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BOSSA NOVA

HISTÓRIA, SOM E IMAGEM


Título original em português:
Bossa Nova — História, Som e Imagem

Reservados todos os direitos em língua portuguesa e inglesa. Proibida qualquer


reprodução desta obra por qualquer meio ou forma, seja eletrônica ou mecânica, inclusive
fotocópia, gravação ou qualquer sistema de reprodução, sem permissão expressa da Sala
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ISBN 85-7048-046-6

Copyright: MCMXCVI Spala Editora


Editor Chefe: Luiz Fernando Freire
Coordenação editorial: Leila Alves
Pesquisa e produção: Chico Feitosa, Durval Ferreira e Márcio Giovane
Projeto Gráfico: Sandra Cirne Pinta
Texto e Entrevistas: Maria Cláudia Oliveira
Versão para o Inglês: Elizabeth Hart
Revisão: Joaquim da Costa
Editoração Eletrônica: Bianca Peres Festas
Fotolito: Policrom Prepress Gráfica e Editora Ltda.
Impressão: Gráfica JB S.A.
Embalagem: Tátil Design
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Tel.: (021)542-9995 Fax (021)542-4738

BOSSA NOVA - HISTORY , SOUND AND IMAGE

Spala editora
Preservar a documentação histórica e cultural do Brasil é
dever de cada cidadão e de cada instituição.
Difundir a história e a cultura nacional é um dever especial
dos educadores. Ao participar do projeto deste livro, a Faculdade da
Cidade, dentro dos objetivos de educar e apresentar os melhores
valores do país, nada mais faz do que ir ao encontro destes
mesmos objetivos.
O movimento da Bossa Nova foi um movimento único na
história de nossa música, movimento esse, que nasceu aqui, no Rio
de Janeiro.
Nunca se produziu tanto e com tanta qualidade. E nunca
um conjunto de jovens músicos e compositores colaborou tanto com
a cultura musical de seu país.
Este livro é a história daqueles tempos.
A nossa participação é uma homenagem aos que fizeram
aquele tempos.

Este livro é um registro do que foi o mais importante


movimento musical brasileiro, a Bossa Nova. Um movimento sem
nenhum compromisso que não fosse, como se dizia na época “com
o amor, o sorriso e a flor”. Um instante único na história da música,
quando jovens compositores surpreenderam a vida do país com um
novo som e uma nova mensagem de comportamento humano.
Justamente, recuperar o clima e a intimidade daquele tempo é a
intenção deste livro, que não pretende ser uma enciclopédia e nem
uma fonte completa de verdade absoluta.
As historinhas da Bossa Nova aí estão. As músicas,
gravadas nas reuniões do grupo, curiosamente preservadas sem a
intenção de serem utilizadas no futuro, agora também aí estão.
Aqueles tempos felizes de mágica e sonho são revividos neste livro
e no CD que o acompanha. O material fotográfico, cedido pelos
nomes que fizeram a Bossa Nova, as informações obtidas com
pessoas envolvidas no movimento, as gravações originais e inéditas
daquela época e as recriações atuais daquelas canções, são o
passaporte de volta para um passado não muito distante, quando a
música brasileira começava a marcar sua maravilhosa presença nos
caminhos do mundo.
Os Editores
1.

Havia um hiato na música brasileira, e nós chegamos para


preencher este hiato.

ROBERTO MENESCIAL

A história da Bossa Nova é a história de uma geração. Uma


geração de jovens artistas brasileiros que acreditaram no futuro e
conseguiram realizar o sonho de levar sua música aos quatro cantos
do mundo. As primeiras manifestações do que viria a ser conhecido
como Bossa Nova ocorreram na década de 50, na Zona Sul do Rio
de Janeiro. Ali, compositores, instrumentistas e cantores
intelectualizados, amantes do jazz americano e da música erudita,
tiveram participação efetiva no surgimento cIo gênero, que
conseguiu unir a alegria do ritmo brasileiro às sofisticadas
harmonias do jazz americano. Ao se falar de Bossa Nova não se
pode deixar de citar Antonio Carlos Jobim, Vinícius de Moraes,
Candinho, João Gilberto, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Nara
Leão, Ronaldo Bôscoli, Baden Powell, Luizinho Eça, os irmãos
castro Neves, Newton Mendonça, Chico Feitosa, Lula Freire, Durval
Ferreira, Sylvia Telles, Normando Santos, Luís Carlos Vinhas e
muitos outros. Todos eles jovens músicos, compositores e
intérpretes que, cansados do estilo operístico que dominava a
musica brasileira até então, buscavam algo realmente novo, que
traduzisse seu estilo de vida e mais combinasse com o seu apurado
gosto musical.
Impossível precisar quando a Bossa Nova realmente
começou. Mas é certo que o lançamento, em 1958, dos discos
Canção do Amor Demais, com Elizeth Cardoso interpretando
composições de Tom e Vinícius, e Chega de Saudade - 78 rpm, com
o clássico de Tom e Vinícius de um lado e Bim-bom, de João
Gilberto, de outro - nos quais João surpreendeu a todos com a nova
batida de violão, foi o resultado de vários anos de experiências
musicais. Experiências empreendidas não só por João, mas por
toda a turma que se encontrava nas famosas reuniões na casa de
Nara Leão.
Após o lançamento, em 1959, do primeiro LP de João
Gilberto, também chamado Chega de Saudade, a Bossa Nova
rapidamente se transformou em mania nacional e em poucos anos
conquistou o mundo. Mas bem antes disso o Rio de Janeiro já vivia
um raro momento de florescimento artístico, como poucas vezes se
viu na história da cultura nacional.
Não é à toa que os anos 50 são conhecidos como os “anos
dourados”. O Brasil vivia então um período de crescimento
econômico que acabou se refletindo em todas as áreas. Em 1956,
Juscelino Kubitschek tomou posse na Presidência da República com
o slogan desenvolvimentista “5o anos em 5”. No mesmo ano, foram
lançados os romances O Encontro Marcado, do mineiro Fernando
Sabino, e Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, dois
importantes marcos na história da literatura brasileira.
Paralelamente, surgia na poesia um movimento inspirado no
concretismo pictórico, cuja maior característica foi a valorização
gráfica da palavra e do qual participaram nomes como os irmãos
Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Ferreira Gullar,
entre outros.
Em 1957, estreava o filme Rio Zona Norte, de Nelson
Pereira dos Santos, um dos primeiros representantes do que viria a
ser chamado Cinema Novo. Em 1958, a seleção brasileira de futebol
conquistava sua primeira Copa do Mundo, derrotando a seleção
sueca por 5 a 2 e levando o povo brasileiro a cantar alegremente “A
copa do mundo é nossa / Com brasileiro não há quem possa”.
Também em 1958, Jorge Amado lançava Gabriela Cravo e Canela e
Gianfrancesco Guarnieri estreava no Teatro de Arena de São Paulo
Eles Não Usam Black-tie, um marco na linguagem do teatro
brasileiro. Em 1959, era lançado o movimento neoconcreto nas
artes plásticas, do qual fizeram parte Lygia Clark, Hélio Oiticica e
Lígia Pape, entre outros. Em 1960, Juscelino Kubitschek inaugurava
a nova capital do país, Brasília, que possivelmente teve a primeira
música de Bossa Nova em sua homenagem, composta por Chico
Feitosa. Billy Blanco havia feito um sambinha jocoso Não Vou, Não
Vou Prá Brasília, e Chico musicou uma letra que falava da vida na
nova cidade. O tema, chamado Paranoá, nunca foi gravado, mas
encontra-se preservado numa gravação particular feita na época,
com o próprio Chico Fim de Noite cantando.
Foi neste contexto que surgiu o movimento que viria a
revolucionar não só a música brasileira, mas toda a produção
musical internacional.
Ainda nos anos 40, a grande novidade musical foi o
lançamento, em 1946, de Copacabana, um samba-canção de João
de Barro e Alberto Ribeiro, gravado pelo cantor Dick Farney com
claras influências da música americana. A composição foi a
precursora do que se chamou samba moderno, cujos grandes
intérpretes foram o próprio Dick Farney e Lúcio Alves. A suposta
rivalidade destes dois grandes cantores era alimentada pela
imprensa e por seus fã-clubes. No início dos anos 50, eram eles,
com suas vozes aveludadas, os maiores ídolos da juventude
brasileira. Ao lado de Ary Barroso, Johnny Alf, Garoto, Dolores
Duran, Luiz Bonfá e Tito Madi, entre outros, influenciaram
decisivamente a formação da geração que se consagraria através
da Bossa Nova.
Na área de composição, quem mais havia ousado era o
romântico Custódio Mesquita, morto precocemente aos 35 anos, em
1945, autor de Mulher, Velho Realejo e Saia do Caminho, seu maior
sucesso, e Noturno, composição de harmonia muito elaborada, de
bela linha melódica e considerada, na época, um verdadeiro teste
de interpretação para qualquer cantor ou cantora. Custódio, que
compôs cerca de 700 canções, gravadas pelos grandes nomes da
época, como Orlando Silva e Silvio Caídas, já tentava misturar os
recursos do jazz e da música erudita aos elementos da música
brasileira.
Também era moderno gostar de conjuntos vocais como os
Garotos da Lua, do qual João Gilberto foi crooner, e os Quitandinha
Serenaders, que contavam com Luiz Bonfá ao violão. Ou ainda Os
Cariocas, então em sua formação original: Ismael Netto, Severino
Filho, Badeco, Quartera e Valdir. Todos eles também demonstravam
uma sensível influência da música americana, mais elaborada e de
uma certa forma mais elegante.
Dick Farney, nome artístico de Farnésio Dutra da Silva,
chegou a ser apelidado de “o Frank Sinatra brasileiro”, tal a
qualidade de sua voz. Logo após o lançamento de Copacabana,
Dick, um apaixonado pela música americana, especialmente por
Sinatra, Mel Tormé e Dick Haymes, embarcou para os Estados
Unidos a fim de tentar a carreira por lá, cantando também em inglês.
Em 1948, o cantor voltou ao Brasil, mas sua carreira já estava
irremediavelmente influenciada pela música americana.
Nos anos seguintes ele gravaria sucessos como Marina e Alguém
Como Tu. No verão de 1949, foi fundado na Rua Dr. Moura Brito, na
Tijuca, o primeiro fã-clube do Brasil: o Sinatra-Farney Fã-Clube, do
qual faziam parte nomes como Johnny Alf, João Donato e Paulo
Moura. Lá, além de ouvir fervorosamente sucessos de seus dois
ídolos, eles também começavam a “arranhar” os seus instrumentos.
Voltando para a América, Dick tornou-se amigo dos mais
conhecidos instrumentistas do jazz, como Dave Brubeck, uma de
suas principais influências no piano. Na década de 50, já amigo de
diversos músicos americanos, e com respeitado conceito entre eles,
Dick Farney tocava no Peacock Alley, um requintado bar do hotel
Waldorf Astoria, em Nova York. Como os freqüentadores do bar em
sua maioria não falavam português, Dick apresentava a música
Copacabana com uma versão em inglês. Na época, Ipanema ainda
não era cantada em prosa e verso, sendo o bairro de Copacabana o
verdadeiro cartão-postal do Rio, o que despertava a curiosidade, na
letra em inglês, da canção que havia sido no Brasil um grande
sucesso do cantor. Numa viagem ao Rio, em 1958, Dick deu um
memorável concerto de jazz no auditório do jornal O Globo,
apresentando-se com o baixista Xu Viana e o baterista Rubinho.
Entre os temas de jazz, tocou sua versão de Copacabana com a
letra em português e inglês, o que foi o sucesso da noite. O concerto
foi gravado ao vivo e virou um LP, onde curiosamente a faixa
Copacabana não se encontra. Dick Farney foi um dos primeiros
cantores a procurar uma nova maneira de interpretar o samba. “Por
que não existe um samba que a gente possa cantarolar no ouvido
da namorada?”, perguntava ele.
Logo em seguida, uma turma de adolescentes do
Flamengo resolveu criar o Dick Haymes-Lúcio Alves Fan Club, para
homenagear o fundador do grupo Namorados da Lua. Lúcio Ciribelli
Alves, nascido em Cataguases, Minas Gerais, também era um
amante da música americana, principalmente do jazz, que começou
a ouvir ainda criança, na Tijuca. Estimulado pela família, Lúcio
participou de um programa infantil na rádio Mayrink Veiga,
Bombonzinho. Deste, passou para o Picolino, na mesma rádio. De
lá foi para a Rádio Nacional, onde, no programa Em Busca de
Talentos, ganhou o primeiro prêmio. Daí em diante, Lúcio não parou
mais de cantar. Fã de conjuntos vocais como Pied Pipers,
Moderneer’s e Starlighter’s, aos 14 anos fundou o grupo Namorados
da Lua, do qual era crooner, violonista e arranjador. Com o grupo
vocal, inscreveu-se no programa de calouros de Ary Barroso,
conseguindo o primeiro lugar. A partir daí, os Namorados gravaram
mais de 40 discos em 78 rotações e apresentaram-se em cinemas e
cassinos durante alguns anos.
Em 1947, Lúcio foi convidado para integrar, em Cuba, o
grupo Anjos do Inferno. De lá, com o grupo, foi para os Estados
Unidos, onde, assim como Dick Farney, também muito aprendeu.
Logo Carmen Miranda convidava os Anjos para acompanhá-la.
Lúcio, no entanto, preferiu abandonar o grupo e voltar para o Brasil,
encantando seus fãs com sucessos como Foi a Noite, De Conversa
em Conversa e Sábado em Copacabana.
Apesar das inovações na área de interpretação, trazidas
principalmente das experiências de Lúcio Alves e Dick Farney no
exterior, no início dos anos 50, as músicas consideradas modernas
eram do tipo dor-de-cotovelo, embora com as harmonias já mais
trabalhadas, como em Ninguém me Ama, do lendário jornalista
Antonio Maria. Muito ligada à natureza exuberante do Rio de Janeiro
e à excelente música que se produzia na América e chegava até
eles através de discos e programas de rádio, como o notável Em
Tempo de Jazz, apresentado por Paulo Santos na rádio JB, a nova
geração, alegre e irreverente, criada nas areias limpas das praias de
Copacabana e Ipanema e sedenta por novidades, queria retratar
sua própria experiência, seus sonhos e estilo de vida.
2.

