da verdade” é
geração. Os filósofos sistemáticos constroem certezas,

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absurda, porque a noção platônica de verdade enquanto De sua parte, Rorty quer fazer justiça tanto a um
tal é absurda. como ao outro grupo de pensadores historicistas. E o
Concluindo as considerações precedentes, seu é “um convite a não querer escolher entre eles mas
Rorty sintetiza: “Pensar que manter aberta a discussão a dar-lhes, ao contrário, igual peso, a fim de usá-los
constitua uma tarefa suficiente para a filosofia, que a depois para finalidades diversas”. Continua Rorty: “Os
sabedoria consista na habilidade de sustentar uma autores como Kierkegaard, Nietzsche, Baudelaire,
conversão, significa considerar os seres humanos como Proust, Heidegger e Nabokov são úteis enquanto
criadores de novos discursos mais do que seres a serem modelos, exemplos de perfeições individuais, de vida
acuradamente descritos. Terminou, portanto, a filosofia autônoma que se criou por si. Os autores como Marx,
fundacional; mas não terminou a filosofia: ela continua Mill, Dewey, Habermas e Rawls são mais que modelos,
como filosofia edificante, como “uma voz na são concidadãos. Seu empenho é social, é a tentativa de
conversação da humanidade”. tornar nossas instituições e práticas mais justas e menos
Com ela nós continuamos a conversação cruéis”.
iniciada por Platão, mesmo sem discutir os assuntos que
Platão considerava que se devessem discutir. A filosofia A solidariedade do “liberalismo” irônico
edificante, é a maneira específica de intervir na
discussão sobre todo tipo de problema, condicionada e E inútil, ao ver de Rorty, ir em busca de uma
caracterizada por uma tradição de textos e pelo teoria que unifique o público e o privado. O caminho
adestramento peculiar de quem a pratica, mas não mais que ele propõe é o seguinte: contentarmo-nos em
pela ilusão de possuir um domínio próprio dela, um “considerar igualmente válidas, embora destinadas a ser
método, e uma tarefa privilegiada em relação à de outras incomensuráveis, as exigências de autocriação e de
“vozes”. solidariedade humana”.
E de tal proposta emerge a figura daquilo que
“Historicistas” para uma autonomia individual, Rorty chama de “irônico liberal”. Quem é o liberal? Os
“historicistas” para uma sociedade mais justa liberais, para Rorty, “são aqueles que pensam que a
crueldade é o nosso pior delito”. E o irônico? “Uso o
Contingência, ironia e solidariedade é um livro que é termo ‘irônico’ – responde Rorty - para designar um
o fruto maduro de reflexões ético-políticas que Rorty indivíduo que olha abertamente a contingência de suas
estava elaborando há algum tempo. A partir de Hegel – crenças e de seus desejos mais fundamentais, alguém
afirma Rorty - diversos pensadores historicistas que é historicista e nominalista o suficiente para ter
negaram a existência de uma “natureza humana” ou de abandonado a ideia de que tais crenças e desejos
um “estrato mais profundo do eu” sobre o atual fundar remetam a algo que foge ao tempo e ao acaso". Segundo
as virtudes pessoais e os ideais sociais. Estes pensadores ele, a ironia “significa algo de muito próximo ao
sustentaram que tudo é socialização e, portanto, antifundacionalismo”.
circunstância histórica, que não existe uma essência do No fundo, afirma Rorty, “os irônicos liberais
homem “abaixo” da socialização e antes da história. são pessoas que têm, entre estes seus desejos
Autores como estes não se colocam mais a pergunta infundáveis, a esperança de que o sofrimento possa
sobre “o que significa ser homens?”; mas a substituem diminuir, e que possa ter fim a humilhação sofrida por
por perguntas como: “o que significa pertencer a uma alguns seres humanos por causa de outros seres
rica sociedade democrática do século XX?”, ou então: humanos”.
“O membro de uma tal sociedade pode fazer algo a Essa utopia liberal renuncia às teorias filosóficas
mais do que recitar uma parte de um roteiro já escrito?”. de largo porte - como as que se referem às leis da
Pois bem, comenta Rorty, tal reviravolta história, o declínio do Ocidente e o fim do niilismo. Na
historicista, gradual mas decididamente, nos libertou da sociedade utópica proposta por Rorty, “a solidariedade
teologia e da metafísica, e com isso da tentação de não é descoberta com a reflexão; ela é criada”. É criada
buscar trégua para o tempo e para o acaso; ela, por com a imaginação, “tornando mais sensíveis ao
outro lado, nos permitiu substituir, “como viés do sofrimento e humilhação particulares, sofridos por
pensamento e do progresso social”, a liberdade à outras pessoas desconhecidas”.
verdade.
A reviravolta historicista existiu; todavia, ainda Levar à esfera do “nós” pessoas que antes eram do
continua a antiga tensão entre os historicistas (por “eles”
exemplo, Heidegger e Foucault), nos quais domina o
desejo de autocriação e de autonomia individual, e os É uma sensibilidade acrescida que nos faz
historicistas (por exemplo, Dewey e Habermas), para os reconhecer um indivíduo como “dos nossos” mais que
quais dominante é o desejo de uma comunidade vê-lo como “dos deles”.
humana mais justa e mais livre.

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Mas esta sensibilidade não cresce por causa de tema poder, que para ele não está localizado em uma
uma teoria universal que descreve uma essência humana instituição, e nem tampouco como algo que se cede, por
presente em todos os homens; e ninguém se identifica contratos jurídicos ou políticos. O poder em Foucault
com a comunidade de todos os seres racionais. Tal reprime, mas também produz efeitos de saber e
sensibilidade cresce por obra não da teoria, “mas de verdade. Trata-se (...) de captar o poder em suas
outros gêneros literários como a etnografia, a extremidades, em suas últimas ramificações (...) captar
reportagem jornalística, a história em quadrinhos, o o poder nas suas formas e instituições mais regionais e
teatro-verdade e sobretudo o romance”. Dickens, Olive locais, principalmente no ponto em que ultrapassando
Schreiner ou Richard Wright nos fazem conhecer de as regras de direito que o organizam e delimitam. Em
modo detalhado formas de sofrimento passadas por outras palavras, captar o poder na extremidade cada vez
pessoas que antes ignorávamos. Choderlos de Laclos, menos jurídica de seu exercício.
Henry James ou Nabokov nos mostram a crueldade da Ele acreditava que os acontecimentos deveriam
qual nós mesmos somos capazes, e nos obrigam, ser considerados em seu tempo, história e espaço e sua
portanto, a redescrevermo-nos. obra pode ser dividida em três fases metodológicas:
Aqui está - insiste Rorty - a razão pela qual o arqueológica, genealógica e ética. Para cada uma dessas
romance, o filme e o programa televisivo substituíram, fases elaborou perguntas fundamentais: que posso
de modo gradual, mas decidido, o sermão e o tratado saber (ser-saber); que posso fazer (ser-poder - ação de
como veículos principais da mudança das convicções uns com os outros); e quem eu sou (ser-consigo - ação
morais e do progresso. de cada um consigo próprio)?
O liberal irônico exerce sua ironia sobre teorias Nesse sentido, o trabalho de Foucault pode ser
a respeito da essência humana mas está atento a dividido em três fases metodológicas: arqueologia,
minimizar sempre mais a importância das diferenças genealogia e ética.
tradicionais (de raça, de religião, de usos etc.) em relação A fase arqueológica se refere ao procedimento
“à semelhança na dor e na humilhação”. O liberal vertical de investigar os discursos descontínuos, a fim
irônico inclui sempre mais na esfera do “nós” pessoas de entender como e em seguida por quê. Nessa fase, o
diferentes de nós que antes eram dos “eles”. Nós - diz todo não deve ser considerado modelo prévio,
Rorty – devemos começar de onde estamos. E eis seu necessário, principalmente, para encontrar os discursos
comentário a uma posição que à primeira vista pareceria e partes esquecidas ou ínfimas.
moralmente muito estreita: “Aquilo que redime este Essa fase tem um enfoque explicitamente
etnocentrismo é o fato de que é o etnocentrismo de um histórico com a preocupação de descrever a construção
‘nós’ (‘nós liberais’), cuja finalidade é a de expandir-se, dos discursos das chamadas “ciências humanas”.
de criar um ethos ainda maior e diversificado. É o ‘nós’ Nas análises dele, os discursos são tomados em
daqueles que foram educados a estar em alerta contra o sua positividade, como “fatos”, e trata-se de buscar não
etnocentrismo”. sua origem ou seu sentido secreto, mas as condições
de sua emergência, as regras que presidem seu
6.MICHEL FOUCAULT surgimento, seu funcionamento, suas mudanças, seu
desaparecimento, em determinada época, assim como
Foucault (1926-1984) as novas regras que presidem a formação de novos
veio de família tradicional de discursos em outras épocas.
médicos, mas acabou se Fazem parte dessa fase da “constituição dos
graduando em história, filosofia saberes” as seguintes obras:
e psicologia. Foi considerado 1 – A história da loucura (1961);
um filósofo contemporâneo dos 2 – O nascimento da clínica (1963);
mais polêmicos, pois possuía 3 – As palavras e as coisas (1966);
um olhar crítico de si mesmo. 4 – A arqueologia do saber (1969).
Devido às suas Autor do Nascimento da clínica (1963) e de A
tentativas de suicídio, História da loucura na época clássica (1961), Foucault não
aproximou-se da psicologia e psiquiatria e produziu quis escrever uma história da psiquiatria entendida
diversas obras sobre esse tema. Os seus estudos e como história das teorias relativas ao tratamento prático
pensamento envolvem, principalmente, o biopoder e a dos doentes mentais, mas como uma reconstrução do
sociedade disciplinar. Para tanto, o filósofo percorreu modo pouco racional, na verdade, com que os homens
três técnicas independentes, mas sucessivas e “normais” e “racionais” da Europa Ocidental deram
incorporadas umas pelas outras: do discurso, do poder expressão a seu medo da não-razão, estabelecendo de
e da subjetivação. modo repressivo o que é mentalmente “normal” e, ao
Acreditava ser possível a luta contra padrões de contrário, o que é mentalmente “patológico”.
pensamentos e comportamentos, mas impossível se É com As palavras e as coisas (1966) que Foucault
livrar das relações de poder. Trata principalmente do exemplifica, de modo já considerado clássico, a
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abordagem estruturalista do estudo da história. Ele Na segunda estrutura, o discurso rompe os


rejeita também o mito do progresso: a continuidade na laços que o uniam às coisas. Os sinais diretamente
qual o homem ocidental pretende representar seu perceptíveis, quando não são ídolos enganadores, se
glorioso desenvolvimento é continuidade que não configuram somente como pequenos auxílios para que
existe. A história não tem sentido, a história não tem o sujeito que conhece possa chegar a uma representação
fins últimos. da realidade.
A história é, antes, descontinua. E, no que se Na terceira estrutura, o saber assume novo
refere a história da cultura, ela é informada ou aspecto: ele não se detém nem se reduz à representação
governada por típicas estruturas epistêmicas (ou epistemas), do visível, mas busca nova dimensão do real, ou seja, a
que agem no nível inconsciente. Cada época é regida da estrutura oculta.
por uma episteme diferente, ele analisa estas mudanças. São essas, portanto, as estruturas epistêmicas
Mas o que é, mais precisamente, uma estrutura que, de modo inconsciente, estruturaram as práticas
epistêmica? Diz Foucault: “Quando falo de ‘epistemas’, discursivas (só aparentemente livres) dos homens em
entendo todas as relações que existiram em certa época três diversas e descontinuas épocas da história do saber
entre os vários campos da ciência. Penso, por exemplo, no Ocidente.
no fato de que, a certo ponto, a matemática foi utilizada Na fase da genealogia, ele busca as
para pesquisas no campo da física; de que a linguística, homogeneidades básicas que estão no fundo de
ou melhor, a semiologia, a ciência dos sinais, foi determinada episteme. Como colocado pelo próprio
utilizada pela biologia (para as mensagens genéticas); de Foucault: “a genealogia é cinza; ela é meticulosa e
que a teoria da evolução pôde ser utilizada ou servir de pacientemente documentária. Ela trabalha com
modelo para os historiadores, os psicólogos e os pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes
sociólogos do século XIX. Todos estes são fenômenos reescritos”. Nesse sentido, é procurar as
de relações entre as ciências ou entre os vários particularidades que formam o conhecimento, as
‘discursos’ nos vários setores científicos que constituem percepções e o saber.
o que eu chamo ‘epistema’ de uma época”. Nessa fase de investigação dos “mecanismos de
E Foucault chamou a ciência que estuda tais poder” temos as obras:
discursos e tais epistemas de arqueologia do saber. Essa 1 – Vigiar e punir (1975);
ciência “arqueológica” mostra exatamente que não há 2 – História da sexualidade vol. 1, intitulado A
nenhum progresso na história, e que não existe a vontade de saber (1976).
continuidade de que se orgulha todo historicismo. O Aqui ele procura evidenciar as articulações entre
que a arqueologia do saber mostra é uma sucessão saber e poder, mediados, por assim dizer, pelo que
descontinua de epistemas, com a afirmação e a podemos chamar de modos de produção da verdade.
decadência de epistemas em uma história sem sentido. Em nossa sociedade a produção da verdade é
A descrição que ele faz dos “fatos discursivos” regulamentada por regras que autorizam a eleição dos
se limita a enunciados já formulados que compõe as discursos reconhecidos como científicos, que
formações discursivas e quer estabelecer o jogo de qualificam os objetos dignos de saber, os sujeitos aptos
regras (episteme de uma época, seu a priori histórico, o a produzi-los, as instituições apropriadas, e cujos efeitos
solo onde são constituídas as formações discursivas de poder, particularmente no caso das ciências
historicamente realizadas e que compõem as diferentes humanas, são sobretudo disciplinar e normatizar.
configurações no espaço do saber) que definem as Para ele, verdade é o conjunto de regras
condições de possibilidade, das transformações, do segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se
desaparecimento de tais discursos, numa época dada e atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder. Este,
numa dada sociedade, jogo viável num curso histórico por sua vez, é exercício, prática, que só existe em sua
marcado por diferenças e descontinuidades. concretude, multifacetado e cotidiano.
Em As palavras e as coisas Foucault distingue, na Nesse momento de sua produção intelectual
história do saber ocidental, três estruturas passa a fazer o cruzamento da análise dos discursos com
epistêmicas que se sucedem sem nenhuma a trama das instituições e práticas sociais, abandonando
continuidade. a noção de episteme pela noção mais complexa de
A primeira é a que se conservou até a “dispositivo estratégico”. Apesar da episteme ser um
Renascença; a segunda é a que se impôs nos séculos elemento prioritário do dispositivo, este envolve
XVII e XVIII; a terceira se afirmou no século XIX. Mas articulações entre elementos heterogêneos, discursivos
o que tipifica essas diversas estruturas epistêmicas, que, por e extradiscursivos (práticas jurídicas, projetos
seu turno, qualificariam três diversas épocas culturais? arquitetônicos, instituições sociais diversas).
Na primeira estrutura, “as palavras tinham a Nosso filósofo então progride da arqueologia
mesma realidade do que significavam”; o que as coisas (método para análise da discursividade local onde tem-
são pode-se ler nos sinais do livro da natureza. se uma análise descritiva vinculando uma denúncia)
para a genealogia. Agora tem-se uma tática que, a partir
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da discursividade local (arqueologia) assim descrita, mesmo. Fórmula maravilhosa: um poder contínuo e de
ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta custo afinal de contas irrisório”.
discursividade, construindo uma política de resistência Enquanto na arqueologia do saber ele procurou
e de luta. olhar para as transformações dos saberes, ou seja, como
Nesse sentido, para entender as relações de o saber foi sendo trabalhando a partir das ciências
poder é necessário, também, que se entenda como é humanas; na genealogia do poder ele dá um passo a
elaborada a noção de verdade em nossa sociedade, pois mais na profundidade da análise, ou seja, ele busca
é a partir daí que todo o sistema funciona. analisar não mais as transformações dos saberes, mas a
Caracterizando a economia política da verdade em origem dos saberes, o surgimento dos saberes.
nossa sociedade, podemos afirmar que a verdade é Assim, Foucault explicita que antes de olharmos
centrada na forma do discurso científico e nas para os saberes existentes, é preciso olhar e descobrir
instituições que a produzem. É objeto de uma grande que eles têm uma raiz, uma origem, uma criação. Ou
difusão que tem a missão de espalhá-la. seja, todas as sociedades, todas as culturas, todas as
Segundo Foucault, “o importante, creio, é que a classes, nenhuma é livre das relações de poder, porque
verdade não existe fora do poder ou sem poder. A em todas elas existem as relações de saber. E se
verdade é deste mundo; ela é produzida nele, graças a precisamos de uma personificação dessas relações de
múltiplas coerções e nele produz efeitos poder, elas estão personificadas nos indivíduos.
regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu Ele propõe, então, com a genealogia, uma
regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto concepção não jurídica do poder, ou seja, não podemos
é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar olhar para o poder apenas do ponto de vista da lei, da
como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que repressão, da negatividade. Seria até um erro,
permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos caracterizar o poder como negativo, repressivo, ou que
falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as castiga, que impõe limites.
