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FFLCH-USP

Gabriel Henrique Borges

Nº USP: 10764381

Turno noturno

História dos Direitos Civis e Black Power – Prof. Dr. Robert Sean Purdy

Trabalho de conclusão do semestre

Quais estratégias políticas os afro-americanos empregaram como

resposta às ideologias e práticas racistas num determinado período:

(1900-1930)?

São Paulo
2021
Introdução

Quando se fala em estratégias políticas para dar resposta a um problema social, como

o racismo neste caso, imediatamente pode-se pensar na resistência aberta por meio da

organização coletiva, da denúncia impressa nas folhas de imprensas e meios de agitação

social ou mesmo na esfera institucional através da intervenção jurídica. O presente trabalho,

no entanto, busca articular de que maneira uma das manifestações culturais mais

características da população negra estadunidense, o Jazz, contribuiu como forma de

resistência na medida que foi uma importante expressão de como pensavam e o que sentiam

pessoas negras referenciadas por seus pares como porta-vozes de realidades subalternizadas

por séculos de escravização e marginalização.

Para tanto, será atribuído um recorte temporal entre a virada do século XIX para o XX

e meados da década de 1930 quando se verifica com consistência na historiografia sobre o

tema dois fenômenos que se retroalimentam: por um lado, a migração de milhares de negros e

negras para as grandes cidades trazendo consigo toda uma efervescência cultural e intelectual

que dá um novo tom à realidade urbana estadunidense; por outro, o processo formativo das

características que viriam a definir o Jazz como um estilo autônomo, integrado, porém cada

vez mais independente de suas influências mais próximas como o blues e o ragtime.

Embora se possa argumentar que o processo migratório, em alguma medida, marca

grande parte do território estadunidense nesse período, na cena do jazz a costa leste cumpre

um papel fulcral para a argumentação aqui exposta, servindo, pois, como recorte espacial,

sobretudo em duas cidades que servem de palco para episódios importantes nessa história do

jazz como expressão da população negra, quais sejam, Nova Orleans e Nova York (em

especial o bairro do Harlem).

Dado o ambiente temporal e espacial, esse trabalho se debruça em referências

bibliográficas, fílmicas e musicais para propor que o jazz – entendido de forma não apenas
3
musicológica, mas tomado enquanto autoria, performance e recepção de suas produções –

pode ser compreendido como resposta política à situação enfrentada pelos negros

estadunidenses daquele período, ainda que essa sua faceta muitas vezes não seja tão fácil de

inferir apenas pela observação à primeira vista de suas letras e da trajetória biográfica de seus

principais representantes.

4
1.1 Jazz como Idioma Musical

A história da música negra estadunidense remonta a muito tempo antes do início da

periodização que este trabalho sugere. Ritmos e formas musicais africanos sobreviveram à

diáspora atlântica e aportaram nos Estados Unidos, ganhando contornos mais ou menos

íntegros a depender da realidade para a qual eram levados seus produtores, os escravizados 1.

Com o tempo e a adaptação à nova realidade com outra dinâmica de trabalho ou de vida

religiosa, gestaram-se formas musicais especificamente negras e nascidas em solo americano

como as work songs, spirituals religiosos e o próprio blues.

Diversas foram as matrizes que se mesclaram com a música negra para a formação de

novas formas musicais, mas seguindo a argumentação de Hobsbawm, o jazz é filho de uma

mistura com elementos europeus dos quais se destacam traços da tradição francesa em

Louisiana (o gosto católico-mediterrânico por festas e carnavais que demandam fanfarras com

bass bands, levando a criação das primeiras bandas de negros, as créoles) e, ainda mais

fundamental, o idioma anglo-saxão que forneceu o substrato para composição das letras das

canções de trabalho, do blues secular e da música gospel. Essa mesclagem, seguindo na linha

do mesmo autor, ainda tem um caráter extremamente popular que, ao escapar do

doutrinarismo acadêmico, gerou uma mistura de proporções equiparadas sem, portanto,

subordinar o componente africano ao europeu2. Parte disso vem da agência criadora dos

negros em se apropriar do idioma inglês para responder a situações de interação com os

brancos que lhe viessem a favorecer por meio da música, servindo os senhores como artistas

nas fazendas para escapar das formas mais brutais de escravização ou formando uma cultura

de menestrelismo nas cidades para ganhar algum sustento.