Esta música vai incendiar o mundo

HERBIE MANN

Naquela época, as boas famílias consideravam cantar e


tocar violão atividades menores e desestimulavam qualquer tipo de
iniciativa de seus filhos neste sentido. Roberto Menescal, filho de
uma tradicional família de arquitetos, lembra que, quando começou
a tentar se profissionalizar, foi tocar com seu conjunto num baile ao
qual seus irmãos mais velhos também compareceram como
convidados. Depois de muita dança, chegou a hora do jantar: os
convidados foram para as mesas e os músicos, inclusive Menescal,
recolheram-se à cozinha, que era o lugar reservado para eles. “Foi
um escândalo na família”, recorda Menescal.
Os rapazes normalmente eram direcionados a seguir
carreiras como Direito, Engenharia ou Arquitetura. As garotas
podiam até tocar violão, enquanto esperavam um marido adequado.
Mas os pais de Nara Leão, Jairo e Tinoca, eram uma exceção. Eles
recebiam com prazer os amigos da filha para reuniões musicais em
que se trocavam acordes e idéias, tudo regado a muito refrigerante
e sucos de frutas. O apartamento em que moravam, na Avenida
Atlântica, entrou para a História como o principal reduto da nova
turma da Bossa Nova.
Nara, que tinha 12 anos em 1954, aprendia violão com um
professor chamado Patrício Teixeira. Roberto Menescal, seu amigo
da turminha da rua, “bicava” as aulas, já que sua família não via
com maior interesse suas tendências para a música. “A Nara era
uma cabeça muito mais adiantada do que a gente”, conta Menescal.
E logo logo toda a turma começou a se interessar por música. Nas
famosas vitrolas Philips, escutavam juntos discos como Julie is Her
Name, da cantora americana Julie London (cuja maior atração era o
violonista Barney Kessel), o violonista mexicano Arturo Castro, o
trompetista americano Chet Baker, cujo estilo cool de cantar era
muito inspirador, e os pianistas George Shearing, Erroll Garner e
André Prévin. Outro programa imperdível para eles era assistir aos
musicais da Metro. Menescal lembra o dia em que foi assistir a
Cantando na Chuva, com Nara. “Quando saímos do cinema estava
chovendo, e foi a glória. Envolvido pelo clima e pela música do filme,
estava em Copacabana me sentindo o próprio Gene Kelly e a Nara,
a Debbie Reynolds.” Um episódio engraçado envolvendo o cinema
Metro aconteceu com Menescal. Na época, os carros eram um
sonho quase inatingível para muitos adolescentes, principalmente
os carros conversíveis. Um amigo de Menescal, Gustavo, comprou
um Studebaker branco, com rodas cromadas e capota conversível
azul-marinho, automática. Menescal, que já tocava um violãozinho,
teve a idéia de irem os dois com carro e violão para a porta do
Metro, a fim de esperar a saída da sessão das quatro e
impressionar as garotas. Estava tudo planejado: eles ficariam
parados na porta do cinema, bem à vontade, como quem não quer
nada. Assim que se abrissem as portas Gustavo apertaria o botão
da capota, que se abriria lentamente mostrando os dois com o
violão no banco de trás. Seria difícil para qualquer garota resistir a
tal espetáculo. E lá se foram os dois. Tudo teria corrido muito bem,
não fosse o fato de o violão ter sido deixado na parte traseira, perto
do porta-malas do carro. Na hora H, Gustavo apertou o botão e,
conforme a capota foi baixando, também foi esmagando lentamente
o instrumento. Eles ainda tentaram impedir a catástrofe, mas era
tarde demais: todo mundo realmente parou, mas para olhar o violão
sendo destruído. “Foi a maior vergonha”, lembra Menescal.
Carlos Lyra também morava em Copacabana na Rua
Bolivar e começou a tocar violão aos 19 anos, por causa de uma
perna quebrada quando servia ao Exército. Sua mãe, com pena dos
quatro meses de imobilidade receitados pelos médicos, resolveu
presenteá-lo com um violão. Carlinhos começou a estudar com o
método de Paraguassu e, mais tarde, quando saiu do Exército, teve
aulas de violão clássico com um sargento da Aeronáutica chamado
José Paiva. “Foi ele quem me ensinou a fazer harpejos, escalas e a
tocar com uma postura correta, muito necessária na Bossa Nova”,
conta o compositor. Quando entrou para o colégio Mallet Soares,
Carlos Lyra conheceu Roberto Menescal e Luís Carlos Vinhas e
com eles formou um trio estranhíssimo: dois violões e um piano.
Mas ainda era tudo levado na brincadeira. O Mallet Soares era a
escola certa para eles: até os professores tocavam violão e alguns
chegavam a estimular os alunos a matar aula para fazer um som.
“Tínhamos um professor chamado César, que tocava violão muito
bem, e saía com a gente para tocar”, conta Lyra. Foi no Mallet
Soares que ele começou a compor. Maria Ninguém, um clássico da
Bossa Nova, foi criada durante as aulas de Francês de dona
Iolanda.
Além das reuniões na casa de Nara Leão, a turma também
freqüentava os bares e boates onde se apresentavam Dick Farney,
Lúcio Alves, Johnny Alf, Tito Madi, João Donato e Dolores Duran.
“Eles foram os precursores da Bossa Nova, prepararam o terreno
para a gente”, reconhece Lyra. No meio da década de 50, algumas
casas noturnas eram o esconderijo da boa música. Num pequeno
barzinho numa rua atrás do cinema Rian, chamado Tudo Azul (pela
cor dominante de sua decoração interior), Tom Jobim era o pianista
efetivo, e figuras conhecidas da noite do Rio não deixavam de lá
aparecer. Naquele local, Rubem Braga fez a célebre apresentação
de Vinícius de Moraes a Lila Bôscoli, com a famosa introdução:
“Vinícius de Moraes, apresento-lhe Lila Bôscoli. Lila Bôscoli,
apresento-lhe Vinícius de Moraes. E seja o que Deus quiser.” E foi.
Os dois acabaram se casando. Havia também o Clube Tatuís, em
Ipanema, onde, além das atividades esportivas, a grande atração
eram as jam sessions. O violonista Candinho sempre tocava ali e
volta-e-meia Tom Jobim aparecia para uma “canja”. Também as
serenatas noturnas nos barquinhos do Posto 6 e os arrastões no
Posto 5 eram programas obrigatórios para eles. Nas tardes de
domingo, um grupo de músicos, entre eles Gusmão, Freddy Falcão,
Durval Ferreira, Maurício Einhorn e Pecegueiro tocavam música
moderna no Hotel América, na Rua das Laranjeiras. Os fins de
semana musicais no Clube Leblon, com Eumir Deodato,
Pecegueiro, Jayme Peres, Waldemar Dumbo e Ed Lincoln, eram
outro local de encontro entre diversos músicos que viriam a ser
importantes nomes da Bossa Nova.
Menescal conheceu seu futuro parceiro Ronaldo Bôscoli
numa reunião musical na casa do veterano compositor Breno
Ferreira, autor de Andorinha Preta. Menescal era amigo do filho de
Breno, Sérgio Ferreira, e às vezes ia à casa do colega para
observar o que faziam Breno e seus amigos. Menescal ia, olhava,
gostava e aprendia. “Mas ainda não era a música que eu queria. Na
verdade eu queria uma coisa que ainda não sabia o que era”,
lembra. Numa dessas reuniões, cansado da rodinha que se formara
na sala, Menescal resolveu sair para pegar uma cuba-libre -- a
famosa mistura de rum com refrigerante, a bebida da Bossa Nova --,
quando em outro aposento escutou um som diferente. “Era a música
com que eu sonhava, exatamente o que eu queria ouvir. Só aqueles
acordes já me abriram a cabeça.”
A música vinha da varanda. Curioso, Menescal chegou
mais perto. Quem tocava era o violonista Elton Borges, e o jornalista
Ronaldo Bôscoli cantava Fim de Noite, uma de suas primeiras
composições com Chico Feitosa. Menescal ficou ali escutando,
maravilhado. No dia seguinte, na casa de Nara, não parava de falar
sobre a música. Mas ele não sabia nem o nome de Ronaldo, e
somente um ano mais tarde voltariam a se encontrar. Bôscoli
passava na praia e foi abordado por Menescal, que o convidou a
conhecer a turma na casa de Nara. Ronaldo concordou e disse que
ia aparecer com um amigo, Chico Feitosa.
Na noite marcada, todos esperaram alvoroçados para
escutar a novidade. Mas o tempo passava e ninguém chegava. Já
tinham perdido as esperanças quando finalmente, já no fim da noite,
chegaram Ronaldo, Chico e Elton, o que bastou para Chico Feitosa
ser definitivamente apelidado de Chico Fim de Noite. Eles
começaram a tocar, enquanto Nara Leão anotava rapidamente
todas as músicas. A partir dali, começaram a se reunir não apenas
para escutar, mas também para produzir música. Logo Ronaldo
Bôscoli e Nara Leão se tornaram namorados e noivos, numa história
de amor que terminaria poucos anos mais tarde, quando Ronaldo se
apaixonou pela cantora Maysa.
Chico Feitosa e Ronaldo Bôscoli se conheceram em 1954 e
logo se tornaram parceiros. Fim de Noite foi apenas uma da série de
composições criadas pelos dois no pequeno apartamento que
dividiam, na Rua Otaviano Hudson, em Copacabana, que também
faz parte da história da Bossa Nova. Ali moravam oficialmente Chico
e Ronaldo, mas sempre havia hóspedes circunstanciais, como o
compositor paulista Caetano Zama, o pianista Pedrinho Mattar e
Luiz Carlos Miéle. Um dos mais ilustres foi o próprio João Gilberto,
que chegou para passar alguns dias e acabou ficando meses. Mas
na verdade nenhum deles se incomodava muito com aquilo, uma
vez que eram invariavelmente despertados pelo violão de João
Gilberto, que voltava sempre para o apartamento quando o dia já
estava nascendo, depois de passar a noite por caminhos
desconhecidos e misteriosos.
Apesar de tijucano, Antonio Carlos Jobim era um típico
jovem de Ipanema, onde vivia desde criança. Gostava de pegar
onda no mar limpo de Ipanema e de nadar na Lagoa Rodrigo de
Freitas. Adolescente, no início dos anos 40, começou a estudar
piano com o excelente professor alemão Hans Joachim Koellreutter.
Tom e Newton Mendonça, seu amigo de infância e futuro parceiro
em hinos da Bossa Nova como Samba de Uma Nota Só e
Desafinado, já formavam grupinhos musicais com os amigos, nos
intervalos entre o colégio e a praia. Em 1946, Tom entrou para a
Faculdade de Arquitetura, onde não chegou a ficar nem um ano,
resolvendo seguir definitivamente a carreira de músico. Seu gosto
musical variava dos populares Ary Barroso, Dorival Caymmi,
Pixinguinha, Garoto, Noel Rosa e Lamartine Babo aos eruditos Villa-
Lobos, Debussy, Ravel, Chopin, Bach e Beethoven, passando pelas
grandes orquestras americanas.
Em 1949, já casado com sua primeira mulher, Teresa, Tom
ganhava a vida tocando piano em casas noturnas da Zona Sul como
o Tudo Azul, o Mocambo, o Clube da Chave, o Acapulco e o
Carroussel, entre outras. O maestro passou alguns anos trocando a
noite pelo dia, conseguindo em 1952 um emprego de arranjador na
gravadora Continental, como assistente do maestro Radamés
Gnatalli. O salário era baixo, mas certamente melhor do que o que
ganhava como pianista. Uma de suas funções era passar para a
pauta composições de quem não sabia escrever música. Mas Tom
não abandonou a noite. Agora que não precisava mais dela para
sobreviver, tocar na noite tornara-se um prazer. Para ele e, claro,
para quem tinha o privilégio de ouvi-lo.
Apesar de trabalhar na Continental, foi na gravadora Sinter
que Tom fez sua estréia como compositor. Em 1 953, a Sinter lançou
dois discos com composições suas: no primeiro, o cantor Mauricí
Moura cantava o samba-canção Incerteza, de Tom e Newton
Mendonça. No segundo, Ernani Filho interpretava Pensando em
Você e Faz Uma Semana (esta em parceria com o baterista Juca
Stockler). Pouco depois Tom se transferiu para a gravadora Odeon,
que seria responsável, alguns anos mais tarde, pelo lançamento do
histórico LP Chega de Saudade, com João Gilberto.
