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(ACESSO EM: 3/12/2021)

Theodor W. Adorno e Elisabeth Lenk,


uma correspondência
08 Setembro 2021.
Bruna Della Torre comenta a correspondência entre Theodor W. Adorno e Elisabeth
Lenk, compreendendo-a não só como um documento histórico dos anos 1960, mas
como um caminho para o presente.

“Em maio, era sous les pavés, la plage, e hoje, sous l’asphalte, les pavés.”
- Elisabeth Lenk, carta a Theodor W. Adorno em 26 de julho de 1968.

A correspondência é uma forma literária prescrita e, com ela, desapareceu não só o


tipo de subjetividade que lhe era correlata, mas uma forma de comunicação que faz
imensa falta num mundo dominado pelo aparente imediatismo das redes sociais.
Quem já tentou escrever uma carta nos dias de hoje, seja para uma amiga, uma
amante, uma colega de profissão, com certeza pôde perceber a estranheza
envolvida nesta atividade, à primeira vista, tão simples. Sua forma envolve um
equilíbrio sempre frágil entre proximidade e distância, intimidade e reserva. E a
reflexão exigida por ela tem efeitos paralisantes em quem se acostuma com o caráter
automático e enxuto das mensagens contemporâneas. Nada mais destoante das
regras de etiqueta correntes nas redes do que mandar longas mensagens, áudios,
e-mails. Ligações, nem pensar, só em caso de emergência. Tomar o tempo do outro
é uma espécie de pânico que acompanha nossas relações e motivo suficiente para
tornar uma pessoa indesejável. Por isso, a comunicação corre o risco de ser
aniquilada pela sociedade que a revolucionou. Ler uma correspondência é, portanto,
quase uma experiência arqueológica, na medida em que ela nos transporta para um
mundo cuja noção de temporalidade se torna cada vez mais distante de nossa
realidade.

Quando Adorno se correspondeu com Elisabeth Lenk, sua orientanda de doutorado,


essa forma já estava em vias de extinção. Seu crepúsculo coincidia com aquele que
viveria a primeira geração da teoria crítica na Alemanha e com a derrota das
esperanças de maio de 1968. Nesse sentido, é possível ler a sua correspondência,
como propôs Benjamin em Gente Alemã, procurando nela o espírito de uma época,
seus conflitos e contradições, mas também a sua história subterrânea. A
correspondência ficou conhecida por conter duas cartas de amor que Adorno
escreveu a Lenk que revelam tanto sua tentativa de extrapolar o papel de orientador,
quanto uma cansativa síndrome de Don Juan; mas ela não se reduz a isso. A troca
de cartas entre ambos expõe um lado menos conhecido de Adorno, aquele do
professor e correspondente, mas pode ser lida igualmente como um diálogo entre
personagens sociais, mais que individuais, que representam o tempo no qual
viveram e a geração da qual fizeram parte. A correspondência se passa na década
de 1960, entre a Alemanha e a França.

Nesse período, Adorno viveu uma série de conflitos com o movimento estudantil
alemão, especialmente com a SDS [Sozialistische Deutsche Studentenbund]. Entre
os episódios mais marcantes estão o chamado “atentado dos seios”– uma
interrupção da aula de Adorno por mulheres com os seios desnudos que dançaram
à sua volta – e a invasão do Instituto de Pesquisa Social que culminou com a
lamentável recorrência de Adorno à polícia para que os estudantes desocupassem
o prédio. Esses conflitos marcaram a recepção da obra adorniana e contribuíram
para a cristalização da imagem do “filósofo da torre de marfim”. Sua atitude reforçou
o estereótipo elitista, excludente e misógino de sua teoria. Se há alguma verdade
nesse estereótipo, ele deixou de fora um aspecto importante da atuação de Adorno
naquele período: a do intelectual que foi uma das inspirações de maio de 68. Essa
correspondência também mostra uma outra relação com o movimento estudantil, do
qual Lenk fizera parte e ajuda a tornar mais conhecida uma autora que não é, em
geral, considerada parte da segunda geração da teoria crítica.