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a Veja o que ele diz em Vigiar e Punir: “temos que
obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o deixar de descrever sempre os efeitos do poder em
encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”. termos negativos: ‘ele exclui’, ele ‘reprime’ ele ‘recalca’,
Em suma, podemos dizer que a verdade está ele ‘censura’, ele ‘abstrai’, ele ‘mascara’, ele ‘esconde’.
diretamente ligada ao sistema de poder, sustentando-o. Na verdade o poder produz; ele produz realidade;
Este sistema a elabora e reproduz de acordo com suas produz campos de objetos e rituais da verdade. O
necessidades. indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se
Até o final do século XVIII, a medicina era uma originam nessa produção”.
sabedoria particular do médico que auxiliava o doente Portanto, para Foucault, as relações de poder
no combate à epidemia. Com a necessidade de não são negativas justamente porque elas geram saberes
mudanças estruturais e arquitetônicas, o hospital novos, elas produzem, elas deslocam, mexem,
começou a utilizar a tecnologia política da disciplina. provocam. Todos os indivíduos participam dessas
Para isso modificou se espaço interno e externo relações. Nessa genealogia, todos produzem saber a
fazendo do médico seu organizador e utilizando o partir das relações de poder.
registro permanentemente. Assim, o hospital passa a ser A fase ética em Foucault se refere à
não apenas um local de cura, mas também de registro, subjetivação, ou melhor, à constituição dos sujeitos e,
acúmulo e formação de saber. A verdade que era dessa forma, o autor acreditava entender o
produzida passa a ser procurada através de técnicas. conhecimento e suas relações pela multiplicidade e por
Quando nos referimos à prisão, vemos também diversas dimensões.
que ela exerce um papel fundamental nessa relação de Aqui ele pretende responder a um problema
produzir verdades, por ser um mecanismo de específico, qual seja, por que se deu o nascimento de
manutenção do poder. Não é capaz de extinguir a uma moral, uma moral enquanto reflexão sobre a
delinquência, mas, antes, difunde a mesma para sexualidade, sobre o desejo, o prazer. Por que fizemos
justificar a ação policial sobre a população. da sexualidade uma experiência moral?
Assim como no final do século XVIII mudou- Essa pergunta fez ele mudar o rumo de suas
se de estratégia: do punir passou-se a vigiar. É mais pesquisas, fazendo-o recuar um pouco mais no tempo
eficiente. Até porque se imaginava que o homem faz o indo até a antiguidade clássica. O foco muda do sujeito
mal somente quando não está sendo visto. Com a objeto para o sujeito ético, indivíduo que se constitui a
estratégia do olhar vigiador esse problema estaria si mesmo, tomando então a relação a si e aos outros
resolvido pois, “sem necessitar de armas, violências enquanto “sujeito do desejo”, como espaço de
físicas, coações materiais. Apenas um olhar. Um olhar referência.
que vigia e que cada um, sentindo-o pesar sobre si, Outra questão central é o sexo. As instituições
acabará por interiorizar, a ponto de observar a si apressaram-se em proibi-lo, não somente no discurso,
mas também nas instituições e na prática. A aversão a
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masturbação infantil surgiu no momento em que se nível do próprio corpo social, e não acima dele,
precisava de uma nova educação, pois se estava penetrando na vida cotidiana, e por isso pode ser
instalando a industrialização e uma das maneiras de caracterizado como micropoder ou subpoder.
disciplinar as crianças foi pela “repressão” sexual. Este processo de renovação e adaptação das
Nesse sentido, podemos constatar que, para se relações atinge certo grau de eficiência e o poder parece
responder a uma urgência histórica, se constrói o adquirir uma importante dose de autonomia, quase
dispositivo da sexualidade: uma rede que estabelece na como se fosse independente dos indivíduos. Através
relação de discursos, instituições, organizações, das ideologias e da burocracia, mas não só por elas, o
controladas através da confissão: o dirigido vai buscar poder se exerce, envolvendo-se nos indivíduos.
no confessor uma verdade – a do pecado cometido. A Diz Foucault: “O poder não se dá, não se troca
verdade exige um discurso próprio. Assim, para se nem se retoma, mas se exerce, só existe em ação; (...) o
conseguir obter o saber válido para o sistema que o poder não é principalmente manutenção e reprodução
mantém, é preciso apossar-se do discurso que confere das relações econômicas, mas acima de tudo uma
esse saber. relação de força”. Ele até parece invisível, mas é
As obras que compõe essa fase de “constituição transmitido e reproduzido e perpetuado através dos
do sujeito ético” são os outros dois volumes da História indivíduos.
da sexualidade, escritos em 1984: Assim, o poder existe e age de modo sofisticado
1 – Uso dos prazeres (Volume II); e sutil. O poder disciplinar adestra os corpos no intuito
2 – O cuidado de si (Volume III). de tanto multiplicar suas forças, para que possam
produzir riquezas, quanto diminuir sua capacidade de
Relações de poder resistência política.
Para fazer essa análise do poder, Foucault
Todas as pessoas estão envolvidas por relações centra sua atenção no que chamou de poder disciplinar,
de poder e não podem ser consideradas independente além dos dispositivos da loucura e da sexualidade.
delas ou alheias a elas. Segundo ele, a finalidade das práticas de adestramento
Nas palavras de Foucault, “é preciso não tomar era disciplina e reclusão, tendo em vista a docilidade dos
o poder como um fenômeno de dominação maciço e corpos. Para chegar a essas conclusões que adentram o
homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um interior das relações humanas, em vez de analisar a
grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras; história de origem única e causal, ele realiza uma
mas ter bem presente que o poder não é algo que se genealogia, ou seja, um olhar sobre as multiplicidades e
possa dividir entre aqueles que o possuem e o detém as lutas.
exclusivamente e aqueles que não o possuem. O poder Para Foucault, “houve uma ideologia da
deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, educação, uma ideologia do poder monárquico, uma
como algo que só funciona em cadeia. Nunca está ideologia da democracia parlamentar, etc.; mas não
localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, creio que aquilo que se forma na base sejam ideologias:
nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O é muito menos e muito mais do que isso. São
poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os instrumentos reais de formação e de acumulação do
indivíduos não só circulam mas estão sempre em saber: métodos de observação, técnicas de registro,
posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; procedimentos de inquérito e de pesquisa, aparelhos de
nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são verificação. Tudo isso significa que o poder, para
sempre centros de transmissão. Em outros termos, o exercer-se nesses mecanismos sutis, é obrigado a
poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles”. formar, organizar e pôr em circulação um saber”.
Dessa maneira, não existindo “o” poder, mas Desse modo, estamos todos envolvidos nessa
sim “relações de” poder, ele não está situado em um rede que recebe, gera e distribui o poder. Somos seres
lugar específico, mas está distribuído e agindo em toda relacionáveis, sociáveis, e isso nos envolve nas relações
a sociedade, em todos os lugares e em todas as pessoas. de poder. Foucault nos aproxima dessa temática e, mais
Através de seus mecanismos, o poder atua como uma que isso, ele nos envolve nessa teia, nessa rede chamada
força coagindo, disciplinando e controlando os poder.
indivíduos. O biopoder foi um termo-conceito criado pelo
Para Foucault, de acordo com as necessidades e próprio Foucault para mostrar a prática dos Estados
com as realidades de cada local, são produzidas novas modernos. Segundo ele, os Estados modernos regulam
relações de poder. A mecânica do poder que se expande os sujeitos (cidadãos) através de numerosas técnicas que
por toda a sociedade, assumindo as formas mais possibilitavam o controle dos corpos e da população
regionais e concretas, investindo em instituições, em geral.
tomando corpo em técnicas de dominação. Poder esse No que se refere ao poder, direito e verdade,
que intervém materialmente, atingindo a realidade mais sob a análise de Foucault, existe um triângulo em que
concreta dos indivíduos (o seu corpo), e se situa no
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cada item mencionado (poder, direito e verdade) se O poder disciplinar surgiu em substituição ao
encontra nos seus vértices. poder pastoral (no campo religioso), poder esse
Nesse triângulo, o filósofo vem demonstrar o exercido verticalmente por um pastor que depende do
poder como direito, pelas formas que a sociedade se seu rebanho e vice-versa. No poder pastoral, o pastor
coloca e se movimenta, ou seja, se há o rei, há também deve conhecer individualmente cada membro do seu
os súditos, se há leis que operam, há também os que a rebanho, se sacrificar por eles e salvá-los, estabelecendo
determinam e os que devem obediência. desse modo uma relação vertical, sacrificial e
O poder como verdade vem se instituir, ora salvacionista, individualizante e detalhista.
pelos discursos a que lhe é obrigada a produzir, ora No campo político, a sociedade estatal veio em
pelos movimentos dos quais se tornam vitimados pela substituição ao poder de soberania, vem da lógica
própria organização que a acomete e, por vezes, sem a pastoral, embora não possa ser salvacionista, nem
devida consciência e reflexão, “para assinalar piedoso e nem mesmo individualizante. Assim, o poder
simplesmente, não o próprio mecanismo da relação de soberania tem um déficit em relação ao poder
entre poder, direito e verdade, mas a intensidade da pastoral. Daí surge o poder disciplinar para preencher
relação e sua constância, digamos isto: somos forçados essa lacuna, com efeitos individualizantes, vigilante, a
a produzir a verdade pelo poder que exige essa verdade fim de preencher os espaços vazios do campo político.
e que necessita dela para funcionar, temos de dizer a Em muitos momentos ocorreu a “a invasão do
verdade, somos coagidos, somos condenados a poder pastoral no plano político do corpo social”. Ou
confessar a verdade ou encontrá-la”. Nessa perspectiva, seja, o caráter individualizante do poder pastoral deveria
pode-se entender por poder uma ação sobre ações. ser abarcado pela sociedade estatal e essa contradição
pode ser bem identificada no estado de bem-estar
Estado e sociedade social.
A partir disso, podemos observar as
As relações de poder, direito e verdade, entre o transformações do Estado e suas formas de produção
Estado, mercado e sociedade civil são tão complexas, e/ou regulação. O estado de bem-estar social surgiu da
tácitas, intrínsecas e interdependentes que, por vezes, movimentação histórica em que houve urgência de o
encontram-se discursos de verdades e direitos Estado provir necessidades básicas para a sociedade,
desenhados pelo interesse individual, o que pode ser visto que o liberalismo não deu conta de suprir tais
chamado de relação de força, e tais forças estão necessidades. A economia capitalista entra na década de
distribuídas difusamente por todo tecido social. 1970 em profunda crise histórica, parecendo haver um
Para Foucault existem diversas ações que consenso entre as correntes conservadoras e
perfazem o poder, o direito e a verdade, ações essas que progressistas em relação ao seu caráter: trata-se de uma
são transportadas para aquelas que permeiam a tríplice crise de Estado.
Estado/mercado/sociedade civil. Assim, pode-se Essa passagem de Estado tutelar, assistencial
concluir que a harmonia das relações de poder-direito, (Estado produtor) a Estado de livre iniciativa (Estado
poder-verdade, estado, mercado e sociedade civil é regulador) coaduna com a questão levantada por
essencial para que as políticas e ações sejam Foucault, em relação à arte de governar: “como
fundamentadas nos princípios éticos. introduzir a economia — isto é, a maneira de gerir
Diante dos papéis possíveis que a sociedade corretamente os indivíduos, os bens, as riquezas no
pode apresentar, Foucault nos apresenta duas interior da família — ao nível da gestão de um Estado”.
tecnologias de poder, divididas em duas séries: a série Governar um Estado significará, portanto,
corpo — organismo/disciplina/instituições, que são os estabelecer a economia ao nível geral do Estado, isto é,
mecanismos disciplinares; a série população — ter em relação aos habitantes, às riquezas, aos
processos biológicos (que são os mecanismos comportamentos individuais e coletivos, uma forma de
regulamentares)/Estado. vigilância, de controle tão atenta quanto à do pai de
Segundo ele, “uma técnica que é centrada no família.
corpo, produz efeitos individualizantes, manipula o Adiante, ele vem colocar a população não só
corpo como foco de forças que é preciso tornar úteis e como força do soberano, mas como sujeito das
dóceis ao mesmo tempo. E, de outro lado, temos uma necessidades e aspirações, consciente daquilo que se
tecnologia que, por sua vez, é centrada não no corpo, quer, e inconsciente em relação ao que se quer que ela
mas na vida; uma tecnologia que agrupa os efeitos de faça. “O interesse individual — como consciência de
massas próprios de uma população”. cada indivíduo constituinte da população — e o
De acordo com Foucault a modernidade trouxe interesse geral — como interesse da população (...)”.
duas novidades fortemente interligadas: poder Dessa forma, governar e programar políticas públicas
disciplinar, no âmbito dos indivíduos; e sociedade perpassa pelas necessidades e aspirações da sociedade,
estatal, no âmbito do coletivo. identificadas não só pelo aspecto quantitativo de

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demanda mas, principalmente, pelo aspecto qualitativo Passada a época do principado, com as
para garantir a sua sustentabilidade. características de multiplicidade iniciada no século XVI,
que introduziu a ideia de Estado, tal como se tem hoje,
Governabilidade Foucault coloca como principais movimentos de
constituição desse Estado: o movimento de
Na Microfísica do poder (1979), Foucault coloca a concentração estatal; dispersão e dissidência religiosa.
governabilidade como objeto de estudo em relação às Foucault reflete sobre governabilidade a partir
formas de governar. Ele põe as questões do problema das três formas de governo:
da população e a questão de governo, em que faz 1 - o governo de si (a moral);
deferência à relação de segurança, população e governo, 2 - o governo da família e da casa (economia);
sendo este o objeto principal. 3 - o governo do Estado (a política).
Ele decorre pelo principado, em particular a Esmiuçando essas três formas de governo,
obra de Maquiavel, O príncipe, no sentido do modo de Foucault quer responder à questão postulada por
se comportar, de exercer o poder, de ser aceito pelos Rousseau: como introduzir a questão da economia ao
súditos. Dessa forma, traz à tona a temática acerca do nível geral do Estado, ou seja, o controle atento de um
governo dos estados pelos príncipes que seria: “(...) pai a riquezas, recursos, comportamentos individuais e
como se governar, como ser governado, como ser o coletivos, para que a convivência seja assegurada e
melhor governante possível etc.”. legitimada de forma conveniente e em prol do bem
Maquiavel, em princípio, como coloca comum.
Foucault, foi reverenciado por seus contemporâneos, Foucault aborda a questão da continuidade da
para depois ser abominado e sofrer uma enorme arte de governar: ascendente e descendente. Na
literatura contrária à sua obra, daí o termo pejorativo e continuidade ascendente, ele afirma que “aquele que
negativo de “maquiavélico”. É preciso levar em quer poder governar o Estado deve primeiro saber se
consideração que O príncipe, de Maquiavel, foi um governar, governar a sua família, seus bens, seu
postulado do comportamento do príncipe e dos que o patrimônio”. A continuidade descendente é no sentido
cercavam, no sentido de reproduzir o comportamento de que “quando o Estado é bem governado, os pais de
e não escrever um tratado, um manual “maquiavélico”. família sabem governar suas famílias, seus bens, seu
Como bem colocado por Foucault, O príncipe patrimônio e por sua vez os indivíduos se comportam
deve ser analisado não pela função de censura, mas pela como devem”.
positividade dos conceitos e estratégias. No primeiro As duas linhas de continuidade fecham o cerco
momento, Foucault coloca a relação de singularidade, para a arte de bem governar, ou melhor, uma sociedade
exterioridade e transcendência do príncipe em relação em que “todos” conseguem se governar e governar
ao principado, ou seja, o príncipe “recebe seu outrem; torna-se uma sociedade livre dos preceitos
principado por herança, por aquisição, por conquista, negativos imbricados nos interesses individuais
mas não faz parte dele, lhe é exterior; os laços que o colocados à frente dos coletivos, na sobreposição do
unem ao principado são de violência, de tradição, espaço privado ao espaço público.
estabelecidos por tratado com a cumplicidade ou Essas linhas de continuidade de Foucault vêm
aliança de outros príncipes”. chamar atenção para a linha central entre o governo de
Para ele, a constituição de governabilidade si (a moral) e o governo de Estado (a política), e o
implica analisar as formas de racionalidade, de governo da família (a economia), que permitirá que o
procedimentos técnicos, de formas de equilíbrio desse triângulo, moral — economia —
instrumentalização, “o essencial é, portanto, este política, possa ser encaminhado ao bem da sociedade.
conjunto de coisas e homens; o território e a
propriedade são apenas variáveis”. Quando se refere ao A sociedade da vigilância e punição
conjunto de coisas e homens, se refere à essência do ser
perante as suas necessidades, interações e bem-estar; as Para Foucault, estamos de uma forma ou de
propriedades, riquezas, recursos são as variáveis outra, todos envolvidos numa teia de relações que dá
pertinentes de cada território e que dão suporte ao vida e “movimento” ao poder. Ele propõe também uma
suprimento das necessidades do ser e o bem-estar da reflexão sobre a forma como os espaços se organizam
população. para formar isso que chamamos de sociedade. Sobre
Estas coisas, de que o governo deve se essa organização do espaço, que chamamos de
encarregar, são os homens, os recursos, os meios de sociedade, Foucault diz: “[...] é uma máquina que
subsistência, o território e suas fronteiras, com suas circunscreve todo mundo, tanto aqueles que exercem o
qualidades, clima, seca, fertilidade etc.; os homens em poder, quanto aqueles sobre os quais o poder se exerce.
suas relações com outras coisas que são os costumes, os Isso me parece ser a característica das sociedades que se
hábitos, as formas de agir e pensar etc. instauraram no século XIX”.