1
Hobsbawm (2015, p. 61), por exemplo, fala de um certo estímulo dos senhores brancos da Louisiana às
músicas ritualísticas cantadas pelos escravizados como forma de válvula de escape.
2
HOBSBAWM, Eric J. História Social do Jazz. – 20ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020. pp. 60-65.
5
Existe uma certa centralidade de Nova Orleans nesse processo que, no entanto, não deve

ser confundida com pioneirismo. De fato, para Hobsbawm, é nesta cidade que se verifica pela

primeira vez uma massificação e concentração de música negra produzida e executada por

negros sendo consumida em espaços de entretenimento3, mas o “berço do jazz” é muito mais

difícil de localizar. Aguiar argumenta que a própria narrativa de Nova Orleans com esse

pioneirismo acompanha uma tendência historiográfica de associar a história do jazz sobretudo

ao seu aspecto fonográfico, de forma que os primeiros registros sonoros gravados pela

Original Dixieland Jazz Band, uma banda de brancos, podem ser entendidos não como um

marco inicial dessa história, mas como um exemplo de como “sua branquitude servia a seu

favor na hora de ter a oportunidade de gravar um disco ou de tocar para públicos não

segregados”, fato esse manipulado para forjar uma raiz branca ao jazz, ocultando sua matriz

negra.4

O cenário descrito por Hobsbawm nesse final de século XIX compreende uma cena

musical negra mais generalizada em todo o território estadunidense, com manifestações

originais de música produzida por negros muito variadas, ainda que Nova Orleans tenha se

tornado o polo mais importante. Também a isso o autor dá um caráter global na medida em

que insere este fenômeno no que ele chama de “período revolucionário nas artes populares”,

quando o crescimento da classe trabalhadora urbana cria a necessidade de uma espaço de

entretenimento que seja lucrativo, como boates, music halls e toda uma vida boêmia noturna

que se alimenta da música popular, seja do jazz em Nova Orleans como, por exemplo, o

flamenco e a música andaluza nas grandes cidades de Espanha5.

Essa massificação da música popular na vida noturna das grandes cidades estadunidenses

tem, para Hobsbawm, duas tradições diferentes que se encontram: uma metropolitana de

3
Ibid., pp. 75-77.
4
AGUIAR, Yhande. O Jazz de Billie Holiday e o Movimento por Direitos Civis nos EUA (1915-1959). Trabalho de
Conclusão de Curso (Bacharelado e Licenciatura em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Departamento de História, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, p. 20-21. 2018.
5
HOBSBAWM, op. cit., pp. 69-71.
6
entretenimento da qual decorrem as bass bands e creóles em Nova Orleans, bem como uma

tradição de canções rurais ou urbanas amadoras sobre o cotidiano difícil da realidade dos

negros, gerando identificação com um público de mesma origem com cada vez mais

expressão6. A variante de jazz de Nova Orleans é, portanto, em última instância, uma das

vertentes que acelera essa tendência de fomento da música popular nas cidades a partir dos

tours de músicos vindos do Delta do Mississipi, mas outras linhas de força como o ragtime de

artistas como Scott Joplin (ele próprio uma influência para a “inteligência musical” do jazz7),

os cantores itinerantes de blues, o gospel e até as marchas militares com instrumentos de

metal também estavam ajudando a fomentar um idioma musical8 que expressava, cada qual

com sua particularidade, o sentimento de homens e mulheres negros em um cenário de

agitação musical nos EUA. O jazz, improvisatório e imprevisível do jeito que é, soube

absorver um pouco dos elementos de cada uma dessas tendências, muito embora seja muito

difícil defini-lo até a metade dos anos 1930 quando a Era do Swing passa a lhe conferir um

corpo mais próprio9.

1.2 O cenário social na virada do século

Como muito bem aponta Hobsbawm, o jazz é o produto dos seus músicos e cantores

que são o “centro desse mundo”10. Levar em conta o fator humano de quem professava esse

idioma musical significa compreender qual a situação dos negros e negras estadunidenses

nesse momento em que se dá a efervescência urbana no país.