Em Copacabana ficava a casa do compositor Lula Freire,
cujo pai era um influente político brasileiro. O apartamento, no
mesmo prédio da Rua Tonelero 180, onde morava o famoso político
e jornalista Carlos Lacerda, era uma mistura inusitada de política e
música. “Você abria a porta da casa e encontrava o Baden Powell
com o Chico Fim de Noite. Aí, entrava na outra sala e estava meu
pai com o Presidente Kubitschek, o senador Gilberto Marinho e o
poeta Augusto Frederico Schmidt”, lembra Lula. Antes do advento
da Bossa Nova, o apartamento era um ponto de encontro dos
amantes do jazz, principalmente do jazz west coast, que passava
por seu apogeu nos anos 50. Alguns dos freqüentadores da casa de
Lula Freire eram Alberto Castilho, Luizinho Eça, os também
pianistas Kumbuca e Roberto Ebert, Pedro Paulo, Marcio Paranhos,
Domingos Jabuti, Bebeto, Pedrinho Hecksher, a vocalista Tecla e
Paulinho Magalhães, entre outros. Alguns não-músicos, como José
Octávio Castro Neves, Elfio Carvalho e Roberto Canto (irmão do
futuro baixista Ricardo Canto), também eram habitués das sessões
de jazz. Maria Helena, mãe de Lula, conhecedora de jazz e musica
clássica, não só permitia o som que invadia as madrugadas, como
participava ativamente das reuniões. Stan Kenton, Julie London,
Chet Baker, Gerry Mulligan, Dave Brubeck, Shorty Rogers, Mel
Tormé, George Shearing e Errol Garner eram ouvidos pela
vizinhança, não raramente, até o sol nascer. Cuba-libres,
refrigerantes e cafezinhos eram servidos seguidamente por Arlete e
Teresa, empregadas da casa, que também se consideravam “da
música” e vez por outra apareciam na sala com o pretexto de
alimentar a reunião, mas o que queriam mesmo era ouvir a música
cio grupo. “Elas sentavam, fechavam os olhos e ficavam só
curtindo”, lembra Lula. Muitos anos depois dessa época, por volta
de 1965, em pleno regime de exceção, ocorreu um fato engraçado
naquele apartamento da Rua Tonelero. Numa noite de música, o
violonista Candinho reparou que, pelo lado de fora da janela, quase
na altura do teto, vindo de um andar superior, estava pendurado um
microfone, obviamente destinado a gravar o que por ali se passava.
Candinho chamou o Senador Victorino, pai de Lula, homem de
temperamento altamente explosivo, e apontou para o microfone. O
Senador mandou buscar uma vassoura e preparou-se para desferir
uma violenta vassourada no microfone. “Vou estourar os ouvidos
deste sujeito que está bisbilhotando minha casa.” Felizmente foi
impedido por Lula, que avisou ao pai que o fio do microfone vinha
do apartamento de um vizinho amigo, do 10º andar, o médico Dr.
Otávio Dreux. O Senador ligou imediatamente para a casa do Dr.
Dreux, sendo atendido pelo filho mais moço do amigo, Chico, que
muito sem jeito explicou que, como adorava Bossa Nova, resolvera
gravar o som que saía pela janela do apartamento. Desfeita a
suspeita da incômoda presença do SNI em sua casa, o Senador riu
muito e autorizou formalmente a gravação “externa” dia noite, que
correu tranqüila, cheia de música e com um inusitado microfone
pendurado do lado de fora da janela.
Quando Lula foi morar em Ipanema, na Rua Joaquim
Nabuco, a efervescência cultural continuou. Sérgio Porto,
freqüentador assíduo do apartamento, dizia que ali era o último bar
aberto do Rio. Naquele tempo, poucos bares, como o Sacha’s e a
Fiorentina, abriam até mais tarde, mas até estes fechavam a certa
hora da madrugada. Vinícius de Moraes, notívago de nascença,
pedia que Lula sempre guardasse para ele uma cerveja na
geladeira. O compositor lembra que várias vezes, quando todos da
casa já dormiam, Vinícius tocava a campainha, a empregada abria a
porta e ele entrava, sentava, tomava sua cerveja, comia o que
encontrava na geladeira e ia embora.
Neste apartamento aconteciam fatos bizarros que bem
traduzem o espírito irreverente que dominava a época. Certa noite,
Lula oferecia um jantar para alguns amigos. A porta do apartamento
estava aberta e de repente entrou um sujeito baixinho e careca que,
sem falar com ninguém, ignorando a presença de todos, foi direto
para o piano e começou a tocar. Todos estranharam, mas Lula
resolveu que deveriam igualmente ignorar a estranha figura e
continuar a jantar normalmente, como se fosse a coisa mais natural
do mundo alguém entrar pela casa adentro e, sem falar com
ninguém, começar a tocar piano. Quatro músicas depois, ouviram
uma gargalhada do lado de fora. Logo adentraram a casa o
empresário paulista Olavo Fontoura, o compositor americano Jimmy
Van Heusen e suas mulheres. Ainda rindo muito, Olavo explicou: o
baixinho careca era ninguém menos do que Sammy Cahn, grande
compositor americano, responsável, entre outras coisas, por alguns
dos maiores sucessos de Frank Sinatra, como All the Way, Three
Coins in a Fountain, Be my Love, Call me Irresponsible, Time After
Time, Chicago, Come Fly With Me etc. Sammy tornou-se grande
amigo de Lula e esteve diversas vezes no Rio, sendo um grande
divulgador da música brasileira nos EUA.
Enquanto isso, as parcerias se multiplicavam.
Apresentados por Roberto Menescal, Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli
logo começaram a compor juntos. Se é Tarde me Perdoa e Lobo
Bobo foram algumas de suas primeiras composições. Bôscoli
continuava igualmente compondo com Chico Feitosa. São desta
época Sente, Complicação e Sei. Os talentosos irmãos Castro
Neves, Mário (piano), Oscar (violão), Léo (bateria) e lko
(contrabaixo), formavam um conjunto, o American Jazz Combo.
Oscar compôs com Ronaldo Não Faz Assim, uma das primeiras
canções da Bossa Nova, e depois marcou definitivamente sua
presença através de diversas composições com o excelente letrista
Luvercy Fiorini.
Em 1957, Roberto Menescal estava em casa,
comemorando as bodas de prata de seus pais. Um rapaz que ele
não conhecia entrou no apartamento perguntando se ele não teria
um violão para tocar. Apresentou-se como João Gilberto e disse que
Edinho, do Trio Irakitan, tinha lhe dado o endereço de Menescal.
João tinha voltado há pouco tempo da Bahia e precisava mostrar a
alguém o que havia criado. Menescal, que já tinha ouvido falar de
João, imediatamente levou-o para seu quarto. João pegou o violão e
mostrou Ô-ba-la-lá, composição sua e uma das primeiras que
continham a famosa batida diferente. Impressionado, Menescal saiu
na mesma hora com ele para mostrar a novidade aos amigos. A
primeira parada foi no apartamento de Bôscoli e Chico Feitosa, onde
João, além de Ô-ba-la-lá, mostrou Bim-bom e tocou vários sambas.
Da Rua Otaviano Hudson foram para a casa de Nara, já em
caravana, onde mais uma vez João encantou a todos com seu jeito
revolucionário de tocar violão, que libertava a todos do samba
quadrado que até então era o que de melhor se produzia na música
brasileira. A partir de então, João Gilberto passou não só a fazer
parte da turma, mas também a liderar espiritualmente o movimento:
todo mundo queria aprender a tocar como ele. Um dos poucos que
conseguiram ter aulas com o próprio João Gilberto foi Chico Feitosa,
na época em que João esteve hospedado em sua casa.
Os encontros musicais começaram a se multiplicar, tanto
nas intermináveis reuniões para as quais eram chamados, e onde
João Gilberto era sempre o grande mito (todas as festas prometiam
a presença do violonista), quanto nos bares e boates da cidade.
Nestes, normalmente os músicos não ganhavam para tocar, a não
ser doses gratuitas de bebida durante toda a noite.
Em 1954, um dos locais mais disputados na noite era a
boate do Hotel Plaza, na Av. Princesa Isabel, em Copacabana.
Oficialmente, Johnny Alf era o pianista e já tocava suas próprias
composições, como Rapaz de Bem e Céu e Mar. Os freqüentadores
mais assíduos da boate eram Tom Jobim, João Donato, Baden
Powell, Dolores Duran, Carlos Lyra e Sylvinha Telles, entre outros, e
o fim da noite era recheado de intermináveis “canjas”. Alf, um dos
maiores precursores da Bossa Nova, mudou-se para São Paulo em
1955, deixando órfãos seus admiradores. O pianista Luizinho Eça,
depois de passar uma época estudando piano clássico em Viena,
juntamente com o pianista Ney Salgado, acabou indo tocar
profissionalmente no Bar do Plaza, com o então baixista Lincoln e o
violinista Paulo Ney. Como era menor de idade, Luizinho trabalhava
garantido por um delegado que adorava música e permitia que o
pianista se apresentasse na boate, desde que este concordasse em
acompanha-lo ao piano enquanto cantava uns sambas-canções.
Luizinho, espertamente, não só acedia ao pedido, como ensinava ao
delegado novas canções “mais recomendadas para sua voz”. Certa
noite, Lula Freire e seus colegas de colégio, Carlos Augusto Vieira e
Romualdo Pereira, todos também menores de idade, foram para o
Bar do Plaza para ouvir Luizinho, que era amigo de Lula desde
garoto. O leão-de-chácara do Plaza, o lutador Waldemar, barrou os
três, alegando estar na boate o tal delegado. Romualdo apresentou-
se como sobrinho do delegado, e o segurança não só permitiu que
os três entrassem, como avisou ao delegado que os sobrinhos dele
haviam chegado. O homem estava tão feliz vendo que a casa
estava ainda com mais clientes para “ouvi-lo cantar”, que recebeu
os “sobrinhos” com sorrisos e abraços e ainda acabou pagando a
conta das inocentes cuba-libres consumidas pelos três.
O encontro de João Gilberto e Tom Jobim foi sugestão do
fotógrafo Chico Pereira, que aconselhou João a procurar o maestro.
Eles já se conheciam superficialmente das noitadas em
Copacabana e João resolveu bater na porta de Tom, na Rua
Nascimento Silva, em Ipanema. Apresentou a ele Bim-bom e Ô-ba-
la-lá. Tom, que como todos os outros também havia se
impressionado com a nova batida de violão, mostrou a João
algumas composições suas, entre elas Chega de Saudade, parceria
com Vinícius e um dos temas escolhidos para o disco Canção do
Amor Demais, que estava sendo preparado para Elizeth Cardoso.
Festejado como o disco que inaugurou a Bossa Nova,
Canção do Amor Demais trazia belíssimas composições inéditas de
Tom e Vinícius interpretadas pela “Divina”. João Gilberto
acompanhou Elizeth na gravação faixa Outra Vez, deixando
registrada pela primeira vez em disco sua batida inovadora. Alguns
meses depois, João já entrava em estúdio para gravar o histórico 78
rpm Chega de Saudade, com a composição de Tom e Vinícius de
um lado e a sua Bim-bom do outro.
A gravação de Chega de Saudade foi uma verdadeira
novela. Cheio de exigências, como o pedido de um microfone para a
voz e outro para o violão, inédito na época, João Gilberto conseguiu
enlouquecer técnicos e músicos. Interrompia a todo instante a
gravação, ora dizendo que os músicos haviam errado, ora que o
som não estava bom. Mas o disco acabou saindo, com arranjos de
Tom Jobim, que também tocava o piano.
Ronaldo Bôscoli trabalhava como repórter esportivo na
Ultima Hora, e sua irmã Lila era casada com Vinícius de Moraes. O
já consagrado poeta ocupava o cargo de vice-cônsul na embaixada
do Brasil em Paris. Em 1956, Vinícius voltou de Paris com o
rascunho do libreto de Orfeu da Conceição, uma tragédia de
inspiração grega, toda em versos, que ele ambientara ao carnaval
carioca e pretendia montar no Rio de Janeiro. A chegada do poeta
ao Rio é tida como um dos principais marcos da história da Bossa
Nova.
Libreto pronto, Vinícius começou a procurar um parceiro
para as canções da peça. Ele já tivera a oportunidade de conhecer