Elisabeth Lenk nasceu em 1937 e hoje é professora emérita de literatura na


Universidade de Hannover. Foi membra da SDS no início da década de 1960, militou
contra a guerra da Argélia e engajou-se no maio de 1968 francês. Além de ter sido
orientada por Adorno, em Frankfurt, Lenk trabalhou durante seu doutorado com
Lucien Goldmann em Paris e, posteriormente, foi assistente de Peter Szondi. É
autora de diversos artigos e livros, como, por exemplo, Der springende Narziss.
André Bretons poetischer Materialismus [Narciso saltante: o materialismo poético de
André Breton] (1971), Die unbewusste Gesellschaft: über die mimetische
Grundstruktur in der Literatur und im Traum [A sociedade inconsciente: sobre a
estrutura mimética na literatura e no sonho] (1983), Kritische Phantasie [Fantasia
crítica] (1986), entre outros.
De acordo com sua introdução à correspondência, Lenk procurou tanto a SDS
quanto Adorno devido a uma insatisfação com o ambiente político na Alemanha do
pós-guerra. O maio de 1968 alemão tem um traço específico se comparado a de
outros países. A República Federal Alemã fora construída a partir de um consenso
forçado, que buscava silenciar as contradições legadas pela guerra. O país não
sofrera uma “desnazificação” completa. Para se ter uma ideia dos conflitos que se
desenhavam naquele ambiente, Lenk comenta em sua introdução uma exposição
organizada por Reinhard Strecker em 1962, que publicou documentos de mais de
cem juízes de passado nazista em exercício na RFA. Uma manifestação de apoio a
essa exposição custou à SDS sua expulsão do SPD [Partido Democrata Alemão],
do qual até então era parte. A partir de então a SDS se tornaria um movimento
independente. Esse episódio demonstra como as revoltas de maio por lá foram
também uma luta contra o nazismo encrustado numa sociedade que se apresentava
como democrática. Se, como disse Adorno em sua palestra de 1967, Aspectos do
novo radicalismo de direita, o fascismo é sempre uma “ferida” da democracia, na
Alemanha da década de 1960 essa ferida ainda sangrava e a recusa até mesmo dos
setores progressistas em enfrentar esse passado levou a uma radicalização cada
vez maior do movimento estudantil.

Lenk era militante da SDS. Em seu congresso de refundação após a expulsão do


SPD, foi uma das principais palestrantes e defendeu um movimento que fosse
próximo da teoria crítica. Foi considerada, por isso, uma representante da “linha
Adorno” no congresso. O movimento ganhava traços anti-intelectualistas e, segundo
ela, dificultava a participação de mulheres. Atualmente, a historiografia a respeito da
década de 1960 no mundo inteiro mostra como maio de 1968 foi ao mesmo tempo
um momento no qual a luta da classe trabalhadora floresceu junto às lutas
antirracistas, feministas e LGBTQI+ e um momento no qual essa aliança vislumbrada
não se sustentou, obrigando muitas mulheres a se organizar separadamente nos
movimentos feministas e a enfrentar a chamada “dupla militância”. De uma forma ou
de outra, muitos dos conflitos que vivemos hoje parecem remeter a esse momento:
“identitarismo” ou luta de classes? Crítica estética ou crítica social? Teoria crítica ou
práxis das barricadas? Essas oposições continuam a orientar nossos debates e
separar as nossas gerações.

O projeto inicial de doutorado de Lenk era sobre Émile Durkheim e a Escola


Francesa, mas seu engajamento contra a guerra na Argélia levou-a a Paris, onde
conheceu André Breton e passou a fazer parte do círculo surrealista. A
correspondência começa com essa mudança e um dos primeiros tópicos da troca
de cartas com Adorno é a modificação do tema da tese, do “pastor alemão” da
sociologia – conforme afirmou certa vez Gabriel Cohn – para o surrealismo. Adorno
entusiasmou-se com a alteração, mas sublinhou que era preciso dar um jeito de
encaixá-la na “sociologia” para que Lenk pudesse continuar no programa de pós-
graduação. Quem era orientado por Adorno naquele período encontrava algumas
dificuldades de inserção acadêmica, uma vez que a transdisciplinaridade de sua
obra e do Instituto não era bem-vista pela academia alemã. Há uma série de cartas
a respeito de questões burocráticas, de bolsas de estudo, estágios de docência etc.
que revelam um ambiente profundamente marcado pelo “personalismo” e uma
ampla atuação administrativa de Adorno, bem como uma grande disposição de
auxiliar e aconselhar as e os estudantes. Mas o papel de Adorno não se reduz a
uma orientação burocrática, o que para o ambiente intelectual atual já é muita coisa.
Além de ler os trabalhos de Lenk, Adorno enviava a ela os seus. Podemos entrever
uma relação intelectual de troca e camaradagem que está presente, aliás, em outros
momentos da extensa correspondência de Adorno.