Sean Purdy descreve um cenário do Sul dos Estados Unidos onde até 1900 habitavam

90% dos mais de 10 milhões de negros no país como uma situação terrível que ocorria com o

6
Ibid., pp. 71.73.
7
AGUIAR, op. cit., p. 17.
8
Ibid., p. 9.
9
Ibid., p. 11.
10
HOBSBAWM, op. cit., p. 257.
7
aval das autoridades locais e leis específicas. A perda do direito ao voto, o “salário

psicológico” aplicado por brancos pobres contra negros na forma de linchamentos, o

terrorismo branco aberto praticado por organizações supremacistas como a KKK (Ku Klux

Klan), o sistema de sharecropping que na prática mantinha negros arrendatários de terras

presos a dívidas impagáveis11, se somam a todas as privações trazidas pelas Leis de Jim Crow

que se espalharam rapidamente pelo Sul após a promulgação no estado do Tennessee,

amparadas pela ideia do “separados, mais iguais” que só viria a ser abolida na Suprema Corte

nas décadas de 1950 e 196012. Essa amálgama de situações fazia com que ao olhar para o

norte industrial e pulsante, a população negra visse a oportunidade de encontrar, “pelo menos

nas suas feições pessoais mais agravantes” um escape ao racismo sufocante perpetrado no

Sul.

Alain Locke, importante e pioneiro intelectual negro na década de 1920, em seu

manifesto “The New Negro” ajuda a completar esse quadro dizendo que, além dessas

influências externas que tornavam a vida no Sul insustentável para os negros, o fator primário

que explica as Grandes Migrações estaria em uma nova visão de oportunidade, de liberdade

social e econômica, a qual ele chama de um “spirit to seize”, apesar das circunstâncias mais

difíceis. Não se tratava apenas de um imperativo da realidade, mas de uma vontade

apreendida de uma consciência nova de querer deliberadamente não só sair do campo para a

cidade, mas da “América medieval para a Moderna”13.

Se por um lado essa “oportunidade” foi aproveitada por milhares de negros e negras,

como comprovam os dados trazidos por Purdy para o intervalo entre 1910 e 1920 que

mostram o aumento exponencial da população negra nas grandes cidades da costa leste do

11
PURDY, Robert Sean. “O Século Americano”. In: KARNAL, Leandro... [et al.]. História dos Estados: das origens
ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007, pp. 181-182.
12
FERNANDES, Luiz Estevam; MORAIS, Marcos Vinicius. “Os EUA no Século XX”. In: KARNAL, Leandro... [et al.].
História dos Estados: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007, p. 145.
13
LOCKE, Alain. The New Negro: An Interpretation. New York: Albert and Charles Boni, 1925, p.6. Disponível
em: <https://archive.org/details/newnegrointerpre00unse/mode/2up>. Acesso em: 14 jul. 2021.
8
país: Detroit de 5 mil para 41 mil, Cleveland de 8,4 mil para 35 mil, Chicago de 44 mil para

110 mil, Nova York de 91,7 mil para 152 mil14; por outro lado, a frustração também parece

ser um elemento importante uma vez que o racismo no Norte prevalecia, ainda que de outras

formas como a segregação espacial, oportunidades de emprego restritas aos serviços

domésticos ou trabalhos braçais e condições de vida precárias mesmo nos grandes bairros de

Nova York.

São esses trabalhadores não especializados que formavam as bandas de jazz, as vozes

que enchiam os music halls da vida noturna e boêmia desses grandes núcleos urbanos.

Alcançar o estrelato era mais que um capricho pessoal, mas a oportunidade de ser os

primeiros potenciais cidadãos de sua comunidade ou de seu povo. Para estas pessoas, o

entretenimento não era apenas uma forma de ganhar a vida, mas “uma maneira de se criar um

caminho próprio dentro do mundo, só comparável ao crime e à política”15. Daí decorre a

transformação das primeiras celebridades da cena musical negra estadunidense em potenciais

reis e rainhas dos trabalhadores e subproletários das favelas sobre as quais reinavam.

Essa mudança no status do artista do jazz (mas também de outros gêneros de música

negra como o blues) é uma ruptura fundamental com a percepção geral que o público

frequentador das music halls em Nova Orleans tinha da música ali executada, tida como

“música de pretos”, talvez também por seu caráter experimental. Portanto se o Norte confere

uma nova aura ao músico de jazz, também se verifica o mesmo com o próprio gênero quando

ganha um caráter mais urbano, contando com mais instrumentos musicais e inventividade

rítmica, uma preocupação maior com o estilo que Aguiar chama de “Fase de Chicago” da qual

Louis Armstrong e sua “presença mítica maior que a vida” se torna a principal referência16.