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Mas Foucault vai além. Ele separa dois fatores carcerário torna natural e legítimo o exercício da
que para ele funcionam como “dispositivos” para o punição, acaba com os exageros do castigo, porém, dá
exercício do poder: a vigilância e a punição. legalidade aos mecanismos disciplinares. Quando a
Dispositivos são meios, formas, veios, caminhos, pelos punição se torna “legal” ela pode ser infligida pelo
quais o poder se exerce na sociedade. Dispositivos são poder sem que isso seja visto como excesso. O poder
mecanismos usados de forma discreta para dar força de punir torna-se discreto.
aos meios que, em suma, objetivam determinado fim. Na sua análise, “era assim que funcionava o
O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em poder monárquico. A justiça só prendia uma proporção
um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado irrisória de criminosos; ela se utilizava do fato para
a uma ou a configurações de saber que dele nascem mas dizer: é preciso que a punição seja espetacular para que
que igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo: os outros tenham medo”.
estratégias de relações de força sustentando tipos de Dessa forma, os dispositivos de vigilância e
saber e sendo sustentadas por eles. punição são inseridos na sociedade de forma discreta,
O primeiro dispositivo usado pela sociedade, arquitetada para significar necessidade. Chega um certo
segundo Foucault, é a vigilância. Para haver vigilância, ponto da construção da sociedade, que a existência
há custos econômicos e políticos. Econômicos porque desses dispositivos é vista como necessária,
precisam de investimentos com materiais e pessoas que indispensável e legítima pelos próprios cidadãos. É a
possam agir como vigilantes. Custos políticos porque se partir destes dispositivos que Foucault vai desenvolver
a violência existir, por causa da vigilância, podem sua análise do poder disciplinar, que já não é
ocorrer revoltas. Isso é um custo político porque apresentado de forma centralizado e sim, de forma
“desgasta” a imagem daqueles que estruturam essas dinâmico, atuando em todos os níveis da sociedade.
forças e mantém tais mecanismos.
Foucault também descreve o forte poder O olhar que controla
vigilante existente nas prisões, nas clínicas de
recuperação, nos hospitais, enfim, nas formas de No capítulo XIV da Microfísica do Poder,
construção e estruturação dos locais onde se tratam do intitulado “O olho do poder”, Foucault procura
ser humano. No entanto, para uma maior precisão trabalhar sobre a considerável mudança que acontece
sobre a eficácia da vigilância, cria-se a filosofia do na sociedade a partir do século XVIII.
controle pelo olhar. Seus estudos estiveram relacionados às
Nasce a figura do inspetor. Este, de um lugar instituições, quartéis, fábricas, prisões, hospitais
privilegiado, pode olhar e, desse modo, controlar a psiquiátricos e escolas, em que o autor perpassa pela
todos. O olhar torna-se uma boa forma de vigilância: sociedade disciplinar. A política que conduz tais
“O olhar vai exigir muito pouca despesa. Sem instituições, Foucault afirma ser a “continuação da
necessidade de armas, violência física, coações guerra por outros meios”. “A disciplina procede em
materiais. Apenas um olhar. Um olhar que vigia e que primeiro lugar à distribuição dos indivíduos no espaço”.
cada um, sentindo-o pesar sobre si, acabará por Entretanto, a organização espacial, horários, escala
interiorizar, a ponto de observar a si mesmo; sendo hierárquica, tudo leva a essas instituições a prescrição
assim, cada um exercerá essa vigilância sobre e contra si de comportamentos humanos estabelecidos e
mesmo. Formula maravilhosa: um poder contínuo e de homogêneos, assim como descreve Foucault.
custo afinal de contas irrisório”. Ao estudar as instituições, Foucault já havia
Se um dos dispositivos é a vigilância, o outro é passado pela fase arqueológica que se constitui da
a punição. Em Vigiar e Punir, ele faz um estudo quase análise do discurso e do saber. Nessa nova etapa (das
científico sobre a evolução histórica da legislação penal instituições), o autor buscou melhor entender as
e os métodos coercitivos e punitivos, adotados pelo instituições e, por conseguinte, os sujeitos (fase ética).
poder público nas formas de repressão. Métodos que Analisando a arquitetura desenvolvida naquela
vão desde a violência física até instituições correcionais. época, Foucault observa principalmente como eram
Segundo Foucault, a aplicação da pena torna-se construídos os hospitais: com uma preocupação voltada
um procedimento burocrático, permitindo que a para o modo de separação dos doentes, isolamento em
punição seja oficializada pelo Estado mas, ao mesmo departamentos separados para evitar o contágio,
tempo, que justiça ou o sistema do estado tome uma classificação dos problemas de saúde através do
certa distância da prática da punição. Essa distância diagnóstico e, principalmente, desenvolvendo uma
justifica os atos de punição. Tais atos são apresentados maneira de vigiar o paciente e observá-lo. De
como necessários para corrigir, reeducar, curar aqueles preferência mantendo o indivíduo longe da sociedade
que são infratores da lei e da ordem. É a sadia, para “evitar os contatos, os contágios, as
institucionalização do direito de castigar, punir. aproximações e os amontoamentos”. Os médicos
Ele analisa outros sistemas de punição, mas tornam-se, dessa forma, os “especialistas do espaço”.
centra sua análise na prisão. Para ele o sistema
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Para ele, “toda uma problemática se desenvolve desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de
então: a de uma arquitetura que não é mais feita poder”.
simplesmente para ser vista (fausto dos palácios), ou Ele explica que os “discursos de verdade” da
para vigiar o espaço exterior (geometria das fortalezas), sociedade, por meio de sua linguagem, comportamento
mas para permitir um controle interior, articulado e e valores, são relações constituídas de poder e, portanto,
detalhado – para tornar visíveis os que nela se aprisionam os sujeitos. Para ele, “cada sociedade tem
encontram”. seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade,
Um outro lugar onde a arquitetura exerce isto é, os tipos de discurso que aceita e faz funcionar
bastante influencia é na forma como são construídas as como verdadeiros..., os meios pelo qual cada um deles
prisões: celas, torres de observações, aberturas é sancionado, as técnicas e procedimentos valorizados
estratégicas, iluminação especial. Tudo para permitir na aquisição da verdade; o status daqueles que estão
um olhar que controle tudo e todos. Vigiar é preciso. encarregados de dizer o que conta como verdadeiro”.
As construções eram então da seguinte forma: Para tanto, Foucault vê na linguagem uma
“Na periferia, uma construção em anel; no centro, uma forma já constituída na sociedade, e por esse motivo, os
torre; esta possui grandes janelas que se abrem para a discursos já circulam por muito tempo: “(...) analisando
parte interior do anel. A construção periférica é dividida os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços
em celas, cada uma ocupando toda a largura da aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e
construção. Estas celas têm duas janelas: uma abrindo- destacar um conjunto de regras, próprias da prática
se para o interior, correspondendo às janelas da torre; discursiva”.
outra dando para o exterior permite que a luz atravesse De acordo com Foucault, as técnicas e práticas
a cela de um lado para o outro. Basta então colocar um que induzem ao comportamento da internalização de
vigia na torre central e em cada cela trancaria um louco, movimentos sem questionamentos são chamadas de
um doente, um condenado, um operário ou um tecnologias do eu. As tecnologias de poder como
estudante. Devido ao efeito da contraluz, podem-se produtoras da subjetividade, a análise arqueológica e a
perceber, da torre, recortando-se na luminosidade, as análise genealógica são alguns dos aspectos que podem
silhuetas prisioneiras nas celas da periferia. Em suma ser utilizados para analisar a construção histórica de
inverte-se o princípio da masmorra; a luz e o olhar de uma visão mecanicista e reducionista da sociedade.
um vigia captam melhor que o escuro que, no fundo, O panoptismo é um laboratório de poder. Cada
protegia”. vez que se aplica vai aperfeiçoando o exercício de poder
Surge daí o conceito “olho do poder”, que porque reduz o número dos que exercem e multiplica-
estabelece uma nova forma de controle. Controle este se o número daqueles sobre os quais é exercido. Assim,
que está calcado no olhar, na vigilância e não mais na a forma do panóptico é uma maneira de perpetuar o
força, como ocorreu até o século XVIII. poder porque todos estão sujeitos à verificação que este
Com a restauração do sistema penal, a pena de estabelece uma vez que qualquer pessoa pode assumir a
morte só aparece nos casos extremos. A prisão passa a torre central e exercer a vigilância. O poder torna-se,
ser admitida como a forma de punição ideal, então, perpétuo, porque o panóptico o amplia; não pelo
transformando-se no local que irá corrigir reformar, próprio poder, mas para fortificar as forças sociais,
reeducar e civilizar o indivíduo. O fator punitivo está na “aumentar a produção, desenvolver a economia,
usurpação da liberdade (que passa a ser vigiada) e na espalhar a instrução, elevar o nível da moral publica;
correção disciplinar do detento para que este mude a fazer crescer e multiplicar.”
sua forma de agir, tornando-se normal e produtivo. A Com esse poderoso olhar, que tudo pode ver e
prisão, então faz com que todos produzam: seja por vigiar (o do panóptico) temos uma diferente maneira de
meio de incentivo, ou por meio de castigo. analisar as relações sociais: não uma relação de
Com toda essa mudança estrutural, nasce o que soberania, como sugeriam os autores modernos
Foucault chama de PANOPTISMO. É uma figura Hobbes e Rousseau, mas numa relação de disciplina ou
arquitetural que tem a visibilidade como uma armadilha. que usa de mecanismos disciplinares que tornam o
Para garantir a ordem na prisão, se constrói celas de poder rápido, eficaz, eficiente e sutil. A formação da
onde não se pode ver, mas ser visto. Isso garante a sociedade disciplinar vem da necessidade de ordenação
ordem. O panóptico tem como efeito mais importante das multiplicidades humanas. Consequentemente de
induzir o detento a estar consciente de que se está sendo uma explosão demográfica no século XVIII, a
observado. Dessa forma, o poder é automático e sociedade necessita de um ordenamento.
desindividualizado. É uma maquinaria facilmente
assumida e controlada por qualquer indivíduo. A disciplina aplicada ao corpo
O panoptismo é, portanto, um dispositivo
invertido do espetáculo, shows, circo, poucos assistem Com a necessidade de um ordenamento da
ao que acontece com a multidão. Segundo Foucault: “o sociedade, teve-se uma preocupação especial em se
panóptico é uma máquina maravilhosa que, a partir dos impor uma disciplina ao corpo. Este se deve adequar
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espacial e funcionalmente. E vemos que esta adequação por idade, a classificação de conteúdos, as questões
se dá num âmbito geral porque ela está implantada em classificadas e tratadas por ordem de dificuldade
todos os seguimentos da sociedade e do indivíduo: na potencializam resultados, comportamentos e valores de
escola, no quartel, nos hospitais. Sua característica mais valia.
principal é a observância do detalhe. Segundo ele, “a minúcia dos regulamentos, o
Para Foucault, “não se trata de cuidar do corpo, olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas
em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade parcelas da vida e do corpo darão, em breve, no quadro
indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente; de da escola, do quartel, do hospital ou da oficina, um
exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo conteúdo laicizado, uma racionalidade econômica ou
ao nível mesmo da mecânica – movimentos, gestos, técnica a esse cálculo místico do ínfimo e do infinito”.
atitudes, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo As análises de Foucault das instituições não são
ativo. (...). Esses métodos que permitem o controle uma crítica pura, mas trazem reflexões aos sistemas
minucioso das operações do corpo, que realizam a instituídos no interior delas, à medida que ocorre sua
sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma progressão histórica. A ordem disciplinar, como vista,
relação de docilidade-utilidade, são o que podemos perfaz uma forma de instituir ordem e alçar eficiência e
chamar as ‘disciplinas’.” utilidade econômica.
Todas as atividades desenvolvidas pelos Segundo ele, “o corpo humano entra numa
indivíduos devem ser rítmicas e estabelecidas em um maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e
determinado tempo. O corpo deve assumir uma o recompõe. Uma ‘anatomia política’, que é também
determinada postura que seja adequada para mais igualmente uma ‘mecânica do poder’, está nascendo; ela
eficiência. O soldado é o exemplo de como o corpo é define como se pode ter domínio sobre o corpo dos
alvo do poder disciplinar. O corpo torna-se dócil, pois outros, não simplesmente para que façam o que se quer,
pode ser manipulado, submetido, aperfeiçoado. Assim, mas para que operem como se quer, com as técnicas,
quando se impõe a disciplina ao corpo se está tentando segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A
impor a toda a sociedade porque ele não se torna apenas disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados,
obediente, mas também, útil. corpos ‘dóceis’.”
Nasce uma “mecânica do poder”, onde os É importante destacar que para Foucault corpos
corpos tornam-se dóceis e manipuláveis da maneira que dóceis são corpos maleáveis e moldáveis, o que significa
se quer. No entanto, esse é um processo que não se dá que, por um lado, a disciplina se submete ao corpo num
de repente. Vem das escolas primárias dos colégios, dos ganho de força pela sua utilidade; e, por outro lado,
hospitais, e da organização militar, uma vez que nestes perde força pela sua sujeição à obediência política. Nas
ambientes se busca valorizar os detalhes, as minúcias. suas palavras, “(...) se a exploração econômica separa a
O homem moderno nasce neste esmiuçamento, que força e o produto do trabalho, digamos que a coerção
nada mais é que uma tática usada para o controle e disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre
utilização dos homens. uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada”.
Foucault, quando fez a análise das instituições Esse modelo de reclusão e disciplina usado nos
sobre a ideia do panoptismo, trouxe as escolas, quartéis quartéis, nos conventos etc., contribui para o
e hospitais como modelos do aparelhamento nascimento das fábricas que seguem as mesmas regras,
disciplinar, como já visto. os mesmos parâmetros de ação dirigida ao indivíduo de
Nesse sentido, ele perpassa em primeiro lugar modo a evitar roubos, vadiagem, enfim, para vigiar o
pela distribuição dos corpos no espaço, “o espaço comportamento de cada um. As relações de poder são
escolar se desdobra; a classe torna-se homogênea, ela sutilmente estabelecidas em meio a estes ambientes.
agora só se compõe de elementos individuais que vêm Nas fábricas do fim do século XVIII surge o
se colocar uns ao lado dos outros sob o olhar do mestre “quadriculamento individualizante”, onde as pessoas
(...)”. Em segundo lugar, pelo controle das atividades, são distribuídas em postos, pois, assim, a força de
seja na rigidez do cumprimento de horários; seja na trabalho pode ser analisada em unidades individuais de
penetração do tempo nos corpos, a fim de prevalecerem acordo com a função que o indivíduo exerce.
os efeitos de poder; seja pela eficiência, rapidez e Nesse sentido, nos diversos modos de se aplicar
utilidade dadas pelos corpos disciplinados; seja na esse poder controlador do olhar panóptico, há o
articulação corpo-objeto, no que se refere à surgimento das celas, dos lugares designados para cada
manipulação do corpo ao objeto e na engrenagem de um, das fileiras nos colégios, etc. para propiciar isso, a
um e outro; seja, por fim, pela utilização exaustiva, que arquitetura tem lugar muito importante no modo de
importa extrair do tempo sempre mais tempos construir os edifícios, na maneira de dividir as salas, na
disponíveis e dessa forma tornar cada instante mais disposição dos móveis, na maneira como se posicionam
forças úteis. os corredores, janelas e jardins.
A ordenação por fileiras, a colocação de cada Surge desses detalhes o que Foucault chama de
aluno em suas tarefas e provas, o alinhamento de classes relações “microfísicas” do poder, apresentadas de
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maneira celular, discreta e arquitetonicamente a disciplina produz a partir do controle de corpos, que
planejada. a seu ver é constituída de quatro espécies:
Para que a população em geral se familiarize 1) celular — pelo jogo de repartição espacial;
com essa sociedade, com a preocupação em manter 2) orgânica — pela codificação das atividades;
uma disciplina do corpo e com a preocupação de ser 3) genética — pela acumulação do tempo;
útil a cada momento e cada vez mais, é preciso que haja 4) combinatória — pela composição de forças.
uma “domesticação” dessa população. Isso se dá Para ele, “O exercício da disciplina supõe um
através dos moldes dos meios militares e conventos, dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho
que apresentam e vivem com horários determinados e onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de
rigorosamente cumpridos; com formulas de boa poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem
convivência, de eficiência e produção constante. Dá-se claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam.”
aqui o uso exaustivo do tempo visando garantir a O fim último do poder disciplinar é
qualidade e o controle. Busca-se o tempo útil para evitar ADESTRAR. A disciplina fabrica indivíduos através de
a vadiagem, os desocupados e os conflitos. No exército um poder que circula discretamente, de forma modesta,
chega-se a fazer com que até mesmos os passos sejam desconfiada, mas permanente.
dados ao mesmo tempo, numa sincronia invejável. O Em Vigiar e punir, Foucault vem retratar, além
corpo é ajustado ao tempo e, uma vez disciplinado, da ordem disciplinar, os dispositivos que a fazem
gerará gestos eficientes. ganhar força.
