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07/03/2022 17:12 A questão racial na crítica de Adorno ao jazz - A TERRA É REDONDA

A questão racial na crítica de Adorno ao jazz

Francis Picabia

Por LUCAS FIASCHETTI ESTEVEZ*

Theodor W. Adorno diagnosticou como o jazz integrou os negros à sociedade por meio de
estereótipos e representações racistas

No primeiro dia do ano foi publicado no site A Terra é Redonda, o artigo “Theodor Adorno e
o jazz”  de Celso Frederico, o qual tratava da “implicância adorniana” frente a essa música.
Infelizmente, o texto está recheado de mal-entendidos que dão eco a uma extensa miríade
de autores que veem na crítica adorniana ao jazz elementos de elitismo, preconceito e
dogmatismo teórico[i], como se Adorno tivesse julgado aprioristicamente aquela música
como algo condenável do ponto de vista moral, já que “preferia” a música nova de
Schoenberg e seus discípulos.[ii]

Entretanto, tais posições não se sustentam se visarmos aquilo que Frederico parece ter se
esquecido de levar em consideração, a saber, o tipo de jazz com o qual Theodor Adorno
travou contato quando escreveu seus textos sobre o assunto. Nesse sentido, acredito que a
maneira como a questão racial é formulada dentro da análise adorniana do jazz nos oferece
um bom contraponto, mesmo que indireto, às questões expostas por Frederico. Dito isto,

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proponho aqui não uma réplica pormenorizada, mas uma interpretação distinta que leva em
consideração aspectos que ali foram ignorados.

De maneira geral, poderíamos afirmar que Adorno caracterizou o jazz ao longo de seus
escritos como o exemplo mais claro de um processo de colonização da forma mercadoria no
âmbito cultural, enquanto expressão daquele fetichismo descrito por Karl Marx. Embora
tenha surgido às margens da indústria do entretenimento e entre as populações negras e
pobres dos Estados Unidos, o jazz foi rapidamente transformado na música comercial por
excelência, sofrendo profundas alterações em seu material musical e em seu público.

Alardeado pela indústria cultural ao longo dos anos 1920 em diante como uma música
moderna, democrática e despojada, o jazz também carregava consigo, entretanto, uma
contradição notada por Adorno desde o princípio, a saber, a imagem de um estilo ao mesmo
tempo selvagem e moderno, autêntico e inédito. Embora bastante distinto daquela música
que surgiu no início do século, o jazz comercial reivindicava para si os símbolos daquela
origem, a qual tinha se tornado, nas mãos das grandes gravadoras, uma espécie de
romantização idealizada do passado, uma fábula de sua origem negra (Negerfabel).
Reproduzido como uma música autêntica e disruptiva por ter saído dos rincões mais pobres
e portanto “intocados” do país, aqueles elementos estranhos à estética europeia que o jazz
carregava consigo foram descaracterizados e transformados em fetiches que podiam ser
usados comercialmente.

Em suma, confessava-se a origem negra dessa música ao mesmo tempo que os elementos
daquela fase de sua produção eram eliminados. Paralelamente a isso, o papel social que o
jazz ocupava entre os negros era expropriado pelos grandes monopólios da cultura, que
para impingir sobre sua música o selo do sucesso, integravam os negros de forma
preconceituosa.

Esse fenômeno, que aqui chamaremos de dialética da integração-estereotípica, foi bastante


notado por Adorno, embora seja deixado de lado pela maior parte da literatura. Como
fenômeno contraditório, esse tipo de integração dos negros à sociedade – tanto norte-
americana como europeia – permitiu, de forma inédita, que uma importante expressão
cultural oriunda de tal grupo obtivesse ampla repercussão para além das barreiras raciais
previamente estabelecidas, com a ascensão de artistas, músicos e compositores negros.
Entretanto, buscamos aqui ressaltar como tal integração se deu por meio de representações
preconceituosas que traziam consigo muito do ideário racista em voga naquelas sociedades,
da mesma forma que encobria o fato de que aquilo que era veiculado como jazz tinha
pouquíssima relação com suas origens.