14
Purdy, Robert Sean. op. cit., p. 183.
15
HOBSBAWM, op. cit., p. 262-263.
16
AGUIAR, op. cit., pp. 22-24.
9
Neste momento, mas sobretudo quando o coração do jazz se muda novamente, dessa

vez para Nova York e em especial no Harlem, pode-se já falar que esse gênero fazia parte do

imaginário negro da década de 1920, sendo portanto, problema de reflexão e manifestação de

ideais para intelectuais, artistas e público que pertenciam a esse espaço.

1.3 O Jazz no Imaginário negro da década de 1920

É no Harlem que Locke atribui um despertar de consciência muito especial para a

população negra: a noção de vínculo de raça. Se durante a escravização a identificação era

proveniente de problemas e sofrimentos comuns, na vida cultural do Harlem experiências e

vidas passam a ser compartilhadas. Propósitos comuns a um Negro de novo tipo para quem

religião, liberdade, educação ou dinheiro eram importantes e até almejados, mas a mola

mestra da sua vida estava na cooperação racial17.

Essa nova forma de autoconsciência que pode ser encontrada no manifesto de Locke é

a base do Renascimento do Harlem, movimento intelectual e artístico que se propunha a

enterrar o passado de estereótipos e visões ficcionais sobre o negro (muitas vezes

reproduzidos por eles próprios) para construir uma sociabilidade negra pautada na

solidariedade social e no reconhecimento coletivo, rejeitando o papel de tutelados por Race

Leaders e almejando caminhar conjuntamente aos líderes mais avançados dos brancos na

construção de uma “Nova Democracia na cultura americana”. Portanto, não se tratava apenas

de um movimento racial, mas ao inserir a questão do negro como “parte integrante dos

grandes problemas industriais e sociais da democracia atual”18, se propunha a colocar em cena

uma nova atitude do Negro, uma maioridade espiritual Negra (até mesmo em sua acepção

global, como “vanguarda dos povos africanos no contato com a civilização do século XX”)

17
LOCKE, Alain. op. cit., pp. 6-8.
18
Ibid., p. 5.
10
para contribuir para uma nova atitude americana no aprofundamento do ideal democrático

fundador da Nação19.

Para Bruna Stievano, o jazz é parte do Renascimento do Harlem na medida que

expressava a vivacidade cultural do bairro por meio de suas icônicas figuras como Duke

Ellington, Bessie Smith, Billie Holiday, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Nat King Cole,

Count Basie, Lena Horne e Thelonius Monk. A autora também parte da análise da letra da

música “I’ve Got the World on a String” gravada por Cab Calloway em 1932, para mostrar

como esse ideal do “mundo nas mãos do artista” era parte constituinte de uma nova postura

do Negro perante seu papel no mundo20.

Outra figura emblemática é o poeta Langston Hughes que, como apontam Tomé e

Faleiros, foi o primeiro literato estadunidense a mergulhar profundamente no “cancioneiro

folclórico negro” como projeto poético, não só como experimento esporádico21. Hughes inova

em sua poesia ao trazer a forma e os conteúdos do blues (o ritmo twelve-bar blues, a

linguagem simples e coloquial, repetição de versos, paralelismos, anáforas) dando à sua

escrita um forte caráter de leitura cantada, bem como traz também a ambientação jazzística da

sensualidade, do improviso, da boemia, muitas vezes acompanhados de estratégias na grafia

ou na pontuação para “brincar” com as palavras como um músico de jazz brinca com as notas

(como em “Harlem Night Club” com o artifício “Play, plAY, PLAY”)22.

No entanto, essa aproximação do Renascimento do Harlem com o Jazz que se verifica

nas jazz poetry inauguradas por Hughes parece ser uma exceção, como pontua Angela Davis

ao verificar, por exemplo, que os intelectuais renascentistas tendiam a ver com pouco

19
Ibid., p. 10-16.
20
STIEVANO, Bruna. O Renascimento do Harlem: Música Literatura e Empoderamento negro, Parte 1.
Disponível em < https://www.deviante.com.br/noticias/o-renascimento-do-harlem-musica-literatura-e-
empoderamento-negro-parte-1/#disqus_thread>. Acesso em: 14 jul. 2021.
21
FALEIROS, Álvares; TOMÉ, Pedro. Poemas de Blues e Jazz: A Musicalidade Negra de Langston Hughes.
Literatura em Debate. v. 6, n. 10, pp. 58-59, 2012.
22
Ibid., p. 64.
11
entusiasmo as cantoras negras de blues por enxergar sua “sensualidade associada à vida da

classe trabalhadora”, como pouco renovadoras e emuladoras de estereótipos típicos23. De fato,