Tom Jobim no famoso Clube da Chave, em 1953, pouco antes de ir
ocupar sua função na embaixada de Paris. No Clube, cada um dos
50 sócios tinha uma chave que abria o armário onde ficava
guardada sua própria garrafa de uísque. Foi lá que Vinícius ouviu
Tom pela primeira vez, e ficou impressionado com o talento do
jovem pianista. Chico Feitosa, que a esta altura já se transformara
em secretário particular do poeta, e Ronaldo sugeriram que ele
convidasse Tom para fazer as músicas da peça. Vinicius ficou de
pensar. No dia seguinte, no Villarino, uma uisqueria no centro do
Rio, reduto de boêmios e intelectuais, como Paulo Mendes Campos,
Antônio Maria, Sérgio Porto, Fernando Lobo, Dorival Caymmi,
Reynaldo Dias Leme, Carlos Drummond de Andrade, Dolores Duran
e Heitor Villa-Lobos, entre muitos outros, o jornalista Lúcio Rangel
apresentou formalmente o poeta ao compositor. Vinícius explicou
detalhadamente o projeto e justificou a importância cultural do
mesmo, para mais impressionar e logo convencer o jovem maestro
a dele participar. Tom ouviu a explicação toda e ao fim da fala do
poeta perguntou: “Tudo bem, mas tem um dinheirinho nisso aí?”. No
dia seguinte já estavam trabalhando na casa de Vinícius. Em
depoimento a Almir Chediak, Tom Jobim lembrou que “no início
havia uma certa timidez e as primeiras músicas ficaram umas
porcarias. Fizemos três sambas horríveis. Mas Vinícius,
pacientemente, queria que fôssemos trabalhando até sair alguma
coisa direita”. A primeira “coisa direita” que saiu foi Se Todos
Fossem Iguais a Você. Depois vieram Mulher Sempre Mulher, Um
Nome de Mulher, Lamento no Morro e Valsa de Orfeu.
Orfeu da Conceição estreou no Teatro Municipal em
setembro de 1956, com cenários de Oscar Niemeyer, figurinos de
Lila Bôscoli, direção de Léo Jusi, Luiz Bonfá no violão, regência de
Léo Peracchi e com um belo elenco negro encabeçado por Haroldo
Costa (Orfeu), Léa Garcia (Mira) e Dayse Paiva (Eurídice). O
espetáculo foi um acontecimento na vida cultural do Rio. Após uma
semana em cartaz no Municipal, a peça foi transferida para o Teatro
República, onde cumpriu temporada com casa lotada por mais um
mês.
Naquela época a casa de Vinícius, na Avenida Henrique
Dumont, em Ipanema, era a própria open house. Chico Feitosa, que
trabalhava com o poeta, lembra que entrava e saía gente de manhã
até a noite. Eram artistas e intelectuais como Elizeth Cardoso, Ciro
Monteiro, Lúcio Alves, Dons Monteiro, Emilinha Borba, Paulo
Mendes Campos, Fernando Sabino, Rubem Braga, Augusto
Frederico Schmidt. “Geralmente quem chegava já trazia uma garrafa
para dar ao poeta, que normalmente só entrava com o gelo. Bebia-
se muito uísque e muito gim naquelas reuniões”, lembra Chico.
Terminada a temporada da peça, Tom e Vinícius
começaram a trabalhar nas músicas da versão cinematográfica,
Orfeu Negro. Roberto Menescal lembra-se do dia em que foi
procurado por Tom. Estava em sua academia de violão, ensinando
alguns acordes para uma menina, quando tocaram a campainha.
Menescal deixou a garota esperando e foi atender. Na porta,
ninguém menos do que Tom Jobim. Menescal, fã incondicional do
maestro, achou que estava sonhando. “Todas as vezes em que
tentava ver um show dele, ficava tão nervoso que acabava
enchendo a cara e sempre saia carregado. Eu simplesmente não
conseguia chegar perto do Jobim”, conta Roberto. E de repente, lá
estava ele frente a frente com o mito. “Você é o Menescal?”,
perguntou Tom. “Sou”, respondeu o incrédulo compositor. “É que eu
vou gravar um negócio pro filme Orfeu Negro, e queria ver se você
fazia o violão, porque o João não pode e disse que você faz um
violão mais ou menos parecido com o dele”. Menescal nem voltou
para avisar à aluna: dali mesmo acompanhou Tom ao estúdio.
“Naquele mesmo dia já fizemos uma gravação”, lembra. No fim do
dia, Tom convidou o novo amigo para tomar um chope. No bar,
perguntou a Menescal o que ele fazia, além de tocar violão.
Menescal disse que tinha resolvido estudar arquitetura. “Vai ser
músico que é melhor”, foi o conselho de Tom. Não era um conselho
de se jogar fora. Na mesma hora Menescal resolveu se dedicar a
musica.
Orfeu Negro, dirigido pelo francês Marcel Camus, foi o
grande vencedor do Festival de Cannes de 1959. Entre as novas
canções compostas e utilizadas no filme, estavam A Felicidade e O
Nosso Amor, de Tom e Vinícius, e Manhã de Carnaval, de Luiz
Bonfá e Antonio Maria, sendo esta música um grande sucesso
internacional e decididamente um outro marco na história e na
divulgação da música brasileira no mundo. A repercussão causada
por Orfeu foi mais um elemento a contribuir fortemente para o clima
de euforia que reinava no Brasil.
Como não poderia deixar de ser, paralelamente à
efervescência musical que acontecia na Zona Sul, a Zona Norte do
Rio não ficaria imune às novidades musicais que encantavam o
outro lado da cidade. Também em Vila Isabel o jazz era o
ingrediente principal das reuniões musicais e lá já se tinha o hábito,
mais tarde popularizado por João Gilberto, de se tocar violão no
banheiro, devido à excelente acústica criada pelos ladrilhos.
Quando chegou ao Rio, em 1950, João Gilberto cantava
como Orlando Silva, seu grande ídolo. Nascido em Juazeiro, no
interior da Bahia, João chegou à capital aos 19 anos para ser
crooner do grupo Garotos da Lua. Durante algum tempo morou na
Tijuca com Alvinho Senna, violonista do grupo, formado ainda por
Acyr Bastos Mello, Milton Silva (arranjador) e Toninho Botelho
(bateria). Com Alvinho, João freqüentava a noite de Vila Isabel, ao
lado de músicos como João Donato, Johnny Alf e Bebeto, do futuro
Tamba Trio. O guitarrista Durval Ferreira, que morava por lá, lembra
que não era difícil encontrar João Gilberto tocando seu violão em
plena Praça Noel Rosa, talvez rendendo homenagem a um dos
maiores compositores da música popular brasileira de todos os
tempos.
Um ano e meio depois de chegar ao Rio, João Gilberto
deixou os Garotos da Lua: já era então uma pessoa absolutamente
imprevisível que, apesar do inegável talento, faltava demais aos
ensaios e apresentações da banda. Nesta época, João namorava a
jovem Sylvia Telles, que tinha 18 anos e em breve se transformaria
numa das grandes cantoras dos anos 50 e uma das maiores
incentivadoras e mais importantes personalidades da Bossa Nova.
Em 1955, convidado pelo amigo Luís Telles para passar
uma temporada em Porto Alegre, resolveu ir conhecer a capital
gaúcha. Passou ao todo sete meses no Sul, onde conquistou
grande parte dos boêmios da cidade com seu violão. Após esta
temporada, João foi para Diamantina, onde morava sua irmã
Dadainha. Lá ficou oito meses, até maio de 1 956. Passava todo o
tempo trancado no quarto ou no banheiro estudando violão sem
parar. Dadainha resolveu devolvê-lo para a casa de seu pai, em
Juazeiro. Incompreendido em sua própria terra, João resolveu voltar
ao Rio para mostrar o que tinha descoberto. Uma nova “batida” de
violão, que iria mudar os destinos de João Gilberto, dos músicos
brasileiros, e influenciar a música do mundo inteiro.
Quando terminou o namoro com João Gilberto, Sylvinha
Telles ainda não cantava profissionalmente, mas resolveu se
apresentar, sem o conhecimento de seu pai, no programa Calouros
em Desfile, apresentado por Ary Barroso. Fez sucesso e acabou
convencendo a família a aceitar sua opção profissional. Sylvia foi,
ao lado de Dolores Duran e Maysa, uma das três grandes cantoras
dos anos 50. Em 1956, o 78 rpm Foi a Noite, em que interpretava a
bela canção de Tom Jobim e Newton Mendonça, era item obrigatório
nas discotecas modernas. A suavidade das interpretações de
Sylvinha era um retrato da própria cantora no trato com seus
inúmeros amigos. Grande amiga de Roberto Menescal e de todos
os músicos da Bossa Nova, deixou um enorme vazio no coração do
grupo ao desaparecer tragicamente num desastre de automóvel
junto com seu namorado, Horacinho de Carvalho, pessoa muita
querida na sociedade carioca. Do seu primeiro casamento com o
violonista Candinho, Sylvinha Telles deixou uma filha, a cantora
Cláudia Telles. Seu irmão, o compositor Mário Telles, foi parceiro do
maestro Moacyr Santos, outro nome admirável entre os
arranjadores brasileiros.
Dolores, que também compunha (é autora da clássica A
Noite do Meu Bem) de parceria com Ribamar, contagiava a todos
com suas canções, interpretadas com tal emoção que lembrava as
grandes divas dos blues americanos. Já Maysa vinha do extremo
oposto: paulista, casou-se aos 18 anos com André Matarazzo,
sobrinho do conde Francisco Matarazzo e 20 anos mais velho que
ela. Cantava divinamente nos saraus da aristocracia paulistana.
Mas, se no Rio de Janeiro as famílias de classe média desprezavam
a profissão de músico ou cantora, numa família quatrocentona
paulista a coisa era bem pior. O casamento durou menos de um
ano, pois, ajudada por seu pai, Maysa conseguiu gravar um disco e
acabou se desligando da família Matarazzo.
O novo jeito de tocar e cantar de João Gilberto rapidamente
contagiou toda a turma, que finalmente encontrou seu caminho
musical. Tocar violão virara uma febre. Naquela época, Carlinhos
Lyra e Roberto Menescal já haviam aberto uma academia de violão
em Copacabana, onde ensinavam as técnicas do instrumento para
um sem número de jovens alunos interessados na nova batida.
Há controvérsias quanto à origem da expressão Bossa
Nova. Uns defendem que Noel Rosa já a utilizava bem antes do
aparecimento de João Gilberto. Outros a atribuem ao cronista
Sérgio Porto, que por sua vez a teria ouvido de um engraxate. Mas
a versão mais aceita é a de que o jornalista Moysés Fuks, do jornal
Última Hora, seria o responsável por sua criação. Fuks, cuja irmã
estudava na academia de Lyra e Menescal, era diretor artístico do
Grupo Universitário Hebraico do Brasil, uma associação estudantil
no Flamengo. O jornalista resolveu convidar a turma para fazer um
show no Grupo, no primeiro semestre de 1958. Ele, ou alguém cuja
identidade é um enigma, escreveu no cartaz: “Sylvinha Telles e um
grupo Bossa Nova”. O show, cuja divulgação foi feita apenas no
boca-a-boca, foi um enorme sucesso. Faziam parte do “grupo Bossa
Nova” Carlos Lyra, Roberto Menescal, Chico Feitosa, Ronaldo
Bôscoli, Nara Leão e outros. A partir dali, o termo começou a ser
usado pelo próprio grupo para definir a música que faziam. Poucos
meses depois, Tom Jobim e Newton Mendonça compuseram
Desafinado, cujos antológicos versos “Isso é Bossa Nova / isso é
muito natural” ajudaram a consolidar a expressão. João Gilberto, ao
ouvir Desafinado na casa de Tom, pediu para gravá-la e o fez em
novembro de 1958, em seu segundo disco. Este tinha, de um lado, a
música de Tom e Newton Mendonça, que viria a se tornar um dos
hinos da Bossa Nova, e do outro uma composição sua, Ô-ba-la-lá.
No início de 1959, Tom Jobim convenceu Aloysio de Oliveira, então
diretor da Odeon, a gravar um LP com João. Neste entraram Chega
de Saudade (que deu nome ao LP), Bim-bom, Ô-ba-la-lá (de João),
Desafinado, Brigas Nunca Mais (de Tom e Vinícius), Lobo Bobo e
Saudade Fez Um Samba (de Lyra e Bôscoli), Maria Ninguém, de
Lyra, Rosa Morena, de Caymmi, É Luxo Só, de Ary Barroso e Luís
Peixoto, e Aos Pés da Santa Cruz, de Marino Pinto e Zé da Zilda.
Tom Jobim assinou o texto da contracapa, onde previa a importância
de João, que, segundo ele, já havia, em pouquíssimo tempo,
influenciado “toda uma geração de arranjadores, guitarristas,
músicos e cantores”.
3.

