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(ACESSO EM: 3/12/2021)
“Em maio, era sous les pavés, la plage, e hoje, sous l’asphalte, les pavés.”
- Elisabeth Lenk, carta a Theodor W. Adorno em 26 de julho de 1968.
Nesse período, Adorno viveu uma série de conflitos com o movimento estudantil
alemão, especialmente com a SDS [Sozialistische Deutsche Studentenbund]. Entre
os episódios mais marcantes estão o chamado “atentado dos seios”– uma
interrupção da aula de Adorno por mulheres com os seios desnudos que dançaram
à sua volta – e a invasão do Instituto de Pesquisa Social que culminou com a
lamentável recorrência de Adorno à polícia para que os estudantes desocupassem
o prédio. Esses conflitos marcaram a recepção da obra adorniana e contribuíram
para a cristalização da imagem do “filósofo da torre de marfim”. Sua atitude reforçou
o estereótipo elitista, excludente e misógino de sua teoria. Se há alguma verdade
nesse estereótipo, ele deixou de fora um aspecto importante da atuação de Adorno
naquele período: a do intelectual que foi uma das inspirações de maio de 68. Essa
correspondência também mostra uma outra relação com o movimento estudantil, do
qual Lenk fizera parte e ajuda a tornar mais conhecida uma autora que não é, em
geral, considerada parte da segunda geração da teoria crítica.
Não é fortuito que o surrealismo tenha sido um movimento tão presente no maio de
1968. A ideia de que mudar o mundo não era só mudar a estrutura de classes, mas
era “mudar a vida”, de que a revolução deveria liberar também a sexualidade, de
que a arte acadêmica estaria morta e deveria sair dos museus e tomar a vida
cotidiana, de que a poesia estaria nas ruas, o elogio da experimentação com as
drogas, a proposta de fazer amor ao invés de fazer a guerra, de escavar uma história
e uma paisagem escondida nas grandes cidades, a própria forma dos grafites
pintados nos muros, tudo isso tinha grandes afinidades com o movimento surrealista,
que participou dos levantes de maio e teve uma grande influência na Primavera de
Praga. As críticas de Lenk a Lukács retomam uma recusa ampla à defesa do
realismo no período (vale lembrar uma das palavras de ordem: “Abaixo o realismo
socialista. Viva o surrealismo”) que era também uma forma de protesto contra o
enrijecimento da política, da arte e da concepção de vida defendida pelo comunismo
oficial. Maio de 1968 apontava para o fato de que uma nova política de esquerda
precisa saber incorporar novas exigências e, conforme mostrou a experiência alemã,
elaborar o passado.
Em sua introdução à correspondência, Lenk apresenta a teoria crítica não como uma
teoria estranha a esse ambiente político de 1968, mas como seu complemento.
Nesse sentido, tanto a teoria quanto o surrealismo partilhariam determinados
ímpetos. Em primeiro lugar, porque para a Escola de Frankfurt assim como para o
surrealismo, a noção de crítica envolve tanto um aspecto político quanto uma
dimensão estética. Além disso, ambos seriam um protesto contra o positivismo e a
especialização científica. Esse projeto teria sua maior expressão nas revistas do
Instituto, a Zeitschrift für Sozialforschung, e nas revistas surrealistas Révolution
Socialiste e, porteriormente, em Critique, fundada por Bataille. Essas revistas não
só adiantariam temas que surgiriam com toda força em 1968, como buscariam
superar a fragmentação do conhecimento produzido pela alienação da divisão social
do trabalho científico. Além disso, tanto uma, quanto outro, cada um à sua maneira,
incorporariam a experiência como um elemento fundamental do conhecimento
crítico do mundo. É quase como se, nesse aspecto, a teoria crítica tivesse sido, ela
também, uma espécie de vanguarda no âmbito do pensamento crítico.
O grande paradoxo de todo o marxismo, a teoria crítica inclusa, é que ele vive para
se tornar prescrito, seja porque foi superado pela transformação social, seja porque
o tempo passou e é preciso acertar os ponteiros do relógio. Para não se transformar
em tradição, ele precisa ser um pensamento vivo. Muitos dos conflitos da década de
1960 ainda estão presentes nos embates no interior da esquerda nesse momento.
Colocar fogo em estátuas é uma forma de tentar elaborar o passado. Um passado
colonial, escravista, fascista e naturalizado. Mudar a gramática é elaborar um
passado e um presente no qual o masculino é sinônimo de universal. Quem
desqualifica essas propostas ao afirmar que isso é importado não conhece o caráter
internacionalista da luta socialista. Por outro lado, uma luta socialista que
desqualifique o pensamento, a reflexão, a teoria, joga fora uma das armas mais
poderosas que temos à nossa disposição.
Por isso, essa correspondência pode ser lida não só como um documento histórico
a partir do qual é possível descobrir uma história subterrânea da década de 1960,
mas como um caminho para o presente. Não uma história de rompimento entre
gerações, mas de cumplicidade. Lenk como militante que não padeceu do anti-
intelectualismo da SDS alemã e Adorno como professor que, em muitas ocasiões,
incentivou a participação política dos estudantes e uma teoria crítica sem
compromisso com o establishment.