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Nº USP: 10764381
Turno noturno
História dos Direitos Civis e Black Power – Prof. Dr. Robert Sean Purdy
(1900-1930)?
São Paulo
2021
Introdução
Quando se fala em estratégias políticas para dar resposta a um problema social, como
o racismo neste caso, imediatamente pode-se pensar na resistência aberta por meio da
no entanto, busca articular de que maneira uma das manifestações culturais mais
resistência na medida que foi uma importante expressão de como pensavam e o que sentiam
pessoas negras referenciadas por seus pares como porta-vozes de realidades subalternizadas
Para tanto, será atribuído um recorte temporal entre a virada do século XIX para o XX
tema dois fenômenos que se retroalimentam: por um lado, a migração de milhares de negros e
negras para as grandes cidades trazendo consigo toda uma efervescência cultural e intelectual
que dá um novo tom à realidade urbana estadunidense; por outro, o processo formativo das
características que viriam a definir o Jazz como um estilo autônomo, integrado, porém cada
vez mais independente de suas influências mais próximas como o blues e o ragtime.
grande parte do território estadunidense nesse período, na cena do jazz a costa leste cumpre
um papel fulcral para a argumentação aqui exposta, servindo, pois, como recorte espacial,
sobretudo em duas cidades que servem de palco para episódios importantes nessa história do
jazz como expressão da população negra, quais sejam, Nova Orleans e Nova York (em
bibliográficas, fílmicas e musicais para propor que o jazz – entendido de forma não apenas
3
musicológica, mas tomado enquanto autoria, performance e recepção de suas produções –
pode ser compreendido como resposta política à situação enfrentada pelos negros
estadunidenses daquele período, ainda que essa sua faceta muitas vezes não seja tão fácil de
inferir apenas pela observação à primeira vista de suas letras e da trajetória biográfica de seus
principais representantes.
4
1.1 Jazz como Idioma Musical
periodização que este trabalho sugere. Ritmos e formas musicais africanos sobreviveram à
diáspora atlântica e aportaram nos Estados Unidos, ganhando contornos mais ou menos
íntegros a depender da realidade para a qual eram levados seus produtores, os escravizados 1.
Com o tempo e a adaptação à nova realidade com outra dinâmica de trabalho ou de vida
Diversas foram as matrizes que se mesclaram com a música negra para a formação de
novas formas musicais, mas seguindo a argumentação de Hobsbawm, o jazz é filho de uma
mistura com elementos europeus dos quais se destacam traços da tradição francesa em
Louisiana (o gosto católico-mediterrânico por festas e carnavais que demandam fanfarras com
bass bands, levando a criação das primeiras bandas de negros, as créoles) e, ainda mais
fundamental, o idioma anglo-saxão que forneceu o substrato para composição das letras das
canções de trabalho, do blues secular e da música gospel. Essa mesclagem, seguindo na linha
subordinar o componente africano ao europeu2. Parte disso vem da agência criadora dos
brancos que lhe viessem a favorecer por meio da música, servindo os senhores como artistas
nas fazendas para escapar das formas mais brutais de escravização ou formando uma cultura
1
Hobsbawm (2015, p. 61), por exemplo, fala de um certo estímulo dos senhores brancos da Louisiana às
músicas ritualísticas cantadas pelos escravizados como forma de válvula de escape.
2
HOBSBAWM, Eric J. História Social do Jazz. – 20ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020. pp. 60-65.