Aguiar diz que o Harlem foi uma sociedade baseada em dois extremos: o lado renascentista,

acadêmico, que refletia orgulho e atenção para a comunidade; e o outro Harlem nem tão

bonito assim, em que a efusão dos night clubs estava intrinsecamente ligada à vida ilegal, aos

produtos ilícitos, à prostituição, à exclusão social e à pobreza. Embora o Renascimento do

Harlem tenha fornecido o contexto cultural para o jazz, a música vinha das festas de aluguel e

da economia do submundo. Ainda assim, aquela autossuficiência e cooperação racial a qual

Locke se referia se manifestava com ímpar animosidade no ambiente jazzístico, praticado por

pessoas que transitavam por dois mundos: o do glamour e o da marginalidade24.

Essa complexidade de o que podemos chamar de o “Harlem marginalizado” fica ainda

maior ao notar que o ambiente do jazz foi também o primeiro responsável pela integração

cultural entre brancos e negros. Aguiar cita como exemplos os slummings (presença de

brancos de classe média frequentando night clubs no Harlem), as comparações feitas entre

Duke Ellington e J.S. Bach na tentativa de incluir um dos nomes mais intelectualizados do

jazz na gama da erudição musical historicamente branca, e, finalmente, o fato de que o swing,

a forma do jazz que definitivamente se tornaria universal, ter saído do próprio Harlem25.

Impossível não mencionar ainda o famoso Cotton Club, o polêmico caso do night club

majoritariamente frequentado por brancos, mas de onde saíram nomes de primeira ordem

como Duke Ellington e Cab Calloway.

Ainda dentro disso, Nathanian Sloan coloca um problema fundamental sobre a

polêmica do Cotton Club ao fazer um balanço tanto da historiografia sobre o tema quanto das

críticas que personalidades importantes do meio renascentista como Alain Locke e W.E.B. Du

23
DAVIS, Angela. Blues Legacies and Black Feminism: Gertrude “Ma” Rainey, Bessie Smith, and Billie Holiday.
New York: Vintage Books, 1998. Introdução traduzida em: <https://traduagindo.com/2019/07/31/o-legado-do-
blues-e-o-feminismo-negro-de-angela-davis/>. Acesso em 14 jul. 2021.
24
AGUIAR, op. cit., pp. 25-27.
25
Ibid., 28-30.
12
Bois fizeram a seu respeito. Nessas visões, o Cotton Club surge como a negação da narrativa

heroica do jazz, como o berço dos estereótipos que os renascentistas tanto se esforçavam para

enterrar, destacando seu evidente e claro racismo, mesmo quando destaca o papel

desempenhado por figuras como Ellington e Calloway. Há mesmo quem não entre no aspecto

social e faça apenas uma história musicológica, destacando a evolução das inovações técnicas

que ali se deram.

Ora, segundo esse autor, esse tipo de visão está encarnado com uma historia que leva

em conta apenas o aspecto estético como um continuum de progresso que reforça o “estigma

de inferioridade ou incompletude que a noção de progresso inevitavelmente vinculava a

estilos anteriores”26. Na medida que Sloan passa a observar outros aspectos para além das

letras das músicas e das narrações factuais da história do Cotton Club e lança luz sobre a

recepção entre os próprios músicos negros que ali se apresentavam a partir da análise de

fontes memoriais, o exibicionismo e o exagero das apresentações do jazz naquele lugar

ganham outros contornos. Sloan coloca uma questão que é fundamental para a análise do jazz,

ou mesmo do blues: esses gêneros não são só sua música, mas também sua perfomance27.

Harrison abrange essa questão em sua análise do comportamento das “Blues queens” dos anos

1920 quando argumenta que a maneira como essas artistas negras performavam suas

aparições era também uma forma de se colocar no mundo, de criar um ethos próprio para a

persona do músico de jazz ou blues, um tipo de comportamento extravagante que expressava

um modelo alternativo de atitude, demonstrando autoestima, independência financeira,

liberdade de falar e reforçando seus próprios padrões de beleza28.