A disciplina é um controle do tempo. Isto é, São simples os instrumentos que o fazem
estabelece uma sujeição do corpo ao tempo, com o acontecer: o olhar hierárquico instituído através da
objetivo de produzir o máximo de rapidez e o máximo ordenação espacial é analisada no panoptismo (se
de eficácia. Neste sentido, não é o resultado que traduz no ver sem ser visto que se apresenta por um
interessa, mas seu desenvolvimento. E esse controle lado de maneira discreta porque é silencioso e anônimo
minucioso das operações do corpo, ela o realiza através e, por outro lado de forma bastante indiscreta, porque
da elaboração temporal do ato, da correlação de um está inserido em todas as partes, alerta, controlando), a
gesto com o corpo que o produz e, finalmente, pela sansão normalizadora (se referem à imposição de
articulação do corpo com o objeto a ser manipulado. ordem, escala hierárquica, dispositivos de comando,
Dessa forma, podemos verificar uma mudança corrigindo os desvios, as negligencias, a tagarelice e,
de uma visão de massa para uma visão mais enfim, todos os atos que fogem à normalidade,
individualizante das pessoas; por conta deste produzindo comportamentos aceitáveis e eficientes) e o
deslocamento é exigida uma maior eficiência em exame (onde cada indivíduo é diagnosticado a partir do
consequência da disciplina que lhe é imposta. O homem que faz e pensa e da maneira como age.
passa a ser como que a engrenagem de uma máquina Cada um é colocado numa ficha, num cadastro,
funcional. É proibido, ou indesejável, falhar. Cada um que o define como sendo dessa ou daquela forma, desse
deve estar interligado ao outro. Desenvolve-se a ideia ou daquele comportamento, com essas ou aquelas
de que se cada um desenvolver bem seu papel e capacidades, com essas ou aquelas fraquezas).
“funcionar” de maneira correta, todo o conjunto Esse exame está presente nos hospitais (através
alcançará ótimos resultados. doa médicos), nos colégios (com os mestres), nos
Para se chegar a esse resultado positivo é quartéis (com o corpo militar), nas igrejas (através do
necessário que se tenha um importante e eficiente padre que atende a confissão).
sistema de comando. Não se exige da pessoa que Segundo Foucault, “o exame combina as
entenda o funcionamento do todo, mas que seja técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que
eficiente no seu espaço. Por exemplo, o responsável normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância
pelo sino do colégio, o olhar constante do inspetor que que permite qualificar, classificar e punir. (...). É por isso
vigia e guarda os corredores, o responsável pela fila que que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é
consequentemente deve ser formada. “O aluno deverá altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia
aprender o código dos sinais e atender automaticamente do poder e a forma da experiência, a demonstração da
a cada um deles”. força e o estabelecimento da verdade”.
Tudo isso existe na tentativa de manter a ordem. Ele coloca o exame no centro dos processos
Essas micro-maneiras de reproduzir o poder é que dá que constituem o indivíduo “como efeito e objeto de
sustentação a toda essa engrenagem que por aí se poder, como efeito e objeto de saber”. Portanto, o
sustenta. caminho para a individualização acaba por ser regido
Essa disciplina vai criar uma individualidade, e pelo percurso disciplinar e pelos exames que qualificam
é na fase ética, que trata da subjetivação e constituição e classificam os sujeitos.
do sujeito, que Foucault faz uma análise (a partir dessa Os rituais nos quais os indivíduos estão sujeitos
fase genealógica aqui percorrida) de como é formado corporificam e fabricam a individualidade celular,
esse mecanismo de produção das individualidades que orgânica, genética e combinatória, entre o aparelho
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institucional e entre as sanções normalizadoras em que seja útil, produtivo, ágil. Isso porque o aumento da
estão inseridos. população coloca a família não mais como centro, mas
como segmento interno desta que se tornará o alvo do
Considerações finais governo que quer “olhar a sorte da população,
aumentar sua riqueza, sua duração de vida, sua saúde,
O modo como Foucault trata a questão do etc.”.
poder é inédito. Ao invés do modelo jurídico-político, Nesse caso, o poder disciplinar não pode ser
Foucault mergulha no detalhado esquema apresentado deixado de lado porque através dele se pode gerir a
pela sociedade disciplinar. Faz um recorte histórico e população em profundidade, em detalhe. Estudar o
procura analisar o como desse poder que está poder em sua face externa, onde ele se implanta e
subjacente às práticas que os homens desenvolvem em produz efeitos reais. Não é perguntando o porquê do
sua vivência social. poder, o que ele procura e qual é a sua estratégia, mas
Foucault pergunta pelas relações de poder, pelas como estão constituídos aqueles que estão sujeitos a
ramificações, pelas táticas que buscam observar os esse poder. Não é querer formular o problema da “alma
detalhes, as minúcias, o comportamento, o modo de ser central” do poder (como faz Hobbes, no Leviatã), mas
de cada um para que possa domesticá-lo, encaixá-lo estudar os corpos sujeitos do poder. Essa nova
num espaço quadriculado a partir das verdades vividas tecnologia de poder não tem sua origem com um
e reproduzidas naquele momento histórico. indivíduo ou um determinado Estado ou Monarquia.
Não que para Foucault não tenha importância Ele foi requerido em determinadas condições locais, a
estar atento ao poder estatal, instituído, representado partir de urgências particulares. Analisar os mecanismos
pelo Estado. Muito pelo contrário. Diz ele que, se o desse poder significa, em suma, ver as posições e os
problema do poder estivesse centrado nessa visão modos de ação de cada um.
hierarquizada seria fácil acabar com o poder. O que Em face de toda essa análise feita do poder,
acontece é que ele se sustenta não por subjugar, Foucault diz que cabe apenas resistir a ele, pois sempre
submeter, constranger, obrigar, sempre de cima para haverá poder já que ele se exerce produzindo verdade
baixo, mas justamente porque essas ramificações acerca do sujeito, fazendo aparecer indivíduo.
existentes na base, dão força de sustentação para que o
Estado se mantenha. 7. JÜRGEN HABERMAS
Se nos perguntarmos sobre como acontece isso,
Foucault nos vai mostrar que é da forma mais simples Habermas é conhecido por suas teorias sobre a
possível: nas normas e regulamentos de um colégio; do razão comunicativa e a esfera pública sendo
sábio sobre o ignorante; do general que exige harmonia, considerado como um dos mais importantes
sincronia e cadencia nos gestos dos soldados; do padre intelectuais contemporâneos.
que, através da confissão, analisa e julga o
comportamento do fiel em relação a Deus; do guarda
de transito que, atrás da farda e do apito se faz
respeitado frente a uma grande quantidade de
motoristas; enfim, onde há relacionamento humano, há
essa relação de poder.
A partir dessa visão de que se deve vigiar cada
indivíduo, registrar cada doente numa ficha de relatório,
separar os doentes dos sadios, manter a ordem nas
repartições públicas (escolas, por exemplo), manter
vigiada a prática da delinquência, punir os infratores,
respeitar os saberes das ciências, etc. subjaz toda uma
tentativa de manter o poder maior uma vez que as
instâncias vão se completando num leque cada vez
maior de relações até chegar no Estado que, com todos
os micro poderes funcionando, se mantém.
Segundo Foucault, “temos que deixar de
descrever sempre os efeitos de poder em termos
negativos: ele “exclui”, “recalca”, “censura”, “abstrai”,
“máscara”, “esconde”. Na verdade, o poder produz
realidade, produz campos de objetos e rituais da
verdade”.
Porque o indivíduo é adestrado, corrigido, não
mais como força e martírio e morte, mas para que ele
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Sua preocupação com as questões políticas baseadas em símbolos – seguem uma lógica
aparece desde a sua tese de doutorado quando realizou interpretativa.
uma pesquisa empírica sobre a participação estudantil E em cada um desses temas expressa-se a
na política alemã, intitulada “Estudante e Política”. característica de Habermas, herança explícita da Escola
Doutorou-se em 1954 e em 1961 conquistou sua livre- de Frankfurt, isto é, a abordagem dita “crítica” a
docência com a tese intitulada “Mudanças estruturais respeito das teorias, das ciências e do próprio presente,
do espaço público”. Em 1954, tornou-se assistente de construindo, assim, um conhecimento engajado e
Theodor Adorno (1903-1969), no Instituto de Pesquisa revolucionário.
Social (Escola) de Frankfurt de 1956 a 1959. Seguindo este eixo e introduzindo uma nova
Seu trabalho trata ainda dos fundamentos da visão a respeito das relações entre a linguagem e a
teoria social, da análise da democracia, do Estado de sociedade, em 1981 Habermas publicou aquela que é
direito e da política contemporânea, particularmente na considerada sua obra mais importante: Teoria da Ação
Alemanha. Esteve preocupado com o restabelecimento Comunicativa.
dos vínculos entre socialismo e democracia e seu Em algumas outras obras ele abordou as
interesse esteve centrado no desenvolvimento de uma ciências sociais e, em especial, dedicou-se a estudar o
teoria crítica da sociedade. Direito.
Em seu sistema teórico, Habermas procura Em Conhecimento e Interesse (1968), Habermas
revelar as possibilidades da razão, da emancipação e da apresenta uma distinção entre as ciências exatas e as
comunicação racional-crítica, latentes nas instituições ciências humanas, afirmando a especificidade das
modernas e na capacidade humana de deliberar e agir ciências sociais
em função de interesses racionais. No seu livro A Transformação Estrutural da Esfera
Esse projeto fez com que ele adotasse o Pública (1962), aborda o fundamento da legitimidade da
paradigma da razão comunicativa, como uma forma de autoridade política como o consenso e a discussão
superar os impasses criados pelas análises de Adorno e racional.
Horkheimer na obra Dialética do Esclarecimento. Na obra Entre Fatos e Normas (1996), ele faz uma
Habermas concebe a razão comunicativa – e a ação descrição do contexto social necessário à democracia,
comunicativa – como alternativa à razão instrumental bem como esclarece fundamentos da lei, de direitos
teorizada por Adorno e Horkheimer. fundamentais bem como uma crítica ao papel da lei e
Várias obras e artigos foram publicados pelo do Estado.
filósofo nos anos seguintes, entre os quais se destacam: A obra habermasiana tem diversos momentos e
A Transformação Estrutural da Esfera Pública, em 1962; a um dos mais importante ocorre no final dos anos 70 e
famosa Teoria e Práxis, em 1963; Lógica das Ciências começo dos anos 80 onde ocorrerá a tentativa de inserir
Sociais, em 1967; e Técnica e Ciência como Ideologia e a ideia de um consenso discursivo em uma teoria da
Conhecimento e Interesse, ambas em 1968. reflexividade da ação social.
Autor de vasta obra, que compreende A “Teoria da Ação Comunicativa” é a obra
hermenêutica jurídica; críticas ferrenhas ao positivismo onde esse empreendimento é construído do ponto de
em sua expressão resultante, o tecnicismo; análise do vista teórico. Duas dimensões são centrais a esse
Marxismo e muitos outros temas, Jürgen Habermas é empreendimento: a construção de um conceito de
representante da segunda fase da Escola da Frankfurt. mundo social reflexivamente adquirido e a ideia de uma
Contudo, mesmo sendo vasta a sua obra, o forma de ação que seja intersubjetiva e voltada para um
principal eixo das discussões do filósofo é, sem dúvida, consenso comunicativo. Essa ação intersubjetiva se
a crítica ao tecnicismo e cientificismo que, ao seu ver, torna uma dimensão central pois a subjetividade não é
reduziam todo o conhecimento humano ao domínio da construída através de um ato solitário, mas é resultante
técnica e modelo das ciências empíricas, limitando o das interações que estabelecem nesse mundo social, a
campo de atuação da razão humana a todo partir de uma complexa rede de interações sociais, que
conhecimento que fosse objetivo e prático. são simultaneamente dialógicas e comunicativas. É
Destacam-se, assim, três ideias fundamentais dentro desta perspectiva que Habermas procura
seguidas por Habermas: trabalhar com o conceito de uma racionalidade
a) Teoria da Ação Comunicativa; comunicativa.
b) A defesa da existência de uma esfera A Teoria do Agir Comunicativo é uma obra de
pública, na qual os cidadãos, livres de domínio político, arquitetura complexa. O objetivo é a formulação de
podem expor ideias e discuti-las – Habermas, contudo, uma teoria orgânica da racionalidade crítica e
destaca que a mídia exerce influência no sentido de comunicativa; uma teoria fundada sob a dialética entre
diminuir este espaço; agir instrumental e agir comunicativo ou, como ele diz,
c) A ideia de que as ciências naturais entre “sistema e mundo da vida”. O sistema está
seguem uma lógica objetiva, enquanto as ciências vinculado ao agir instrumental; é o Estado com seu
humanas – uma vez que a sociedade e a cultura são aparato e a sua organização econômica. O mundo da
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vida está vinculado ao agir comunicativo; é o conjunto linguagem. Sem ela, não temos nem conhecimento e
de valores que cada um de nós individualmente ou nem acesso ao mundo.
comunitariamente “vive” de maneira imediata, Todos nós vivemos dentro de uma teia de
espontânea e natural. relações humanas onde a linguagem marca as
coordenadas da nossa vida na sociedade e enche esta
Teoria do Agir Comunicativo vida de objetos dotados de significação.
Um sujeito solitário não terá como agir
A Teoria do Agir Comunicativo de Habermas comunicativamente. Comunicação que é concebida
tem sido analisada sob diferentes enfoques: seja sua como um ato intrinsecamente intersubjetivo. Por isso a
aplicação às teorias sociais, políticas e democráticas seja teoria do agir comunicativo só pode ser fundada sobre
sua relação com o direito, com a saúde e muitas outras. as estruturas da linguagem natural, capaz de produzir
Sua obra é dominada por quatro eixos temáticos, uma racionalidade baseada em uma compreensão
1) fundamentação de um conceito de intersubjetiva. O conceito de agir comunicativo refere-
racionalidade comunicativa que serve de base e se, portanto, a interação de pelo menos dois sujeitos
princípio norteador; capazes de se expressar através da linguagem e que, por
2) dicotomia entre agir estratégico ou meios verbais ou não, estabeleçam uma relação entre si.
instrumental e agir comunicativo; A tarefa da linguagem, no agir comunicativo, é
3) elaboração de uma nova teoria da ordem fornecer o horizonte pré-estruturado a partir do qual os
social com primazia do agir comunicativo; sujeitos podem relacionar-se entre si e sobre o mundo.
4) contraposição entre mundo da vida e sistema. O entendimento possível entre os sujeitos dá-se na
A obra contém também um diálogo crítico com linguagem porque nela está depositado o saber pré-
autores consagrados das ciências sociais, como a análise teórico específico do gênero humano. A linguagem,
da teoria da racionalização de Max Weber, análise da como horizonte pré-estruturante, possibilita as
teoria da comunicação de G. H. Mead e da sociologia experiências, as ações e a obtenção do consenso.
da religião de Durkheim. Está posto o caminho, grosso modo, para se
Habermas afirma, no prefácio da Lógica das criar a teoria habermasiana do agir comunicativo e de
ciências sociais que já havia prefigurado o surgimento da uma racionalidade comunicativa. Racionalidade
teoria do agir comunicativo, a partir de um viés comunicativa que está intimamente ligada ao agir
metodológico para uma fundamentação teórico- comunicativo e tem como objetivo a busca do consenso
linguística das ciências sociais. A teoria do agir entre sujeitos capazes de falarem e agirem. Mediatizadas
comunicativo “substancializa”, por assim dizer, essa pela linguagem, toda relação existente entre sujeitos que
ideia. Neste mesmo prefácio Habermas afirma que a interagem uns com os outros está inevitavelmente
obra foi escrita ao longo de quatro anos e desenvolve presente em toda comunicação humana e, por
“o conceito fundamental de agir comunicativo, abrindo conseguinte, o conhecimento, a partir de sua mediação
caminho para três complexos temáticos ligados entre si: pela linguagem, só pode ser concebido como a
o conceito de racionalidade comunicativa; o conceito de compreensão comunicativa e formação do consenso
sociedade em dois níveis, a saber, “mundo da vida” e sobre algo do mundo.