Durante a República de Weimar, contexto no qual Theodor Adorno escreveu suas primeiras
análises dessa música, o jazz se constituiu como um tipo de música comercial, voltada à

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dança, sem muitas inovações rítmicas, harmônicas e melódicas. Sua entrada no país se deu
logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, quando as primeiras bandas de jazz, em sua
grande maioria compostas por músicos brancos europeus, começaram a se apresentar pelo
país[iii]. Durante esse período, poucas bandas de jazz norte-americanas pisaram em solo
alemão, devido ao isolamento no qual o país se encontrava tendo em vista os bloqueios
econômicos em curso.

Por isso, diferentemente do resto da Europa, onde a hot music (o jazz musicalmente mais
complexo) encontrava maior acolhida, o jazz alemão se tornava cada vez mais endógeno,
fazendo das referências de sua origem negra uma reprodução dos estereótipos raciais já
presentes naquela cultura europeia[iv]. Além de se limitarem a um material musical mais
tradicional, sem arroubos rítmicos e mais presos a uma reprodução literal da partitura, a
formação musical das bandas alemãs também era muito tributária da música de concerto,
do ragtime, das valsas e da banda militar.[v]

Mesmo com a melhora gradativa da condição econômica do país a partir da segunda metade
da década de 1920 e o entusiasmo de Weimar diante da sociedade estadunidense, símbolo do
progresso, a régua estigmatizadora perante as referências negras do jazz norte-americano
continuou a traçar a fisionomia daquela música. As gravadoras e editoras alemãs
continuaram a impor restrições ao mercado fonográfico norte-americano, o que manteve
boa parte de sua música alheia aos estilos mais próximos da tradição da hot music. Nesse
contexto, vigoraram restrições governamentais relativas à importação, venda e circulação
de obras de artistas afro-americanos, numa clara política de segregação racial que buscava
salvaguardar o mercado alemão do predomínio de artistas negros. A música aceita e
comercializada pelo país vinha em grande parte de um circuito de editoras nova-iorquinas
conhecidas como Tin Pan Alley, onde a tendência do jazz orquestral, branco e musicalmente
pouco complexo, era hegemônica.

Assim sendo, embora a sociedade alemã estivesse entusiasmada perante a modernidade


representada pelos EUA, havia seletividade em tal postura, já que esta permaneceria
reticente em relação aos elementos negros daquela cultura. Quando entravam no país, os
traços da origem negra do jazz eram necessariamente transformados em fetiches e em
estereótipos raciais. Era comum em alguns jornais da época, por exemplo, identificar no
elemento negro do jazz uma moral sexual e racial nociva à “superior cultura alemã”.[vi]

Assim, a indústria do entretenimento relegava aos artistas negros um papel secundário,


apelando a imagens exóticas de seu comportamento através de espetáculos e filmes com
atores recorrendo, por exemplo, ao black face. Percebe-se aqui que o dilema estava em
enaltecer os Estados Unidos e o jazz ao mesmo tempo em que se fetichizava seu conteúdo
negro. Os negros eram bem-vindos, mas somente enquanto caricaturas.

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A partir dessa breve reconstrução histórica, compreendemos que Theodor Adorno estava
diante de uma cena cultural que tinha não só esvaziado o jazz de seus elementos musicais
originais, como também redefinido essa música em termos de sua fisionomia social. Nos
Estados Unidos, algo semelhante ocorreria a partir do final da década de 1930, quando o jazz
foi transformado em um “tesouro nacional”, ocupando as ondas radiofônicas, os salões de
baile e as trilhas sonoras de Hollywood.

