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Bossa nova nacionalista:

referência estética e ideológica da


canção engajada

Em ergência e p olitização da bossa nova

'o Brasil, costuma-se associar os grupos e os movimentos artistico-cul


turais que surgiram no final dos anos 1950 e início de 1960 à euforia nacional
desenvolvimentista.^ Nesse contexto, relaciona-se o surgimento da bossa nova ao
projeto de desenvolvimento econômico e industrial do governo de Juscclino Ku
bitschek (1956-1961). Em entrevista ao jornal 0 Globo, em janeiro de 1998, Carlos
Lyra afirmou que a bossa nova “não é um movimento, como aTropicália ou o
Cinema Novo e, sim, muito mais um surto de cultura que não pode ser dissociado
da dimensão sociopolítica, da riqueza propiciada pela era Juscelino Kubitschek"1.
Nessa época em que se associava diretamente o (sub)desenvolvimcnto da
economia e da indústria ao (sub)desenvolvimento da cultura, a exemplo da tese
de Roland Corbisier, a bossa nova representava a superação do estado de subde
senvolvimento da música popular brasileira assim como de seu público. Baseado
nisso, Vinícius de Moraes, em entrevista à revista Veja, em dezembro dc 1970,
justificou a sua participação no programa de auditório de Sílvio Santos: “Não faço
música só para a elite, não. E, de certo modo, a gente vai para tentar melhorar
o nível do programa do Sílvio Santos”2.

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Assim, no íinal dos anos 1950, a bossa nova se afirmava no cenário musical
brasileiro como música de qualidade e com influência sobre a juventude, carac­
terísticas que atraíram o interesse da indústria fonográfica.
Hm 1959, podemos afirmar que o lançamento do disco Chega de saudade,
de João Ciilberto, sintetizou as principais inovações estéticas e as aspirações dos
músicos da bossa nova. Entre elas, havia a modificação rítmica do samba, a inte­
gração entre harmonia, ritmo e contraponto, a função assumida pelo violão, a
interpretação contida e anticontrastante, a metalinguagem, a releitura de gêne­
ros musicais como o samba-canção e o bolero, além do diálogo com influências
heterogêneas como a música erudita e o jazz.
À origem social dos músicos agregava-se a formação musical em conserva­
tórios e escolas especializadas. Assim, mais do que um jeito diferente de tocar
violão ou de impostar a vozí, a bossa nova apresentou elementos inéditos e indis­
pensáveis à análise do processo de institucionalização da música popular brasileira
a partir dos anos 1950. \
Nesse contexto de afirmação da bossa nova no cenário musical brasileiro,
os músicos bossa-novistas desde o início acentuaram o diálogo com a música
erudita, o jazz e, sobretudo, o samba. Tom Jobim declarou que, desde pequeno,
ouvia simultaneamente Noel Rosa, Ary Barroso, Lamartine Babo, Pixinguinha,
Boi hino e Léo Perachi e Villa-Lobos’ . Nesse mesmo sentido, Carlos Lyra afir­
mou, cm entrevista a Almir Chédiak, que sempre gostou de Stravinsky, Ravel
e Debussy. “Acho que o impressionismo é fundamental para todo bossa-novista
que se preza. Não se podia, evidentemente, escapar a uma influência tão forte
como a de Villa-Lobos, que fazia música com toda brasilidade, neoclassismo e
neo-romantismo inerentes à bossa nova” 4.
Sobre a influência do jazz na bossa nova, Carlos Lyra mencionou que

“não há dúvida de que todas as influências jazzísticas —sobretudo o jazz West


Coast tiveram importância na minha formação através de nomes como Chet
Baker, Gerry Mulligan e outros. Antes de nos aprofundarmos nesse jazz West
Coast, já curtíamos Sinatra e todos aqueles musicais americanos com Gene Kelly
e Fred Astaire. Já vinha por tabela a influência do jazz através dos Gershwins,
Rodgers & Hart, Cole Porter, enfim, daqueles compositores que foram impor­
tantíssimos para a nossa cabeça”.5
I ) ( l T I I AT HO M I L I T A N T I1 A Ml ' l d l l A l( N li A |A l> A

O conjunto Os Cariocas no Teatro Paramount (São Paulo, 1964).

Brasil Rocha Brito, no artigo “Bossa nova”6, evidenciou como o bebop e o


cool jazz influenciaram a composição e a interpretação de músicos brasileiros
como Dick Farney, Lúcio Alves, o conjunto Os Cariocas, Johnny Alf eTom Jo-
bim, entre outros.
i^No entanto, a influência musical heterogênea da bossa nova não a coloca
em oposição ao samba de raiz, tampouco a define como música norte-ameri
cana produzida no Brasil. Em dezembro de 1959, para informar os leitores,
basicamente estudantes, do jornal 0 Metropolitano, da União Metropolitana de
Estudantes ( u m e ) , Afrânio Nabuco tratou da relação da bossa nova com o jazz
e o samba.

“Este movimento, apesar de ter sofrido influências jazzísticas e seus acordes


serem semelhantes aos de Debussy ou Ravel, não pode deixar de ser consi­
derado como samba. Assim como os primitivos, conserva-se a marcação 2/4.
A única dessemelhança reside na síncope, que é característica essencialmente
das melodias modernas. Trata-se, portanto, de uma evolução natural da música
popular”.7

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<n ■•<> r i i v i l n n A M Itm n

Dois anos depois, em fevereiro de 196Î, Carlos Lyra acentuou as principais


diferenças entre a bossa nova e o jazz. Para o músico,

“a bossa nova não é uma nova batida nem nada igual e sim a evolução natural
/ da música popular. Ela é influenciada pelo mesmo impressionismo que atingiu
y l o jazz. Assenta-se em caminhos musicais, de forma algo semelhante aos cami­
nhos harmônicos que deram origem ao jazz, diferindo, porém, quer na sua
estruturação melódica, quer no que de mais íntimo possuam as letras. Mais
claramente: os caminhos são semelhantes, sendo que o negro de lá motivou o
jazz e o daqui, o samba”.8

Para Lorenzo Mammi, estudioso da música, a principal diferença entre o jazz e


a bossa nova situa-se no papel representado pela harmonia e pela melodia na com­
posição musical. Por exemplo, a harmonia em Tom Jobim está mais próxima à do
jazz na morfologia do que na função. Em geral, para um jazzista, compor significaria
encontrar uma estrutura harmônica diversificada por infinitas variações melódicas;
para Tom Jobim, compor significava encontrar uma estrutura melódica colorida por
infinitas nuances harmônicas9. Carlos Lyra, por sua vez, conhecido como grande
mclodista da música popular brasileira, afirmou, em 1994, que “depois do ritmo,
posso dizer que, na minha música, pelo menos, a melodia é fundamental. A melodia
seria o desenho pelo qual eu me guio. As cores seriam a harmonia”10.
No final dos anos 1950 e início de 1960, acentuar as diferenças, e não as
Isemelhanças, entre a bossa nova e o jazz tinha como objetivo resgatar os vínculos
com a tradição da música popular brasileira e precaver-se contra as críticas que
la consideravam elitista, sem conteúdo e voltada para o consumo externo. Nesse
contexto, podemos considerar o diálogo entre tradição e modernidade como
uma das tentativas de politização e popularização da bossa nova por músicos que
integravam o c pc , a exemplo de Carlos Lyra'1.
No área do teatro, por sua vez, desde quando se transformou em “porta-voz
das aspirações vanguardistas” e na “casa do autor brasileiro”, o Teatro de Arena
rompeu com o gênero do teatro de revista e passou a criticar o predomínio de
peças e autores estrangeiros na programação do Teatro Brasileiro de Comédia.
Para essa vertente engajada, os teatrólogos brasileiros, com algumas exceções, não
se- preocuparam em consolidar uma dramaturgia nacional que unisse qualidade
artística e formação de platéia. Como acentuou o crítico Osmar Rodrigues Cruz,