“sistema”; e por fim uma teoria da modernidade que Ao ventilar que a linguagem, enquanto ato de
“deve possibilitar uma conceitualização do contexto entendimento é consenso humano sobre questões
social da vida que se revele adequada aos paradoxos da pertinentes (ética, política, direito, moral, estética,
modernidade”. poder) inicia-se o abandono do paradigma monológico
A premissa básica da Teoria da Ação Comunicativa da razão kantiana, fundada no discernimento pessoal,
é a de que os homens são capazes de ação, e para tanto, para um paradigma do entendimento mútuo mediado
se utilizam da linguagem para se comunicar com seus intersubjetivamente pela linguagem.
pares, buscando chegar a um entendimento. Sendo o A partir da publicação da obra Teoria do Agir
princípio base da razão comunicativa a linguagem, esta Comunicativo, Habermas começa um processo de
constitui o meio através do qual as interações sociais se aplicação da sua concepção de teoria do discurso à
dão no mundo da vida. política contemporânea. Ele irá operacionalizar tal
A linguagem mediatiza fundamentalmente toda aplicação através da percepção de que o problema da
relação significativa entre sujeito e objeto. Ela está legitimidade na política está ligado a um processo de
inevitavelmente presente em toda comunicação deliberação coletiva que contasse com a participação
humana, a qual implica um entendimento mútuo sobre racional de todos os indivíduos possivelmente
o sentido de todas as palavras e sobre o sentido do ser interessados ou afetados por decisões políticas.
das coisas mediadas pelos significados da palavra. A Esta obra que é considerada a mais importante
linguagem possui, primordialmente, um sentido tem uma relevância sem precedentes dentro do
comunicativo, ou seja, nós moramos na linguagem. contexto atual de qualquer regime que se pretende
Para nos comunicarmos, a única alternativa é a democrático. Habermas sugere um modelo ideal de
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ação comunicativa e democracia deliberativa, no qual as condições universais de produção de enunciados que
pessoas interagem através da linguagem, organizam-se visem ao entendimento, uma vez que todas as normas
em sociedade e procuram o consenso de forma não de ação social são entendidas como derivadas do agir
coercitiva. voltado para o entendimento.
Uma democracia deliberativa que defende que De outro modo, as relações mediadas
o exercício da cidadania se estende para além da mera comunicativamente devem ser inteligíveis, sob pena de
participação no processo eleitoral, exigindo uma ofuscar o entendimento. Para isso, Habermas identifica
participação mais direta dos indivíduos no domínio da na filosofia da linguagem de cunho analítico os
esfera pública, em um processo contínuo de discussão pressupostos de validade do ato de fala, onde se
e crítica reflexiva das normas e valores sociais. As encontra o fundamento da racionalidade comunicativa.
questões sociais e coletivas devem ser objeto de Para Habermas, entender um “ato-de-fala”,
apreciação de todos. Ora, se nós considerarmos que em significa que, pelo menos, dois sujeitos, linguística e
uma sociedade democrática, a esfera pública é interativamente competentes, compreendem
dominada pelo discurso e pela argumentação, de identicamente uma mesma impressão. E é este
interesses da coletividade, então fica fácil entender a entendimento que pode possibilitar a obtenção de um
importância dessa Teoria da Ação Comunicativa. Sua consenso, um consenso que seja aceito como válido
relevância está, indubitavelmente, em pretender o fim para todos os participantes do discurso, fundando na
da arbitrariedade e da coerção nas questões que ação e na razão comunicativa.
envolvem toda a comunidade, propondo uma Para tentar ilustrar suas ideias Habermas cria
participação mais ativa e igualitária de todos os cidadãos uma “situação de fala ideal”, em que o filósofo
nas discussões em torno da coisa pública. Essa forma pressupõe uma situação onde os participantes são
defendida por Habermas é o agir comunicativo que se autênticos e verdadeiros. Uma situação talvez
ramifica no discurso. empiricamente impossível de ser atingida, mas
Do ponto de vista do exercício democrático, pressuposta como real em cada discurso onde uma
Habermas pressupõe que as instituições devem estar questão possa ser tematizada e onde os participantes
organizadas e estruturadas de maneira que o discurso atuem livres de coerções naturais e/ou intrapsíquicas.
possa surgir como forma de resolução dos conflitos
surgidos das quebras pactuais ou dificuldades de A Esfera Pública
comunicação das comunidades. O ponto central é,
portanto, o mesmo, independente da sua formulação. Entre 1989 e 1992, Habermas, pela primeira vez
As normas e as decisões políticas só podem desde os anos 60, reconsidera o seu pensamento sobre
legitimarem-se em decorrência de poderem ser a esfera pública. Isso acontece devido a um congresso
questionadas e aceitas no discurso entre cidadãos livres sobre o tema em 1989, no qual o filósofo foi
e iguais. confrontado com releituras da sua obra e do conceito
A ação comunicativa habermasiana pressupõe por ele desenvolvido em 1962.
uma teoria social: a do mundo da vida; e contrapõe-se à Isso o levou a publicar Direito e Democracia: Entre
uma ação estratégica, regida pela lógica da dominação. Facticidade e Validade, em 1992, obra que traz, entre
A ação comunicativa tem como lócus privilegiado outras coisas, a noção de esfera pública de volta ao
o mundo da vida. patrimônio argumentativo do pensador alemão.
Ao conceito de agir comunicativo Habermas Também, pela primeira vez em trinta anos, é
opõe o conceito de agir estratégico, sendo que ambos feita a conexão entre a noção de esfera pública e temas-
estão ligados entre si, porém se distinguem e se chave do seu patrimônio, como “ação comunicativa”
diferenciam: o agir comunicativo parte do pressuposto “formação discursiva da opinião e da vontade” e
que as decisões levam em conta os interesses “discurso”.
interpessoais do bem-comum e da reciprocidade, ao Esfera pública é o domínio ou espaço
passo que o agir estratégico pressupõe que as decisões socialmente reconhecido, mas não-institucionalizado,
levam em conta os interesses pessoais individuais. O onde há a livre circulação de questões, informações,
agir estratégico tem como horizonte os interesses pontos de vista e argumentos provenientes das
individuais da ação, com o objetivo de obter sucesso e vivências diárias dos sujeitos. Assim como as câmaras e
poder. O agir comunicativo não pode, ao contrário, ser tribunais existem por meio dos debates
orientado por interesses pessoais, já que pressupõe institucionalizados, a esfera pública se realiza por meio
satisfazer as condições de entendimento e cooperação da livre flutuação de problemas e contribuições.
e consenso. Para ajudar a definir o que é a esfera pública,
O agir comunicativo compreende aquelas ações Habermas usa metáforas, como a dos sensores sociais,
orientadas para o entendimento e o agente é o sujeito por exemplo. A esfera pública nesse caso seria uma
competente linguisticamente para agir na busca do ampla rede de radares e sensores, localizados no
consenso. Trata-se de uma tentativa de compreender as interior da sociedade, sensíveis ao ponto de perceber e
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identificar os problemas da sociedade. Ainda nessa Nesse sentido, entender, como Habermas, que
ideia, a sugestão dos radares sociais se junta à metáfora as formas da ação comunicativa (do mundo da vida)
da caixa de ressonância. A esfera pública não é capaz de seriam capazes, com base na organização política de
resolver, sozinha, os problemas sociais, portanto, ela movimentos sociais, de conter esse avanço pressupõe
aumenta seu eco e volume para conseguir chamar a que o processo de reinvenção e reorganização da
atenção dos parlamentares e orientar suas decisões. economia capitalista em algum momento cederá a
Habermas se esforça para ligar a esfera pública argumentos racionalmente defendidos na esfera
a uma das suas principais teorias: a ação comunicativa. pública.
A sua existência depende dessa ação voltada para o Na esfera pública, onde impera a razão
entendimento, ou seja, aquela em que os sujeitos comunicativa, as pessoas dialogam livres das pressões
orientam o seu comportamento pela vontade de econômicas e políticas, construindo argumentos
entender uns aos outros. A esfera pública não tem racionais que produzem normas morais válidas em uma
propriamente a ver nem com as funções nem com os “situação ideal de fala” que permite o consenso do
conteúdos da ação comunicativa; a esfera pública é, na conjunto dos indivíduos, não privilegiando nenhum
verdade, o espaço social que a ação comunicativa interesse particular.
forma. É importante deixar claro que Habermas
Nesse sentido, a esfera pública tem grande constrói uma ética procedimentalista na medida em que
função em explicar os processos pelos quais são não afirma o que seja certo ou errado, justo ou injusto.
formadas a opinião e a vontade coletivas. Esses Ele explicita a forma, o meio, o procedimento a
processos são baseados em interações, de modo que ser tomado pelos indivíduos para que cheguem a essas
precisam de comunicação e busca de consenso. Para conclusões através de um diálogo livre de qualquer tipo
Habermas, parece razoável e democrático que a opinião de dominação ideológica.
pública e a vontade geral devam ser formadas
discursivamente. Direito e Moral
Somente as leis que surgem de um processo
discursivo, debatido por todos os cidadãos A obra Direito e Moral é dividida em dois
interessados, em situação de igualdade de segmentos principais, o primeiro fazendo uma crítica a
oportunidades e direitos, são democraticamente pontos de vista de Max Weber no que toca o direito e a
legitimas. moral, tendo como título “Como é possível a
legitimidade através da legalidade”; e o segundo
Ética do discurso mostrando se o desmoronamento do direito puramente
racional resulta em um estado jurídico com maior
Se as ações sociais de natureza comunicativa agilidade diante da sociedade, sendo o título “Para a
estão concentradas na esfera pública, são os ideia do estado jurídico”.
movimentos sociais que reorganizam as formas de O primeiro grande segmento é subdividido em
participação democrática. Portanto, os movimentos três partes. Na primeira parte Habermas comenta a
sociais devem preservar as formas de solidariedade visão de Max Weber sobre a racionalidade do direito.
postas em risco pelo Estado ou pelas corporações Segundo Weber a racionalidade só existe devido ao
capitalistas, exercendo o papel de atores sociais e caráter formal que está incutido no direito, ou seja, só
políticos na defesa de um espaço autônomo e pode existir a razão em decorrência da obediência aos
democrático. procedimentos jurídicos.
Tais atores sociais têm como objetivo a Dessa forma, moral e direito são dois campos
organização e a reprodução da cultura, sobretudo com separados, sendo a moral subjetiva e o direito
base na formação de identidades e solidariedades objetivamente racional. Assim a interferência da moral
coletivas. no direito acabaria por retirar a racionalidade do
Uma questão importante que se coloca à teoria mesmo. Mas Habermas nos mostra que o próprio ato
de Habermas diz respeito à contenção da tendência de de seguir os procedimentos jurídicos já implica na
desenvolvimento do dinheiro e do poder (do sistema) mistura entre moral e direito, afinal o direito é
pelos movimentos sociais, isto é, a contenção da constituído de normas estabelecidas por um legislador
racionalidade instrumental pelo agir comunicativo. e este possui uma moral que acaba sendo incorporada à
Marx, no Manifesto comunista, ao analisar o lei. Sendo assim, a teoria de Weber onde a legitimidade
desenvolvimento da sociedade capitalista, afirmou que só pode ser alcançada pela legalidade puramente
“tudo o que é sólido e estável se volatiza, tudo o que é racional perde força.
sagrado é profanado”. Em outras palavras, a lógica de Na segunda parte são abordados alguns
produção e reprodução da sociedade capitalista tende a fenômenos não previstos por Weber. Dessa forma
invadir todos os espaços sociais. temos o direito reflexivo, onde os juristas refletem
sobre as leis e fazendo isso acabam recorrendo a
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preceitos morais para explicá-las. Podemos falar ainda Concluindo


da marginalização dos litígios, pois as partes envolvidas
podem fazer contratos aproveitando brechas na lei e O objetivo de Habermas é compreender
acabam tornando o processo bastante subjetivo. Os como as sociedades ocidentais estão organizadas e quais
imperativos funcionais, onde a criação de condições os efeitos desse processo de racionalização sobre os
para um estado regulador pender espaço para as agentes sociais.
preferências geradas pelo dinheiro e poder, deixando de Apesar do predomínio da lógica estratégica do
lado a razão. Por fim temos a sucessão de legisladores, mercado e do Estado, a ação comunicativa tem papel
que tentam embutir seus próprios padrões morais na lei. decisivo na constituição das formas de solidariedade e
Para encerrar esse segmento do texto o autor ainda de identidade sociais.
menciona a axiologia das Constituições Federais Na prática, Habermas admite um confronto
existentes como uma prova de padrões morais constante entre a lógica instrumental (o “sistema”) e o
presentes na lei. agir comunicativo (o “mundo da vida”). Ele entende
O último texto deste segmento mostra como que o sistema e o mundo da vida seriam formas
nossa sociedade aceita a legitimidade só através da sintéticas para qualificar a racionalidade instrumental e
legalidade, sendo assim é preciso fundamentar esta o agir comunicativo. O ponto de encontro dessas duas
legalidade. Já foram utilizados fundamentos como a lógicas distintas se daria nos espaços de disputa política.
metafísica e a religião, mas atualmente estes não são A lógica instrumental do mercado se apresenta
mais aceitos. Assim se buscou a razão como como um processo em desenvolvimento. Ou seja, ainda
fundamento para nossa legalidade. Mas se de acordo há espaços sociais em que a razão instrumental não
com Max Weber a inserção da moral no direito retira predomina, onde ainda prevalecem as relações de
sua razão e por sua vez sua legalidade, podemos solidariedade e identidade social. Mas o
questionar o fato de a razão estar baseada na moral; desenvolvimento da racionalidade instrumental coloca
afinal não retiramos os padrões morais sociais do limbo. esses espaços em risco.
A segunda parte do livro também é dividida em Habermas identifica esse processo como uma
três partes. A primeira delas mostra como o sistema forma de colonização do mundo da vida pelo sistema.
jurídico não está preso aos conceitos gerais da teoria de O desenvolvimento de sistemas econômicos e
sistema. Isso acontece porque o direito tem uma administrativos de racionalidade instrumental tende a
necessidade peculiar, que não ocorre na maioria dos colonizar, com base no dinheiro e no poder, áreas de
sistemas, a de se adaptar constantemente e rapidamente interação ainda não governadas por eles.
às mudanças que se desenrolam na sociedade como um Criam-se, dessa forma, conflitos sociais, já que
todo. Afinal a norma jurídica tem lacunas que devem essas áreas se caracterizam pela transmissão cultural,
ser preenchidas para manter a sociedade controlada e pela integração social e pela socialização, isto é, são
regulada. dependentes de uma articulação social que se daria pelo
Nesta próxima parte o autor busca mostrar o entendimento mútuo.
entrelaçamento do direito e da moral com a política. Ou A partir dessas considerações, Habermas elege
seja, expor que o direito não se coloca a serviço da a esfera pública como um local onde os atores sociais,
política, pois se a política controlasse o direito a sobretudo os movimentos sociais, resistiriam ao
legitimidade daquela seria comprometida pois este não desenvolvimento da racionalidade instrumental.
teria poder para dar credibilidade, sendo o direito Fundamentadas na linguagem e em argumentos
incorporado à política. E a seguir vemos que o contrário discursivamente defendidos, os atores sociais se
também é impensável, pois a ideia de que o direito expressam e resistem ao avanço do sistema. Suas
pudesse criar suas próprias estruturas normativas pela competências comunicativas são, assim, as formas
razão também lesaria a legitimidade da norma jurídica. privilegiadas de contenção da racionalidade estratégica.
Por fim, Habermas mostra o porquê da
transformação do direito racional em estado jurídico. 8. JOHN RAWLS
Uma sociedade como à atual não pode se prender as
estruturas formais presentes no direito racionalista. Os John Rawls (1921 – 2002) nasceu em Baltimore,
mercados pedem uma maior agilidade por parte do estudou em Princeton e, depois de uma estadia em
ordenamento jurídico, assim se abre espaço para o Oxford, voltou para os Estados Unidos, passando a
direito subjetivo criar as condições necessárias para tal ensinar na Universidade de Harvard, onde também
agilidade. Os contratos privados ganham uma maior ensina seu mais aguerrido e leal adversário: Robert
autonomia para preencher as lacunas da legislação e Nozick.
dessa maneira a moral ganha um grande espaço no Rawls é conhecido por ter publicado em 1971
direito pois os contratos privados são subjetivos e a um dos livros mais discutidos - e mais influentes -
subjetividade é uma das manifestações mais claras da destes últimos vinte anos: Uma teoria da justiça.
moral.
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Karl Popper definiu a obra de John Rawls como Os utilitaristas - pensemos, justamente, em
“um livro importantíssimo sob muitos aspectos”, e Bentham ou em Mill – perseguiram o ideal do maior
apreciou muito a ideia de Rawls segundo o qual é um bem-estar para o maior número de pessoas; por
projeto de vida “que caracteriza as intenções ou as conseguinte, defenderam uma concepção tal que no
finalidades que fazem de um homem ‘uma pessoa moral fim, de fato, comportava a submissão do indivíduo a
unificada, consciente’”. sociedade. Rawls combate tal impostação, enquanto, a
seu ver, nenhum homem deve sofrer privações em
vantagem de algum outro ou da “maior parte da
sociedade”.

“Véu de ignorância e posição originária”

Rawls, na pesquisa de Uma teoria da justiça, parte


daquela que ele chama de posição originária. Esta
posição originaria é o estado em que se encontram os
indivíduos que devem determinar o contrato. Ela não é
uma hipótese de estado de natureza, mais ou menos
fictícia. É simplesmente um expediente heurístico
imaginado “de modo a obter - afirma Rawls - a solução
desejada”.
Na posição originária, os indivíduos particulares
se encontram em uma situação de equidade, isto é, de
igualdade; e tal equidade deve-se ao véu de ignorância
que caracteriza a condição dos indivíduos que se põem
na posição originária.