Quando Celso Frederico afirma, por exemplo, que “desde o final dos anos 1930 nenhuma
música de jazz figurou na lista dos maiores sucessos”, incorre num erro histórico – o que
pode ser demonstrado por qualquer lista dos artistas e músicas mais ouvidos no país ao
longo de toda a década de 1930 e 1940[vii]. Já no cenário alemão, com o qual Adorno estava
em contato, a transformação do jazz em música comercial e de sucesso ocorreu uma década
antes, como foi exposto. Porém, em ambos os contextos se observou uma integração-
estereotípica das origens negras do jazz, as quais foram rapidamente submetidas a uma
romantização que enaltecia os negros naquilo que eles teriam de exótico, selvagem e
autêntico. Segundo Adorno, os elementos negros presentes na origem do jazz, que a
princípio “revelavam certa espontaneidade”, foram gradualmente acomodados ao sistema
e “amenizaram-se com a crescente comercialização e com a ampliação do público”.[viii]

Em 1927, por exemplo, temos um bom exemplo de como isso ocorria. Naquele ano, a
prefeitura de Frankfurt organizou o festival Música na vida das Nações, com diversas
apresentações que tinham por intenção abarcar a música de diferentes povos[ix]. Adorno
acompanhou diversos concertos e apresentações que foram oferecidas ao longo do evento.
Entre elas, assistiu ao espetáculo La Revue Nègre: Black People, dirigida pelo dançarino Louis
Douglas[x]. A apresentação contava com a famosa dançarina Josephine Baker, além da
participação do clarinetista Sidney Bechet e da banda Chocolate Kiddies[xi]. O espetáculo era
acompanhado pela narração de um texto que oferecia ao público histórias de “pequenas
mulheres canibais” africanas, representadas por dançarinas vestidas com tangas e
piercings no nariz. Em algumas das apresentações, Baker utilizava uma espécie de “saia de
bananas”, que reforçava o clima de glorificação do primitivo e do excêntrico como aquele
“bom selvagem de Rousseau”.

Adorno escreveu brevemente a respeito do que viu e ouviu. Segundo o autor, embora o
espetáculo prometesse mostrar de forma ampla ao público toda a diversidade da cultura
afro-americana, as apresentações eram bastante reducionistas, o que homogeneizava
qualquer pretensão de expor elementos de pluralidade cultural. O autor aponta para traços
pitorescos e excêntricos contidos no espetáculo, que se prestavam a tornar a apresentação
mais atraente ao grande público, numa estratégia que investia no fascínio diante do exótico
que o selvagem representava. O autor chega a citar como elementos desse exotismo um “par
de girls cheias de dentes de ouro”.[xii]

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Embora saliente tais elementos pitorescos que ofereciam diversão, Adorno nota como o
espetáculo se afastava dos estereótipos somente em um breve momento, a saber, quando
tematizava a dura realidade das origens do jazz ao mostrar “a tristeza de um pobre cabaré
de subúrbio”[xiii] e a banda que nele tocava sua música dançante. Porém, o autor nota que
mesmo a “desgarradora tristeza” representada nessa cena acabava por reproduzir a
imagem segundo a qual os pobres, por meio de sua música e tomados por uma espécie de
“força primitiva incomensurável”, não se deixavam abalar por nada e seguiam sempre em
frente. Ao reafirmar a imagem daqueles que sofrem como indivíduos fortes, resilientes e
que “tudo aguentam”, o espetáculo integrava a cultura negra aos palcos europeus mediante
a neutralização de qualquer potencial crítico. Nas palavras do autor, La Revue Nègre oferecia
à reflexão “o comportamento de um público fascinado pela força primitiva supostamente
negroide, que a encontra ali onde ela não mais existe em absoluto”[xiv].

Por meio dessa crítica, Theodor Adorno dava mais um passo em sua compreensão de como a
origem negra do jazz, ao ser transformada naquela “fábula de origem”, fazia uso de
imagens folclóricas e excêntricas que reduziam a cultura negra, seus corpos, ideias e música
a um índice do primitivo que teria encontrado um lugar na modernidade. Identificando no
passado de um grupo social específico e marginalizado uma instância de legitimidade pura
da música, o jazz colava à sua imagem comercial uma essência “autenticamente popular”.