• 6o •
() cineasta Nelson Pereira dos Santos, autor dos clássicos R io, 4 0 graus (1955) e R io, zona norte (1957), c apontado
I amo precursor do cinema novo. Ao lado, Glauber Rocha dirige Deus e o diabo na terra do sol.

cm 1956, as experiências isoladas de Renato Viana, Álvaro Moreyra, Dulcin.»


c Pascoal Carlos Magno não firmaram uma tradição teatral no Brasil1’ . Nesse
sentido, Leo Gilson Ribeiro afirmou em 1962 que “ainda não existe um teatro
popular no Brasil porque não existem várias outras coisas, isto é, o teatro não
lem uma certa prioridade, nem mesmo cultural, inclusive porque o Brasil é um
país que não tem nenhuma tradição teatral”13.
Quanto ao cinema novo, este movimento negou a tradição e o público
das chanchadas e melodramas produzidos, em grande escala, pela companhia
cinematográfica Vera Cruz. Segundo o crítico Maurice Capovilla, em 1962, “a
tradição no caso, pouco importa quando aquela invocada não é nossa e quando
na verdade tem de se encontrar, na prática do presente, uma nova forma para
um conteúdo novo que interessa exprimir”14. Para o cineasta Ruy Guerra, em
1962, o cinema novo priorizava formar um público com capacidade de avaliação
crítica e recepção estética. Assim,

“Cinema Novo é fenômeno não tanto da feitura mas do público. Cinema Novo
só passará a existir na medida em que exista um público para seus filmes; isto
já implica então num estudo, numa posição crítica do público. De início existe
para que este público assista a este cinema novo não em termos de chanchada,
mas com funções críticas”.15

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nu ro vo n n ahii k in o

C l NI MA NOVO
O movimento cinema novo teve início por volta cie 1960, com os primeiros
filmes cie Glaubcr Rocha, Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues,
|,eon I lirs/.man e outros jovens cineastas, e manteve-se até 1967. Inspirado no
neo-realismo italiano e na política francesa dos autores, defendia um cinema de
jutor, despojado (cujo lema era “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”),
tentando conciliar formas narrativas avançadas e temas sintonizados com a reali-
tlade brasileira. Os cineastas identificados a esse movimento assumiram a posição
[|e vanguarda na discussão dos grandes problemas brasileiros, procurando, por
Intermédio de seus filmes, refletir sobre a identidade nacional. Os filmes mais
importantes da fase inicial foram: Osfuzis, de Ruy Guerra (1964), Vidas secas, de
Nelson Pereira dos Santos (1963) e Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha
1964). Após o golpe militar, os filmes procuraram abordar a crise dos intelectuais
le esquerda e as contradições da vida política nacional, como nos filmes 0 desafo,
le Paulo Cesar Sarraceni (1965) e Terra em transe, de Glauber Rocha (1967). Uma
mportante referência ideológica do movimento foi o nacionalismo isebiano e al­
umias das principais idéias do cinema novo foram sintetizadas por Glauber Rocha
io manifesto Estética dafome (1965)16.*I

Em relação ao passado musical, a bossa nova apresentou duas fases distin-


/ tas: inicialmente, para se firmar no cenário musical brasileiro, distanciou-se das
origens da música popular e, em seguida, para se defender dos rótulos de música
alienada e música para exportação, resgatou as tradições populares, a exemplo
do diálogo com o samba e a música regional.
Segundo Marcos Napolitano, os músicos da bossa nova dialogavam com os
I mitos fundadores da musicalidade brasileira, que reconheciam no samba a síntese
I da música nacional. Logo, “esta característica expressou a linha de continuidade
j entre o universo musical anterior e posterior à bossa nova, exigindo uma crítica
cuidadosa à idéia de ruptura radical, que vem fazendo tábula rasa da história
musical anterior ao ano de 1959”17.
Em dezembro de 1959, em entrevista a Afrânio Nabuco, Carlos Lyra não
concordava com dois elementos que os críticos utilizavam para caracterizar a

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IM» I P r t i n i l MIMTANTI< * MIIHICA

bossa nova: a formação cxclusivamcntc jovem <lo grupo e o rompimento com a


tradição musical brasileira. Para o músico,

“em primeiro lugar, uma de suas maiores figuras Vinícius de Morais , j.i se
encontra, com perdão da palavra, com sua senectude em via de se consolidar.
Por outro lado —continua Carlinhos —, se atentarmos para a musicalidade des
tas composições, veremos que em meados de 34 Custódio Mesquita e Ewaldo
Rui lançaram o Noturno, cuja melodia possui características assustadoramenle
semelhantes às que agora se encontram em voga”.18

No processo de politização das artes, entre o final dos anos 1950 c o iní­
cio de 1960, podemos associar o surgimento da vertente nacionalista da bossa
nova à trajetória musical e política de Carlos Lyra, que, por sua vez, evidenciou
as principais contradições do engajamento do artista de classe média às causas
nacionalistas.
Em fevereiro de 1960, João Paulo S. Gomes, da seção de Música Popular,
do jornal 0 Metropolitano, criticou essa entrevista de Carlos Lyra publicada no
periódico estudantil em edição anterior. Na reportagem “Carlos Lyra e a bossa
nova”19, o crítico apontava pelo menos dois aspectos questionáveis na entrevista
realizada com o músico.
O primeiro referia-se à seguinte observação de Carlos Lyra, citada por
Afrânio Nabuco:

“Carlinhos considera, tanto Noel, quanto Caymmi ou Ary Barroso, totalmente


ultrapassados. Apesar de possuírem algo de belo, não conseguem eles trans­
mitir alguma coisa que realmente se infiltre no sentimento musical moderno.
Possuem eles somente o poder de descrição, não conseguindo ‘dizer’ algo de
maneira coloquial”.20

O segundo relacionava-se à apreciação de Carlos Lyra, transcrita por João


Paulo S. Gomes: “Cabe ressaltar que, com isso, não se pretende desdenhar os bons
autores e intérpretes que precederam a este movimento. Apesar de que tenham
sido ultrapassados, muito ao contrário do que alguns pensam, gozam de respeito
e admiração dos mais novos”21.
João Paulo S. Gomes não entendia como um músico talentoso, grande me-
lodista, podia considerar ultrapassados Ary Barroso, Dorival Caymmi, Antônio

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n m m n in imi ru fii n n n im piim i

Maria, Jair Amorim, José Maria dc Abreu, Lamartinc Babo ou Luís Bonfá. Como
resposta, João Paulo aconselhou Carlos Lyra a pesquisar a história <la música
popular brasileira e definiu a bossa nova como samba moderno:

“bossa nova não existe, o que existe realmente é o sa m b a m o d e r n o e este nada


mais é do que o resultado de uma mistura de ritmos centro-latino adicionado
ao modo norte-americano de apresentar a música. Estes dois ritmos vieram se
juntar ao s a m b a - c a n ç ã o , que já existia desde Noel e Sinhô. Feita esta junção de
ritmos surgia um novo modo de a p r e s e n t a r o samba e este modo é o sa m b a
m o d e r n o que você e outros preferem chamar de bossa nova”.22

Para o editorial e o público da seção de Música Popular do referido jornal


estudantil, a solução para a nacionalização da bossa nova encontrava-se no diá­
logo entre tradição e modernidade. Ou seja, considerar as tendências da música
universal sem, contudo, ignorar as raízes da música nacional.
Três anos depois, em 1963, Carlos Lyra revisara seu entendimento acerca da
relação da bossa nova com o passado musical. Em fevereiro, defendia os músicos
da bossa nova ao afirmar que “atacam-nos dizendo que negamos a música brasileira
antes do atual estágio em que está, quando na realidade isso não acontece, pois
nenhum de nós se recusa a aceitar Ary Barroso, por exemplo, como um mestre”23.
Em julho, considerava injusta a acusação que pairava sobre Ary Barroso de faltar
com o pagamento da mensalidade da Ordem dos Músicos. Para Lyra,