Escreve Rawls: “Devemos de algum modo
Por sua vez, justamente Robert Nozick zerar os efeitos das consequências particulares que
escreveu que Uma teoria da justiça “é uma fonte de ideias põem em dificuldade os homens, e que os impelem a
iluminadoras, fundidas em um conjunto agradável. Ora, desfrutar em sua própria vantagem as circunstâncias
os filósofos devem trabalhar dentro da teoria de Rawls, naturais e sociais. Com este objetivo, assumo que as
ou então explicar por que não o fazem [...]. Também partes estão situadas por trás de um véu de ignorância.
quem não estiver convencido do desencontro com a As partes não sabem de que modo as alternativas
visão sistemática de Rawls aprenderá muito, estudando- influenciarão em seu caso particular, e são por isso
o aprofundadamente”. Essas coisas, ditas por seu obrigadas a avaliar os princípios apenas com base em
adversário mais temível, constituem o melhor elogio da considerações gerais. Assume-se, portanto, que as
obra de Rawls. partes não conhecem alguns tipos de fatos particulares.
Primeiramente, ninguém conhece seu próprio
Contra o Utilitarismo lugar na sociedade, sua posição de classe ou seu status
social; o mesmo vale na distribuição dos dotes e das
Desde os inícios de seu livro Uma teoria da justiça, capacidades naturais, sua força, inteligência e
Rawls é claro sobre o fato de que sua teoria é de semelhantes. Além disso, ninguém conhece sua própria
“natureza profundamente kantiana”; e isso no sentido concepção do bem, nem os particulares dos próprios
de que ele põe sua obra na esteira do contratualismo planos racionais de vida e nem as próprias
(Locke, Rousseau, Kant), em contraste com a tradição características psicológicas particulares, como a aversão
do utilitarismo (Hume, Bentham e Mill). ao risco ou a tendência ao pessimismo ou ao otimismo.
O intento de fundo da obra de Rawls está na Além disso, assumo que as partes não conheçam as
proposta e no exame de princípios em grau de sustentar circunstâncias especificas de sua sociedade”.
uma sociedade livre e justa. “A justiça - escreve Rawls -
é o primeiro requisito das instituições sociais, assim A posição originária faz escolher princípios
como a verdade o é dos sistemas de pensamento”. E universais
logo acrescenta: “uma teoria, por mais simples e Pois bem, em urna situação desse tipo, nessa
elegante que seja, deve ser abandonada ou modificada, posição originária, o véu de ignorância torna todos
se não for verdadeira”. Pois bem, “do mesmo modo as iguais. O véu de ignorância não beneficia ninguém;
leis e as instituições, não importa o quanto sejam portanto, nenhum dos contraentes poderá propor uma
eficientes e bem urdidas, devem ser reformadas ou sociedade futura ou instituições em sua própria
abolidas se forem injustas”. vantagem; ninguém sabe qual é ou será seu próprio
Mas quando é que leis e instituições são justas? interesse ou privilégio particular.
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A posição originária faz com que todos sejam As desigualdades econômicas e sociais são
igualmente racionais e reciprocamente desinteressados; admitidas, ou seja, são justas, não por beneficiar os
é uma situação que obriga todos a escolher princípios poucos ou os muitos ou os mais, mas apenas com a
universais de justiça, ou, para dizer com Kant - ao qual condição de que favoreçam todos, e de modo especial
Rawls se remete -, princípios de uma moral autônoma os mais desfavorecidos.
que nós mesmos nos damos não como seres
interessados nisto ou naquilo, ou como membros desta O primeiro princípio de justiça
ou daquela sociedade, mas como seres livres e racionais. O primeiro princípio de justiça fala das
“O véu de ignorância - escreve Rawls - priva a pessoa liberdades individuais. Estas liberdades, iguais para
na posição originária dos conhecimentos que a todos, são a liberdade de pensamento e de consciência,
colocariam em grau de escolher princípios a liberdade de palavra e de reunião, a liberdade da
heterônomos. As partes chegam juntas à sua escolha, detenção arbitrária, a liberdade política – o direito de
enquanto pessoas livres, racionais e iguais, conhecendo voto.
apenas as circunstâncias que fazem surgir a necessidade A Constituição e as leis têm a função de garantir
de princípios de justiça”. o uso livre destas liberdades, onde se deve salientar que
Os indivíduos que se encontram na posição as liberdades de consciência e de pensamento são as
originária não podem propor princípios ou pensar em primeiras na graduação, as absolutamente
uma sociedade em que poderão ser favorecidos eles irrenunciáveis. E, diz Rawls, “não só deve ser permitido
mesmos ou talvez seus amigos, e desfavorecidos os aos indivíduos fazer ou não fazer uma coisa, mas o
outros. Ninguém sabe nada nem de si mesmo nem dos governo e as outras pessoas têm também o dever legal
outros. de não criar obstáculos”.
A única escolha possível é, então, a que deverá Por outro lado, um sistema inspirado na
se referir a todos; tratar-se-á, portanto, de uma escolha liberdade não pode se autodestruir deixando, por
de princípios universais de justiça. exemplo, livres os intolerantes. A liberdade deve ser
defendida por meio de um sistema de regras que
Dois princípios de justiça consigam defini-la.
Na base da proposta dos princípios que Escreve Rawls: “Nos Estados democráticos,
constituem “a estrutura fundamental da sociedade” há, alguns grupos políticos sustentam doutrinas que os
portanto, um contrato. As partes contraentes são todos impelem a suprimir as liberdades constitucionais toda
os indivíduos - não conta aqui o tempo nem tem vez que obtiverem o poder; do mesmo modo há aqueles
importância nenhuma as gerações - que se põem na que negam a liberdade individual mas que ensinam nas
posição originária. Objeto do contrato são os dois universidades”.
princípios de justiça, que são princípios morais e que Eis, portanto, um problema não descartável:
serão expostos em breve. E a motivação que está por deve-se ser tolerante com os intolerantes?
trás do contrato e da proposta dos dois princípios é Rawls responde a esta pergunta afirmando que
principalmente a de se proteger contra a possibilidade os intolerantes não tem nenhum direito de queixar-se
de se encontrar amanhã entre os desfavorecidos. da intolerância; isso, todavia, não justifica, em sua
O primeiro princípio de justiça é o seguinte: opinião, o fato de que os tolerantes teriam o direito de
“toda pessoa tem direito igual a mais extensa suprimi-los.
liberdade fundamental, compativelmente com Apenas em um caso Rawls admite a intolerância
semelhante liberdade para os outros”. contra os intolerantes: no caso em que a segurança dos
O segundo princípio sustenta que: tolerantes seja posta em perigo, e isso pelo motivo de
“as desigualdades econômicas e sociais, como as que “toda pessoa na posição originária deliberaria em
de riqueza e de poder, são justas apenas se produzem favor da autoconservação”.
benefícios compensatórios para cada um, e em A justiça não requer de fato o sacrifício da auto-
particular para os membros menos favorecidos da aniquilação; “mas - afirma Rawls - quando a
sociedade”. Constituição é salva, não há mais nenhuma razão de
O primeiro princípio funciona como negar a liberdade aos intolerantes”.
fundamento das liberdades individuais; ele “requer a
igualdade na atribuição dos direitos e dos deveres O segundo princípio de justiça
fundamentais”. O segundo princípio não justifica o
sacrifício de alguns, mesmo que ele chegue a produzir Mais de uma vez, em Uma teoria da justiça,
um bem maior para alguns ou para a maioria. encontramos reformulado o segundo princípio de
Isso é o que o utilitarismo propõe; mas Rawls é justiça.
antiutilitarista: Já vimos uma primeira formulação:
“O fato de que alguns tenham menos a fim de “As desigualdades econômicas e sociais, como
que outros prosperem pode ser útil, mas é injusto”. as de riqueza e de poder, são justas apenas se produzem
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benefícios compensat6rios para cada um, e em 3. ROBERT NOZICK


particular para os membros menos favorecidos da
sociedade”.
Uma segunda formulação é a seguinte:
“As desigualdades sociais e econômicas
devem ser combinadas de modo a ser (a) para o maior
benefício dos menos favorecidos, (b) ligadas também
a posições abertas a todos em condições de justa
igualdade e pertença”.
E, a seguir, uma posterior formulação do
princípio:
“As desigualdades sociais e econômicas
devem ser combinadas de modo a ser (a)
razoavelmente previstas para a vantagem de cada um,
(b) ligadas a funções e posições abertas a todos”.
O segundo princípio de justiça afirma que as
desigualdades na distribuição da renda são injustas
quando não são para o benefício de todos e, de modo O “Estado mínimo”
especial, dos mais desfavorecidos; e que as funções e as
posições de prestígio devem estar abertas a todos. O Robert Nozick (1938-2002) descende de uma
segundo princípio de justiça, portanto, projeta e exige a família de judeus russos. Ele conta de si mesmo: “O
reparação das desvantagens dos menos favorecidos. interesse que me levou à filosofia foi decididamente
Que em uma sociedade existam pessoas em político”.
condições ruins de saúde, portadoras de deficiências, ou Da filosofia analítica Nozick aprende “a pensar
indivíduos que, desmerecidamente, tem uma renda de modo claro e rigoroso”. Mas ele acha demasiado
demasiado baixa, tudo isso é um fato. A existência dos restrito para seus interesses o estilo de pensamento
desfavorecidos é um fato; e os fatos não são nem justos analítico: “Jamais desejei ser um filósofo analítico, e sim
nem injustos. Mas - precisa Rawls – “aquilo que é justo um pensador que levava, dentro dos confins da análise,
e aquilo que é injusto é o modo com que as instituições alguma coisa que considerasse útil e interessante”.
tratam esses fatos”. De 1974 é, portanto, Anarquia, Estado e utopia.
E para que as instituições sejam justas em Em 1981 Nozick publica Explicações filosóficas. “Velhas
relação aos desfavorecidos, estas, na opinião de Rawls, perguntas - escreve Nozick - estimularam esse ensaio:
devem fazer valer aquilo que ele chama de princípio de A vida tem um significado? Existem verdades éticas
diferença, princípio que requer que “as maiores objetivas? Nossa vontade é livre? Qual é a natureza de
expectativas dos mais favorecidos contribuam para as nossa identidade, de nosso si mesmo? Nosso
perspectivas daqueles que são menos favorecidos”. conhecimento e compreensão devem observar limites
Para sermos claros: isso equivale a dizer que se, imutáveis?”
por causa de uma lei, fossem limitadas as perspectivas E tais questões filosóficas de fundo são
dos mais favorecidos, e tal limitação acarretasse um enfrentadas no quadro de uma crítica da ideia de que a
dano para os desfavorecidos, a lei em questão seria argumentação filosófica seja de natureza coercitiva:
injusta. Arrancar o empreendimento filosófico do espírito da
Por outro lado, se uma melhoria das disputa e restitui-lo sobre novas bases, mais pluralistas,
perspectivas dos mais favorecidos servisse para da compreensão, é o objetivo central do pensamento de
melhorar as perspectivas dos desfavorecidos, tal Nozick.
melhoria não deveria ser considerada injusta. Mas isso Questões fundamentais da filosofia enfrenta
nos limites impostos pelo princípio do “maxmin” também o mais recente trabalho de Nozick O Exame da
(maximum minimorurn), para o qual é permitida não Vida (em italiano, publicado em 1989). Aqui ele procura
qualquer desigualdade, e sim são permitidas unicamente responder a perguntas como as seguintes: “Por que a
as desigualdades que maximizam o mínimo. felicidade não é a única coisa que conta? Como poderia
Como se vê o princípio do maxmin impõe que o ser a imortalidade, e que sentido teria? Os bens
verdadeiro indicador da maximização não é a melhoria herdados deveriam passar de geração em geração? As
das condições de toda a sociedade, mas a específica das doutrinas orientais da iluminação são válidas? O que é
posições dos mais fracos. E é aqui que se encontra a a criatividade, e por que as pessoas protelam o
razão pela qual Daniel Bell definiu as ideias de Rawls enfrentamento de projetos promissores? O que
como “a maior tentativa de justificar, em nossos dias, perderíamos se jamais experimentássemos alguma
uma ética socialista”. Contra essa tentativa se emoção, mas pudéssemos em todo caso ter sensações
confrontará Robert Nozick.
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agradáveis? De que modo o Holocausto mudou a Do Estado de natureza ao “Estado mínimo”


humanidade? O que é que não funciona quando alguém
pensa principalmente na riqueza e no poder? Uma Nozick parte do Estado de natureza de Locke -
pessoa religiosa pode explicar por que Deus permite onde os indivíduos estão prontos para fazer justiça por
que exista o mal? O que há de particularmente valioso si mesmos contra os usurpadores de seus próprios
no modo com que o amor passional altera uma pessoa? direitos. Todavia, enquanto Locke sustenta que se sai
O que é a sabedoria, e por que os filósofos a amam do Estado de natureza e se entra no Estado civil por
tanto? O que dizer da cisão entre ideais e fatos? Existem meio de um contrato ou acordo, Nozick afirma que do
coisas mais reais que outras, e podemos nós mesmos Estado de natureza chega-se ao Estado mínimo não por
nos tornarmos mais reais?" meio de um contrato e sim espontaneamente, por obra
O trabalho, todavia, certamente mais conhecido daquela que Adam Smith havia chamado de “mão
e mais discutido de Nozick é Anarquia, Estado e utopia, invisível”, atravessando as fases sucessivas da
um livro que se apresenta como alternativa à obra de associação de proteção, da associação protetora
John Rawls Uma teoria da justiça. dominante e do Estado ultramínimo.
O Estado nasce, portanto, espontaneamente, e
Os direitos invioláveis dos indivíduos e o “Estado não é de fato - como o desejariam os anárquicos - uma
mínimo” construção imoral que viola e esmaga os direitos dos
cidadãos.
O assunto de fundo de Anarquia, Estado e utopia “O Estado ultramínimo reserva-se o monopólio
é o seguinte: “Os indivíduos têm direitos; há coisas que de todo uso da força, excluindo a força necessária para
nenhuma pessoa ou nenhum grupo pode lhes fazer a autodefesa imediata; exclui assim as represálias
(sem violar seus direitos). Tais direitos são tão fortes e privadas (ou das companhias) aos erros, e a exação
de tão grande porte, que levantam o problema do que o privada dos ressarcimentos. Fornece, porém, serviços
Estado e seus funcionários possam fazer, se podem de proteção e de aplicação dos direitos apenas a quem
alguma coisa”. Eis, portanto, a pergunta central que compra as suas próprias apólices de proteção e de
Nozick se coloca: quanto espaço deixam para o Estado aplicação dos direitos. Quem não adquire um contrato
os direitos dos indivíduos? de proteção do monopólio não obtém proteção”.
E as conclusões a que ele chega em suas Pois bem, diversamente do Estado
reflexões sobre o Estado são: “que um Estado mínimo, ultramínimo, no Estado mínimo os cidadãos que
reduzido estritamente às funções de proteção contra a podem pagam as taxas para que a todos sejam
força, o furto, a fraude, de execução dos contratos, e garantidas proteção e aplicação dos direitos.
assim por diante, é justificado; que qualquer Estado Esta é a concepção liberal clássica do Estado
mais extenso violará os direitos das pessoas de não mínimo como guarda noturno, cuja tarefa consiste em
serem obrigadas a realizar certas coisas, e é injustificado; fazer respeitar os “vínculos colaterais” que derivam da
e que o Estado mínimo é sedutor, além de justo”. inviolabilidade dos indivíduos, os quais não são meios
Duas implicações de tudo isso, e que Nozick para o Estado e devem ser tratados pelo Estado como
julga dignas de nota, são que “o Estado não pode usar fins.
seu aparato coercitivo com o objetivo de fazer com que
alguns cidadãos ajudem outros, ou para proibir às Ninguém pode ser sacrificado em benefício de
pessoas atividades para seu próprio bem ou para sua outros
própria proteção”. Portanto, a proposta de Nozick
consiste na defesa dos direitos invioláveis de indivíduos, A inviolabilidade das pessoas significa,
indivíduos que vivem dentro de um Estado mínimo, ou exatamente, que os indivíduos devem ser respeitados
seja, de um Estado que se limita a proteger os cidadãos como fins. E ninguém deve fazer sacrifícios dos quais
da violência, do furto, da fraude e na execução de alguma entidade social ou outras pessoas tirarão
contratos. vantagens maiores. Mas que sentido tem falar de
A concepção de Nozick é uma concepção entidades sociais? A realidade é que “há apenas
individualista: é o indivíduo que ele quer defender indivíduos, indivíduos diferentes, com suas vidas
contra a ingerência e a intervenção do Estado. E aqui individuais. Usando um destes indivíduos para a
imediatamente se abre caminho para a objeção vantagem de outros, usa-se dele e se favorecem outros
anárquica: não seria melhor que o Estado de fato não e basta. O que acontece? Que lhe é feito alguma coisa
existisse? O Estado não é, por sua natureza, em proveito de outros. Isso está escondido sob o
intrinsecamente imoral? discurso do bem social complexivo.