Porém, como vimos anteriormente, a música que circulava sob o rótulo do jazz nesse
período não poderia estar mais distante de suas origens. Adorno insistia em revelar tal
distância, enfatizando que o que restava daquelas origens estava tragicamente restrito ao
nível do discurso e do rótulo comercial. Diante daquela cena, Adorno afirmaria que “o que o
jazz tem a ver com a música negra genuína é altamente questionável”, e o fato de que
“muitos negros o pratiquem e que o público demande pela mercadoria do jazz negro diz
pouco”[xv].

Sendo reduzido a um fetiche, Adorno demonstra como o elemento negro do jazz foi expulso
da música e deu lugar a elementos formais “pré-formatados de maneira completamente
abstrata pela exigência capitalista de sua intercambialidade”[xvi]. Por meio de tais
asserções, o autor mostra enfim como o jazz transformou sua tradição num “artigo
mercantil”, que não só desmerecia as reais origens do estilo, como reiterava sobre esse
grupo social estereótipos bastante danosos. Para ele, a forma mercadoria assumida pelo
jazz veiculava uma imagem que falseava a história de luta e sofrimento daquele povo.
Tomando-o como mais uma faceta do imperialismo colonial[xvii], Adorno ressalta como a
integração-estereotípica do negro à sociedade por meio do jazz era dada sobre as mesmas
bases segregacionistas e racistas daquelas políticas que organizavam a economia mundial,
ao mesmo tempo que escancarava o potencial destrutivo da indústria cultural em desalojar
as culturas particulares de seus contextos originais – o oposto da afirmação de Frederico,
segundo a qual “as diversas músicas do mundo, suas diversidades e características próprias

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são, assim, solenemente descartadas nessa interpretação restrita e, digamos,


preconceituosa [de Adorno]”.

Em realidade, o que o frankfurtiano faz através da análise do jazz é notar como tais
características originais são destituídas de seu sentido ao serem integradas pelo sistema
totalizante da cultura sob o capitalismo. Nascido como uma prática musical de grupos
marginalizados e depois alçado à categoria de música comercial, o jazz foi entregue às leis
externas determinadas pelo mercado, esvaziando de sua música a autonomia que podia
carregar.

Nesse sentido, Frederico acertadamente comenta que “a implicância adorniana com o jazz
tem como pano de fundo a crítica ao seu caráter mercantil. É a partir daí que o jazz é
contraposto à arte ‘séria’. Se esta é uma finalidade sem fim, existindo por si e para si; o jazz,
contrariamente, existe em função de outra coisa, à semelhança do valor de troca”.

A dialética da integração-estereotípica também se evidenciava na influência que o jazz


exerceu na ópera alemã, já que vários compositores passaram a inserir em suas obras não só
elementos musicais relacionados a essa tradição musical, como também incorporavam
tematicamente símbolos e personagens que faziam alusão aos Estados Unidos. Entretanto,
o que havia de jazz nessas obras geralmente espelhava aqueles mesmos estereótipos a
respeito dos negros.

A ópera-jazz mais ilustrativa disso foi Jonny spielt auf (1927), de Ernst Krenek. A obra trazia
diversos elementos que faziam referência ao jazz, porém, vale a pena aqui nos
concentrarmos sobre sua personagem-título. Na história, Jonny é um músico afro-
americano que chega à Alemanha trazendo consigo sua paixão pelo jazz. Símbolo do elogio
da cultura estadunidense, a personagem já era conhecida da cultura de Weimar. Desde o
início do século, já circulavam no país figuras semelhantes de músicos afro-americanos que
chegavam ansiosos em tocar sua música nova e exótica no velho continente[xviii]. De forma
geral, Jonny era descrito como ignorante, excêntrico em seus modos e sexualmente
desinibido.

Embora representante de uma cultura considerada moderna, Jonny personificava o olhar


curioso do colonizador branco diante dos corpos negros, numa mistura de fascínio e temor
ao vislumbrar o exótico. Para Adorno, essa ópera-jazz representava um momento de
fraqueza na obra de Krenek, já que o compositor teria sido engolfado pelas tendências de
“romantização da essência americana”[xix]. Não à toa, anos mais tarde Jonny seria tomado
pelos nazistas como símbolo da presença negra e “degenerada” na cultura alemã.