5
Existe uma certa centralidade de Nova Orleans nesse processo que, no entanto, não deve
ser confundida com pioneirismo. De fato, para Hobsbawm, é nesta cidade que se verifica pela
primeira vez uma massificação e concentração de música negra produzida e executada por
negros sendo consumida em espaços de entretenimento3, mas o “berço do jazz” é muito mais
difícil de localizar. Aguiar argumenta que a própria narrativa de Nova Orleans com esse
ao seu aspecto fonográfico, de forma que os primeiros registros sonoros gravados pela
Original Dixieland Jazz Band, uma banda de brancos, podem ser entendidos não como um
marco inicial dessa história, mas como um exemplo de como “sua branquitude servia a seu
favor na hora de ter a oportunidade de gravar um disco ou de tocar para públicos não
segregados”, fato esse manipulado para forjar uma raiz branca ao jazz, ocultando sua matriz
negra.4
O cenário descrito por Hobsbawm nesse final de século XIX compreende uma cena
originais de música produzida por negros muito variadas, ainda que Nova Orleans tenha se
tornado o polo mais importante. Também a isso o autor dá um caráter global na medida em
que insere este fenômeno no que ele chama de “período revolucionário nas artes populares”,
entretenimento que seja lucrativo, como boates, music halls e toda uma vida boêmia noturna
que se alimenta da música popular, seja do jazz em Nova Orleans como, por exemplo, o
Essa massificação da música popular na vida noturna das grandes cidades estadunidenses
tem, para Hobsbawm, duas tradições diferentes que se encontram: uma metropolitana de
3
Ibid., pp. 75-77.
4
AGUIAR, Yhande. O Jazz de Billie Holiday e o Movimento por Direitos Civis nos EUA (1915-1959). Trabalho de
Conclusão de Curso (Bacharelado e Licenciatura em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Departamento de História, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, p. 20-21. 2018.
5
HOBSBAWM, op. cit., pp. 69-71.
6
entretenimento da qual decorrem as bass bands e creóles em Nova Orleans, bem como uma
tradição de canções rurais ou urbanas amadoras sobre o cotidiano difícil da realidade dos
negros, gerando identificação com um público de mesma origem com cada vez mais
expressão6. A variante de jazz de Nova Orleans é, portanto, em última instância, uma das
vertentes que acelera essa tendência de fomento da música popular nas cidades a partir dos
tours de músicos vindos do Delta do Mississipi, mas outras linhas de força como o ragtime de
artistas como Scott Joplin (ele próprio uma influência para a “inteligência musical” do jazz7),
metal também estavam ajudando a fomentar um idioma musical8 que expressava, cada qual
agitação musical nos EUA. O jazz, improvisatório e imprevisível do jeito que é, soube
absorver um pouco dos elementos de cada uma dessas tendências, muito embora seja muito
difícil defini-lo até a metade dos anos 1930 quando a Era do Swing passa a lhe conferir um
Como muito bem aponta Hobsbawm, o jazz é o produto dos seus músicos e cantores
que são o “centro desse mundo”10. Levar em conta o fator humano de quem professava esse
idioma musical significa compreender qual a situação dos negros e negras estadunidenses
Sean Purdy descreve um cenário do Sul dos Estados Unidos onde até 1900 habitavam
90% dos mais de 10 milhões de negros no país como uma situação terrível que ocorria com o
6
Ibid., pp. 71.73.
7
AGUIAR, op. cit., p. 17.
8
Ibid., p. 9.
9
Ibid., p. 11.
10
HOBSBAWM, op. cit., p. 257.
7
aval das autoridades locais e leis específicas. A perda do direito ao voto, o “salário
terrorismo branco aberto praticado por organizações supremacistas como a KKK (Ku Klux
presos a dívidas impagáveis11, se somam a todas as privações trazidas pelas Leis de Jim Crow
amparadas pela ideia do “separados, mais iguais” que só viria a ser abolida na Suprema Corte
nas décadas de 1950 e 196012. Essa amálgama de situações fazia com que ao olhar para o
norte industrial e pulsante, a população negra visse a oportunidade de encontrar, “pelo menos
nas suas feições pessoais mais agravantes” um escape ao racismo sufocante perpetrado no
Sul.