“a entidade precisava de cartaz e promoção. Ninguém melhor para ser explorado


do que o maior compositor brasileiro e o homem que mais trabalhou pela nossa
música. Prefiro um Ary Barroso, mineiro e bom, do que uma entidade que pro­
cede de forma lamentável contra um dos músicos a quem deveria homenagear
diariamente. A Ary Barroso nada se deve cobrar. Nem mensalidade esquecida.
Deve-se é procurar, agora, um meio de recompensá-lo”.24I

Assim, podemos afirmar que a aproximação de Carlos Lyra com “a célula

I
comunista” do Teatro de Arena e com o movimento estudantil, a aceitação da
bossa nova pelo público universitário, a comercialização do gênero voltado para
abastecer a demanda do mercado fonográfico norte-americano, a participação no
c pc , a parceria com Nelson Lins e Barros e o contato com músicos populares são
alguns fatores que propiciaram a politização da bossa nova e, conseqüentemente,

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(icralJo Vandré e o Quarteto Novo (São Paulo, nov. 1966).

do músico. A partir de então, Carlos Lyra procurou conciliar a modernidade do


jazz com a tradição da música urbana brasileira.
Nesse contexto de politização da bossa nova, a atuação de Carlos Lyra pro
piciou a aproximação de Vinicius de Moraes e Geraldo Vandré com o c pc . Em
entrevista a Jalusa Barcellos, o músico falou da contribuição dos compositores para
o movimento estudantil e a consolidação da canção engajada. Vinicius de Moraes
“teve uma participação muito importante no c pc . Ele recebeu influências não só da
minha parte, que já era parceiro dele, mas também pelo seu envolvimento com os
universitários, com o pessoal da u n e ”25. Geraldo Vandré “foi um dos meus pareci
ros que se politizou durante o processo. O Geraldo era um advogado cantador de
bolero, que não tinha nada a ver com política. Fui eu que arrastei ele”26. No encarte
do disco de Geraldo Vandré, da coleção História da Música Popular Brasileira,
lançada pela Abril Cultural em 1970,Tárikde Souza endossou a afirmação acima:
“Na faculdade, [Geraldo Vandré] começou a participar do diretório acadêmico, o
que lhe valeu alguns amigos e participações no cpc [...]. Um deles, Carlos Lyra,
que ‘já participava da roda do Vinicius’ , foi seu primeiro parceiro”27.

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................. ...i r n v i l HHMIII HIHII

P arceria í de C arlos L yra com Vin íciu s de M oraes e


G eraldo Vandré
No período de 1961 a 1964, Carlos Lyra e Vinícius de Moraes produziram as
músicas “Nada como ter amor”, “Coisam ais linda”, “Primeira namorada” e “Você e
eu” (1961); “Marcha da quarta-feira de cinzas” e o “Hino da u n e ” (1963); e as onze
faixas do lp Pobre menina rica (1964).
Com Geraldo Vandré, Carlos Lyra produziu as canções “Aruanda” e “Quem
quiser encontrar o amor” (1963).

\ A trajetória de Carlos Lyra, no início dos anos 1960, sintetiza os conflitos


J
do engajamento do artista de classe média inserido no contexto de consolidação
I da indústria cultural no Brasil. Nesse processo, os músicos que, porventura, par-
I ticiparam do cpc procuraram conciliar o engajamento às causas nacionalistas e o
I resgate das tradições culturais às conquistas estéticas da bossa nova e à inclusão
no mercado fonográfico. Como se vê, nessa época engajamento artístico não
excluía participação no mercado de bens culturais.

Por detrás estava a m áquina: divergências


id eo ló gicas e in dú stria fonográfica

Freqüentemente associa-se o surgimento da bossa nova “nacionalista” às


divergências entre Ronaldo Bôscoli e Carlos Lyra, parceiros de clássicos como
“Lobo bobo”, “Se é tarde me perdoa”, “Saudade fez um samba” e “Canção que
morre no ar” . A realização de dois shows universitários de bossa nova na m es­
ma cidade, Rio de Janeiro, no mesmo dia, 20 de maio de 1960, e no mesmo
horário, às 21 horas, explicitou essa dicotomia entre a vertente “intimista” e
a “nacionalista” da bossa nova e entre os interesses de mercado e as intenções
ideológicas.
Na Faculdade de Arquitetura, o show A noite do amor, do sorriso e da flor,
organizado por Ronaldo Bôscoli, contava com o patrocínio da Odeon, que lançou
o segundo disco de João Gilberto com título homônimo, e a participação deTom
Jobim, João Gilberto,Trio Irakitan, Os Cariocas, Johnny Alf e Nara Leão.

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|)(> TN A T R O M 11 l i A N r I' \ M I M O A l< N II A | A l>A

No auditório da Pontlficln
Universidade Católica (puc) do
Kio, o festival Sambalanço, pro
movido pelo Centro Acadêmico
Eduardo Lustosa e comandado
por Carlos Lyra, caracterizava-
se pela produção mais artesanal
e não contava com o patrocínio
de nenhuma multinacional. Em
dezembro de 1971, o autor da
matéria “Carlos Lyra, no Opinião: Bossa Nova ainda ganha fácil da Nova Bossa"
mencionou os problemas técnicos ocorridos no show da p u c :

“Na hora da apresentação da Silvinha, o microfone do ginásio da p u c pitou e não


houve mais jeito. Silvinha e os demais —Lais, Vandré, Oscar, Lyra, Alaíde (esta
eu não tenho certeza se estava ou não) —cantores de pouca voz, todos tiveram
que abrir a garganta, mas o público entendeu e apoiou”.28

Nesse cenário de rivalidades pessoais, poucas análises consideraram a enter


gência e a consolidação da indústria cultural e do mercado fonográfico, que, a
partir dos anos 1950, contava com novas e eficazes técnicas de divulgação musical
no Brasil, como o surgimento da televisão em 1950 e do long-plaj de 3 3 rotações
que substituiu o de 78 rotações em 195129.
Sobre esse impasse com Ronaldo Bôscoli, Carlos Lyra comentou, em en­
trevista concedida a José Eduardo Homem de Mello, que

“o Ronaldo era conservador e eu achava que o sistema era outro. Então a


gente tinha muitos choques e isso acabou degenerando numa briga, espe­
cialmente porque nessa época o Ronaldo estava assessorado pela Odeon e a
Philips me contratando. Por detrás estava a máquina. A verdadeira ruptura
não é entre eu e o Ronaldo, a briga é entre a Philips e a Odeon e nós somos
os instrumentos”.30

IjSegundo Marcos Napolitano, não podemos subestimar a indústria fono


gráfica que desejava atrair a juventude e expandir o mercado consumidor. Jlim
1959, a realização de três shows no Rio de Janeiro confirmou o sucesso da bos

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fta nova entre artistas, intelectuais e,
sobretudo, estudantes: o i Festival de
Samba Session, realizado na Faculdade
de Arquitetura, da Faculdade do Brasil,
em 22 de setembro de 1959; o Segundo
Comando de Operação Bossa, realizado
na Escola Naval, em 13 de novembro
de 1959; e o show comemorativo do
aniversário da Rádio Globo, realizado
em 2 de dezembro de 1959.
Esse sucesso da bossa nova des­
pertou a atenção de gravadoras como
a Philips e a Odeon, que disputavam o público jovem, a contratação de m ú­
sicos e estimulavam a polêmica como estratégia publicitária, a exemplo do
impasse entre Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli. Nesse momento de consolidação
da indústria fonográfica no Brasil, o interesse das gravadoras pela bossa nova
explicava-se pela demanda da classe média urbana que se caracterizava pelo
gosto internacionalizado.
No início dos anos 1960, segundo David Treece, a pressão exercida pelas
gravadoras e emissoras de rádio e a competição entre sonoridades internacio­
nalizadas introduziram a bossa nova no mercado fonográfico brasileiro como
/ alternativa de consumo ao rock nacional31.
De acordo com Pavão,