Um dos tópicos mais interessantes da correspondência é o surrealismo, que já havia


sido assunto de debate entre Adorno e Benjamin na década de 1930. Este último
havia conhecido o movimento em Paris e, para desespero de Adorno, sido
fortemente influenciado por ele. Seu projeto sobre as Passagens incorporou
elementos surrealistas como, por exemplo, as experiências de escrita sob o efeito
do haxixe e da embriaguez, os procedimentos de montagem e colagem, o objet
trouvé, o inconsciente e o sonho, o ódio à mediocridade da vida burguesa, entre
outros. Em “O surrealismo. O último instantâneo da inteligência europeia”, escrito
em 1929, momento de sua “virada marxista”, Benjamin chama a atenção para o
“niilismo revolucionário” presente em Nadja de Breton e em Passage de l’opéra, de
Aragon. Segundo ele, a Europa não possuía um conceito tão radical de liberdade
desde Bakunin.

Adorno via o surrealismo com desconfiança. Na sua correspondência com Benjamin,


ele apresenta algumas críticas ao movimento que depois seriam reunidas no
pequeno ensaio “Revendo o surrealismo”, publicado em 1956. De acordo com a sua
leitura, a hipóstase do inconsciente (implicada, por exemplo, na proposta de “escrita
automática”) pressuporia uma espontaneidade que a psicanálise demonstra que não
pode ser atingida de forma “automática”, mas apenas com uma longa e trabalhosa
elaboração. Isso valeria igualmente para a aproximação da lógica surrealista àquela
do sonho. O problema era a falta de mediação entre consciente e inconsciente,
racionalidade e irracionalidade tanto nas obras quanto na concepção que o
surrealismo tinha de suas práticas. Mas o juízo de Adorno sobre o surrealismo não
era exclusivamente pejorativo. Ele via as montagens surrealistas de maneira mais
ambígua. Segundo ele, ao criarem “naturezas mortas”, elas exporiam o
enrijecimento da libido e recuperariam o caráter fragmentário do desejo como, por
exemplo, podemos ver nas obras que combinam, pela colagem, pernas de
manequins em meias de seda, bocas, olhos etc. Segundo Rita Bischof, que assina
a introdução à tradução da correspondência entre Adorno e Lenk para o inglês, esse
ensaio pode ser lido como um obituário precoce. Adorno decretou, segundo ela, a
morte de um movimento que não teria ainda vindo a termo e sua avaliação do
surrealismo não passava por nenhuma obra específica – contrariando a sua própria
regra de crítica imanente.

Lenk retomou o projeto benjaminiano de introdução do surrealismo na Alemanha.


Para ela, o surrealismo consistiu numa tentativa, por parte de uma arte que era
autônoma, mas impotente, de reganhar as energias que dela haviam se separado.
Breton produziria, nessa chave, não uma poesia à beira do irracionalismo, como
queria Adorno, mas um “materialismo poético”, definido por reconhecer que o próprio
corpo das palavras produziria seu primeiro sentido. Fredric Jameson desenvolveu
posteriormente uma ideia similar, talvez ainda mais radical, em seu ensaio “Mallarmé
materialista”. Por outro lado, Lenk via na “percepção surrealista”, na ideia de que os
“sentidos pensam”, uma arte plena de vigor revolucionário justamente por seu
caráter sensual. Em sua introdução de 1969 ao Le paysan de Paris, de Aragon, Lenk
ressalta a radicalidade do romance-montagem de Aragon que ganha força poética
porque torna autônomas as imagens que nutrem a sua poesia, transforma o abstrato
no que é sensualmente perceptível. Lenk afirma que Aragon mobiliza o naturalismo,
por meio de sua descrição de cada objeto presente no Café Certa, por exemplo,
como uma forma de dissolver o realismo. Lenk retoma a crítica de Lukács ao
naturalismo, segundo a qual este se oporia ao realismo na medida em que nele, o
detalhe e a particularidade se autonomizam em relação ao todo. A particularidade,
para o realismo, conforme ressalta Lenk, não pode ser substituída por qualquer
outra, mas deve ganhar relevância por meio da perspectiva. Segundo ela, Benjamin,
que forneceria a chave de interpretação do surrealismo, seria o grande adversário
de Lukács, ao mostrar como a modernidade da alegoria barroca consistiria
justamente na autonomização dos detalhes em relação ao todo. Eles deixariam de
ser, assim, de acordo com Lenk, forçados a significar alguma coisa e, com isso,
liberariam também o seu potencial sensual/sensitivo.