manifesto “The New Negro” ajuda a completar esse quadro dizendo que, além dessas
influências externas que tornavam a vida no Sul insustentável para os negros, o fator primário
que explica as Grandes Migrações estaria em uma nova visão de oportunidade, de liberdade
social e econômica, a qual ele chama de um “spirit to seize”, apesar das circunstâncias mais
apreendida de uma consciência nova de querer deliberadamente não só sair do campo para a
Se por um lado essa “oportunidade” foi aproveitada por milhares de negros e negras,
como comprovam os dados trazidos por Purdy para o intervalo entre 1910 e 1920 que
mostram o aumento exponencial da população negra nas grandes cidades da costa leste do
11
PURDY, Robert Sean. “O Século Americano”. In: KARNAL, Leandro... [et al.]. História dos Estados: das origens
ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007, pp. 181-182.
12
FERNANDES, Luiz Estevam; MORAIS, Marcos Vinicius. “Os EUA no Século XX”. In: KARNAL, Leandro... [et al.].
História dos Estados: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007, p. 145.
13
LOCKE, Alain. The New Negro: An Interpretation. New York: Albert and Charles Boni, 1925, p.6. Disponível
em: <https://archive.org/details/newnegrointerpre00unse/mode/2up>. Acesso em: 14 jul. 2021.
8
país: Detroit de 5 mil para 41 mil, Cleveland de 8,4 mil para 35 mil, Chicago de 44 mil para
110 mil, Nova York de 91,7 mil para 152 mil14; por outro lado, a frustração também parece
ser um elemento importante uma vez que o racismo no Norte prevalecia, ainda que de outras
domésticos ou trabalhos braçais e condições de vida precárias mesmo nos grandes bairros de
Nova York.
São esses trabalhadores não especializados que formavam as bandas de jazz, as vozes
que enchiam os music halls da vida noturna e boêmia desses grandes núcleos urbanos.
Alcançar o estrelato era mais que um capricho pessoal, mas a oportunidade de ser os
primeiros potenciais cidadãos de sua comunidade ou de seu povo. Para estas pessoas, o
entretenimento não era apenas uma forma de ganhar a vida, mas “uma maneira de se criar um
reis e rainhas dos trabalhadores e subproletários das favelas sobre as quais reinavam.
Essa mudança no status do artista do jazz (mas também de outros gêneros de música
negra como o blues) é uma ruptura fundamental com a percepção geral que o público
frequentador das music halls em Nova Orleans tinha da música ali executada, tida como
“música de pretos”, talvez também por seu caráter experimental. Portanto se o Norte confere
uma nova aura ao músico de jazz, também se verifica o mesmo com o próprio gênero quando
ganha um caráter mais urbano, contando com mais instrumentos musicais e inventividade
rítmica, uma preocupação maior com o estilo que Aguiar chama de “Fase de Chicago” da qual
Louis Armstrong e sua “presença mítica maior que a vida” se torna a principal referência16.
14
Purdy, Robert Sean. op. cit., p. 183.
15
HOBSBAWM, op. cit., p. 262-263.
16
AGUIAR, op. cit., pp. 22-24.
9
Neste momento, mas sobretudo quando o coração do jazz se muda novamente, dessa
vez para Nova York e em especial no Harlem, pode-se já falar que esse gênero fazia parte do
vidas passam a ser compartilhadas. Propósitos comuns a um Negro de novo tipo para quem
religião, liberdade, educação ou dinheiro eram importantes e até almejados, mas a mola
Essa nova forma de autoconsciência que pode ser encontrada no manifesto de Locke é
reproduzidos por eles próprios) para construir uma sociabilidade negra pautada na
Leaders e almejando caminhar conjuntamente aos líderes mais avançados dos brancos na
construção de uma “Nova Democracia na cultura americana”. Portanto, não se tratava apenas
de um movimento racial, mas ao inserir a questão do negro como “parte integrante dos
uma nova atitude do Negro, uma maioridade espiritual Negra (até mesmo em sua acepção
global, como “vanguarda dos povos africanos no contato com a civilização do século XX”)
17
LOCKE, Alain. op. cit., pp. 6-8.
18
Ibid., p. 5.