“em 1960, pela primeira vez a mídia deu grande publicidade para uma es­
trela do rock nascida no Brasil, Celly Campello, a ‘Namorada do Brasil’ ,
cujas músicas tocavam exaustivamente nas rádios. Ela ainda colaborava com
os mecanismos promocionais que estavam sendo desenvolvidos para o mer­
cado de consumo, gravando jingles e emprestando seu nome a uma boneca
infantil. O aparecimento da revista de rock, em agosto de 1960, marcou a
consolidação deste gênero da indústria fonográfica, que, por volta de 1962,
lançava um grande repertório de covers e versões dos hits norte-americanos,
bem como material original, conjunto doméstico de instrumentistas, filmes,
rádios e shows de t v ” . 32

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Para DavidTreece,

“isto ocorreu no mesmo ano 1l‘)62| em <|ue a bossa nova lançou se em sua pri
moira incursão ao mercado internacional, no lendário concerto do Carnegie
1lall, em 21 de novembro. Apesar dos problemas de organização, o show teve
uma grande audiência, funcionando como uma amostra dos principais nomes
da bossa nova, como João Gilberto, Luís Bonfá e Oscar Castro Neves. Com a
entusiástica presença de inúmeros músicos de jazz como Stan Getz, Charlie Byrd
e Gary Burton, o show expôs o novo estilo para uma ampla e internacional audiên
cia, angariando contratos de gravação para inúmeros artistas brasileiros”. !!

Com a expansão do mercado consumidor brasileiro, as gravadoras procura­


vam suprir a demanda dos jovens que, segundoTreece, se dividia entre o “apelo
dionisíaco” do rock (êxtase físico) e a “racionalidade apolínea” da bossa nova
(audição intimista)34.
Concomitantemente à expansão nacional, ocorreu a projeção internacional
dos músicos da bossa nova. Exportada para os Estados Unidos e reexportada
para Europa, Ásia e América Latina, a bossa nova oferecia vantagens tanto para
os músicos brasileiros como para as gravadoras norte-americanas. Em 21 de
novembro de 1962, a promoção do concerto Bossa Nova at Carnegie Hall (Nova
York), pelo presidente da gravadora Audio Fidelity (Sidney Frey), confirmou
a expansão do campo de trabalho e do mercado consumidor para os músicos
da bossa nova. Na época,Tom Jobim e João Gilberto imediatamente assinaram
contrato com gravadoras norte-americanas e transferiram residência para os
Estados Unidos.
Como resultado da aceitação da bossa
nova nos Estados Unidos, Carlos Lyra afir­
mou em 1963 que a edição de cinco músicas
pelo mercado fonográfico norte-americano
lhe rendeu um adiantamento de mil dólares
na época: “Influência do jazz”, “Se é tarde
me perdoa” e “Saudade fez um samba”, com
Ronaldo Bôscoli; “Coisa mais linda”, com Vi­
nícius de Moraes, e “Quem quiser encontrar
O amor”, com Geraldo Vandré35. Capa do lp Bossa Nova at Carnegie Hall ( 196 2).

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m *n>nin im r«»vi» n n n i m r i n u

Pãralrlamcntc ás atividades de coordenador «lo departamento de música


do cee, Carlos Lyra participou de jam sessions em festivais internacionais de jazz.
Em 1965, efetivou parceria com Paul Winter na gravação do disco The souml oj
Ipanema Paul Winter with Carlos Ljra, pela Columbia.
Com a expansão do mercado consumidor nacional e internacional, músicos
e críticos, de dentro ou de fora do “movimento”, afirmavam que a bossa nova
começava a se descaracterizar como música popular brasileira.
Para o crítico Luiz Orlando Carneiro, motivada pela polêmica que o con­
certo Bossa Nova at Carnegie Hall suscitou na época, a apropriação da bossa nova
pela indústria fonográfica norte-americana começou com a visita ao Brasil dos
jazzistas do American Jazz Festival e de Charlie Byrd em 1961. Para Carneiro,
“o que muita gente se esqueceu é de que os músicos e o público de jazz não
apreciam, propriamente, a bossa nova em estado nativo, interpretada simples­
mente pelos seus criadores como sambas, mas sim o que ela representa como
matéria-prima nova para a improvisação”36. Como exemplo da sujeição da música
brasileira ao mercado internacional, citou a interpretação de “Samba de uma nota
só”, de Tom Jobim e Newton Mendonça, por Stan Getz. Assim, “não há dúvida
de que, em 1962, a bossa nova reencontrou-se com o jazz e tornou-se assunto
interamericano”37.
No artigo “Bossa nova — colônia do jazz”, publicado na revista Movimento
de maio de 1963, Nelson Lins e Barros afirmou que a indústria fonográfica, na
contramão do ideário nacional-popular, buscava continuamente substituir ritmos
outrora novos, mas que o passar do tempo tornara obsoletos, por novidades que,
por sua vez, também se tornariam ultrapassadas. Nesse processo de expropriação
e esvaziamento contínuo, chegara a vez da bossa nova. Segundo Nelson Lins e
Barros, “o americano não podia perder essa boca. O twist não é eterno. O chá-
chá-chá, a rumba, o bolero e a la Xavier Cugat não foram”38. Para ingressar no
mercado fonográfico, a bossa nova passou por um processo de tratamento da
estrutura musical, mais digestivo ao gosto internacionalizado, que se dava da
seguinte maneira para Nelson Lins e Barros:

“começam a despencar músicos americanos para ‘descobrir’ a bossa.Trazem um


livro de cheque e vão levando músicas. Essas músicas são ‘tratadas’ nos Estados
Unidos e voltam jazzeificadas. Os processo de expropriação entra em funciona­

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mento. () «elo de autenticidade é dado |>ela* primeira* gravações de tutore* bossa
nova autêntico*, cuja* luta* pela* re.spectiva* vida*, nc**e pai* *ul>de*envolvido,
não permitem grandes opções. Mas a música já chega na Europa como sendo
americana ou pelo menos sem a devida consideração aos músicos nacionais. | ... |
Esta é a bossa nova que apareceu de novo, que está sendo lançada pela máquina
comercial, que está influenciando nossa juventude e os nossos compositores,
que queira Deus não faça sucesso porque nem c bossa nem é brasileira e nem
ao menos está dando dinheiro aos nossos músicos”.19

Nesse processo de comercialização, a bossa nova era estandardizada pela


indústria fonográfica norte-americana e apresentada ao mercado internacional
jazzeificada. Nesse artigo de 1963, Nelson Lins e Barros reconsiderou a influência
do jazz na música brasileira, cuja “estandartização jazzística tudo nivela e tudo
iguala”40.
Em dezembro de 1963, na matéria “Conversa com Carlos Lyra”, o músico
afirmou que “havia um grupo de personalidades musicais bem definidas: Ibm
[Jobim], [Roberto] Menescal, eu, e depois Sérgio Ricardo, o pessoal do começo,
você sabe. Agora todo mundo faz bossa, Sérgio Mendes, TambaTrio, esses para
mim não são nada, muito menos bossa nova”41. <r>
Nesse sentido, Tom Jobirri considerou que essa explosão comercial no
exterior, de certa forma, alterou a gênese da bossa nova e restringiu o espaço
conquistado pelos músicos-fundadores.