Adorno também analisou de que forma a indústria do entretenimento construiu em torno


do jazz uma imagem sexualmente desinibida, libertária e eroticamente permissiva, para a
qual o público se endereçava a fim de realizar, mesmo que de forma incompleta e
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inconsciente, seus desejos sexuais. Para o autor, tais elementos eram explícitos nos
espetáculos com a exibição de dançarinas seminuas, nas propagandas veiculadas em
revistas, no teor sexual de muitas das canções e nos estilos de dança que faziam
sucesso[xx].

Através de diferentes meios, o jazz prometia entregar ao público uma satisfação sexual
plena e contínua, embora na realidade só fosse capaz de oferecer uma liberação sexual
imediata e passageira. Sob tal perspectiva, essa música também expressava o caráter
classista da sexualidade mutilada dos grupos que a consumiam. Asceticamente recolhidos
em uma moralidade que condenava o erótico, o jazz servia para a burguesia e para as
camadas médias como um substituto inconsciente que dava vazão a toda sua esfera sexual
reprimida. Sob o ponto de vista psicológico, “o baile se transformava em um meio de
satisfação sexual, ao mesmo tempo que respeitava o ideal da virgindade”.[xxi]

A predominância da dimensão erótica na prática do jazz também estava relacionada a


fetichização sexual dos corpos negros, sob os quais pairava o estereótipo de uma
sexualidade promíscua. Embora a desinibição sexual fosse condenável e vista de forma
abjeta pela sociedade burguesa, ela gerava sub-repticiamente fascínio e curiosidade sobre a
estrutura psicológica do público quando transposta aos corpos negros. Consumindo uma
música que enunciava uma forma de sexualidade livre, restava aos ouvintes invejá-la em
sua interioridade. A partir do fascínio que proclamava em relação a suposta sexualidade
selvagem dos negros, o jazz se colocava como uma música progressista nos costumes,
enquanto na realidade acabava por reproduzir na exploração sexual de tais corpos a velha
dominação racial e de classe.

Como todos os demais fetiches promovidos pelo jazz, sua pretensa excentricidade também
criava uma estratégia de sucesso bastante adaptada à subjetividade pouco exigente,
infantilizada e mutilada do público, que via em tudo aquilo que pretensamente escapava das
normas sociais burguesas um objeto digno de um consumo desmedido. Para Adorno, o apelo
ao excêntrico ocorria em diferentes esferas.

Psicologicamente, se atrelava àquela mesma vontade de realização de desejos reprimidos,


por meio de imagens e estímulos que se tornavam atraentes por sua singularidade,
estranheza e exotismo. Na dimensão social, a intensa vida noturna nos teatros de revista e
nos bailes era rica em oferecer ao público elementos excêntricos em seus cenários,
figurinos, letras de música e danças, numa encenação caricaturizada dos negros e de suas
práticas.

Utilizadas com fins comerciais, tais estratégias tinham como objetivo inserir uma dimensão
exótica em meio à “regularidade funcional e ao ritmo da vida burguesa”, dando ao
excêntrico um lugar de destaque que permitia a indústria maximizar seus lucros e agradar

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seu público. Entretanto, operava-se aí mais uma faceta do preconceito constantemente


reiterado pelo jazz, no qual o outro é parodiado a ponto de se tornar objeto do riso e do
escárnio por excelência. No exercício de sua função ideologicamente orientada, a indústria
cultural necessariamente transformava toda a novidade em norma, a origem negra em um
mito primitivista, o caráter comunitário em êxtase coletivo e, por fim, as peculiaridades
musicais em um exotismo propagandístico. Em suma, o jazz tomou para si o reflexo de uma
sociedade que passou a encarar a debilidade do indivíduo como virtude.