26
SLOAN, Nathaniel. Jazz in the Harlem Moment: Performing Race and Place at the Cotton Club. Dissertation
(Doctor of Philosophy) – Department of Music, Stanford University. Palo Alto, 2016, pp. 5-12. Disponível em:
<https://stacks.stanford.edu/file/druid:wv188bh5963/Sloan%20Dissertation-augmented.pdf>. Acesso em 14
jul. 2021.
27
Ibid., pp. 10-11.
28
HARRISON, Daphne Durval. Black Pearls: Blues Queens of the 1920s. New Jersey: Rutgers Universiy Press,
1990, 221-222.
13
De todo modo, interpretar como virtude o exibicionismo performado no Cotton Club

por músicos negros é também colocar o problema da respeitabilidade. Essa tendência

musicológica progressiva parece sempre colocar nos capítulos anteriores da história do jazz

um quê de barbarismo que vai se civilizando conforme a técnica avança e a música vai sendo,

também e cada vez mais, produzida e executada por brancos. Tal concepção encontra,

inclusive, bastante coro em grandes produções hollywoodianas como O Cantor de Jazz

(1927) e Nova Orleans (1947) em que a respeitabilidade do jazz condiz com sua aceitação

junto ao público branco.

Não se trata, pois, de encarar a realidade do Harlem de onde floresceu o jazz, suas

formas de expressão e perfomance, sua sensualidade, sua improvisação típica, como algo de

pouca respeitabilidade, pouco valor frente aos grandes e puros ideais almejados pelo

Renascimento do Harlem ou a ortodoxia musical como padrão de beleza na exigência de certo

público branco. Se trata, antes, de observar na particularidade do jazz a forma como seus

intérpretes apreendem o mundo ao seu redor, sua posição nele e performam para um público

que o reconhece.

1.4 Jazz como resposta política

A questão do papel da perfomance e da extravagância se soma a outras contribuições

que a música popular negra, novamente o jazz ao lado do blues, tiveram nessa mudança de

postura do negro frente o mundo e sua comunidade. Voltando a Harrison, em sua análise

específica sobre a trajetória das Blues queens dos anos 1920, é possível traçar a importância

que teve para as mulheres negras representarem e serem representadas em canções que

capturavam a sua sensibilidade, sua luta diária pelo equilíbrio físico, psicológico e espiritual,

14
“conjurando seus demônios e exorcizando-os no público” ao falar de alienação, sexo e

sensualidade, amores não correspondidos, solidão, marginalidade etc29.

Segundo Harrison, o blues interpreta e reformula a experiência negra na perspectiva de

o que é ser uma mulher negra naquela sociedade americana. Sociedade essa que não protege a

santidade de seus corpos como o faz com o das mulheres brancas, o que pontua o tema do

abuso sexual e do abandono nas letras de músicas como “Nobody Knows You When You’re

Down and Out” de Bessie Smith (“no man can use you wen you down and out”). A

sensualidade e a presença constante do sexo nessas músicas também pode ser interpretada na

chave de uma libertação do controle opressivo da Igreja Negra rural, mas não dos laços com a

família e o lar. Em outras palavras, “the blues transcend conditions created by social injustice;

and their attraction is that they express simultaneously the agony of life and the possibility of

conquering it through the sheer toughness of a spirit”30

Hobsbawm oferece ao menos outras três chaves de compreensão, especificamente do

jazz, como forma contestatória: primeiro, um conflito geracional de uma juventude aberta a

novidades contra as convenções tradicionais, inclusive da música negra; segundo, porque o

jazz é democrático desde sua origem, partindo não da ortodoxia musical, mas das camadas

populares e então conquistando os setores mais acima da sociedade; terceiro, porque ao

rechaçar os maneirismos acadêmicos, ele “toca direto no coração”, com suas improvisações,

seus artifícios para comportar a perfomance que suas músicas necessitam causando impacto

imediato aos ouvidos de um público pouco ou nada familiar com os conceitos técnicos da

música31.

Hobsbawm argumenta ainda que a força do Jazz como forma de protesto reside mais

na sua forma no que em seu conteúdo. A coletividade inerente ao jazz combinada com a