“O negócio da bossa nova no estrangeiro foi mais ou menos assim: a coisa co


meçou bem porque nossos discos, os verdadeiros, os brasileiros, começaram
a chegar por lá. Depois o negócio virou comércio. Nos Estados Unidos havia
sapatos, pratos de comida, penteado, tudo bossa nova. O comércio tinha sempre
uma seção de disco bossa nova. Uma loucura! Ocorre, porém, que naquela febre
a coisa era gravada por mexicano, cubano e até brasileiro desatualizado da nossa
realidade, que muda todo dia. As letras lindas, poéticas, eram transformadas,
deturpadas, adulteradas.”42

Ainda hoje a legitimidade de Sérgio Mendes como músico da bossa nova é


questionada no meio musical. Sérgio Mendes, para muitos, simboliza o opor tu
nismo de músicos que se aproveitaram do sucesso da bossa nova no exterior. Em
março de 2006 uma matéria da revista Veja comparou a trajetória de Johnny All e

•71*
Sérgio Mendes sugerindo, nas entrelinhas, que tradição e rceonheeimento musical
não garantiam fortuna. Segundo a matéria, Jolinny All, c|ue permanecera no Brasil
nos anos 1950 e 1960, mora hoje num hotel sem nenhum qlamour e arrecada cerca
de 5 mil reais por show, enquanto Sérgio Mendes, que se estabelecera nos Estados
l Inidos, vive atualmente em uma mansão e ganha cerca de 70 mil reais por apre­
sentação. Indiretamente, essas análises evidenciam as lutas por representação que
permeiam a bossa nova desde o seu surgimento até os dias de hoje45.
Com a explosão comercial da bossa nova no mercado interno e externo,
a intelectualidade engajada considerou que a qualidade estética das canções não
condizia com o conteúdo evasivo das letras. Surgia, então, a preocupação em
aliar forma e conteúdo. A qualidade estética agregavam-se a crítica social e po­
lítica e o diálogo com as tradições populares. Com a politização da bossa nova,
quem continuou a priorizar a forma ficou conhecido como alienado e alienante,
e quem passou a considerar o conteúdo gozou da reputação de comprometido e
participante. Assim, nos primeiros anos de 1960,

“os dois ‘fundadores’ da bossa nova [João Gilberto eTom Jobim] acabaram, em
certa medida, entrando para o index dos artistas e intelectuais mais nacionalistas,
como exemplo de bossa nova ‘antipopular’ e ‘entreguista’ . Dos ‘pais fundado­
res’ , só Vinícius de Moraes conseguiu manter seu prestígio intacto junto aos
nacionalistas de esquerda, sendo um dos arautos da ‘nacionalização’ da bossa
nova, a partir de 1962”.44

Essa suposta divisão entre uma vertente “intimista” ligada à forma e outra
“nacionalista” voltada para o conteúdo é, no entanto, supervalorizada em manuais,
biografias e memórias da música popular brasileira. Como evidenciou o historia­
dor Adalberto Paranhos, nessa divisão dualista não se enquadram músicos como
Carlos Lyra, Vinícius de Moraes e Nara Leão, por exemplo45.
Em linhas gerais, grande parte da literatura sobre a bossa nova apresenta
Carlos Lyra como fundador da dissidência nacionalista. Todavia, nessa época, ele
compôs simultaneamente canções consideradas “intimistas” —como “Primavera”
c “Minha namorada”, com Vinícius de Moraes —e músicas rotuladas “nacionalis­
tas” —como “Maria Moita”, com Vinícius de Moraes, e “Feio não é bonito”, com
(lianfrancesco Guarnieri. Sendo assim, é difícil enquadrar alguns músicos como
adeptos dessa ou daquela vertente.

. 7 2 .
1)0 TKATWn Mil I TANT r (\ miinii n i » n i Mn | n i » n

A formação dos músicos engajados, a recepção do público universitário ç a


qualidade artística da bossa nova estimularam a vertente nacionalista vinculada ao
ci*c a voltar atrás quanto à definição de “arte popular revolucionária” e à explosão
comercial e resgatar a essência do gênero musical.
Agindo assim, a vertente engajada procurava captar o interesse do público
estudantil pela bossa nova, pois, como evidenciou Afrânio Nabuco, em dezembro
ik 1959,

“ultimamente, com o total apoio da classe estudantil, este ritmo tem se infiltra
do de forma excepcional em nosso palco musical. Estas reservas musicais que
se encontravam no intimo destes reformistas estão se propagando de maneira
assombrosa devido ao grande potencial melodioso nelas contido”.46

Restava, portanto, solucionar o problema do conteúdo e a relação com o


mercado. Nessa fase, Carlos Lyra e Nelson Lins e Barros se destacaram, entre
outros, no processo de revisão crítica da bossa nova e do anteprojeto do ci*c.

A nova bossa de N elson Lins e B arros e o


sam balanço de Carlos Lyra

De 1960 a 1966 Nelson Lins e Barros, físico de formação, realizou inúmeras


atividades artístico-culturais: foi parceiro de Carlos Lyra em mais de dez can
ções; produziu músicas para filmes e peças teatrais; foi editor da seção destinada
à música da Enciclopédia Britânica e da Revista Civilização Brasileira; foi membro
do Conselho Superior de Música Popular Brasileira do Museu da Imagem e do
Som do Rio de Janeiro; e publicou inúmeros artigos sobre história da música em
geral e da música popular brasileira em periódicos como Movimento, Arquitctimi
e Revista Civilização Brasileira.
Nesses artigos, que visavam discutir os problemas da música através da
sua história, Nelson Lins e Barros tratou da qualidade estética, da influência do
jazz e da explosão comercial da bossa nova, que não condiziam com a noção de
engajamento artístico definido pelo anteprojeto do c p c . Para ele, dois problc-
mas se apresentavam à proposta de nacionalização da bossa nova e ambos não
se sintonizavam com a tese de redução estética, em benefício da comunicaçã< >

. 7 3 .
m m iin iA nn povo iihanii m ito

com o povo, sugerida por Carlos Hstcvam Martins. Primeiro, como conciliar a
receptividade da bossa nova entre universitários com a preocupação da intelec­
tualidade com a realidade brasileira e a politização da música popular? Segundo,
como combinar a qualidade artística da bossa nova e a influência do jazz com a
causa nacional-popular?
No artigo “Música popular e suas bossas”, publicado na revista Movimento
cm outubro de 1962, Nelson Lins e Barros discutiu a idéia de que para se atingir
a massa tinha-se de baixar o nível da música popular e analisou o fenômeno de
comercialização da bossa nova. Para o compositor, a música popular brasileira
passava por um impasse que consistia em “não se saber como alcançar uma mú­
sica genuinamente brasileira, atualizada, com força popular e artística suficiente
para vencer a tremenda pressão da música estrangeira, principalmente da música
americana ” 47 .
Nessa busca pela melhor integração entre forma e conteúdo nacionais-po­
pulares, Nelson Lins e Barros distanciou-se das noções de “arte do povo”, “arte
popular” e “arte popular revolucionária” e associou a produção da música à classe
social de origem. Para ele, alguns gêneros e estilos musicais brasileiros não tinham
sido totalmente estandardizados pela indústria fonográfica no início da década de
1960, como o samba de enredo e a marcha-rancho, que representavam as classes
populares, e a bossa nova, que representava a classe média48.
Nesse artigo de 1962, Nelson Lins e Barros não concebeu a influência do
jazz na bossa nova como resultado da submissão nacional ao imperialismo norte-
americano. O compositor evidenciou os.principais problemas pelos quaispassava
a música popular brasileira. Em primeiro lugar, havia a questão da estandardização
da música regional, que, a exemplo do baião, transfere-se do núcleo de origem
para os grandes centros, onde, para ser divulgada, passa por um processo de
adaptação ao gosto mais urbanizado49. Em segundo lugar, estava.o problema da
música do Rio de Janeiro, que exercia demasiada influência sobre a música popular,
seja pela popularidade, seja pela expressão das classes sociais50.
No primeiro caso, “as músicas mais popularizadas não são, necessariamente,
nem as de melhor nível, nem a representativa das classes populares” . O segundo
caso apresentava duas situações distintas: 1) “as músicas não popularizadas, de
caráter autêntico, que ou foram dominadas pela avalanche de música comercial,
deturparam-se, gastaram-se e morreram”, como as modinhas, serestas, choros e