Não é fortuito que o surrealismo tenha sido um movimento tão presente no maio de
1968. A ideia de que mudar o mundo não era só mudar a estrutura de classes, mas
era “mudar a vida”, de que a revolução deveria liberar também a sexualidade, de
que a arte acadêmica estaria morta e deveria sair dos museus e tomar a vida
cotidiana, de que a poesia estaria nas ruas, o elogio da experimentação com as
drogas, a proposta de fazer amor ao invés de fazer a guerra, de escavar uma história
e uma paisagem escondida nas grandes cidades, a própria forma dos grafites
pintados nos muros, tudo isso tinha grandes afinidades com o movimento surrealista,
que participou dos levantes de maio e teve uma grande influência na Primavera de
Praga. As críticas de Lenk a Lukács retomam uma recusa ampla à defesa do
realismo no período (vale lembrar uma das palavras de ordem: “Abaixo o realismo
socialista. Viva o surrealismo”) que era também uma forma de protesto contra o
enrijecimento da política, da arte e da concepção de vida defendida pelo comunismo
oficial. Maio de 1968 apontava para o fato de que uma nova política de esquerda
precisa saber incorporar novas exigências e, conforme mostrou a experiência alemã,
elaborar o passado.

Em sua introdução à correspondência, Lenk apresenta a teoria crítica não como uma
teoria estranha a esse ambiente político de 1968, mas como seu complemento.
Nesse sentido, tanto a teoria quanto o surrealismo partilhariam determinados
ímpetos. Em primeiro lugar, porque para a Escola de Frankfurt assim como para o
surrealismo, a noção de crítica envolve tanto um aspecto político quanto uma
dimensão estética. Além disso, ambos seriam um protesto contra o positivismo e a
especialização científica. Esse projeto teria sua maior expressão nas revistas do
Instituto, a Zeitschrift für Sozialforschung, e nas revistas surrealistas Révolution
Socialiste e, porteriormente, em Critique, fundada por Bataille. Essas revistas não
só adiantariam temas que surgiriam com toda força em 1968, como buscariam
superar a fragmentação do conhecimento produzido pela alienação da divisão social
do trabalho científico. Além disso, tanto uma, quanto outro, cada um à sua maneira,
incorporariam a experiência como um elemento fundamental do conhecimento
crítico do mundo. É quase como se, nesse aspecto, a teoria crítica tivesse sido, ela
também, uma espécie de vanguarda no âmbito do pensamento crítico.

Lenk busca mostrar então as alianças entre as utopias de 68, as vanguardas


artísticas e a teoria crítica. Esse aspecto fica evidente na brilhante introdução que
escreveu ao livro de Fourier, “Teoria dos quatro movimentos”, organizado por
Adorno e que foi também tópico na troca de cartas entre ambos. Lá, Lenk retoma a
relação da utopia com a ciência, com o fito de defender que não há um antagonismo
entre esses elementos. Segundo ela, não considerar a utopia como parte da ciência,
como faz a sociologia, seria banir a imaginação do método científico. Ela toma de
Fourier uma ideia muito cara também à teoria crítica: a de que a felicidade possui
um caráter objetivo que envolve a reconstrução da sociedade tal como ela existe
hoje, mas tem também o seu lado subjetivo, que tem a ver não com uma
transformação menor ou individual, mas com uma transformação ainda maior das
formas sociais que orientam nossos modos de vida. Numa das cartas que Adorno
envia a Lenk, ele diz que ouviu de Lukács certa vez que Fourier ainda era uma coisa
do futuro e que a nossa sociedade ainda não estaria pronta para o seu pensamento.