29
Ibid., pp. 221-222
30
Ibid., pp. 52-54.
31
Hobsbawm (2015, 337-338) identifica neste terceiro ponto também uma herança da música negra religiosa
ao comparar com o hot gospeller no que tange aos artifícios para causar impacto imediato aos ouvintes.
15
iniciativa individual do músico improvisador, por exemplo, diz tanto sobre a condição do

negro do que uma letra de música. Se não se encontra nas letras das grandes figuras do jazz

um forte caráter contestatório, suas perfomances, os temas que retratam do cotidiano, as

experiências que narra e a forma que carrega consigo as especificidades da vida de negros e

negras estadunidenses dizem muito sobre o que o jazz é contrário na política (o racismo, a

desigualdade, a pobreza), mesmo sem dizer do que ele é a favor. Para Hobsbawm, não é

possível estabelecer uma ligação direta do Jazz com um programa político de esquerda, pois

ele está muito mais associado aos music halls, a descontração do trabalhador pré-industrial

pouco inclinado à organização política32, mas ainda assim, ele foi a forma encontrada por

negros e negras para dar vazão aos sentimentos e expressões quanto à realidade que viviam e

quanto à perspectiva (muitas vezes otimista) que vislumbravam para sobreviver nela.

Angela Davis, ao examinar as origens do feminismo negro, faz um balanço

historiográfico fundamental. Ao se procurar essa consciência histórica feminista apenas nas

produções acadêmicas, a historiografia do feminismo negro ignora o blues (ela se refere,

nominalmente, a Bessie Smith, Gertrude Ma’Rainey e Billie Holiday) como forma de chegar

em vozes negras advindas das classes populares. Essas canções, para a autora, servem como

terreno para “examinar uma consciência feminista histórica que refletisse as vidas da classe

trabalhadora e suas comunidades negras”33.

O próprio Alain Locke em determinado momento coloca que os negros só eram

radicais nas questões raciais, mas conservadores no resto. No entanto, aponta para “tendências

iconoclastas” que aumentam e se fazem mais aparentes conforme cresce a pressão e a

injustiça.

32
HOBSBAWM, op. cit., p. 331.342.
33
DAVIS, Angela. op. cit.
16
Conclusão

É importante pensar, pois, o que é resistência. O Movimento pelos Direitos Civis nos

anos 1950 e 1960 reivindicou o jazz como exemplo de orgulho negro e de meio coletivo de

superar o medo de protestar, sobretudo na figura de Billie Holiday que protestou em cenários

extremamente adversos. Aguiar chega a pontuar que “o mundo do jazz era mais avançado em

questões raciais do que a sociedade americana em geral”34. O NAACP chegou a usar a

simbólica canção “Strange Fruit” de 1939 como campanha política para criar leis

antilinchamentos35.

O próprio jazz dos anos 1960 andou lado a lado com os movimentos por direitos civis

e suas músicas do período ressaltavam fortemente nas letras a temática da injúria racial, da

solidariedade social e do orgulho negro. Impossível não pensar em canções como “Ain’t Got

No – I Got Life” de Nina Simone, lançada na simbólica data de 1968.

Parece inclusive haver uma tendência contemporânea no mainstream do

entretenimento de se resgatar essa aura de enfrentamento direto presente em figuras que

transitaram entre o blues e o jazz na década de 1920. Chama a atenção que entre 2020 e 2021

duas produções cinematográficas de Hollywood trouxeram às telas essas figuras em tramas

que ressaltam situações de enfrentamento: a postura visceral de Ma’Rainey contra os donos

brancos de uma gravadora em A Voz Suprema do Blues (2020) e a insistência de Billie

Holiday em desobedecer o FBI e continuar cantando Strange Fruit em Estados Unidos vs.

Billie Holiday (2021).

Embora seja um esforço interessante, é sempre importante não perder de vista que as

principais respostas políticas que o jazz deu contra o racismo em seu período formativo foi

por meios um pouco mais complexos de se notar em um primeiro momento, mas que não são

34
MONSON, 2007 apud AGUIAR, 2018, p. 68.
35
AGUIAR, op. cit., p. 62.
17
por isso menos diretos. Não a toa ele incomodou, foi taxado, relegado à marginalidade por

brancos e até mesmo por outros negros, rompendo com qualquer ideia simplista de

homogeneidade cultural entre a população negra estadunidense. Mas resistiu na medida que

conservou esse seu principal aspecto político: o idioma musical que representava para

expressar as inquietudes e esperanças de quem não tinha outros espaços para expressá-las. Às

vezes nem pela letra cantada. Mas na performance, nas atitudes, na distorção de escalas

diatônicas, foi o suprassumo de o que significava a arte e o entretenimento para a população

negra estadunidense que resistiu à escravização, às leis de Jim Crow, à todo tipo de

segregação formal ou informal e, cotidianamente, ao racismo encarnado profundamente na

sociedade estadunidense até os dias de hoje.

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