A Bossa Nova não inovou só com a batida diferente. Ela veio com a
poesia, dizendo coisas que não se diziam normalmente.

DURVAL FERREIRA

Além da música, a grande paixão de Menescal, Bôscoli e


sua turma eram as pescarias submarinas que promoviam no litoral
de Cabo Frio e Arraial do Cabo, praias que nos anos 50 eram um
verdadeiro paraíso praticamente intocado pelo homem. Numa
dessas ocasiões foi criado O Barquinho, outro clássico da Bossa
Nova. É Menescal quem conta: “Nesse dia a gente estava num
barco alugado, fora da Ilha do Cabo, num lugar em que eu nem
devia ter levado a turma, porque era bastante perigoso. Estávamos
Ronaldo, Nara, Bebeto, Luizinho, eu e mais algumas pessoas,
talvez umas oito, no total. O barco enguiçou e o pessoal ficou muito
apavorado, porque ali a profundidade era grande e a âncora não
alcançava o fundo, O barco foi indo para fora e o barqueiro,
acostumado com aquilo, foi deixando. Eu comecei a brincar, dizendo
que a gente podia pegar uns peixes e comer crus, que fome a gente
não ia passar. Quatro horas da tarde, quatro e meia, e o barco indo
embora. E o pessoal com medo. Aí eu comecei, de brincadeira, a
cantarolar uma melodia que me veio à cabeça na hora. O barquinho
fazia toc-toc-toc, não pegava, e eu cantarolando, brincando. Alguém
começou a brincar também, dizendo ‘O barquinho vai, a tardinha
cai, o barquinho vai...’. Aí a gente começou a ficar preocupado, a
tarde caindo, a coisa estava ficando séria. Até que vimos um barco
que estava vindo de Abrolhos e rebocou a gente. Aí ficou todo
mundo alegre de novo. No dia seguinte, já na casa da Nara, no Rio,
o Ronaldo me perguntou: ‘Como é aquele negócio que você estava
cantarolando mesmo?’ Então eu me lembrei mais ou menos da
melodia e a gente fez O Barquinho.”
Mergulhar, na época, era um esporte novo, e Menescal foi
um dos primeiros a dominar o mar, chegando a virar notícia de jornal
quando capturou um enorme mero nas águas de Cabo Frio. Além
de Menescal também eram freqüentadores assíduos das pescarias
Ronaldo Bôscoli, Chico Feitosa, Chico Pereira, Toninho Botelho e
Normando Santos. Eventualmente, também Luís Carlos Vinhas e
Luizinho Eça. E Nara Leão, enquanto namorava Bôscoli. Menescal
mantinha alugada em Cabo Frio, com o fotógrafo Chico Pereira,
uma pequena casa de sala e quarto, onde ás vezes dormiam mais
de dez pessoas. Na única vez que conseguiram arrastar João
Gilberto para Cabo Frio, ele se recusou a entrar no barco e ficou
esperando na praia, com o violão. No fim da tarde, quando voltaram,
ele estava na mesma posição, muito vermelho e reclamando muito:
“Por que vocês fazem isso comigo?”
Desta época de pescarias, além de O Barquinho, Menescal
e Bôscoli compuseram Rio, Nós e o Mar, Ah, se Eu Pudesse, A
Morte de Um Deus de Sal, entre outras músicas da já famosa dupla.
Entre 1958 e 1959, Tom Jobim lançou diversas canções
que se tornaram clássicos da Bossa Nova: Meditação, Discussão,
Samba de Uma Nota Só (com Newton Mendonça), Dindi, Demais e
Eu Preciso de Você (com Aloysio de Oliveira), Este Seu Olhar,
Fotografia (só dele), A Felicidade, O Nosso Amor, Eu Sei Que Vou
Te Amar (com Vinícius). Sylvinha Telles cantou a maioria delas nos
dois LPs que gravou em 59: das 24 canções, 18 eram de Jobim.
Em agosto de 1959, os estudantes de Direito da PUC
resolveram organizar um show com os artistas da Bossa Nova. As
principais atrações seriam as já consagradas Sylvia Telles e Alaíde
Costa, além da vedete Norma Bengell, que mostraria além de seus
dotes físicos os seus dotes de cantora. Os músicos convidados
seriam Roberto Menescal, Luis Carlos Vinhas, Carlos Lyra, Nara
Leão, Normando Santos, Chico Feitosa e os irmãos Castro Neves,
entre outros. Ronaldo Bôscoli, que seria o apresentador, prometera
levar também Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Billy Blanco e Dolores
Duran.
Os padres da PUC autorizaram a realização do show, mas
com uma condição: a saída de Norma Bengell, cuja presença na
universidade católica havia sido vetada. Como os organizadores não
queriam abrir mão da presença dela (“turma era turma”) o show
acabou sendo transferido para a Faculdade de Arquitetura, na Praia
Vermelha. O episódio do veto a Norma ganhou as páginas dos
jornais, que o noticiaram com fartura. O resultado é que, no dia do
espetáculo, 22 de setembro, centenas de pessoas se aglomeravam
na porta da Arquitetura para assistir ao “show proibido”.
Apesar do amadorismo gritante do espetáculo, a noite foi
um sucesso. Norma Bengell apresentou-se toda de negro e foi
aplaudida de pé, mostrando cinco canções do disco Ooooooh
Norma! que ela gravara pela Odeon. Alaíde Costa interpretou
brilhantemente Chora Tua Tristeza, de Oscar Castro Neves e
Luvercy Fiorini. Até Luis Carlos Vinhas e Ronaldo Bôscoli cantaram.
O primeiro entoou Desafinado e Chega de Saudade, enquanto o
segundo mostrou Mamadeira Atonal, composição sua que nunca
chegou a ser gravada. Os prometidos Vinícius, Tom, Billy Blanco e
Dolores compareceram para prestigiar, mas não subiram ao palco.
Os jornalistas Ronaldo Bôscoli e Moysés Fuks
encarregaram-se da repercussão do evento na imprensa,
respectivamente na revista Manchete e no jornal Última Hora. Todos
queriam saber o que era exatamente aquela música tocada ali, se
era jazz, se era samba. Mas Tom Jobim e Newton Mendonça já
haviam definido: aquilo era Bossa Nova.
A partir daí, todos queriam escutar Bossa Nova e os
convites para shows e reuniões começaram a proliferar. O grupo fez
espetáculos na Escola Naval (do qual participaram também Lúcio
Alves, Sylvinha Telles, Alaíde Costa e Norma Bengell), no Colégio
Santo Inácio, no Franco-Brasileiro, no auditório da Rádio Globo,
este último transmitido ao vivo do auditório na Rua Irineu Marinho e
do qual participaram Os Cariocas, já com a formação que virou
oficial: Severino, Badeco, Quartera e Luís Roberto. Naquela época
gravadores de som não eram muito comuns nas mãos de não-
profissionais. Uma das poucas pessoas que possuíam gravador era
Jorge Karam, amigo de toda a turma da Bossa Nova e um
apaixonado por música. Graças ao hobby de Karam, que com uma
incrível premonição do futuro gravava tudo o que podia em sua casa
e em todos os lugares onde aconteciam os shows de Bossa Nova,
ficaram preservados importantíssimos momentos da vida do
movimento e de seus participantes. Do show da Arquitetura e da
Escola Naval, como tantos outros, o único record que existe são as
preciosas gravações de Karam a quem a história da Bossa Nova
muito deve. Algumas destas incríveis gravações estão apresentadas
no CD que acompanha este livro.
Em breve, ter representantes da Bossa Nova numa reunião
era sinônimo de status. A presença de João Gilberto numa festa,
então, era disputadíssima. Todo mundo anunciava sua presença,
mas era raro ele aparecer. Em compensação, quando o fazia,
deixava seus ouvintes exaustos: muitas vezes tocava até o
amanhecer. Alguns locais do Rio passaram a ser sinônimos da
Bossa Nova, sendo raras as noites em que os compositores do
grupo e seus amigos não se encontrassem. Além da casa de Nara
Leão, as casas de Lula Freire, Geraldo Casé, Chico Pereira e Jorge
Karam eram verdadeiros templos do movimento. As reuniões em
casa de Marilene Dabus e Bené Nunes eram outro ponto de
encontro dos músicos e compositores. Um pouco mais tarde, as
casas do advogado Nelson Motta, pai do compositor Nelsinho Motta,
e do empresário Cícero Leuenroth, pai da cantora Olivia, que anos
depois se casaria com o compositor Francis Hime, também eram
refúgio seguro para a Bossa Nova. O movimento tinha muitos
simpatizantes e admiradores de primeira hora. Um dos mais
freqüentes às reuniões do grupo era o jornalista João Luís
Albuquerque. Íntimo dos músicos e compositores, João Luís foi um
dos maiores divulgadores da Bossa Nova, e certamente um dos
seus mais Importantes incentivadores.
Muita gente passou a organizar festas apenas para mostrar
aos amigos uma pretensa intimidade com o grupo. Proliferavam
jantares e reuniões, tanto no Rio como já em São Paulo, muitas
vezes oferecidos por diplomatas e pessoas da sociedade
interessados na novidade musical. Um dos episódios mais
hilariantes desta época aconteceu na casa do adido cultural da
Argentina. A mulher de Normando Santos, Lolita, que trabalhava na
embaixada argentina, foi encarregada pelo diplomata de organizar
um jantar em seu apartamento, na Rua Siqueira Campos, em
Copacabana. Naquela reunião estavam, entre outros, Luiz Bonfá,
Maria Helena Toledo, Luis Carlos Vinhas, Chico Feitosa, Lula Freire,
Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal, Carlos Lyra, Roberto Carlos,
Carlos Imperial, Luizinho Eça e até um membro do grupo apelidado
de Milton Ilha Rasa, que tinha esta alcunha por causa do estado em
que ficavam seus olhos após atravessar as emoções e exageros da
noite.
O apartamento do diplomata tinha várias salas. Numa delas
se instalaram diplomatas, músicos e compositores. Em outra foi
colocada uma enorme mesa com vários pratos decorados, arranjos
de flores e um belo leitão assado. O dono da casa, aflito, esqueceu
a diplomacia e começou a insistir para que o show começasse,
como se a reunião fosse uma apresentação profissional do grupo.
Nada incomodava mais os integrantes da Bossa Nova do que, em
vez de se sentirem convidados, serem considerados apenas como
músicos aparentemente contratados para divertir uma festinha
social. Enquanto os companheiros, de propósito, não se resolviam a
tocar, Luis Carlos Vinhas aproveitou para tomar um banho na suíte
do apartamento. Usou todos os sais e perfumes da esposa do
diplomata. Saiu limpíssimo, mas deixou o banheiro em situação
caótica. Tanta insistência por parte do dono da casa acabou irritando
Vinícius de Moraes. “Vamos dar uma lição nesse cara, vamos sumir
com aquele leitão. Esconde o leitão”, instigou ele. Ronaldo Bôscoli
gostou da idéia — até porque o grupo seguiria da casa do diplomata
diretamente para o fim-de-semana de pescarias em Cabo Frio, onde
o leitão seria certamente muito mais aproveitado — e resolveu
produzir o seqüestro. Ajudado por Vinhas, pegou o leitão, com
bandeja de prata e tudo, e escondeu atrás de uma cortina. Vinícius
só ria. Na mesma hora, o tão esperado show começou, e cada um
tocou suas músicas, distraindo os animados convivas. Chico Feitosa
e Bôscoli ficaram observando discretamente a sala de jantar. A certa
altura um dos garçons foi até lá e levou aquele susto. Chamou um
colega, ficaram os dois gesticulando e olhando para todos os lados
em busca do leitão. Sem outra opção, levaram o problema ao dono
da casa. “A gente não ouvia o que eles diziam, só via os gestos, o
movimento dos lábios. Ele dizia ‘Como? Como sumiu?”’, lembra
Chico. Muito nervoso, o diplomata perguntou aos presentes se por
acaso não haviam visto um leitão por ali. Obviamente, ninguém
tinha visto leitão algum. Bôscoli, preocupado com a possível
confusão, resolveu sumir de vez com o bicho. Numa operação
complicadíssima, ele e Chico Fim de Noite embrulharam o leitão
num jornal, depois numa toalha, deixaram a bandeja atrás da cortina
(“para não dizerem que a gente é ladrão”) e conseguiram
contrabandeá-lo para o velho Fusquinha de Bôscoli, estacionado
nas imediações. O jantar acabou em clima de mistério, e no dia
seguinte o prato foi devidamente degustado com “vivas” à Argentina,
na alegre pescaria de Cabo Frio.
Outro episódio que traduz o espírito irreverente da turma
aconteceu na casa de uma condessa na Rua Dona Mariana, em
Botafogo. A nobre senhora, anunciando uma noite de Bossa Nova,
convidou o grupo e inúmeros socialites da época. Preparou um belo
jantar, em que se comeu e bebeu à vontade. No fim da festa, na
despedida à dona da casa, era preciso entrar numa fila para beijar
sua mão, que a condessa cerimoniosamente esticava a quem saía.
O primeiro a entrar na fila foi Luis Carlos Vinhas, num monumental
pileque. Sem saber o que devia fazer, Vinhas simplesmente
empurrou a mão da condessa para baixo e saiu. Mas este não foi o
único insulto da noite. O pior ainda estava por vir. Chegou a vez de
Zé Henrique Bello, artista plástico, freqüentador da Bossa Nova, que
tentava se manter em pé na fila. A condessa esticou o braço. Zé
Henrique segurou sua mão, parou para pensar em alguma coisa e
acabou babando na mão da condessa. Percebendo a gafe, ainda
tentou consertar: delicadamente limpou a mão da condessa na
própria camisa e saiu, cambaleando.
O pianista Luiz Carlos Vinhas sempre foi uma das mais
divertidas figuras da Bossa Nova. Conta casos e inventa situações
que já fazem parte da história do movimento. Numa noite, junto com
Lula Freire e Chico Toselli, um amigo boêmio, foram para uma
reunião de Bossa Nova no apartamento de uma bela morena
carioca que morava na Av. Nossa Senhora de Copacabana, e era
conhecida muito especialmente pelos seus belos atributos físicos.
Como já era tarde, por volta das 11h da noite, e a portaria já estava
fechada, ficaram os três por ali, olhando para cima e escutando o
som da reunião no 3º andar, esperando que aparecesse alguém
para abrir a porta. Não demorou muito, chegou um sujeito enorme,
uma verdadeira ilha, que ao abrir a porta perguntou a Vinhas aonde
eles iam. O pianista, que quando fica nervoso dá uma gaguejada,
quis se fazer de engraçado e disse para o cara: “É ne-negócio de
Bossa Nova. Va-vamos na casa da fulana. Aquela da-da bunda
grande.” O grandalhão, sem mover um músculo, respondeu: “É
minha irmã.” Luiz Carlos Vinhas ficou lívido, e segurando
imediatamente no braço do sujeito, muito sério arrematou: “Bu-
bunda maravilhosa!”. O grandão acabou rindo e abriu a porta para
os três. Já a salvo, no apartamento, Vinhas comentava que o
pescoço do irmão era maior do que a bunda da dona da reunião.
A mania de todo mundo querer se mostrar íntimo da Bossa
Nova irritava de verdade os compositores. Uma das principais
características de quem queria se mostrar “da Bossa Nova” era
dizer que tinha intimidade com os compositores e que sabia cantar
todas as músicas do grupo. Um dia Chico Feitosa resolveu pregar
uma peça numa senhora da sociedade que adorava se fazer de
íntima: no meio de uma reunião começou a cantar uma música
inventada na hora: Volma. “Eu cantava: ‘Voooolma, veja só que
lalalálá... veeeeenha...’. Eram apenas algumas palavras
desconexas, e o resto eram sons sem sentido”, conta ele. E não é
que a mulher fingiu conhecer a música, chegando a acompanhar
Chico nos vocais?
Em pouco tempo, o termo Bossa Nova começou a servir
para dar nome a qualquer tipo de coisa, desde geladeiras a
lançamentos mobiliários. Mas muita gente também começou a
implicar com o movimento: alguns críticos sem nenhuma
importância (que viriam a ter de engolir seus comentários negativos
sobre a Bossa Nova, quando o sucesso internacional do movimento
já era indiscutível) e algumas pessoas conhecidas que pertenciam a
uma outra geração de músicos e compositores e preferiam os
antigos estilos da música brasileira. O jornalista Antônio Maria, cuja
música Ninguém me Ama era usada como exemplo do que
absolutamente não era Bossa Nova, era um deles. O próprio
Antonio Maria, extremamente inteligente, ótimo cronista e homem
da noite carioca, brincava com sua própria letra, cantando “ninguém
me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de Baudelaire”.
Maria mantinha uma coluna diária no O Jornal, onde sempre