Robert Nozick rejeita a objeção anárquica (Intencionalmente?)”.
elaborando uma explicação (na sua opinião em todo Todo individuo é uma “pessoa separada” e “a
caso instrutiva) “do modo com que o Estado poderia dele é a única vida que possui”. Ninguém - insiste
ter nascido, mesmo que não tenha nascido assim”. Nozick - pode impor sacrifícios a um indivíduo em
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benefício de outros indivíduos, e muito menos o “neste argumento entram as descrições gerais da troca
Estado. voluntária, da doação e (no extremo oposto) da fraude
A ideia fundamental é que existem indivíduos e, além disso, faz-se referência a convenções
diferentes com vidas separadas e que “ninguém pode particulares especiais, escolhidas em dada sociedade” .
ser sacrificado em favor de outros”. Ninguém, e muito O terceiro argumento refere-se à justiça na
menos o Estado, pode decidir que alguns indivíduos propriedade: “se a injustiça passada formou a
sejam recursos para outros. propriedade atual de vários modos, alguns identificáveis
e outros não, o que a este ponto se deveria fazer para
Os direitos dos animais remediar essas injustiças, uma vez que se deva?”.

Dos direitos dos homens chegamos aos dos Os três princípios da justiça
animais não humanos. Nozick pergunta:
“Existem limites ao que podemos fazer aos A matéria do primeiro argumento é regulada,
animais? Os animais têm seguramente o status moral de para Nozick, pelo princípio de justiça na aquisição:
objetos?” “Um processo que normalmente dá origem a um direito
É a Jeremy Bentham que ele se remete, ao de propriedade permanente e transmissível por herança
Bentham que não conseguia ver uma razão sequer que sobre uma coisa precedentemente sem possuidor, não
permitisse atormentar os animais, e que sustentava que será feito se a posição de outros, que não tem mais a
a questão não é se os animais podem raciocinar ou se liberdade de usar a coisa, se tornar pior”.
podem falar, e sim se podem sofrer. Nozick não quer O segundo argumento é regulado pelo princípio
ser mal-entendido e não quer que se creia que, segundo de justiça na transferência: a transferência da
ele, “deve-se dar aos animais o mesmo valor moral que propriedade é justa se é fruto de livre vontade e não
às pessoas”. Seu intento é o de discutir novamente a resultado de imposições, nem de fraude; em linha geral
questão da diferença entre homens e animais, e de ela se efetua com base em critérios válidos e que
delimitar novamente o mapa dos direitos dos animais. funcionam nesta ou naquela sociedade.
No entanto, por algumas perguntas que ele coloca, A matéria do terceiro argumento é regulada pelo
aparece suficientemente clara a direção de sua proposta. princípio de retificação: “este princípio usa os dados
Examinemos, diz ele, o caso da caça; pois bem, históricos sobre as situações precedentes e sobre as
é justo perseguir e matar animais por puro injustiças nelas realizadas, e os dados sobre o curso real,
divertimento? E suponhamos que comer animais não até agora, dos eventos originados por essas injustiças, e
seja necessário à saúde. Em um caso desse tipo o prazer favorece uma descrição (ou descrições) da propriedade
de comer animais estaria “nos prazeres do paladar, nas na sociedade. O princípio de retificação servir-se-á
delicias do gosto, na variedade dos sabores”. presumivelmente da melhor avaliação dos dados,
Pois bem, “esses prazeres superam no querer o hipotéticos, sobre o que teria acontecido se a injustiça
valor moral que se deve dar a vida e aos sofrimentos não tivesse acontecido”.
dos animais?” Eis, portanto, delineada em suas linhas de fundo
uma teoria histórica da justiça, onde vemos que “a
Os três argumentos de uma teoria histórica da propriedade de uma pessoa é justa se a pessoa tem
justiça direito a ela em decorrência dos princípios de justiça na
aquisição e na transferência, ou do princípio de
Intervencionistas e totalitários sustentam que ao retificação da injustiça”.
Estado cabe fixar e aplicar os critérios para distribuir de
modo justo a riqueza. Contra esses modelos abstratos Não existe critério para estabelecer qual é a
de justiça - e sobretudo contra aquela “obra sistemática sociedade perfeita
de filosofia política e moral vigorosa, profunda, sutil, de
amplo fôlego” que é Uma Teoria da Justiça de J. Rawls -, A ideia de Estado mínimo parece “pálida e
Nozick propõe uma teoria histórica da justiça. Essa fraca”, escreve Nozick, se comparada com as
teoria compreende três argumentos. esperanças e os sonhos dos teóricos da utopia. Todavia,
O primeiro é a aquisição inicial da propriedade; quais são e quantas são as possíveis utopias? Como será
esse argumento compreende os problemas de como o melhor dos mundos possíveis? E “melhor” para
coisas sem possuidor podem vir a ser possuídas, o quem? - uma vez que é claro que “entre todos os
processo, ou os processos com que as coisas sem mundos que posso imaginar, aquele em que eu
possuidor podem vir a ser possuídas com esses preferiria viver não será exatamente o mesmo que vocês
processos, a extensão daquilo que vem a ser possuído escolheriam”.
com um processo particular, e assim por diante. Aqui Nozick elenca os nomes de diversas
O segundo argumento refere-se à pessoas ilustres: “Wittgenstein, Elisabeth Taylor,
transferência da propriedade de uma pessoa para outra: Bertrand Russell, Thoreau, Picasso, Moisés, Einstein,
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Henry Ford, Lenny Bruce, Gandhi, Buda, Frank todos realizar a tentativa de construir sua visão e
Sinatra, Colombo, Freud, o barão Rothschild, Ted oferecer um exemplo sedutor”.
Williams, Thomas Edison, vocês e seus genitores”. Existe, portanto, o palco para utopias e existem
Feita esta lista de nomes, Nozick pede para as comunidades particulares dentro desse palco. E a
imaginar que todos eles vivam em uma das utopias este ponto aparece com toda evidência, assegura
quaisquer que foram descritas em seus particulares. Pois Nozick, que “o palco para uma utopia que descrevemos
bem, qual será a sociedade ideal para todas essas equivale ao Estado mínimo. O Estado mínimo é o
pessoas? único moralmente legitimo e o único moralmente
Viveriam elas no luxo ou levariam uma vida tolerável, é aquele que melhor do que todos realiza as
austera? Em tal sociedade haveria o matrimônio? Seria aspirações utópicas de fileiras de sonhadores e de
ele monogâmico? As crianças seriam criadas pelos visionários”. E se as coisas assim se configuram, “o
genitores? Existiria a propriedade privada? Haveria uma Estado mínimo, o palco para urna utopia, não é talvez
religião ou mais fés? O que aconteceria com a arte? uma visão atraente?”
Haverá modas de vestuário? Diante de tais e outras A verdade – assim Nozick conclui Anarquia,
perguntas, Nozick conclui que “a ideia de que exista Estado, utopia - é a seguinte: “O Estado mínimo trata-
uma resposta compósita melhor do que toda outra para nos como indivíduos invioláveis, que não podem ser
todas essas perguntas, uma sociedade em que todos usados por outros de certo modo como meios ou
podem viver no mundo melhor, parece-me ferramentas ou instrumentos ou recursos; trata-nos
inacreditável. (E a ideia de que, se houver uma, dela como pessoas que têm direitos individuais com toda a
saibamos o bastante para descrevê-la, é ainda mais dignidade que daí provém. Tratando-nos com respeito
incrível)”. porque respeita nossos direitos, permite-nos,
individualmente ou com quem julgamos melhor,
O “Estado mínimo” como o único Estado escolher nossa vida e atingir nossos fins e a ideia que
moralmente legítimo e tolerável temos de nós mesmos, no limite de nossas capacidades;
auxiliados pela cooperação voluntaria de outros
Não existe um só tipo de comunidade, e uma só indivíduos investidos da mesma dignidade. Como
ideia de sociedade perfeita é um ideal sem nenhum poderia um Estado ou um grupo de indivíduos ousar
fundamento. Por conseguinte, “a sociedade utópica é a fazer mais? Ou menos?"
sociedade dos experimentos utópicos, de muitas
comunidades diferentes e divergentes em que as 4. HANS JONAS
pessoas levam gêneros de vida diversos com diversas
intenções”.
Eis que então, insiste Nozick, “a utopia é um
palco para utopias, um lugar em que a pessoa é livre
para se associar voluntariamente a fim de perseguir e
tentar atuar sua própria visão de uma vida bela em uma
comunidade ideal, mas em que ninguém pode impor sua
própria visão utópica”. É sobre a base de tais premissas
que Nozick proclama sua verdade, ou seja, que “a
utopia é uma meta-utopia: o ambiente em que podem
ser tentados experimentos utópicos; o ambiente em que
a pessoa é livre para fazer suas próprias tentativas; o
ambiente que deve, em grande parte, ser atuado por
primeiro, caso se queiram atuar de modo estável outras
visões utópicas particulares”.
Dentro do palco para utopias, qualquer grupo 4.1 A Crítica do modelo ético tradicional perante as
de pessoas poderá propor seu modelo e tentar transformações tecnológicas
convencer os outros a participar na aventura baseada Hans Jonas (1903-1993) é considerado o último
sobre aquele modelo. representante do grupo dos filósofos judeus nascidos
“Visionários e extravagantes, maníacos e santos, na Alemanha. Viveu durante quase todo século XX,
monges e libertinos, capitalistas e comunistas e presenciando grandes mudanças e problemas que
democratas da participação, quem propõe as falanges ocorreram em tal período. Além de vivenciar a crise
(Fourier), os ministérios do trabalho (Flora Tristan), as européia nas décadas de 20 e 30, Jonas presenciou a
aldeias de unidade e cooperação (Owen), as Primeira e a Segunda Guerra Mundial, o advento do
comunidades mutualistas (Proudhon), os negócios do Nazismo, e o triunfo da sociedade tecnológica.
tempo (Josiah Warren), os Bruderhof, os Kibbutzim, os Poder presenciar e analisar o estado real dos
‘Kundalini’ ioga ashram, e assim por diante, podem acontecimentos, fizeram com que Hans Jonas
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observasse e refletisse sobre a forma com que o moral. Grande parte do pensamento ético de Jonas
desenvolvimento tecnológico, oriundo da técnica, foi nasce de uma crítica de toda história da filosofia moral
decisivo para alargar em grande escala, destruições em da ação humana. Entretanto quando se aplica a Ética
grandezas nunca imagináveis. Para Jonas, o impacto que tradicional é considerada ética antropocêntrica
as bombas atômicas causaram durante a II Guerra (especialmente leia-se aqui a ética antiga e moderna)
Mundial, inaugurou uma reflexão nova e angustiada no ética liberal, por exemplo, ou mesmo a da religião e
mundo ocidental. filosofia tradicional, usamos instrumentos antigos e
Pelo fato de ser de origem judia, teve o período insuficientes para lidar com todos os efeitos negativos
inicial de sua formação baseada na leitura dos profetas e os novos desafios da civilização.
hebreus; estudou Filosofia e Teologia em Freiburg, Jonas quer chamar a atenção para a insuficiência
enraizado na Fenomenologia e no Existencialismo. No dos imperativos éticos tradicionais diante das “novas”
ano de 1921 Jonas frequentou as aulas de Heidegger e dimensões do agir coletivo. A ética tradicional já não
Husserl. Em 1933, com a chegada dos nazistas ao tem categorias consensualmente convincentes para
poder, Jonas migra para a Palestina. sustentar um debate sobre a ação humana com o meio
Entre 1940 e 1945, Jonas alista-se no Exército em que estamos vivendo. No entanto, é central
Britânico e decide lutar contra Hitler: “eu fiz um considerar a emergência de uma ética que garanta a
juramento sagrado, uma promessa: não regressarei existência humana e de todas as formas de vida
jamais, a não ser como soldado de um exército invasor”. existentes na biosfera. Jonas propõe o Princípio
Nesse período, Jonas estava longe das bibliotecas e Responsabilidade, como sendo um princípio ético para
universidades, porém inserido em um universo de a civilização tecnológica.
espanto e reflexão. O sobressalto do estado
apocalíptico das “coisas” fizeram com que ele refletisse 4.2 O Princípio Responsabilidade como um
sobre a origem do universo, sobre as formas de vida e, imperativo ético.
acima de tudo, sobre a natureza e o abuso da técnica.
No ano de 1945, Jonas pisa em solo alemão, O Princípio Responsabilidade, além de ser
conforme havia jurado, como um soldado vitorioso e considerado um princípio ético, proporciona uma
consciente de sua dignidade: “Não voltarei a pôr os pés perspectiva de diálogo crítico em plena era tecnológica.
neste país a não ser como membro de um exército Jonas entende que, “sob o signo da tecnologia, a ética
armado”. Desde a década de 30, Hans Jonas não tem a ver com ações de um alcance causal que carece
publicou nem um escrito na língua alemã por de precedentes (...). tudo isso coloca a responsabilidade
convicções particulares: “Não posso publicar em um no centro da ética”.
país que assassinou minha mãe”. Quase quarenta anos Hans Jonas formulou um novo e característico
depois, Jonas volta a fazer o uso da escrita alemã para imperativo categórico, relacionado a um novo tipo de
edições e publicações. ação humana: “Age de tal forma que os efeitos de tua
Para Hans Jonas todas as fundamentações e ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida
investigações, que abordam as doutrinas éticas humana autêntica sobre a terra”. O imperativo
tradicionais demandam reflexões e análises, proposto por ele é de ordem racional para um agir
especialmente por serem concebidas como certas no coletivo como um bem público e não individual.
período da Modernidade. Na ética tradicional, a Para Jonas, não devemos ver a destruição física
natureza não era ostentada como objeto da da humanidade como sendo algo mais catastrófico. Se
responsabilidade humana; pois emergia somente os chegamos a esse ponto é porque houve uma morte
problemas emergentes do “aqui e o agora”. essencial, uma grande desconstrução e crise do ser com
No período Moderno, o imperativo categórico o meio. Esta sim seria a maior destruição. “Não se trata
kantiano foi mantido como sendo exemplar por muito só da sorte da sobrevivência do homem, mas do
tempo, tendo a pretensão de negar tudo que fosse extra- conceito que dele possuímos, não só de sua
humano. Kant formulou seu imperativo com o seguinte sobrevivência física, mas da integridade de sua
propósito: “Age apenas segundo uma máxima tal que essência”.
possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei Jonas quer demonstrar que muitas das
universal”. Ou seja, age de tal maneira que o princípio premissas que limitam as questões humanas e
de tua ação se transforme numa lei universal. O existenciais dadas como certas na concepção
imperativo de Kant é um caso extremo da ética da antropocêntrica, não podem ser referências para o
intenção, obedecendo à ação individual, válido no plano modelo de vida contemporânea, pois os antigos
individual. Este imperativo dirige-se ao imediato e só preceitos éticos perderam a validade pela mudança do
requer a consistência do ato consigo mesmo. agir humano.
Hans Jonas não nega as premissas da ética Conforme Jonas escreveu no livro Técnica,
tradicional, mas busca uma ponderação sobre o Medicina e Ética: “Nem uma ética anterior tinha de levar
significado dessas mudanças para a nossa condição em consideração a condição global da vida humana, o
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futuro distante e até mesmo a existência da espécie. transformadora do homem e seu trato com o mundo,
Com a consciência de extrema vulnerabilidade da incluindo a ameaça de sua existência futura”.
natureza a intervenção tecnológica do homem, surge a Para Hans Jonas, o período Contemporâneo
ecologia. Repensar os princípios básicos da ética. está imerso de tecnologia, porém afastado de
Procurar não só o bem humano, mas também o bem de responsabilidade nos atos intencionais. Ele deixa claro
coisas - extra-humanas, ou seja, alargar o conhecimento na citação a seguir sobre as suas inquietações no sentido
dos ‘fins em si mesmos’ para além da esfera do homem, do ser humano ter a opção de fazer escolhas.
e fazer com que o bem humano incluísse o cuidado
delas”. “A natureza como uma responsabilidade
A ética que Hans Jonas aborda como ética da humana é seguramente um novum sobre o qual uma
responsabilidade é uma área do conhecimento que nova teoria ética deve ser pensada. Que tipo de deveres
emerge questões relacionadas à bioética, que é uma ética ela exigirá? Haverá algo mais do que o interesse
que não deve se referir somente ao homem, mas deve utilitário? É simplesmente a prudência que recomenda
estender o olhar para a biosfera em seu conjunto, ou que não se mate a galinha dos ovos de ouro, ou que não
melhor, para cada intervenção científica do Homem se serre o galho sobre o qual se está sentado? Mas este
sobre a vida em geral. A bioética, portanto, deve se que aqui se senta e que talvez caia no precipício quem
ocupar de uma “ética” e a “biologia”, os valores éticos é? E qual é no meu interesse no seu sentar ou cair?”.
e os fatos biológicos para a sobrevivência do
ecossistema como um todo. O dever com as gerações futuras é um dever da
Vivemos grandes mudanças e conflitos nesta humanidade, independentemente se os seres são ou não
primeira década do século XXI e Hans Jonas pode ser nossos descendentes. Nosso filósofo entende que,
considerado um dos alicerces do pensamento filosófico quanto mais se pressente o perigo do futuro, mais
contemporâneo. Sua contribuição teórica busca temos que agir no presente. Jonas apropria o Princípio
responder aos inúmeros desafios trazidos pela Responsabilidade com o entrelaçamento de algumas
civilização tecnológica. teorias, no qual denominaremos de categorias:
Jonas vivenciou a ameaça da existência de seres Heurística do Medo, Fim e o Valor, o Bem o Dever e o
vivos frente à destruição da biosfera, remetendo a Ser, a relação entre a Responsabilidade Paterna, Política
seguinte reflexão: “O enorme impacto do Princípio e Total, que contribuíram para criar a base da
Responsabilidade não se deve somente a sua configuração ética que Jonas propõe.
fundamentação filosófica, mas ao sentimento geral, que
até então os mais atentos observadores poderão 4.2.1 A Heurística do Medo
permitir cada vez menos de que algo poderia ir mal para
a humanidade, inclusive o tempo poderia estar em A Heurística do Medo é considerada viável para o
posição no marco de crescimento exagerado e crescente descompasso entre a previsão e o poder da ação. A
das interferências técnicas sobre a natureza, de pôr em categoria Heurística do Medo é a capacidade humana
jogo a própria existência. Entretanto, se havia de solucionar problemas imprevistos, servindo como
comentado que era evidente a vinda da chuva ácida, o critério seguro para a avaliação dos perigos
efeito estufa, a poluição dos rios e muitos outros efeitos apresentados pela técnica.
perigosos, fomos pegos de cheio na destruição de nossa Conter tal progresso deveria ser visto como
biosfera”. nada mais do que uma precaução inteligente,
Hans Jonas determinou o Princípio acompanhada de uma simples decência em relação aos
Responsabilidade como sendo uma ética em que o mundo nossos descendentes. O medo que faz parte da
animal, vegetal, mineral, biosfera e estratosfera passam responsabilidade não é aquele que nos aconselha a não
a fazer parte da esfera da responsabilidade. A reflexão agir, mas aquele que nos convida a agir. Trata-se de um
sobre a incerteza da vida futura é resultante de um medo que tem a ver com o objeto da responsabilidade.
equívoco cometido ao isolar o ser humano do restante Trata-se de assumir a responsabilidade pelo futuro do
da natureza (sendo o homem a própria Natureza). homem.