* 74-
Do T I I AT KO M 11 I TA NT B A M i m e n KNiinjniM

»ambas «lo breque, “ou enquistaram-se nos grupos sociais multo pobres que não
têm acesso aos meios «le divulgação e onde se conservam mais ou menos imutâ
vois”, como as marchas-rancho e os sambas de enredo; 2) a música da alta « lasse
média, cjue, a exemplo da bossa nova, “ainda não produz padrões com capacidade
de popularização e dos quais possam sair fornadas comerciais”51.
Por último, o problema da influência estrangeira, sobretudo da música
norte-americana, sç «lava, segundo Nelson Lins e Barros, de duas formas: uma,
“a música estrangeira de melhor nível, de uma sociedade mais desenvolvida, é
acessível (economicamente e culturalmente) à alta classe média”,..como a pene
tração do jazz na bossa nova; outra, a música comercial norte-americana, cuja
indústria fonográfica e os meios de comunicação transformam em sucesso «I«'
vendas, como o rock-balada, o bolero e o twistS2.
Na perspectiva de Nelson Lins e Barros, a não resolução desses problemas
significava transformar a música regional e a música das classes pobres e negras «1«i
Rio de Janeiro em objeto passível somente da análise dos folcloristas c condenar
a música da alta classe média ao hermetismo, pois não representava a cultura do
povo nem a música brasileira.
Por fim, cabia aos compositores conscientes encontrar as soluções para es
ses problemas. O diagnóstico de Nelson Lins e Barros encontrou ressonância na
atuação de Carlos Lyra e vice-versa. Juntos, os dois produziram 11 músicas para
disco, cinema e teatro e tentaram resolver o problema do hermetismo da bossa
nova e do isolamento do samba carioca.
Nessa época, apesar da revisão crítica da noção de engajamento artístico
proposta por Carlos Estevam Martins, Nelson Lins e Barros continuava a analisar
a indústria fonográfica que atuava no país como instrumento de divulgação da
música comercial norte-americana e de propaganda do american way o) lifc (es

P arceria de Carlos L yra com N elson L ins e B arros


No período de 1959 a 1963, Carlos Lyra e Nelson Lins e Barros produzi
juntos as seguintes músicas: “O bem do amor” (1959); “Só amor”, “De quem ar
“Vem do amor”, “Nós dois”, “Caminho do adeus” (1961); “Depois do carnaval’
tão triste dizer adeus”, “Mundo à parte”, “Promessas de você” e “Maria do M
nhão” (1963).
imrrniuA nu povo HHANMMIHi

lilu de vi<l.i norte americano), Lm geral, a indústria lonográlira representava o


subdesenvolvimento, que importava e consumia o ser do outro, de acordo com
o conceito de alienarão cultural delinido por Roland Corbisier.
Como vimos, em 1962 a influência do jazz sobre a bossa nova não corres­
pondi.» à ascendência da música comercial norte-americana sobre a brasileira. No
ano seguinte, em maio de 1963, Nelson Lins e Barros lamentava a expropriação da
bossa nova pelo mercado interno e, sobretudo, externo para fins exclusivamehte
comerciais, pois considerava que o surgimento da bossa nova, à sua maneira, in­
tegrava o movimento nacionalista brasileiro e fazia resistência à invasão cultural
norte-americana. Para o compositor,

“a bossa nova pretendia elevar a música popular brasileira a um nível de quali


dade internacional a fim de fazer frente à invasão da música estrangeira, prin
eipalmente do bolero e do rock que estavam matando o nosso samba urbano já
agonizante. Não deixava de ser um movimento nacionalista”.53

Com o objetivo de resistir à expansão da música comercial no pais, alguns


desalios se apresentavam para a bossa nova: como promover a música popular
brasileira com conteúdo estético e ideológico e enfrentar a indústria fonográfica
estrangeira?; como agregar às conquistas técnicas e estéticas uma plataforma
nacionalista?; como preservar a qualidade artística e atingir a massa54?
Para Nelson Lins e Barros, uma nova fase surgia quando músicos como
Carlos Lyra, Sérgio Ricardo, Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Baden Powell
aderiam ao movimento nacionalista com o propósito de acrescentar auten­
ticidade à arte popular. Assim, “no processo de conscientização da realidade
brasileira a bossa nova tomou, como tinha de ser, uma posição nacionalista” .
Segundo Lins e Barros,

“a estética da bossa nova original continuou em suas linhas gerais no que havia
de bom. O preciosismo tanto dos acordes como da linha melódica cedeu lugar
a uma espontaneidade natural e tradicionalmente brasileira sem nunca descer
ao vulgar ou comercial. A letra não perdeu em poesia e ganhou em conteúdo
social. O jazz, ainda presente, deixou de prescindir o esquema harmônico.
Agora apenas contribui, quando essa contribuição é enriquecedora, funcional
e harmoniosa ao todo brasileiro”.55

•76 •
D l) I I A T II I ) M i l l i A N I I \ H l ' h l l A I N 11 A | A I ) A

Nara Leão recebe Zé Kéti e Nelson Cavaquinho em seu apartamento (Rio de Janeiro, 1964).

A essa nova fase cia bossa nova, que não se entregou à alienação do conteúdo
nem à promiscuidade do mercado, Nelson Lins e Barros denominou de “nova bos­
sa” . “Gimba”, de Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri, “Marcha da quarta-feira
de cinzas”, de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes, “Esse mundo é meu”, de Sérgio
Ricardo e Ruy Guerra, “Berimbau”, de Baden Powcll e Vinícius de Moraes, c “O
morro não tem vez”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, são alguns exemplos
dessa fase em desenvolvimento56.
Carlos Lyra, que se destacou nesse processo de nacionalização e populari­
zação da bossa nova, chamou a nova fase de “sambalanço”. A expressão utilizada
desde 1960 foi definida por Nelson Lins e Barros na contracapa do terceiro
disco de Carlos Lyra, Depois do carnaval —o sambalanço de Carlos Lyra, lançado em
1963: “Carlos Lyra criou a denominação ‘sambalanço’ para delinear, dentro do
movimento, aquele sentido nacionalista que procura elevar o nível da música
popular brasileira de dentro de suas próprias fontes”57. Vinícius de Moraes, por
sua vez, questionara, na contracapa do segundo disco de Carlos Lyra, de 1961, a

. 77 .
I I I N I <l Ml A l l l l I M I V I I II M A S I I I I M u

necessidade i I.i ( iv)ct i.k,a< i: “( ai linlii >s I yra pertence ao que poderíamos chamar
de '.i corrente mais n.H ionalista da bossa nova’ : o (|ilr o Irvou, com um senso
dilereiuiador, a ( i iar o termo ‘sambalanço’ para ,is suas composições. Lu, pes-
soalmenlc, discuto a necessidade do termo; e tal já lhe disse de viva-voz” ’6.
Acerca da politização da hossa nova, Nelson Lins e Barros afirmou, no artigo
“Bossa nova colônia do jazz”, de 1963, que “essa nova bossa é a mão que vai
encontrar o morro, o terreiro e o sertão”’“, ou seja, os novos lugares da memó­
ria da esquerda brasileira que reproduzia determinada interpretação da história,
como acentuou Arnaldo Daraya Contier.
No início dos anos 1960 a atuação de Carlos Lyra como criador e mediador
musical sintetizou alguns dilemas que se apresentaram ao artista de classe mé-*1

I N 11 RPRETAÇÃO POLÍTICA E ECONOMICISTA DA HISTÓRIA DO BRASIL


Na década de 1960, segundo Arnaldo Daraya Contier, esses músicos assi­
milaram o discurso político e economicista do p c b que vinculava, de um lado,
os monopólios e oligopólios ao capital financeiro norte-americano e, de outro, a
i oneentração fundiária às elites empresariais brasileiras.
1 )e acordo com essa interpretação, os militantes do p c b identificaram no Bra­
sil, como vimos, a existência de duas burguesias: uma progressista e nacionalista e
outra entreguista e conservadora. Essa leitura política e economicista, acentuada
por Contier, influenciou a emergência de um novo imaginário acerca da cultura
brasileira, polarizada no mundo urbano (morro, samba, pandeiro e ritmo sincopa­
do) e no mundo rural (sertanejo, retirante, moda de viola, frevo, baião, embolada
e bumba-meu-boi)'’0.
No entanto, dada a ausência de políticas culturais definidas pelo p c b , a influên­
cia de escutas musicais heterogêneas e a natureza polissêmica do signo musical,
músicos como Carlos Lyra, Edu Lobo, Sérgio Ricardo e Geraldo Vandré reinven­
taram o nacional-popular, nos anos 1960, sob diferentes ângulos e fontes, entre
as quais citamos as cinco possibilidades sugeridas por Contier: “a) folclore + ufa­
nismo + brasilidade; b) brasilidade + folclore + realismo socialista; c) brasilidade
I patriotismo + folclore + populismo conservador; d) brasilidade + folclore +
populismo de direita; e) modernismo nacionalista + Mário de Andrade + popu­
lismo de esquerda”61.