10
para contribuir para uma nova atitude americana no aprofundamento do ideal democrático
fundador da Nação19.
expressava a vivacidade cultural do bairro por meio de suas icônicas figuras como Duke
Ellington, Bessie Smith, Billie Holiday, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Nat King Cole,
Count Basie, Lena Horne e Thelonius Monk. A autora também parte da análise da letra da
música “I’ve Got the World on a String” gravada por Cab Calloway em 1932, para mostrar
como esse ideal do “mundo nas mãos do artista” era parte constituinte de uma nova postura
Outra figura emblemática é o poeta Langston Hughes que, como apontam Tomé e
folclórico negro” como projeto poético, não só como experimento esporádico21. Hughes inova
escrita um forte caráter de leitura cantada, bem como traz também a ambientação jazzística da
ou na pontuação para “brincar” com as palavras como um músico de jazz brinca com as notas
nas jazz poetry inauguradas por Hughes parece ser uma exceção, como pontua Angela Davis
ao verificar, por exemplo, que os intelectuais renascentistas tendiam a ver com pouco
19
Ibid., p. 10-16.
20
STIEVANO, Bruna. O Renascimento do Harlem: Música Literatura e Empoderamento negro, Parte 1.
Disponível em < https://www.deviante.com.br/noticias/o-renascimento-do-harlem-musica-literatura-e-
empoderamento-negro-parte-1/#disqus_thread>. Acesso em: 14 jul. 2021.
21
FALEIROS, Álvares; TOMÉ, Pedro. Poemas de Blues e Jazz: A Musicalidade Negra de Langston Hughes.
Literatura em Debate. v. 6, n. 10, pp. 58-59, 2012.
22
Ibid., p. 64.
11
entusiasmo as cantoras negras de blues por enxergar sua “sensualidade associada à vida da
Aguiar diz que o Harlem foi uma sociedade baseada em dois extremos: o lado renascentista,
acadêmico, que refletia orgulho e atenção para a comunidade; e o outro Harlem nem tão
bonito assim, em que a efusão dos night clubs estava intrinsecamente ligada à vida ilegal, aos
Harlem tenha fornecido o contexto cultural para o jazz, a música vinha das festas de aluguel e
Locke se referia se manifestava com ímpar animosidade no ambiente jazzístico, praticado por
maior ao notar que o ambiente do jazz foi também o primeiro responsável pela integração
cultural entre brancos e negros. Aguiar cita como exemplos os slummings (presença de
brancos de classe média frequentando night clubs no Harlem), as comparações feitas entre
Duke Ellington e J.S. Bach na tentativa de incluir um dos nomes mais intelectualizados do
jazz na gama da erudição musical historicamente branca, e, finalmente, o fato de que o swing,
a forma do jazz que definitivamente se tornaria universal, ter saído do próprio Harlem25.
Impossível não mencionar ainda o famoso Cotton Club, o polêmico caso do night club
majoritariamente frequentado por brancos, mas de onde saíram nomes de primeira ordem
polêmica do Cotton Club ao fazer um balanço tanto da historiografia sobre o tema quanto das
críticas que personalidades importantes do meio renascentista como Alain Locke e W.E.B. Du
23
DAVIS, Angela. Blues Legacies and Black Feminism: Gertrude “Ma” Rainey, Bessie Smith, and Billie Holiday.
New York: Vintage Books, 1998. Introdução traduzida em: <https://traduagindo.com/2019/07/31/o-legado-do-
blues-e-o-feminismo-negro-de-angela-davis/>. Acesso em 14 jul. 2021.
24
AGUIAR, op. cit., pp. 25-27.
25
Ibid., 28-30.