Essa relação entre a teoria crítica e as utopias de maio de 1968 é sempre


reconhecida no caso de Marcuse, mas pouco ressaltada pela recepção de Adorno.
As cartas demonstram as profundas afinidades que Adorno possuía com a geração
que lhe sucedeu e a influência dos movimentos dos anos de 1960 em sua obra é
visível. No curso de estética que Adorno havia dado em 1958/59, o surrealismo
aparece de passagem somente em duas aulas. Na correspondência com Lenk, após
uma carta na qual ela defende o surrealismo, Adorno responde que pretendia
escrever um ensaio “em defesa dos ismos”, que depois se tornaria uma parte de sua
Teoria Estética. Ali, Adorno matiza o seu anti-vanguardismo, para utilizar a
expressão de Peter Bürger, e defende que o projeto coletivo implicado nos “ismos”
foi tão odiado pelo nazismo e pela sociedade burguesa porque nega o esquema da
individuação absoluta ao mesmo tempo em que substitui a autoridade tradicional
das antigas escolas. Neles, se evidencia o paradoxo da relação entre arte e as obras
de arte, com a sobreposição da primeira sobre as outras. E não é só a influência de
Lenk que aparece nesses textos. Em “Transparências do filme”, por exemplo, ensaio
no qual Adorno repensa as possibilidades do cinema como arte, a influência de outro
aluno seu, Alexander Kluge, também é evidente. Seria interessante ler a Teoria
Estética e outros textos escritos nesses anos à luz desses debates, uma vez que
estética e política tornam-se cada vez mais intricadas na obra de Adorno no período.
Um pouco antes da morte de Adorno, Lenk envia a ele uma série de textos dos
situacionistas. Sua simpatia por eles custou a ela a expulsão do círculo surrealista.
De qualquer forma, isso evidencia como as reflexões sobre arte de Adorno são
informadas por esse contexto.

O grande paradoxo de todo o marxismo, a teoria crítica inclusa, é que ele vive para
se tornar prescrito, seja porque foi superado pela transformação social, seja porque
o tempo passou e é preciso acertar os ponteiros do relógio. Para não se transformar
em tradição, ele precisa ser um pensamento vivo. Muitos dos conflitos da década de
1960 ainda estão presentes nos embates no interior da esquerda nesse momento.
Colocar fogo em estátuas é uma forma de tentar elaborar o passado. Um passado
colonial, escravista, fascista e naturalizado. Mudar a gramática é elaborar um
passado e um presente no qual o masculino é sinônimo de universal. Quem
desqualifica essas propostas ao afirmar que isso é importado não conhece o caráter
internacionalista da luta socialista. Por outro lado, uma luta socialista que
desqualifique o pensamento, a reflexão, a teoria, joga fora uma das armas mais
poderosas que temos à nossa disposição.

Por isso, essa correspondência pode ser lida não só como um documento histórico
a partir do qual é possível descobrir uma história subterrânea da década de 1960,
mas como um caminho para o presente. Não uma história de rompimento entre
gerações, mas de cumplicidade. Lenk como militante que não padeceu do anti-
intelectualismo da SDS alemã e Adorno como professor que, em muitas ocasiões,
incentivou a participação política dos estudantes e uma teoria crítica sem
compromisso com o establishment.

Se a primeira geração Escola de Frankfurt, como outras vertentes marxistas, foi


extremamente excludente do ponto de vista de gênero, essa situação estava
mudando na década de 1960, como afirmou Angela Davis, uma das discípulas da
teoria crítica. Mulheres como Lenk, Regina Becker-Schmidt, também orientanda de
Adorno, Helge Pross, assistente de Adorno e Horkheimer no Instituto, a própria
Davis, entre outras, contam uma outra história do Instituto que não é aquela dos
herdeiros oficiais que se afastaram do marxismo para ceder ao consenso liberal.
Uma história marxista, feminista, surrealista.

No mês de setembro, o coletiva marxismo feminista fará um ciclo de debates


intitulado “Mulheres e o direito à literatura”. Confira a programação aqui.

Bruna Della Torre é pós-doutoranda no Departamento de Sociologia da Unicamp,


onde estuda indústria cultural e agitação fascista no Brasil. Editora executiva da
revista Crítica Marxista, pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos de
Teoria e Mudança Social (Labemus) e membra fundadora da coletiva Marxismo
Feminista. Realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura
Comparada, doutorado em Sociologia (bolsista Capes) e mestrado em Ciência
Social (bolsista Fapesp), todos na Universidade de São Paulo. Escreve para o Blog
da Boitempo mensalmente.

Fonte: Blog da Boitempo

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