encontrava uma maneira de criticar o movimento. Ele e Bôscoli
quase saíram no tapa na porta do Little Club, mas Aloysio de
Oliveira chegou a tempo de apartar a briga. Os dois, no entanto,
ficaram sem se falar para sempre. Outro ferrenho inimigo da Bossa
Nova era Silvio Caldas. O cantor afirmava, para quem quisesse
ouvir, que a Bossa Nova nada mais era que um movimento
passageiro e sem categoria, e que rapidamente acabaria.
Lamentável engano do seresteiro. Em contrapartida, os jornalistas
Moysés Fuks, João Luiz Albuquerque e Sylvio Túlio Cardoso
formavam o trio de ouro na defesa e na divulgação do movimento.
Muita gente de peso acabou aderindo, como os maestros Radamés
Gnatalli, Léo Peracchi, Rogério Duprat, Julio Medaglia e Guerra
Peixe. Ary Barroso (este menos) e Dorival Caymmi também se
chegaram, prestigiando várias reuniões do grupo.
João Gilberto foi apresentado a Astrud Weinert na casa de
Nara Leão. Em pouco tempo eles começaram a namorar e se
casaram, tendo Jorge Amado como padrinho. Alguns anos mais
tarde, ela gravaria a versão em inglês de Garota de Ipanema no
lendário disco Getz/Gilberto.
Ainda em 1960, João gravou seu segundo disco, O Amor, o
Sorriso e a Flor, que consolidaria a definitivamente a Bossa Nova.
Do repertório constavam Meditação (Tom Jobim e Newton
Mendonça), Só em Teus Braços (Tom Jobim), Se é Tarde me
Perdoa (Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli), Corcovado (Tom Jobim),
Discussão (Tom e Newton Mendonça), Um Abraço no Bonfá (um
instrumental de João), Doralice (Dorival Caymmi), Amor Certinho,
Samba de Uma Nota Só (Tom Jobim e Newton Mendonça), O Pato,
Outra Vez e Trevo de Quatro Folhas. Tanto Samba de Uma Nota Só
quanto Desafinado tornaram-se clássicos do movimento.
Também no início de 1960, houve o primeiro rompimento
sério na Bossa Nova. Carlos Lyra resolveu não esperar que André
Midani, amigo dos compositores da Bossa Nova, diretor da Odeon,
cumprisse sua promessa de gravar um disco com toda a turma, e
acabou assinando um contrato para um disco solo com a Philips,
através de João Araújo. A noticia explodiu como uma bomba.
Ronaldo Bôscoli não gostou nada da história e acabou rompendo
com seu parceiro. O disco de Carlinhos, Bossa Nova Carlos Lyra,
saiu com arranjos do maestro Carlos Monteiro de Souza, contracapa
com texto de Ary Barroso e canções como Rapaz de Bem (Johnny
Alf), Chora Tua Tristeza, Ciúme, Barquinho de Papel, Gosto de
Você, Quando Chegares e Maria Ninguém.
Bôscoli já havia marcado um segundo show para a
Faculdade de Arquitetura, no mesmo local onde acontecera o
primeiro. O nome do espetáculo seria A Noite do Amor, do Sorriso e
da Flor, com a prometida presença de João Gilberto, Vinícius de
Moraes, Os Cariocas, Johnny Alf e Norma Bengell. Por causa do
desentendimento com Bôscoli, a turma de Carlos Lyra resolveu
organizar outro show na mesma data, na PUC, contando também
naquela noite com as presenças de Juca Chaves e Alaíde Costa. O
show da Arquitetura foi infinitamente melhor: Johnny Alf compareceu
e tocou seus dois grandes sucessos da época, Rapaz de Bem e
Céu e Mar. Nervoso, o cantor e pianista precisou tomar um banho
gelado antes de entrar no palco. O sempre irreverente Luis Carlos
Vinhas entrou no palco de velocípede. Outros que se apresentaram
na mesma noite foram Nara Leão, Chico Feitosa, Claudete Soares,
Sérgio Ricardo, o conjunto de Roberto Menescal, Luizinho Eça e os
paulistas Pedrinho Mattar e Caetano Zama. Mas as duas grandes
atrações da noite foram João e Astrud Gilberto, que fecharam o
espetáculo. Ele cantou Samba de Uma Nota Só e O Pato e depois
acompanhou Astrud ao violão em Lamento e Brigas Nunca Mais,
ambas de Tom e Vinicius. O show foi encerrado com João ao violão
interpretando Meditação, de Tom e Newton Mendonça. Aquela foi a
primeira vez em que se reuniam tantos nomes importantes num só
espetáculo. Três dias depois do show na Arquitetura, a cantora
americana Lena Horne fez um show no Golden Room do
Copacabana Palace, no qual cantou Bim-bom em português. Outros
cantores americanos também começaram a descobrir a Bossa
Nova. Entre eles Sarah Vaughan, que viera ao Brasil pela primeira
vez no ano anterior, e Nat King Cole, que gravara duas das faixas
de seu disco latino com Sylvinha Telles. King Cole, inclusive, foi das
poucas pessoas que fizeram João Gilberto esperar. João, seu fã,
ficou algumas horas no corredor da Odeon esperando para ver o
ídolo. Nat saiu e passou por ele sem saber de quem se tratava. Mais
tarde, na casa de Tom Jobim, João comentaria: “Nat não é preto, é
azul.”
João Gilberto tornava-se cada vez mais perfeccionista.
Certa ocasião foi convidado a fazer uma apresentação no programa
Noite de Gala, que seria transmitido ao vivo do Tijuca Tênis Clube.
O estádio estava apinhado de gente, e quando João começou a
cantar “O pato... saiu cantando alegremente....”, todo o público
respondeu em coro: “qüém, qüém”, o que foi uma forma simpática
de participação no show. Insultadíssimo, João simplesmente se
calou, parou de tocar, disse baixinho ao microfone “eu não sou
Miltinho” e retirou-se. Até hoje ninguém sabe muito bem o motivo da
referência ao ex-crooner e pandeirista dos Anjos do Inferno, que
estava nas paradas de sucesso com o samba Mulher de 30.
A Bossa Nova logo se profissionalizou. O movimento
deixara de ser um episódio carioca e tomava conta das rádios e
televisões de todo o Brasil. Por todo o país violões começaram a ser
vendidos como nunca. Músicos e compositores começaram a
aparecer nas grandes e pequenas cidades, alegrando a música
brasileira com a mensagem do amor, do sorriso e da flor.
Em Belo Horizonte um grupo de rapazes e moças se
encontrava para um bate-papo nas horas de folga, entre um estudo
de Química e Física. Um violão ou piano quase sempre fazia parte
da conversa. A explosão da Bossa Nova estimulou o grupo, que
passou a cantar e tocar o novo som que vinha do Rio de Janeiro. De
vez em quando alguém aparecia assobiando música nova de sua
autoria. De repente surgiu a idéia de formar um conjunto próprio
para tocar suas composições. A coisa era fácil: todos tocavam um
ou mais instrumentos. O grupo, dai em diante, passou a reunir-se no
sítio do pai de Pacifico Mascarenhas, nas proximidades de Belo
Horizonte. Vai dia, vem noite, surgiu Sambacana, uma reunião
musical na base de samba e cana, na qual eram apresentadas para
os amigos as novas músicas. Os compositores e músicos do grupo
eram Pacifico Mascarenhas (Pouca Duração, Começou de
Brincadeira, Amor é Ilusão, Ônibus Colegial, Olhos Feiticeiros, Se
eu Tivesse Coragem, Mandrake), Roberto Guimarães (Amor
Certinho, Serenata Branca, Menina da Blusa Vermelha), Alceu
Tunes (Quantas Noites Ainda?, Estrada da Solidão), Gilberto
Mascarenhas (Rosinha, Explicação), Marcos de Castro, violonista e
arranjador do grupo, e Ubirajara Cabral, pianista e maestro do Coral
de Ouro Preto, apontado pelo jornal O Globo como o melhor
conjunto vocal do Brasil em 1962. Durante as madrugadas, saiam
eles de piano e violão, em cima de um caminhão, com o Coral de
Ouro Preto, fazendo serenatas pelas casas das namoradas até o dia
clarear. Nos antigos cenários mineiros, o som da Bossa Nova
encantava a todos.
Na Bahia, terra de João Gilberto, Carlos Coqueijo e
Alcivando Luz, também amigos do cantor, apresentavam o novo
som em suas casas e na casa de Nilde Almeida. Entusiásticos
shows ocorreram no Teatro Castro Alves e na boate do Hotel da
Bahia. Os músicos Perna Fróes, Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque,
Gecildo Caribé, Bira da Silva e Lula Nascimento esquentavam as
noites de Salvador. Não menos importante para o movimento, em
épocas diversas, foram os instrumentistas Genivaldo da Conceição,
Lindenberg Cardoso, Fernando Lona e Djalma Correa. A semente
plantada por João Gilberto mais tarde traria Gal Costa, Maria
Bethânia, Caetano e Gilberto Gil para a cena maior da música
brasileira. Euler Vidigal, no Maranhão, despontava como compositor
e reunia grupos de intelectuais, músicos e apreciadores para ouvir a
novidade. Também de Minas, a voz romântica do cantor Luiz
Cláudio veio para o Rio, trazendo mais qualidade ainda às
interpretações das novas músicas que eram produzidas em grande
quantidade. No Rio, locais como o Beco das Garrafas, na Rua
Duvivier, em Copacabana, tornaram-se pontos de encontro dos
músicos e amantes do jazz e da Bossa Nova. O nome do local
surgiu do hábito pouco educado que os moradores dos prédios
tinham, de jogar garrafas sobre os boêmios que perturbavam a paz
noturna, o que era freqüente. Ali, nas boates Bottle’s, Baccarat e
Little Club, os amantes do jazz, da Bossa Nova e das garrafas
promoviam memoráveis encontros musicais. O Little Club e o
Bottle’s pertenciam aos mesmos donos, Giovanni e Alberico
Campana, que estimulavam as apresentações de grupos de jazz e
Bossa Nova. Muita gente passou por lá neste inicio dos anos 60:
Paulo Moura, Juarez Araújo, Cipó, Aurino, Maciel, Luizinho Eça,
Luis Carlos Vinhas, Sérgio Mendes, Baden Powell, Tião Neto e
Chico Batera, entre muitos outros. O zum-zum, boate do compositor
Paulinho Soledade, e o Manhattan também abriram seus espaços
para a Bossa Nova. O homem de televisão Geraldo Casé,
responsável pelo que de melhor se fazia em shows de TV, abriu
uma casa noturna dedicada quase que exclusivamente aos
intérpretes da Bossa Nova. O local tinha o sugestivo nome de Rui
Bar Bossa.
Quando o disco de João Gilberto chegou a São Paulo, a
maior concentração de pontos de encontro do pessoal que curtia
jazz, MPB e música instrumental estava na Praça Roosevelt e seus
arredores. Com ramificações, por exemplo, para os lados da
Consolação, onde a boate Cave lançava cantores novos,
redescobria Aracy de Almeida ou Cyro Monteiro, e mais tarde
apresentaria pocket shows, alguns importados do Beco das
Garrafas. Neste mesmo rumo, chegava-se até a Rua Sete de Abril,
onde a Oásis ainda era ponto de referência nas colunas sociais, e
onde tocaram muitos dos músicos que viriam a se engajar na Bossa
Nova. Nessas duas casas noturnas é que havia sido lançada, com
grande sucesso, a cantora e compositora Maysa Monjardim. A
praça, hoje urbanizada com estacionamentos subterrâneos, túneis,
supermercado e outras construções, era então um espaço asfaltado,
onde durante o dia estacionava um mar de automóveis, à exceção
daqueles reservados à feira livre, ou dos fins de semana, quando lá
aconteciam simultaneamente vários jogos de futebol do tipo
“pelada”. Neste terreno atrás da igreja da Consolação funcionava
uma espécie de praia dos paulistas em pleno centro da cidade. À
noite, o pessoal a atravessava, com saudosas condições de
segurança, para se deslocar da Baiuca, onde tocavam, por exemplo,
os conjuntos de Pachá, Moacyr Peixoto, Luiz Loy ou do vibrafonista
Garoto, até o outro lado da praça, onde funcionou o Delval de Caco
Velho, o primeiro Stardust, onde Alan e Hugo tiveram como crooner,
por exemplo, Jane Moraes, e como tecladistas Hermeto Pascoal ou
Eli Arcoverde. Neste mesmo “outro lado da praça”, fizeram sucesso
o Bon Soir, onde pontificava Walter Santos, ou o Farney’s, que
depois virou Djalma, que depois tornou-se Zum-Zum e que também
entrou na onda dos shows de bolso. Também já faziam a noite
paulista Agostinho dos Santos, Maysa e Juca Chaves, que mais
tarde participariam dos primeiros espetáculos do gênero realizados
na cidade, como o denominado “Festival Nacional da Bossa Nova”,
promovido pelo então colunista social Ricardo Amaral, em abril de
1960, no Teatro Record.
Como no Rio, entre as gravações mais curtidas por certo
tipo de público que viria a se encantar com a nova Bossa Nova
estavam a versão cantada por Chet Baker, de My Funny Valentine e
o Cry Me a River, com Julie London acompanhada pelo guitarrista
Barney Kessel. Na imprensa e nas rádios, a repercussão dos
primeiros discos de Bossa Nova, particularmente o de João, foi
evidentemente de perplexidade, entusiasmo, e em alguns casos até
de indignação. No meio dessas polêmicas, pode-se discutir
precedências ou premonições, mas a verdade é que tiveram
imediata e entusiástica repercussão em colunas como as de
Armando Aflalo ou Adones Oliveira, assim como em programas de
disc-jóqueis como Fausto Canova, Henrique Lobo, Fausto Macedo
ou Walter Silva. Eram os críticos da época mais interessados na
então música moderna, em particular, na americana.
São desta época duas frases infelizes, não definitivamente
esclarecidas ou superadas, mesmo decorridos trinta e cinco anos, e
que são inevitavelmente lembradas por quem pretenda estender ao
campo da Bossa Nova o espírito de rivalidade entre paulistas e
cariocas. Uma delas, em sua versão mais suave, foi proferida logo
após quebrarem o disco 78 rpm de João Gilberto, e teria a forma de
uma pergunta: “Por que gravam cantores resfriados?”. Sua autoria
permanece em dúvida, variando do próprio diretor de vendas da
gravadora Odeon em São Paulo, até o gerente comercial das Lojas
Assunção, então a maior cadeia de eletrodomésticos e de discos do
país. A outra, de Vinícius de Moraes, chamava a cidade de “túmulo
do samba”, gerando enormes reações a ponto de, em janeiro de
1965, o poetinha ter escrito quatro crônicas para o Diário Carioca,
preocupado em esclarecer as circunstâncias nas quais teria sido
pronunciada. Segundo ele, o comentário fora endereçado a Johnny
Alf, para fazer desaforo a um grupo de grã-finos que estavam
bêbados, na boate Cave, e comentaram em voz alta que aquele
“cara” desafinava e “não tocava coisa com coisa”. Curiosamente, foi
nestes artigos, sob o título de SP não é mais o túmulo do samba,
que pela primeira vez ele fez referência a certo futuro parceiro,
“Chico (...) (filho de meu querido amigo o historiador e sociólogo
Sérgio Buarque de Holanda) cujos sambinhas são muito bons”.
Entre as respostas à ofensa do poeta, a de um grupo de artistas e
jornalistas paulistas, ou lá radicados, foi promover “reuniões de
bossa”, que aconteciam em residências como as do maestro Souza
Lima, de Renato Mendes ou de Maricene Costa, sempre aos
sábados à tarde. Faziam parte desta turma, entre outros, Theo de
Barros, Alaíde Costa, Claudete Soares, César Mariano, Walter
Wanderley, Yvette, Adones Oliveira, Alberto Helena Jr., Franco
Paulino, Luiz Vergueiro, Solano Ribeiro e Moracy do Val. Alguns
destes últimos, a partir de janeiro de 1963, passaram a produzir
“noites de Bossa”, às segundas-feiras no Teatro de Arena, porque
não dava mais para reunir em residências particulares todo o
público interessado em participar desses encontros. Mais tarde
ainda, os mesmos produtores promoveram espetáculos musicais no
Teatro Maria Della Costa, inclusive uma releitura de Orfeu do
Carnaval, que havia vencido em 1954 o concurso de textos teatrais
inéditos, por ocasião dos festejos do IV Centenário de São Paulo. O
papel principal coube a Agostinho dos Santos. Paralelamente aos
shows, de palco e de arena, e também aos espetáculos em
faculdades, que continuavam a mobilizar a geração mais jovem em
torno da nova música brasileira, um outro grupo, liderado por Marcio
Martins Moreira, mais tarde prestigiado publicitário nos Estados
Unidos, se apresentava na rede de teatros de bairro mantidas pela
Prefeitura. Eram shows à luz de velas, que reuniam, entre outros, os
compositores, cantores e violonistas Sérgio Augusto e Zelão, o