12
Bois fizeram a seu respeito. Nessas visões, o Cotton Club surge como a negação da narrativa
heroica do jazz, como o berço dos estereótipos que os renascentistas tanto se esforçavam para
enterrar, destacando seu evidente e claro racismo, mesmo quando destaca o papel
desempenhado por figuras como Ellington e Calloway. Há mesmo quem não entre no aspecto
social e faça apenas uma história musicológica, destacando a evolução das inovações técnicas
Ora, segundo esse autor, esse tipo de visão está encarnado com uma historia que leva
em conta apenas o aspecto estético como um continuum de progresso que reforça o “estigma
estilos anteriores”26. Na medida que Sloan passa a observar outros aspectos para além das
letras das músicas e das narrações factuais da história do Cotton Club e lança luz sobre a
recepção entre os próprios músicos negros que ali se apresentavam a partir da análise de
ganham outros contornos. Sloan coloca uma questão que é fundamental para a análise do jazz,
ou mesmo do blues: esses gêneros não são só sua música, mas também sua perfomance27.
Harrison abrange essa questão em sua análise do comportamento das “Blues queens” dos anos
1920 quando argumenta que a maneira como essas artistas negras performavam suas
aparições era também uma forma de se colocar no mundo, de criar um ethos próprio para a
26
SLOAN, Nathaniel. Jazz in the Harlem Moment: Performing Race and Place at the Cotton Club. Dissertation
(Doctor of Philosophy) – Department of Music, Stanford University. Palo Alto, 2016, pp. 5-12. Disponível em:
<https://stacks.stanford.edu/file/druid:wv188bh5963/Sloan%20Dissertation-augmented.pdf>. Acesso em 14
jul. 2021.
27
Ibid., pp. 10-11.
28
HARRISON, Daphne Durval. Black Pearls: Blues Queens of the 1920s. New Jersey: Rutgers Universiy Press,
1990, 221-222.
13
De todo modo, interpretar como virtude o exibicionismo performado no Cotton Club
musicológica progressiva parece sempre colocar nos capítulos anteriores da história do jazz
um quê de barbarismo que vai se civilizando conforme a técnica avança e a música vai sendo,
também e cada vez mais, produzida e executada por brancos. Tal concepção encontra,
(1927) e Nova Orleans (1947) em que a respeitabilidade do jazz condiz com sua aceitação
Não se trata, pois, de encarar a realidade do Harlem de onde floresceu o jazz, suas
formas de expressão e perfomance, sua sensualidade, sua improvisação típica, como algo de
pouca respeitabilidade, pouco valor frente aos grandes e puros ideais almejados pelo
público branco. Se trata, antes, de observar na particularidade do jazz a forma como seus
intérpretes apreendem o mundo ao seu redor, sua posição nele e performam para um público
que o reconhece.
que a música popular negra, novamente o jazz ao lado do blues, tiveram nessa mudança de
postura do negro frente o mundo e sua comunidade. Voltando a Harrison, em sua análise
específica sobre a trajetória das Blues queens dos anos 1920, é possível traçar a importância
que teve para as mulheres negras representarem e serem representadas em canções que
capturavam a sua sensibilidade, sua luta diária pelo equilíbrio físico, psicológico e espiritual,
14
“conjurando seus demônios e exorcizando-os no público” ao falar de alienação, sexo e
o que é ser uma mulher negra naquela sociedade americana. Sociedade essa que não protege a
santidade de seus corpos como o faz com o das mulheres brancas, o que pontua o tema do
abuso sexual e do abandono nas letras de músicas como “Nobody Knows You When You’re
Down and Out” de Bessie Smith (“no man can use you wen you down and out”). A
sensualidade e a presença constante do sexo nessas músicas também pode ser interpretada na
chave de uma libertação do controle opressivo da Igreja Negra rural, mas não dos laços com a
família e o lar. Em outras palavras, “the blues transcend conditions created by social injustice;
and their attraction is that they express simultaneously the agony of life and the possibility of
jazz, como forma contestatória: primeiro, um conflito geracional de uma juventude aberta a
jazz é democrático desde sua origem, partindo não da ortodoxia musical, mas das camadas
rechaçar os maneirismos acadêmicos, ele “toca direto no coração”, com suas improvisações,
seus artifícios para comportar a perfomance que suas músicas necessitam causando impacto
imediato aos ouvidos de um público pouco ou nada familiar com os conceitos técnicos da
música31.