Somente uma ética fundamentada na magnitude do ser, Quanto mais próximo do futuro estiver aquilo
poderia ter um significado real e verdadeiro das coisas que deve ser temido, mais a Heurística do Medo se torna
em si. Para “Ser é necessário existir, e para existir é necessária. O medo se torna a primeira obrigação
necessário viver e ter deveres, porém, (...) somente uma preliminar de uma ética da responsabilidade. É do medo
ética fundada na amplitude do Ser pode ter significado”. fundado que deriva a atitude ética fundamental,
Desta forma, entendemos que somos seres com repensada a partir da vontade de evitar o pior.
capacidades de entendimento, tendo liberdade para agir Hans Jonas entende que o medo é primordial
com responsabilidade frente aos nossos atos. “O mais para uma ética da responsabilidade, pois é através dele
importante que devemos reconhecer, é a realidade que o ser humano poderá agir e refletir sobre o destino
da humanidade. “O sacrifício do futuro em prol do
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presente não é logicamente mais refutável do que o O fim é aquilo em vista do qual existe uma coisa e para
sacrifício do presente a favor do futuro. A diferença está cuja produção ou conservação se realiza um processo
apenas em que, em um caso, a série segue adiante e, no ou se empreende uma ação.
outro, não”. Nesse sentido, é possível compreender o
A Heurística do Medo não é um medo paralisante tamanho da preocupação no horizonte de uma
e nem um medo patológico, mas sim, um medo que sociedade que se encontra emersa pela técnica através
desperta para o pensar e para o agir. de seus grandes inventos tecnológicos, pois tudo é
A Heurística do Medo é uma faculdade de criado e desenvolvido para ter uma finalidade (A
conhecimento, é objeto de um dever moral, um finalidade de todo o instrumento, produto ou técnica
sentimento moral e uma hipótese ruim para a política pertence ao fabricante, ao homo faber).
(um constrangimento útil) lá onde a responsabilidade é Para Jonas tudo tem um próprio Fim. O ser
muito fraca. Faculdade de conhecimento é o que indica humano, os animais, os vegetais, todos,
heurística. Nós não podemos prever os efeitos a longo independentemente de sua função, tem como finalidade
prazo de nossa técnica; nem sabemos muito bem isto, a participação no ciclo natural da vida. Todos os Fins
que tem verdadeiramente necessidade de ser protegido da produção tecnológica devem ser levados a uma
e defendido na situação atual. Estas duas coisas nos discussão ética, tanto no sentido social como individual.
serão reveladas pela antecipação do perigo. O ser humano busca suas realizações através
O medo é uma forma de frear a velocidade do das somas das ações, como também constrói a
conhecimento científico ilimitado. A heurística do liberdade pela soma de atos livres. Os seres irracionais,
temor não é seguramente a última palavra na busca do os animais, sobrevivem com um sistema genético
bem, mas, um veículo extraordinariamente útil. Deveria diferenciado. Deste modo, as ações humanas estão
ser aproveitada para o empreendimento de preservação dirigidas por uma cadeia de atos e Fins, que dão
do planeta, podendo, dessa forma, acordar para a cumprimento a um dever. O agir dos animais é
possibilidade de uma catástrofe, assim que provocando desenvolvido por um esquema de estimulações
a necessidade do limite e da renúncia em relação ao uso instintivas. Isto nos leva à conclusão de que os
de certas tecnologias. O medo seria uma forma de frear estímulos e os fins estão preestabelecidos pela própria
a compulsão e a onipotência prometeana de considerar estrutura biológica, em forma de especialização
o conhecimento científico ilimitado. genética.
O problema ético somente será anunciado ou Para Jonas, a existência do Fim último é uma
revelado quando tivermos a previsão da destruição. O questão ontológica. Desta forma, é possível entender
medo assume um lugar de grande importância na teoria que na natureza encontram-se valores e Fins, mas quais
da Responsabilidade, pois adota uma posição como seriam os Fins da natureza? A resposta é a própria
forma de conhecimento, proteção e decisão. Enfim, a existência, a “vida”. O fim da natureza está na exigência
Heurística do Medo pode ser considerada a capacidade do cumprimento do seu fim último, ou seja, na
humana de resolver problemas inesperados mediante continuidade da existência. Este é um argumento
um agir em defesa do ser. fundamental da teoria ética, em que a vida passa a ser
objeto da responsabilidade.
4.2.2 O Fim e o Valor
4.2.3 O Bem, o Dever e o Ser
Consideramos essencial o desdobramento
sobre as categorias Fim e Valor, pois ambas possuem A ética de responsabilidade está fundamentada
sentido próprio. em hipóteses ontológicas. Entre elas, os conceitos de
Em relação ao Fim, Jonas exemplifica da Bem, Dever e o Ser. Para Jonas, a compreensão
seguinte forma: “O martelo tem o fim do poder-se- científica dos fatos, não pode ser a última palavra, pois
martelar-com-ele: foi criado com esse fim e para ele; o Ser, em todas as suas dimensões, resulta em um
esse fim faz parte do seu Ser, produzido para tal, de um Dever. Entendemos que o Bem se torna um Dever
modo totalmente diferente do fim momentâneo que quando existe vontade na transformação da ação.
tem a pedra há pouco recolhida e arremessada ou o Sendo assim, o Bem pode originar uma incumbência,
galho que se quebra para alcançar algo. O fim podemos pois “com isso, torna-se um dever, desde que seja uma
dizer, faz parte do conceito do martelo, e esse conceito vontade que assuma essa exigência e trate de realizá-la”.
precedeu sua existência, como acontece com todos os Hans Jonas demonstra uma preocupação a
artefatos; foi a causa do seu devir”. favor da vida, quando afirma que a única escolha é optar
A finalidade do martelo não encerra o juízo de pela biodiversidade que se encontra em toda a natureza.
Valor, sendo uma determinação real da necessidade Segundo ele, “mais do que uma extensão do espectro
projetada para o mesmo. Esta forma de pensar ocorre genérico, o interesse se manifesta na intensidade dos
com todos os artefatos, que apenas por si só, não terão fins próprios dos seres vivos, nos quais a finalidade da
finalidades. É preciso então atribuir um Valor de uso. natureza se torna cada vez mais sugestiva”.
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Jonas tem a intenção de mostrar que os seres Desta forma, percebemos que existe um Dever
vivos devem viver para cumprir com um objetivo, implícito de forma muito concreta no Ser, com
mesmo que seja com ele mesmo. Se o ser humano tem obrigações objetivas sob a responsabilidade externa,
várias finalidades, da mesma forma todos os outros como por exemplo, a Responsabilidade Paterna.
seres têm a sua, mesmo que nos seja desconhecida, Jonas definiu a Responsabilidade Paterna como
devemos respeitar o seu ciclo. sendo uma relação natural, incondicional, englobando a
Na vida orgânica, por exemplo, a natureza totalidade do objeto, não dependendo de aprovação
satisfaz todos os seus interesses através da prévia. A Responsabilidade Política, Jonas definiu como
biodiversidade. Para ele, “o homem bom não é aquele sendo fruto de uma escolha, ambicionando o poder
que se tornou um homem bom, mas aquele que faz o para exercer a responsabilidade suprema.
bem em virtude do bem. O bem é a causa no mundo, Ele escreve sobre a importância da
na verdade, a causa do mundo. A moralidade jamais se Responsabilidade Paterna e Política dizendo que: “a
pode considerar como um fim”. essa altura, pode ser do maior interesse teórico
Jonas entende o Bem como pertencente à examinar como essa responsabilidade nascida da livre
realidade do Ser, pois lhe é próprio e poderá escolha e aquela decorrente da menos livre das relações
transformar-se em Dever na medida em que exista uma naturais, ou seja, a responsabilidade do homem público
vontade capaz de transformá-lo em ação. A partir deste e a dos pais, que se situam nos extremos do espectro da
entendimento é fundamentada a ética da responsabilidade, são as que têm mais aspectos em
responsabilidade, como exigência pertencente à comum entre si e as que, em conjunto, mais nos podem
realidade do ser, direcionada à preservação da vida. ensinar a respeito da essência da responsabilidade”.
O Dever é uma exigência que está implícita no Para Jonas, quando a criança adquire
Ser, desenvolvido na reciprocidade. Se existem deveres, conhecimentos de linguagens, ela aprende normas,
existem também direitos. Para Jonas, o Dever com a códigos sociais que estão implícitos nas normas
existência futura depende exclusivamente de nossa estabelecidas no processo educativo. No entanto, a
responsabilidade. Se somos responsáveis pelo Ser, esfera política tem o dever de assumir a educação dos
somos responsáveis pelo futuro que ainda não existe, filhos e os pais, nesse caso, terão que confiar no Estado.
mas que está projetado pela continuidade do direito de A Responsabilidade Política é ampla, pois
ser e estar no mundo. trabalha com espaços maiores em direções históricas. Já
a Responsabilidade Paterna é centrada no
4.2.4 A relação entre a Responsabilidade Paterna, desenvolvimento individual do ser. A Responsabilidade
Política e Total Política e Paterna tem o poder de decisões em relação à
vida na continuidade no presente e futuro. No entanto,
Para Hans Jonas, o ser humano por si só já tem a responsabilidade não pode deixar de estar presente e
um valor fundamental pela totalidade do seu Ser, tendo nem pode ser interrompida.
uma vantagem em relação aos outros seres pelo fato de De acordo com ele, “as assistências paterna e
poder assumir responsabilidades, podendo assim, governamental não podem tirar férias, pois a vida do
garantir seus próprios Fins. É a partir deste momento seu objeto segue em frente, renovando as demandas
que surge o arquétipo de toda a responsabilidade do ininterruptamente. Mais importante e a continuidade
homem, baseada na natureza das coisas, na relação do dessa existência assistida como uma preocupação, que
sujeito e objeto, porém, essa relação ocorre somente ambas as responsabilidades aqui analisadas necessitam
com a existência do espaço e do tempo. considerar em cada oportunidade de atuação. As
Jonas contribui afirmando que: “a marca responsabilidades particulares não se limitam apenas a
distintiva do ser humano, de ser o único capaz de ter um aspecto, mas também a um período determinado de
responsabilidade, significa igualmente que ele deve tê-la uma existência”.
pelos seus semelhantes, eles próprios, potenciais Jonas utiliza exemplos para demonstrar as
sujeitos de responsabilidade, e que realmente ele sempre responsabilidades e particularidades de cada situação
a tem, de um jeito ou de outro: a faculdade para tal é a vivida. Por exemplo: O capitão de um barco não tem
condição suficiente para a sua efetividade. Ser interesse em saber de onde vieram seus passageiros e
responsável efetivamente por alguém ou por qualquer muito menos para onde vão depois de chegar ao destino
coisa em certas circunstâncias (mesmo que não assuma programado. A tarefa do capitão consiste unicamente
e nem reconheça tal responsabilidade) é tão inseparável em transportar os seus passageiros com vida, segurança
da existência do homem quanto o fato de que ele seja e responsabilidade. Outro exemplo é a forma com que
genericamente capaz de responsabilidade da mesma o médico conduz o tratamento de um paciente. A
maneira que lhe é inalienável a sua natureza falante, responsabilidade de um médico com o seu paciente
característica fundamental para a sua definição, caso termina quando o paciente finaliza o seu tratamento e
deseje empreender essa duvidosa tarefa”. obtém a cura, ou o prolongamento da vida. Para o
médico, “não lhe interessam os outros prazeres e
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sofrimentos que tem significado para aquela vida que recomeça, abrindo um caminho para o recomeçar e
ele salvou, sua responsabilidade termina com o fim do continuar a existência de vidas no mundo de amanhã.
tratamento”.
Para termos uma responsabilidade total e não 4.3. Finalizando
parcial das situações vividas, devemos ter como
critérios, as seguintes indagações: “O que vem agora? É possível analisar através dos desdobramentos
Para onde vamos? E em seguida, o que houve antes? feitos que, Jonas pretende validar e fundamentar o
Como se liga o que está ocorrendo agora com o arquétipo de uma ética fundamentada na amplitude do
desenrolar da existência? Em uma palavra, a ser. Mas para isso é necessário a articulação das
responsabilidade total tem de proceder de forma categorias Heurística do Medo, Fim e valor, Bem, o
“histórica”, aprender seu objeto na sua historicidade. Dever e o Ser e a relação entre a Responsabilidade
Esse é o sentido preciso do elemento que Paterna, Política e Total, para criar a base de uma
caracterizamos aqui como continuidade”. configuração ética que fundamenta o Principio
Nesse aspecto, percebemos o quanto a Responsabilidade.
Responsabilidade Política tem uma dimensão ampla na Conforme Jonas, a ética precisa ser
dimensão histórica. A preocupação fundamental neste fundamentada na globalidade do ser, mas também,
momento está voltada ao futuro, pois implica a fundamentada na singularidade do homem, buscando
continuidade de uma identidade a qual integra sempre evitar qualquer forma de relativismo de valores.
diretamente a responsabilidade coletiva. Entretanto, na O Princípio Responsabilidade implica ser também,
Responsabilidade Paterna existe uma preocupação um imperativo da existência, pois essa seria a primeira
voltada ao indivíduo, como, por exemplo, a criança condição ética e responsável com e para o mundo de
adquire uma identidade histórica a partir de sua amanhã. Entretanto, pensar nas possibilidades de
historicidade individual. termos através da educação uma construção coesiva de
É essa identidade histórica sobre o tempo que, conhecimento, que busque através da dialogicidade
para Jonas, pode ser desenvolvida e garantida pela princípios éticos e responsáveis, é uma possibilidade de
Educação, pois ocorre uma passagem da efetivarmos uma práxis coletiva. Poder respeitar, cuidar,
Responsabilidade Paterna para o mundo histórico. O lutar, renunciar e acima de tudo agir com
processo de responsabilidade total via educação deverá responsabilidade, é um ato essencialmente ético, que
ser de forma individual ao social, sem correr o risco de por sinal está em nossa esfera do poder. Hans Jonas foi
perder a identidade histórica. um educador, um pensador, que remeteu suas
Desta forma, Jonas entende que “todo preocupações com a humanidade, com a vida presente
educador sabe disso. Mas, além disso, e de forma e futura. Jonas tornou-se uma referência para a área da
inseparável encontra-se a comunicação da tradição Bioética, Educação e Filosofia, desafiando questões
coletiva, com o seu primeiro som articulado e a pertinentes sobre como educar para a vida, em uma
preparação para a vida em sociedade. Com isso, o sociedade tecnológica contemporânea.
horizonte da continuidade amplia-se no mundo
histórico; uma se sobrepõe à outra, e assim é impossível
à responsabilidade educativa deixar de ser ‘política’,
mesmo no mais privado dos âmbitos”.
A responsabilidade, seja ela por vias individuais
ou coletivas, deverá ocupar-se com a vida, com o hoje
e o mundo de amanhã. “Mas essa óbvia inclusão do
amanhã no hoje, que tem a ver com a temporalidade
como tal, adquire uma dimensão e uma qualidade
totalmente nova no contexto da responsabilidade
total”.
A responsabilidade total inclui a existência da
vida futura, ao contrário dos exemplos anteriores, em
que o médico e o capitão do barco não têm como
princípio preocupações com o que não envolve as suas
responsabilidades momentâneas (responsabilidade
parcial). A Responsabilidade Paterna tem como fim
pré-determinado educar para tornar o filho adulto e
responsável, tem inclusa uma das grandes tarefas da
vida, que é cuidar da vida. Nem uma criança pede para
nascer em determinadas situações privilegiadas. Porém,
é a partir do nascimento de uma vida que a humanidade
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