pianista Nelson Ayres e a cantora Sonia.
Entre essa fase, de shows na escala da casa noturna, do
auditório de universidade, dos teatros pequenos e médios, e a era
dos grandes espetáculos no Teatro Paramount e na TV Record,
merece citação especial O Fino da Bossa, que causou uma
mudança de rumo na forma, e talvez no conteúdo desses eventos.
Este foi realizado em maio de 1964 e teve seu título utilizado
posteriormente para um programa semanal de televisão, na Record,
estrelado por Elis Regina. O teatro, com capacidade da ordem de
1.800 espectadores sentados, ficava na contramão da
convencionada região musical da cidade, isto é, estava localizado
do lado contrário ao da Praça Roosevelt, no fim da Brigadeiro Luiz
Antonio, próximo à Praça da Sé e ao Largo de São Francisco. Era
proposta de seus organizadores, um grupo do Centro Acadêmico XI
de Agosto, liderado por Horácio Berlinck Neto e Eduardo Muylaert e
reunindo universitários de diferentes formações, realizá-lo em
padrões o mais que possível profissionais. Todos os artistas seriam
formalmente contratados, pois os organizadores eram todos
estudantes de Direito canções inéditas seriam incluídas, com
arranjos especiais, e o evento seria registrado em disco LP a ser
comercializado imediatamente após sua realização. A direção
musical coube a Oscar Castro Neves, também autor de Onde Está
Você?, em parceria com Luvercy Fiorini, que foi interpretada por
Alaíde Costa, acompanhada por um noneto, constituindo-se na faixa
principal do referido disco. As circunstâncias, inclusive o elenco, o
local e a expectativa criada levaram o grande teatro a ficar
superlotado, com o público excedente chegando a quebrar as portas
na tentativa de assistir o espetáculo. Participaram ainda o recém-
criado Zimbo Trio, Rosinha de Valença, Nara Leão, Jorge (então)
Ben, os trios de Sérgio Mendes e de Edson Machado, Wanda, Ana
Lúcia (estas duas, também acompanhadas pelo noneto de Oscar),
Paulinho Nogueira, Claudete Soares, Marcos Vale, Os Cariocas,
Geraldo Cunha, Luiz Henrique e Walter Wanderley, tendo o disco
encabeçado por alguns meses as listas de vendagem no país. A
partir dali, aquele espaço foi assumido como novo “templo da Bossa
em São Paulo”, mudada a escala desses eventos, alteradas as
relações entre artistas e promotores, e aberto novo mercado o dos
shows ao vivo para o grande mercado fonográfico. Toda uma série
de espetáculos seguiu-se ao Fino, comandados por Walter Silva, o
Pica-pau, responsável, entre outros, pelo Samba Novo, Mens Sana
in Corpore Samba, Bo-65, O Remédio é Bossa, Historinha, Primeira
Denti-Samba e outros, alguns registrados em disco com grande
sucesso, como o Dois na Bossa, que manteve por algum tempo o
recorde de vendagem de disco nacional.
Ampliava-se o sucesso da música popular do Brasil. Porém
essa nova escala tenderia a levar ao afastamento de alguns traços e
características fundamentais do movimento da Bossa Nova, entre os
quais o intimismo.
Como no Rio, as novidades da Bossa Nova eram
freqüentemente geradas e difundidas em casas e apartamentos de
universitários, gente da classe média, como Horácio Berlinck Neto e
João Evangelista Leão, nos Jardins; Caetano Zama, que morava na
região da Paulista, ou Ana Lúcia e Miúcha Buarque de Holanda, no
Pacaembu. A mansão dos Berlinck, na Rua Itália, contava com
todos os itens necessários a reuniões deste tipo — piano, bateria,
contrabaixo, violão. “Minha mãe, tia Helena, era um barato. Recebia
todo mundo, dava casa, comida e roupa lavada. Passei momentos
inesquecíveis ali”, recorda Horácio. Primo da cantora Wanda Sá,
volta e meia ele ia para o Rio, onde também participou de várias
reuniões nas casas de Nara Leão e de Chico Feitosa e Ronaldo
Bôscoli. Por volta de 1960, Horácio foi trabalhar como programador
musical na Rádio Eldorado. “Ali, a gente tinha um gosto musical
muito apurado”, afirma ele, que mais tarde coordenou o espetáculo
O Fino da Bossa, no Teatro Paramount. Foi um dos produtores de
Primeira Audição, no teatro do Colégio Rio Branco e na TV Record,
onde também participou da produção do programa de Elizeth
Cardoso (Bossaudade) e do de Elis Regina, zimbo Trio e Jair
Rodrigues, com o mesmo título daquele show do Paramount.
Quando Horácio deixou a emissora, o programa passou a chamar-
se simplesmente O fino....
João Evangelista era estudante da Escola Politécnica da
Universidade de São Paulo, onde foi diretor-cultural numa época em
que lá era freqüente a presença de artistas como Dick Farney,
Isaurinha Garcia, Vinícius, Paulinho Nogueira, Johnny Alf, Geraldo
Vandré ou Ana Lúcia. Foi durante cinco anos produtor do talk-show
de Silveira Sampaio, o mais importante da época, programa que
“batia papo com gente desde cangaceiro até astronauta, de travesti
a presidente, e com muitas personalidades da música. Naquele
tempo, a turma da bossa era uma fonte inesgotável...”. A casa de
Evangelista, na Rua Cuba, assim como seu sítio em Jundiaí eram
pontos de encontro de longas e animadas reuniões musicais,
principalmente durante a época dos musicais da Record, dos quais
participou, assim como Horácio Berlinck, da produção ao lado da
Equipe A (Tuta Carvalho, Nilton Travesso, Raul Duarte e Manoel
Carlos) e de Zuza Homem de Mello, que aliás era contrabaixista de
jazz durante os anos de início da Bossa Nova. Pesquisas de
repertório, ensaios, montagem de números especiais ou
garimpagem de novas músicas e músicos, tudo era pretexto para
que as casas de Leão e de Horácio estivessem sempre cheias de
gente, como os músicos do Zimbo, Elis, Cyro Monteiro, Alaíde,
Fernando Faro, Arley Pereira, Chico, Toquinho, os baianos e os
militantes da política universitária.
Já a mansão da família Zammataro, na Alameda Joaquim
Eugênio de Lima, perto da Avenida Paulista, era base para
encontros do pessoal da música e também do teatro paulista. Seu
filho mais velho, Caetano Zama, estudava na Faculdade de Direito
do Largo São Francisco e também na Escola de Arte Dramática
(EAD), de Alfredo Mesquita, além de compor, cantar e tocar violão,
tendo constituído com Agostinho dos Santos e Ana Lúcia o trio de
paulistas que participou do recital do Carnegie Hall. Sempre havia
disponível um quarto de hóspedes para albergar o pessoal bossa-
novista que vinha do Rio, como Sergio Ricardo ou Oscar Castro
Neves. João Gilberto era hóspede freqüente, mas preferia dormir na
sala. Foi lá que João mostrou, pela primeira vez em São Paulo, sua
interpretação de Insensatez. São muito lembradas até hoje as
reuniões de sábado à tarde e os reveillons dos Zama, onde
conviviam Agostinho dos Santos, Maysa, Flavio Rangel,
Gianfrancesco Guarnieri, Alaíde Costa e Mano Lima, Aracy
Balabanian, Juca de Oliveira, Vandré, Roberto Freire e muitos
outros. Psicanalista e professor da EAD, Freire foi o primeiro
parceiro de Caetano Zama (Mulher Passarinho, de 1958) e, anos
depois, mentor do grupo teatral da PUC que montou Morte e Vida
Severina, ganhando o Festival de Nancy de Teatro Universitário
(1966).
Ana Lúcia gravou seu primeiro disco nos primórdios do
movimento, com composições de Tom Jobim e arranjos de Guerra
Peixe. Lembra que seu primeiro contato com a Bossa Nova foi
através do disco Amor de Gente Moça, de Sylvinha Telles.
Encantada, resolveu tentar a carreira participando dos programas da
TV Tupi Almoço com as Estrelas e Clube dos Artistas, onde foi vista
por Agostinho dos Santos, que a estimulou a continuar cantando.
Seu apartamento na Rua Piauí, em Higienópolis, era outro ponto de
encontro da turma. Foi lá que aconteceu uma famosa história de
João Gilberto, quando ele, irritado com o relógio de parede que
cantava a toda hora, parou de tocar e só voltou ao violão depois que
pararam o funcionamento do cuco. Quanto à casa do professor
Sérgio e de Maria Amélia Buarque de Holanda, na Rua Buri, perto
do Estádio do Pacaembu, sempre foi local de encontro de
intelectuais, entre as estantes e livros que chegavam a ocupar até
trechos da escada. Quando começou o movimento da Bossa Nova,
Heloisa, (Miúcha), sua filha mais velha, tocava violão e cantava,
com repertório que ia desde Noel Rosa até Vinícius de Moraes e
Paulo Vanzolini, estes últimos freqüentadores assíduos da casa. Os
sucessos das músicas de Orfeu e de Canção do Amor Demais
haviam aumentado consideravelmente o prestígio de Vinícius junto
à turma de Miúcha, que já tinha o privilégio de conhecer em primeira
mão as composições de Vanzolini, também professor da USP,
diretor do Museu de Zoologia, grande contador de casos e autor de
excelentes sambas, na linha mais tradicional.
Em 1960, Miúcha participou, cantando e acompanhando-se
ao violão, de um espetáculo do Grupo Teatral Politécnico em
homenagem a Manuel Bandeira, amigo da família Buarque, que
havia quarenta anos não voltava a São Paulo, onde estudara na Poli
e fora sócio fundador do Centro Acadêmico. Por causa disso, foi
entrevistada na televisão, provocando forte reação de D. Maria
Amélia, que preferia ter os talentos dos filhos limitados às reuniões
da Rua Buri. Quem assistiu à cena, dificilmente acreditaria que,
alguns anos depois, a maioria deles estaria atuando
profissionalmente na televisão e no disco.
Em outubro de 1964 aconteceu a gravação, no Colégio Rio
Branco, do piloto do programa Primeira Audição, apresentado por
Elis Regina e Luiz Chaves, e produzido para a TV Record por
Horácio Berlinck Neto, João Evangelista Leão e Eduardo Muylaert.
Deste espetáculo participaram vários jovens artistas ainda pouco
conhecidos, como Chico Buarque, Yvette, Tuca, Toquinho, Nelson
Ayres, Taiguara, Luiz Roberto Oliveira, Adylson Godoy, Zelão,
Hamilson Godoy e outros.
A partir do show original, foram editados os três primeiros
programas de uma série que durou seis meses e serviu de embrião
para o programa O Fino da Bossa, com Elis Regina, Zimbo Trio e
Jair Rodrigues. O surgimento dessa nova fornada de músicos foi
saudado por alguns críticos, entre eles Moracy do Val ou Thomás
Souto Correa, como a “nova Bossa Nova”, e por outros como uma
primeira geração pós-bossa, por ela muito influenciada, porém sem
fortes compromissos com a mesma.
A cantora Yvette foi talvez quem permaneceu mais fiel à
Bossa Nova, embora não se tornasse suficientemente conhecida
fora de São Paulo. Revelada nos shows universitários, participou de
vários festivais, de espetáculos do Paramount e das reuniões de
Bossa, do grupo de Theo, César e Maricene. Trabalhou com Edu
Lobo, tanto em noitadas no Teatro de Arena como em seu programa
Edu Bem Acompanhado, na TV Tupi, produzido por Goulart de
Andrade. Foi a primeira intérprete de Preciso Aprender a Ser Só,
com arranjo de Oscar Castro Neves, num show do Arena, assim
como de várias outras composições de Marcos e Paulo César Valle.
Era presença permanente, ainda, em dois programas de TV,
também na Tupi, importantes não só por seu padrão musical, mas
também pela pesquisa de novos formatos para o musical de
televisão: Móbile e Poder jovem, ambos de responsabilidade de
Fernando Faro. Aliás, a essa altura não faltavam programas de
televisão nos quais a Bossa Nova predominasse, como o Gessy às
Nove e Meia, de Eduardo Moreira, o Musical Três Leões, de Walter
Arruda e Cecil Thiré, que chegou a apresentar várias vezes o
próprio João Gilberto como figura central, ou o Julio Rosemberg
Show, no qual a parte “um-banquinho-e-um violão”, cabia ao
compositor e violonista Sérgio Augusto.
Maricene Costa cantava na noite, acompanhada pelos
conjuntos mais modernos da época; participou dos circuitos e
espetáculos universitários e mais tarde foi para os Estados Unidos,
sob contrato com uma gravadora especializada em jazz. Foi
parceira de Vera Brasil, com quem chegou a ganhar o segundo
prêmio num festival da TV Excelsior. Sua casa foi uma das bases do
grupo de Bossa Nova de São Paulo que rebelou-se após a célebre
frase de Vinícius. Ela recorda, até hoje com saudades, os tempos
em que freqüentava a casa de Isaurinha Garcia e Walter Wanderley,
quando João Gilberto encantava a todos. “Cantar com ele foi um
grande aprendizado”, conta.
Não dá para falar da Bossa Nova paulista sem citar três
cantoras cariocas que marcaram o período com participações
importantes, em boates, teatros e discos: Alaíde Costa, Claudete
Soares e Marisa Gata Mansa.
Claudete cantava no início de carreira no Rio, no Hotel
Plaza, dividindo as atenções com Sylvinha Telles. Quando esta
casou-se com Candinho, deixou Claudete sozinha no Plaza. “Ali foi
o berço da Bossa Nova”, garante ela, que participou de vários
shows no Rio, inclusive na Faculdade de Arquitetura. “Ficava
enlouquecida, porque adorava esse tipo de música, mas tinha que
voltar para o estúdio da Rádio Nacional para gravar baião. Eu dizia
para mim mesma : não é isso o que eu quero. Quando Agostinho
dos Santos a viu cantando no Plaza, convenceu-a a ajudá-lo a “levar
esse movimento para São Paulo”. Começou na Baiuca, mas logo se
indispôs com o proprietário por motivos de repertório e passou a
cantar no Cambridge, de onde diz ter as melhores lembranças,
“porque lá o pessoal ia por causa da música, os freqüentadores
eram os próprios artistas”, segundo ela. Mas foi também musa do
João Sebastião Bar, onde era considerada a pocket singer dos
pocket shows. Foi no bar do Cambridge que formaram um quarteto
vocal — ela, Alaíde, Pedrinho Mattar e o contrabaixista Matias
Matos — a que denominaram Os Bossais, de início por brincadeira,
e mais tarde resultando num disco que tornou-se uma raridade para
os colecionadores. Já Alaíde Costa, que havia sido revelação do
ano no Rio, em 1957, e cooptada por João Gilberto para incluir três
músicas de Bossa Nova em seu primeiro LP, em 59, conquistou o
público paulista a partir do show Festival Nacional da Bossa Nova,
um ano depois, no Teatro Record. Em 62 casou-se com o radialista
Mano Lima e foi morar de vez em São Paulo, onde teve grandes
sucessos em boates, festivais e teatros, com alguns pontos altos
como o show O Fino da Bossa, do Paramount, e o recital Alaíde
Alaúde, no Teatro Municipal, sob a direção do maestro Diogo
Pacheco. Como compositora, Alaíde fez músicas e letras, inclusive
em parceria, entre outros, com Tom Jobim e Vinicius.
Quanto a Marisa, ou Gata Mansa, de origem no jazz, no
Rio de Janeiro, foi crooner do Copacabana Palace, intérprete
destacada do repertório de Dolores Duran, e estrela de shows do
Beco das Garrafas. Tendo casado com o pianista e arranjador César
Camargo Mariano, mudou-se para São Paulo, onde viveu durante
sete anos. No período teve algumas experiências teatrais, entre as
quais um musical com Lennie Dale e um espetáculo no Arena, com
Caetano Veloso e Taiguara.
Impõe-se pelo menos a citação de outras personalidades
femininas que tiveram passagem marcante naquela época, em São
Paulo, como a violonista e compositora Vera Brasil, autora de O
Menino Desce o Morro, gravação de sucesso de Geraldo Cunha, e
Tema do Boneco de Palha, e que participou de espetáculos com
Claudete, Pedrinho Mattar e conjunto no João Sebastião, ou a
cantora Marcia, que alcançava grande êxito no Estão Voltando as
Flores, inclusive apresentando interpretações novas de músicas de
Johnny Alf.
No segundo semestre de 59, ano do primeiro LP de João
Gilberto, Tom Jobim apresentava, na TV Paulista, o programa O
Bom Tom, no qual apresentava os principais nomes do movimento
carioca e abria oportunidades para autores e intérpretes da