• 78 •
Mm I I A l lt m M i l I I AN I I À M i l SM A I N l i A | A I» A
1

O SI NI IDO DA APROXIMAÇÃO COM OS MÚSICOS POPUI ARI S


na ó t ic a D i C a r l o s L yra
“Na época, um dos meus propósitos para enriquecer a minha música cia
pesquisar dentro da música popular, buscar as raizes da música do povo. Mellioi
dizendo: era procurar nas raízes da música do povo todos aqueles elementos q u e
pudessem nos enriquecer, ainda mais, musicalmente. Foi um pouco isso o que li/
no c p c . Levei lá para dentro o que já vinha fazendo individualmente, l u quci ia
musicar teatro sim, mas queria pegar aqueles crioulos que faziam uma música
divina e absorver tudo o que pudesse. [...] O meu propósito sempre loi enri
quecer a minha música com as raízes populares. Outra coisa que cu queria muito
era trazer a Liga Operária Camponesa para a minha música. Quando eu contava
tudo isso ao Fstevam, ele vibrava. Fra música de Zé Kéti, Nelson Cavaquinho e
Cartola, o pessoal de escola de samba, mais João do Valle, que era um homem
rural do interior do Maranhão. Acho que a música brasileira é isso. Ida está ou
no interior, ou na escola de samba, no m orro, enfim, nesses lugares onde estão as
verdadeiras manifestações populares. F como eu poderia musicar aquelas peças
todas, se não conhecesse a verdadeira música que faziam, ou de que gostavam os
seus personagens? (...) Então, eu continuava fazendo bossa nova, como um bom
cara de classe média, mas ao mesmo tempo buscava esse pessoal, enriquecendo
ainda mais a minha música”'’ .

dia engajado nas causas nacionalistas: com o com por música “intimista” sem ser
chamado de alienado; com o participar da fundação c organização do cpc sem
abdicar da carreira profissional e do ingresso no m ercado fonográfico; c com o
m anter a qualidade técnica e estética conquistada pela bossa nova sem ignorar a 1
tradição da música urbana brasileira.
Fsta aproxim ação de artistas e intelectuais do cpc com os com positores e
intérpretes populares pode ser interpretada com o uma maneira de ampliar o
material sonoro da bossa nova, aliando m odernidade à tradição.
F com o propósito de estabelecer o contato com a tradição cultural brasi
leira e enriquecer o universo estético e sentimental da intelectualidade, o cpc
organizou, em dezembro de 1962, a i Noite de Música Popular.

• 79 •
Samba e um pouco dc política: a i Noite de
Música Popular
No início cios anos 1960 os núcleos de teatro, cinema e música se destacaram
na trajetória do c p c . Em linhas gerais, podemos dizer que o núcleo de teatro
contribuiu para a aglutinação da intelectualidade e a criação do c pc , o de cine­
ma para a revisão critica do engajamento artístico proposto por Carlos Estevam
Martins e o de música para a concretização da frente única cultural.
Segundo Dênis de Moraes, a idéia de organizar um evento que unisse os
ativistas do cpc e os compositores populares teve início quando Sérgio Cabral
publicou na coluna Música Naquela Base, do Jornal do Brasil, uma nota demonstran­
do estranhamento de que não tivesse partido dos estudantes cariocas a iniciativa
do show de música popular da Faculdade Mackenzie de São Paulo, que contou
com a participação de Sílvio Caldas, Aracy de Almeida, Ciro Monteiro, Vinícius
de Moraes e Sérgio Porto como apresentador6’.
Esse com entário favoreceu a
organização de um seminário sobre
música popular pelo diretório aca­
dêmico da Faculdade Nacional de
Filosofia. Segundo Dênis de Moraes,
Sérgio Cabral tratou das escolas de
samba; Vinícius de M oraes, da bossa
nova; Jota Efegê, do carnaval; Edson
Carneiro, da música folclórica; e
José Ram os Tinhorão, dos funda­
m entos so cioló gico s da m p b . Na
programação, Sérgio Cabral e José
Ramos Tinhorão convidaram C ar­
tola, Zé Kéti, Nelson Cavaquinho e
Ismael Silva para participar das suas
respectivas conferências64.
Im ediatam ente, os artistas e
Zé Kéti e Cartola se apresentam para universitários
intelectuais integraram os músicos
(São Paulo, 1964). populares às atividades artístico- •

• 8o •
I M» T H A T m i m ilif lN I ■ « nM Hiun

culturais <lo cpc . Sobre essa aproximação, Liana Silveira afirmou: “depois (pie
o ci»c abriu o convívio com gente como Nelson Cavaquinho c Cartola, aqueles
jovens tiveram motivo de se ufanar, pois constataram o valor da cultura popular,
antes considerada uma coisa menor” 65.
Em 19 de julho de 1962 uma nota publicada no Jornal de Brasil dizia que o
contato com os músicos populares significava para Carlos Lyra uma espécie de
“higiene mental” 66.
Em 1” de dezembro de 1963, numa conversa publicada em 0 Jornal, Carlos
Lyra criticava o espaço reduzido dos músicos populares na indústria fonográficu
c nos meios de comunicação. Na avaliação do músico,

“dois dos maiores compositores brasileiros de todos os tempos moram atual


mente em Mangueira, são Cartola e Nelson Cavaquinho. Em Portela mora
também um compositor realmente genial, desses que interpretam a verdadeira
alma do povo na música. É Zé Kéti. E na escola de sambaAprendiz.es de Lucas
mora Elton Medeiros, que é um rapaz novo que já escreve alguns dos melhores
sambas que eu já vi. Esses sim são os músicos importantes do Brasil, e não essa
rapaziada que tenta fazer jazz e em geral não consegue nem uma coisa nem
outra”.67

Em 17 de outubro de 1962 o jornal 0 Metropolitano anunciava a progra­


mação musical para a inauguração do teatro do c p c 68 no ano seguinte69. Para a
primeira quinzena de janeiro de 1963, a Noite de Samba Naquela Base contava
com a participação de Ismael Silva, Zé Kéti, Nelson Cavaquinho e Cartola, “en­
tre outros nomes do autêntico samba, marginalizados pela máquina comercial
que explora uma música popular brasileira adulterada e de sucesso fácil” . Na
segunda quinzena foi a vez de A Noite do Samba Carnavalesco, pré-estréia do
desfile das cinco principais escolas de samba do Rio de Janeiro. Na program a­
ção musical havia também A Noite de Música de Vanguarda, que contava com
Vinícius de M oraes, Tom Jobim , João Gilberto, Nelson Lins e Barros, Carlos
Lyra e Sérgio Ricardo, “além de outros com positores, letristas e intérpretes,
verdadeiros representantes do espírito de pesquisa que impulsiona o aprimora
mento de nossa música popular”70. Com o se vê pela programação, essa matéria
anunciava a tônica do n Festival de Cultura Popular, promovido pelo CPC em
10 de fevereiro de 1963.•