Hobsbawm argumenta ainda que a força do Jazz como forma de protesto reside mais
na sua forma no que em seu conteúdo. A coletividade inerente ao jazz combinada com a
29
Ibid., pp. 221-222
30
Ibid., pp. 52-54.
31
Hobsbawm (2015, 337-338) identifica neste terceiro ponto também uma herança da música negra religiosa
ao comparar com o hot gospeller no que tange aos artifícios para causar impacto imediato aos ouvintes.
15
iniciativa individual do músico improvisador, por exemplo, diz tanto sobre a condição do
negro do que uma letra de música. Se não se encontra nas letras das grandes figuras do jazz
experiências que narra e a forma que carrega consigo as especificidades da vida de negros e
negras estadunidenses dizem muito sobre o que o jazz é contrário na política (o racismo, a
desigualdade, a pobreza), mesmo sem dizer do que ele é a favor. Para Hobsbawm, não é
possível estabelecer uma ligação direta do Jazz com um programa político de esquerda, pois
ele está muito mais associado aos music halls, a descontração do trabalhador pré-industrial
pouco inclinado à organização política32, mas ainda assim, ele foi a forma encontrada por
negros e negras para dar vazão aos sentimentos e expressões quanto à realidade que viviam e
quanto à perspectiva (muitas vezes otimista) que vislumbravam para sobreviver nela.
nominalmente, a Bessie Smith, Gertrude Ma’Rainey e Billie Holiday) como forma de chegar
em vozes negras advindas das classes populares. Essas canções, para a autora, servem como
terreno para “examinar uma consciência feminista histórica que refletisse as vidas da classe
radicais nas questões raciais, mas conservadores no resto. No entanto, aponta para “tendências
injustiça.
32
HOBSBAWM, op. cit., p. 331.342.
33
DAVIS, Angela. op. cit.
16
Conclusão
É importante pensar, pois, o que é resistência. O Movimento pelos Direitos Civis nos
anos 1950 e 1960 reivindicou o jazz como exemplo de orgulho negro e de meio coletivo de
superar o medo de protestar, sobretudo na figura de Billie Holiday que protestou em cenários
extremamente adversos. Aguiar chega a pontuar que “o mundo do jazz era mais avançado em
simbólica canção “Strange Fruit” de 1939 como campanha política para criar leis
antilinchamentos35.
O próprio jazz dos anos 1960 andou lado a lado com os movimentos por direitos civis
e suas músicas do período ressaltavam fortemente nas letras a temática da injúria racial, da
solidariedade social e do orgulho negro. Impossível não pensar em canções como “Ain’t Got
transitaram entre o blues e o jazz na década de 1920. Chama a atenção que entre 2020 e 2021
Holiday em desobedecer o FBI e continuar cantando Strange Fruit em Estados Unidos vs.
Embora seja um esforço interessante, é sempre importante não perder de vista que as
principais respostas políticas que o jazz deu contra o racismo em seu período formativo foi
por meios um pouco mais complexos de se notar em um primeiro momento, mas que não são
34
MONSON, 2007 apud AGUIAR, 2018, p. 68.
35
AGUIAR, op. cit., p. 62.
17
por isso menos diretos. Não a toa ele incomodou, foi taxado, relegado à marginalidade por
brancos e até mesmo por outros negros, rompendo com qualquer ideia simplista de
homogeneidade cultural entre a população negra estadunidense. Mas resistiu na medida que
conservou esse seu principal aspecto político: o idioma musical que representava para
expressar as inquietudes e esperanças de quem não tinha outros espaços para expressá-las. Às
vezes nem pela letra cantada. Mas na performance, nas atitudes, na distorção de escalas
negra estadunidense que resistiu à escravização, às leis de Jim Crow, à todo tipo de
18
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