Duramente atingida pela quebra da bolsa de valores norte-americana em 1929, a República


de Weimar viu sua breve prosperidade econômica rapidamente minguar,[xxii] Diante das
consequências drásticas da crise, aquela forte influência norte-americana na cultura alemã
também perdeu seu brilho. Em poucos meses, todo estrangeirismo estadunidense passou a
ser objeto constante de crítica de amplos setores sociais que denunciavam o caráter
regressivo de tais influências. O nacionalismo cultural dirigiu sua denúncia e ataque às
vanguardas artísticas, ao expressionismo, ao cinema hollywoodiano, e, evidentemente, ao
jazz. Assim, a nova tendência hegemônica na cultura mobilizava uma “nostalgia pelo
passado” que buscava na tradição uma cultura germânica “autêntica” e ariana. Nesse
ínterim, “a boa valsa vienense voltou a ocupar a frente da cena”[xxiii].

Com a ascensão dos nazistas ao poder em 1933, o jazz passou a ser incluído, dentre tantas
outras manifestações culturais, no jargão da “arte degenerada”. Embora Frederico afirme
de forma um tanto disparatada que “Adorno apoiou a medida”, ele se esquece de dizer que,
para o frankfurtiano, o que se entendia por “jazz” nos Estados Unidos nunca chegou a
existir em solo alemão, o que implicava encarar a proibição do estilo para além das
aparências e da ideologia proibitiva do regime. Para Adorno, o banimento do jazz não podia
ser visto como uma consequência direta da perseguição nazista a certa “degeneração
metropolitana” ou a qualquer “exotismo desarraigado”[xxiv] que tomava conta do país;
tampouco deveria ser visto como consequência da dissolução de uma “autêntica música
negra”[xxv] e moderna que, como já vimos, havia há muito sido descaracterizada.

O jazz alemão, na verdade, já estava conformado de tal forma ao status quo que sua
proibição diz mais respeito a um discurso de propaganda do que uma real proibição – afinal,
essa música continuou a circular com outros rótulos no país durante os anos seguintes.
Assim, Adorno afirma que a proibição do jazz se deveu, acima de tudo, à exaustão do próprio
estilo, que forneceu de mão beijada ao nazismo uma série de estereótipos raciais. Sob uma
nova figura, a Negerfabel agora aparecia desnuda enquanto discurso de ódio e extermínio.

Nas discussões atuais sobre o jazz, é recorrente identificar naquelas práticas musicais da
população negra do sul dos Estados Unidos na virada do século XIX para o XX o nascimento
de uma estética bastante peculiar que traçou as bases da síncope, da improvisação, do ritmo
e de uma nova forma de se reproduzir e de se executar as canções. Buscamos aqui

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demonstrar que, a princípio, Adorno não contradiz essa interpretação nem coloca em xeque
a origem negra do jazz. Na verdade, seu interesse estava em apontar a forma como tais
elementos foram apropriados por monopólios da cultura, os quais transformaram o jazz no
novo paradigma da música comercial das nascentes indústrias culturais. Ao longo de sua
crítica, Adorno realçou como a mercantilização dessa “novidade” foi feita a partir da
veiculação de símbolos, práticas, discursos e representações que mantinham intocado o
preconceito racial que recaia sobre os negros e marginalizados.

Em suma, a crítica de Adorno nos permite compreender como o “mito de origem negra” do
jazz acabou por servir aos interesses mercadológicos, exercendo assim um efeito alienante e
ilusório que integrava de forma racista a imagem dos negros ao imaginário europeu e
norte-americano. Eis um bom exemplo daquilo a que Frederico se refere, mas não se
aprofunda, quando afirma que o objetivo de Adorno era “explorar as relações entre a
estrutura interna do jazz e seu correspondente social, vale dizer, as contradições sociais”.

Dito tudo isso, o leitor pode estar se perguntando a respeito das profundas transformações
sofridas pelo jazz nas últimas décadas e sua relação ora tensa, ora de convergência com as
reivindicações da comunidade negra. Entretanto, a revolução aí operada foi tamanha que
essa é uma discussão a ser travada em outra oportunidade.

*Lucas Fiaschetti Estevez é doutorando em sociologia na Universidade de São Paulo (USP).