•8 i •
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nicipal do Rio de Janeiro, permitiu
esse encontro da tradição eom a m o­
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dernidade e da intelectualidade com
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as classes populares, que ativistas do
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como Oduvaldo Vianna filho e
c pc ,
LA N y A M C N IO DOS NOVOS CA
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S< iU»nt«l.i vam havia tempos promover.
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M »iA»h»
Arori A* Aim ra in O r* .{
M o rru a A d S**a. N ora It Inicialmente o cpc não alme­
« H i J a f r C oiA cmI UnAa • Dt/ci | ’
n»M> B0I1»to Carto la 7 i Kelt N il
»on C o vo q jin .it J’
java realizar a t Noite de Música Po­
pular noTeatroMunicipal. Primeiro,
Sawlxat« Aot M otuWrj <ai
r » . Ana H ..J I S } - U . I » . Ac Pon'raya.^.o porque a idéia não se concretizaria
MrOMVK A O CPC
Smdifoto Aot Mololjfg-toi tendo Carlos Lacerda como [»over-
■•'VIM' NA SI Of DO NOSSO SINDICATO
<N> nador da Guanabara, que, na época,
I " * ISAfCiAl PARA BANCAWOS Cr$ 200,00*
i

empreendia a política de “caça às


I ou/iama^ao do II Icstival de ( ultura Popular, promoxido feiticeiras” na área da cultura'1. Se­
/■./.•< /’( (Rio dc Janeiro, 10Jew 1963). gundo, porque os ativistas do cpc
i onsidi ravam o Teatro Municipal expressão máxima da cultura burguesa. Nesse
sentido, a matéria “ cpc no Municipal & Amaral Marrom”, de 18 de dezembro
de 1962, definiu o Teatro Municipal como “reduto exclusivo de grã-finos, de
l«stas de formatura, ou de cantores de ópera e bailarinos que lá representavam
.inualmente por suas famílias, ‘penetras’ c namorados do elenco”'7.
Como acentuou Carlos Lyra, em entrevista a Jalusa Barcellos, o c Pt não
buscava adentrar nesse espaço da alta cultura. “O que ocorreu foi que surgiu esta
iiport unidade de se fazer um show ali. E ai se fez, entende? Mas esse não me parece
o grande evento do c pc , até porque a maioria dos seus militantes preferia ir até
.iv I ígas Camponesas, ou até o abc , do que ir ao Municipal”'3. Na área musical,
o < p c desejava apresentar esses músicos à classe média e à intelectualidade, que,
( in geral, consumia música norte-americana, mas nunca ouvira falar dc Cartola,
Nelson Cavaquinho, Elton Medeiros, João do Valle ou Zé Kéti.
A realização da i Noite de Música Popular noTeatro Municipal sintetizou
esse projeto do cpc dc promover o encontro da intelectualidade com artistas

•82 •
H o T u r m i MMITANTK A m í m i c a i i n €i a | ai >a

populares. No entanto, não se sabe exatamente quem autorizou a realização do


espetáculo no Teatro Municipal. A matéria“cpc no Municipal & Amaral Marrom"
responsabilizou o secretário da Educação, Carlos Flexa Ribeiro74; em depoimentos
recentes, Sérgio Cabral citou o vice-governador Eloy Dutra75; e Ferreira Gullar
mencionou Rafael de Almeida Magalhães76.
Participaram da i Noite de Música Popular, segundo os jornais da época, os
seguintes compositores e intérpretes: Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Moreira
da Silva, Dilermando Pinheiro, Canhoto, Joel e Gaúcho, Lamartine Babo, Ciro
Monteiro, Cartola, Zé Kéti, Heitor dos Prazeres, Nelson Cavaquinho, A racy d»'
Almeida, Sílvio Caldas,Vinicius de Moraes, Baden Powell, Roberto Menescal, o
conjuntoTambaTrio e uma escola de samba —alguns jornais noticiaram que era
a Mangueira77 e outros a Portela78.
Cada ingresso custou 50 cruzeiros e estavam à venda na une e na bilheteria
do Teatro Municipal. Segundo a matéria “ cpc no Municipal & Amaral Marrom”,
cerca de 2 mil pessoas estiveram presentes na i Noite de Música Popular, c uma
multidão, que não conseguiu comprar o ingresso a tempo, ficou do lado de fora.
O espetáculo se estendeu até lh30 da madrugada, pois quem estava dentro do
teatro não queria sair e quem estava fora queria entrar. Como informou essa
matéria, a i Noite de Música Popular foi de samba e também de política. No
interior do Teatro Municipal os espectadores criticavam a política do governador
Carlos Lacerda e a política educacional do secretário da Educação, Carlos Flexa
Ribeiro79.
A realização desse show de música popular em um local considerado templo
da cultura burguesa tinha como objetivos: primeiro, formalizar o flerte entre es
tudantes, artistas e intelectuais do cpc e os compositores e intérpretes populares
em alusão à frente única do p c b ; segundo, promover o encontro da bossa nova com
a velha guarda, como sugeriu o subtítulo do espetáculo ‘DaVelha Guarda à Bossa
Nova’ , e acabar de vez com as amarras que colocavam a “velha” em contraposiçãc >
à “nova” música popular brasileira. No início dos anos 1960, como estratégia de
publicidade, a indústria fonográfica e os meios de comunicação transformavam
em antiquado tudo o que viera antes da bossa nova. Assim, a matéria “Bossa nova
e bossa velha vão encontrar-se na base da melhor música popular”, publicada em
13 de dezembro de 1962, anunciava que “a bossa nova e a antiga vão, pela primeira
vez, encontrar-se, sem caráter de duelo, mas de confraternização”80.
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Pixinguinha (1 9 6 4).

A apresentação do espetáculo ficou sob a responsabilidade de Sérgio Cabral


c Sérgio Porto, que seguiam um roteiro histórico dividido em duas partes: a
primeira destinava-se à apresentação das fases mais “antigas”; a segunda, das fases
mais “modernas” da música popular brasileira, que contaram respectivamente com
a participação do pessoal da velha guarda, liderada por Pixinguinha, e da bossa
nova, representada porVinicius de Moraes. A interpretação do choro “Lamento”81,
por Pixinguinha e Vinícius de Moraes, provocou comoção geral, uma espécie de
catarse coletiva no Teatro Municipal.
Em linhas gerais, a i Noite de Música Popular não representou necessaria­
mente a ação cultural do c pc , mas simbolizou a política de aproximação com a
massa. A idéia de aproximar a intelectualidade do cpc com os músicos populares
se inspirava na noção de frente única do pcb e na pesquisa de material sonoro
para a canção engajada. Nessa direção foi que atuou Carlos Lyra como produtor
e mediador cultural ecpie se realizaram os festivais de cultura popular e a i Noite
de Música Popular.
Em ápênãis dòis anos de atividade, o cpc não conseguiu concretizar o projeto
de oferecer às classes populares as condições necessárias à produção de cultura

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popular sem a mediação dou artistas c intelectuais. Como acentuou Luiz Antô ^
nio Afonso Giani, os músicos populares participaram da construção da canção
engajada como matéria-prima e fonte de inspiração e,

“tão logo começam a se esboçar e adquirir corpo junto a algumas organizações


de classe dos trabalhadores, sobrevém o golpe de março de 64, obstruindo e
impedindo o trabalho de articulação entre os setores ‘intermediários’ e os tra
balhadores do campo e da cidade. A participação destes trabalhadores adquire
assim uma forma basicamente passiva e indireta na música de protesto".

Assim, a estrutura musical da canção engajada permaneceu atrelada à bossa


nova. A “subida ao morro” visava, segundo Marcos Napolitano, “muito mais am
pliar o leque expressivo de sua música do que mimetizar a música popular das '
classes populares”83.
O público das atividades artístico-culturais do c pc , por sua vez, se restrin
giu à intelectualidade. Carlos Lyra, que afirmou que 99% do público da bossa
nova “nacionalista” correspondia aos estudantes, artistas e intelectuais de classe
média, explicou que dentro do cpc se tentava romper com as barreiras sociais:
“Eu mesmo, na época, fui para o Nordeste fazer shows para os camponeses. Eles
foram muito delicados comigo, mas de cara eu percebi que falávamos duas línguas
diferentes, O que eles precisavam era de comida e não de Carlos Lyra”84.

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