Notas

[i] MARTÍN-BARBERO, J. De los medios a las mediaciones: comunicación, cultura y


hegemonia. Barcelona: Gustavo Gili, 1987; MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São
Paulo: Boitempo, 2004; KUEHN, Frank M. C. Adorno e o jazz: uma questão de gosto,
desgosto ou miopia? In: FREITAS, Verlaine et al (org.). Gosto, interpretação e crítica, v.2. Belo
Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2015. p.110-122.

[ii] PATRIOTA, Rainer. Apresentação à Edição Brasileira. In: BERENDT, Joachim-Ernst;


HUESMANN, Günther. O livro do jazz: de Nova Orleans ao século XXI. São Paulo: Perspectiva,
2014. p.15-21.

[iii] WIPPLINGER, Jonathan O. The Jazz Republic: Music, Race and American Culture in
Weimar Germany. Social History, Popular Culture, and Politics in Germany. EUA, Michigan:
University of Michigan Press, 2017.

[iv] THOMPSON, Mark C. Anti-Music: Jazz and Racial Blackness in German Betwenn the Wars.
EUA, Albany: State University of New York, 2018.

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[v] ROBINSON, J. Bradford. The jazz essays of Theodor Adorno: some thoughts on jazz
reception in Weimar Germany. In: Popular Music. Cambridge: Cambridge University Press,
Vol. 13, nº 1, jan. 1994.

[vi] DE GRIEVE, Guillaume. Jazz on air: the role of radio in the emerging of jazz in the
Weimar Republic. In: Project ‘Jazz broadcastings in Weimar Germany’. Lovânia, Bélgica: Ku
Leuven Faculteit Lettere, 2019.

[vii] Recomendo o site The World’s Music Charts, que reúne as principais informações a esse
respeito. Disponível em https://tsort.info/music/ds1930.htm

[viii] ADORNO, Theodor. Moda intemporal – sobre o jazz. In: Prismas: crítica cultural e
sociedade. São Paulo: Editora Ática, 2001, p.117.

[ix] MÜLLER-DOOHM, Stefan. Adorno: A Biography. Polity Press: Cambridge, 2005. p.102.

[x] NOWAKOWSKI, Konrad. Jazz in Wien: Die Anfänge biz zur Abreise von Arthur Briggs im
Mai 1926. In: GLANZ, Christian; PERMOSER, Manfred. Anklaenge 2011/2012: Jazz Unlimited.
Beiträge zur Jazz-Rezeption in Österreich. Viena: Mille Tre Verlag, 2012, p.19-157.

[xi] WIPPLINGER, op. cit., p.125.

[xii] ADORNO, Theodor W. Crítica de Agosto de 1927. In: Escritos Musicales VI: Obra
Completa, 19. Madri: Ediciones Akal, 2014, p.96.

[xiii] ADORNO, op. cit., p.96.

[xiv] Ibid., p.96.

[xv] ADORNO, Theodor W. Sobre el jazz. In: Escritos Musicales IV. Obra Completa, v. 17.
Madri: Ediciones Akal, 2008; p. 91-92.

[xvi] Ibid., p.91.

[xvii] Ibid., p.92.

[xviii] LAREAU, Alan. Johnny´s Jazz: From Kabarett to Krenek. In: Org: BUDDS, Michael. Jazz
& the Germans: essas on the influence of “hot” American idioms on 20th-century German
Music. Monographs and bibliographies in Americam Music, nº 17. Hillsdale, Nova York:
Pendragon Press, 2002.

[xix] ADORNO, Theodor W. Ernst Krenek. In: Escritos Musicales V. Obra Completa, 18. Madri:
Ediciones Akal, 2011a, p.557.

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[xx] ADORNO, 2008, op. cit., p.103.

[xxi] Ibid., p.104.

[xxii] RICHARD, Lionel. A República de Weimar (1919-1933). São Paulo: Companhia das
Letras, 1988; GAY, Peter. A cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

[xxiii] RICHARD, op. cit., p.213.

[xxiv] ADORNO, Theodor W. Adiós al jazz. In: Escritos Musicales V: Obra Completa, 18. Madri:
Ediciones Akal, 2011b, p.829.

[xxv] Ibid., p.829.

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