Paulicéia.
Na mesma época, boates como Michel, Oásis e Baiuca
anunciavam novas programações baseadas no repertório e no estilo
da Bossa Nova. Na Cave, por exemplo, eram anunciados, além de
um cantor de rock, Ana Lúcia, Johnny Alf e trio e a participação
especial de Booker Pittman, que compunha à época, com Hector
Costita e Enrico Simonetti, um trio de ouro de músicos estrangeiros
radicados em São Paulo e que tiveram participação no movimento.
Em setembro de 1959, Vinícius de Moraes teve um encontro com os
alunos da Politécnica, superlotando o maior dos auditórios da
Faculdade e resultando numa crônica que tem sido incluída em suas
antologias. Mais até do que poesia, mulher e política, temas da
divulgação do evento entre os universitários, foi o novo movimento
musical que motivou maior número de perguntas e debates. O modo
diferente de João cantar e de tocar violão, o futuro da Bossa Nova
sendo perene ou um mero modismo, a possibilidade de Norma
Bengell ser enquadrada como cantora ou não, tudo sinalizava por
uma grande valorização do tema pela juventude de então. O evento
foi encerrado com o poeta tirando do bolso o manuscrito da letra de
uma música nova, que ele ainda não decorara e que cantou,
acompanhado por Caetano Zama, em dueto com Mariana Pôrto de
Aragão, uma “cantorinha promissora”, para quem ele previa uma
bela carreira na Bossa Nova. A canção era Samba em Prelúdio e
Mariana abandonou pouco depois a carreira, para casar-se com seu
empresário e dono da boate Cave, Jordão de Magalhães.
São Paulo sempre se caracterizou pelo alto nível de seus
instrumentistas, e o movimento da Bossa Nova trouxe no mínimo o
resgate do violão e a revalorização do trio piano / baixo / bateria.
Para não retroceder demais no tempo, pelo menos desde os áureos
tempos do Teatro Brasileiro de Comédia e da Cinematográfica Vera
Cruz, criadas por Franco Zampari, São Paulo passou a ter um local
onde praticava-se permanentemente o jazz e a música nacional por
ele influenciada. Essa base era o Nick Bar, de Joe Kantor, vizinho ao
TBC e ao qual havia acesso direto através da sala de espera do
teatro. Ponto de encontro de artistas, intelectuais e socialites, ali se
apresentaram os principais pianistas da década de 50 bastando
citar, por exemplo, Dick Farney, que inclusive gravou, em
homenagem a ele, uma depois célebre canção, de autoria de Garoto
e J. Vasconcelos. Vários foram os instrumentistas que se
destacaram durante o período de apogeu da Bossa Nova digamos,
de 1959 a 1964 a começar por Johnny Alf, que passara a viver em
São Paulo quatro anos antes, e que trabalhou em pelo menos uma
dezena de casas noturnas, entre as quais Cave, Baiuca, Michel e
Stardust. Em 61, quando voltou para o Rio de Janeiro, acabara de
gravar seu primeiro disco, que incluía Rapaz de Bem, Ilusão à Toa e
O Que é Amar.
Naquela época despontava no Rio de Janeiro uma das
mais importantes figuras da música brasileira: o violonista Baden
Powell. Antes mesmo de o movimento da Bossa Nova existir, Baden
já era um conceituadíssimo e exímio instrumentista. Seu violão
transcende a qualquer movimento musical, mas o advento da Bossa
Nova trouxe a Baden Powell a possibilidade de compor e tocar com
e para músicos de alta qualidade. Foi um dos grandes parceiros de
Vinícius de Moraes, com quem escreveu clássicos como Samba da
Benção, Pra Que Chorar, Formosa, Berimbau, Canto de Ossanha e
Apelo. Entre inúmeras outras canções, o grande violonista também
compôs Samba Triste, com Nilo Queiróz, Lapinha e Aviso aos
Navegantes com Paulo Cesar Pinheiro, Cidade Vazia e Feitinha Pro
Poeta com Lula Freire. Na gravação de um disco do compositor
francês Michel Legrand, uma certa faixa do disco Sérénades du
XXeme Siècle, a difícil peça He Antonio não era tocada pelos
violonistas espanhóis presentes à gravação, como Legrand queria.
“Chamem Baden Powell” sugeriu um músico da orquestra. Assim foi
feito e, uma vez no estúdio, Baden, de primeira, executou o tema
exatamente como havia sido escrito, superando mesmo as
expectativas do genial Michel Legrand. Depois de alguns anos
morando em Paris, Baden voltou para o Brasil. Retornando para
mais uma temporada morando na Europa, escolheu viver uns
tempos na Alemanha. Curiosamente, na cidade de Baden-Baden!
Em 1964, dois instrumentistas de grande prestígio e
vivência na música popular, particularmente em São Paulo, o
baixista Luiz Chaves e o baterista Rubens Barsotti, o Rubinho,
uniram-se ao pianista Hamilton Godoy para constituir o Zimbo Trio,
que chegou a completar trinta anos com a mesma formação,
dedicando-se a um repertório coerente, mantendo fidelidade a um
padrão musical que mostrou possuir público permanente e
chegando inclusive a criar uma escola (o CLAM) para a formação
musical e aperfeiçoamento de instrumentistas. Luiz Chaves, nascido
e criado em Belém do Pará, acredita que, antes do surgimento da
Bossa Nova, já existia um movimento nacional que buscava explorar
o bom gosto dentro da música brasileira. Filho de um violinista e
uma pianista, Luiz lembra que sua mãe, apesar da formação erudita,
mandava buscar álbuns de Fats Waller nos Estados Unidos. “Por
minha casa passaram os maiores nomes da música do Rio de
janeiro”, conta. Ele cita, entre outros, Orlando Silva, Os Anjos do
Inferno e Lúcio Alves. Enquanto as estrelas ensaiavam dentro de
sua casa, as pessoas se acotovelavam do lado de fora, para ouvir.
“E nós íamos aprendendo...”, confessa. O compositor Custódio
Mesquita foi, durante algum tempo, diretor artístico da PRC5,
Radioclube do Pará. “Meus pais faziam parte da orquestra e eu ia
sentar lá no banquinho para ver Custódio, um cara elegantíssimo,
fantástico”. Aos treze anos, Luiz Chaves fundou com o irmão
Sebastião, conhecido também como o contrabaixista Sabá — outro
nome indispensável em qualquer relação de músicos importantes na
história da Bossa Nova —, o conjunto Gaviões do Samba, inspirado
nos Cariocas. Mais tarde, na época do auge da Bossa Nova, Sabá
formou com o percussionista Toninho Pinheiro e com o pianista Cido
Bianchi o Jongo Trio, de grande êxito inclusive pelos arranjos
vocais, posteriormente sucedido pelo Som Três, então com César
Mariano ao piano. O baterista do zimbo, Rubinho, também cresceu
ouvindo música norte-americana, fez parte de vários conjuntos e
tocou em inúmeras casas noturnas. Participava intensamente de
gravações, na época em que surgiu a Bossa Nova — e ele cita,
como exemplo, os discos de Maysa e de Agostinho dos Santos —
graças às quais sustentava o curso de Direito na Universidade
Mackenzie. Segundo Rubinho, a Bossa Nova surgiu no Rio, “mas
quando chegou a São Paulo, todo mundo estava pronto para
participar e participou. Foi tudo muito natural e espontâneo”.
Quanto ao pianista do trio, Hamilton, músico de formação
preponderantemente erudita, conta que ele e seus irmãos, nascidos
e criados em Bauru, no interior de São Paulo, ouviam muita musica
em casa, já que seu pai adorava orquestras americanas, como as
de Glenn Miller e Tommy Dorsey. Dos artistas brasileiros preferiam
como exemplo Carlos Galhardo, Orlando Silva, Dick Farney e
Agostinho dos Santos. O programa da Rádio Eldorado Um Piano ao
Cair da Tarde era algo obrigatório para eles. Seus irmãos Adylson e
Hamilson vêm desenvolvendo suas carreiras profissionais, inclusive
como pianistas, confirmando e deixando claras as influências
reveladas por Hamilton.
No que se refere à Bossa Nova propriamente dita, o
pianista do Zimbo comenta que “a gente estava preparado para
ouvir um tipo de música e, quando o disco do João Gilberto
apareceu lá em casa, causou reações diferentes. Meu pai se irritava
com aquilo, enquanto a gente adorava”.
Entre a turma do violão, afinal o instrumento no qual se
baseou todo o movimento da Bossa Nova, Paulinho Nogueira foi um
dos primeiros a despontar. Em São Paulo desde 1952, pensava ser
desenhista publicitário, até que descobriu seu verdadeiro caminho e
foi trabalhar como violonista na boate Itapoã. Segundo diz, “a gente
estava sempre tocando nas casas noturnas, e só curtia mesmo a
música quando acabava a função; ai é que a coisa esquentava
Professor de violão, não apenas se apresentava nos espetáculos do
circuito universitário, como fazia “escada” para os artistas mais
jovens, quando necessário. Theo de Barros começou tocando jazz
na boate de jovem-guarda Lancaster, na Rua Augusta, alternando
com um conjunto de rock. Tocou em várias casas noturnas, como
Cambridge, Baiuca, João Sebastião e Ela, Cravo e Canela.
Participou do grupo, das reuniões e das noites de Bossa Nova, e
dirigiu Historinha, já na fase do Teatro Paramount, tendo preparado,
para este espetáculo arranjos que incluíam trompetes e violinos
para o conjunto de Erlon Chaves. O cantor, violonista e compositor
Sergio Augusto estudava Química Industrial e trabalhava na noite
para ajudar a custear os estudos. Freqüentador da turma carioca da
qual nasceu a Bossa Nova, seu estilo de tocar violão chamava a
atenção, assim como suas primeiras composições, dentre as quais
Barquinho Diferente, gravada por Claudete Soares, Milton Banana
Trio, Zimbo e outros. Fez parte do conjunto de Pedrinho Mattar
quando este se apresentava com Claudete, no Ela Cravo e Canela e
no João Sebastião Bar, tendo inclusive ali substituído Vera Brasil.
Sérgio Augusto participava do circuito universitário e se apresentava
no Le Barbare e no Estão Voltando as Flores. Segundo seu
depoimento, “inesquecíveis eram os fins de noite na boate Bon Soir,
quando todos os músicos deixavam seu trabalho e iam ouvir o
violão e as canções de Walter Santos, ídolo de todos nós naquela
época, sob cujo samba o sol nascia lá para os lados da antiga Praça
Roosevelt”.
Walter Santos, também baiano e também de Juazeiro, fez
parte do back vocal do disco pioneiro de Eliseth Cardoso, ao lado de
Tom Jobim e de João Gilberto, e foi presença do maior destaque
nos primeiros anos da Bossa Nova em São Paulo, assim como outro
conterrâneo, Geraldo Cunha, igualmente violonista, compositor e
cantor, que participou do show O Fino da Bossa, e chamava público
em inúmeras casas noturnas entre as quais o [e Barbare, o Jogral e,
anos depois, o tI Whisky.
Entre tantos outros, Edgard Gianullo sempre teve pendores
para os arranjos vocais, tendo liderado vários conjuntos com clara
influência do jazz e da Bossa Nova, o mais recente dos quais o
Quatro por Quatro. Participou da orquestra de Simonetti e
acompanhou inúmeros cantores da moderna música popular
brasileira. Apaixonado por música desde os 14 anos, em particular
dos Anjos do Inferno, a maior diversão de sua turma era fazer novos
arranjos para músicas antigas. “Aparecia até Carmen, de Bizet, em
ritmo de Bossa Nova”, comenta, citando inclusive que Vinicius e
Tom costumavam freqüentar as reuniões desse grupo em São
Paulo.
Mesmo polarizada pela velha Praça Roosevelt, a Bossa
Nova paulista a partir de 1961 passou a ter fora dela, não longe,
porém em duas direções opostas, as casas noturnas mais
marcantes em matéria de música popular brasileira, e de Bossa
Nova em particular. Para os lados da Vila Buarque, próximo ao
Mackenzie e à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, a FAU: uma
série de bares como o Le Barbare, o Manolo, o Ela, Cravo e Canela
e particularmente o João Sebastião Bar, na Major Sertório, dirigido
por Paulo Cotrim. Na Avenida Nove de Julho, não longe do
Anhangabaú, o bar do Hotel Claridge, que depois virou Cambridge
para aproveitar o maior número de letras quando teve de mudar o
nome. Cotrim havia sido diretor-artístico da boate Cave, numa
época, entre 59 e 60, com música de qualidade e shows de bolso
que tiveram grande sucesso. Era ligado aos movimentos de
juventude católica e dono de uma pensão de estudantes na Rua
Sabará, que era ponto de encontro de jovens lideranças intelectuais
e artísticas. Anos mais tarde transformou-se em prestigiado cronista
de assuntos gastronômicos. Sua proposta era a criação de um novo
espaço, especialmente projetado para ser uma casa de música, de
shows e de reunião, objetivo que alcançou, tornando-a no mínimo o
local mais badalado da cidade. Foram suas atrações, entre muitas
outras, Claudete Soares acompanhada por Pedrinho Mattar, com
Sérgio Augusto (violão), Azeitona (baixo) e Hamilton (bateria); o
Sambalanço Trio, do pianista César Camargo Mariano, Kleiber
(baixo) e Airto Moreira (bateria) Peri Ribeiro; o Sexteto Brasileiro de
Bossa Nova, liderado por Theo de Barros; e o Quarteto de Eli
Arcoverde. Foi lá, por exemplo, a primeira apresentação pública de
Gilberto Gil, então funcionário em São Paulo da Cia. Gessy-Lever.
Entre os locais eleitos pela Bossa Nova, o João Sebastião Bar era,
segundo a cantora Ana Lúcia, “uma Ipanema para os paulistas. Lá,
na mesma noite, podia-se encontrar Lennie Dale, Tonia Carrero,
Tarcisio Meira e Glória Menezes ou a Condessa Pereira Carneiro”.
Segundo ela, a maior atração da casa eram as “canjas”, além dos
dois ou três conjuntos contratados e uns quatro cantores. “O Jô
Soares, por exemplo, sempre aparecia para tocar bongô...” . Já a
história do Cambridge relataria principalmente as diferenças na
composição dos conjuntos que ali se apresentavam, num clima mais
calmo, para um público mais voltado à qualidade musical. Entre
outros, deve-se lembrar o conjunto de Manfredo Fest, com Matias
(baixo) e Heitor (bateria); o de Pedrinho Mattar, com Azeitona
(baixo), Toninho Pinheiro (bateria) e Papudinho (pistom)
acompanhando Claudete, e o da própria, acompanhada por Walter
Wanderley, no quarteto vocal que formaram com a participação de
Alaíde Costa.
Logo a Bossa Nova começou a ser exportada. A Odeon
lançou João Gilberto nos Estados Unidos através de uma montagem
de gravações intitulada Brazil’s Brilliant. Em 1961, houve no Teatro
Municipal do Rio um espetáculo de jazz com os músicos americanos
Coleman Hawkins, Curtis Fuller, Zoot Sims e Herbie Mann, entre
outros. Fascinados com as possibilidades infinitas de improviso da
Bossa Nova, eles voltaram para os Estados Unidos com algumas
músicas para serem gravadas.
O trompetista Alberto Castilho lembra que, em 1961, foi um
dos músicos convidados a tocar no primeiro festival de jazz da
América Latina, em Punta del Este, no Uruguai. O conjunto era
formado por ele, Juarez Araújo (sax tenor), Paulinho Ferreira (sax
barítono), Bill Horne (trompete) Pedro Paulo (contrabaixo), Sérgio
Mendes (piano), Tião Neto (contrabaixo) e Oswaldinho Oliveira
Castro (bateria). Participavam Argentina, Brasil, Uruguai e Chile.
“Até o conjunto argentino já tocava Bossa Nova”, lembra Alberto,
contando também que durante as apresentações do festival só se
tocava jazz, mas nas jam sessions que aconteciam depois, nos
bares de Ponta del Este, a Bossa Nova era o grande acontecimento.
O flautista americano Herbie Mann foi realmente o primeiro
músico estrangeiro a adotar a Bossa Nova como fonte musical. Em
Nova York convenceu o dono da gravadora Atlantic, Nesuhi Ertegun,
a vir com ele ao Brasil para ouvir a nova música que, segundo
Herbie, iria “incendiar o mundo”. Ertegun já conhecia Vinícius de
Moraes do tempo em que este servira no Consulado do Brasil em
Los Angeles. Ao saber que o poeta era um dos participantes do
movimento, e depois de ouvir Herbie Mann contar o que ouvira no
Brasil, não teve dúvidas. Desceu no Rio e logo na segunda noite
Lula Freire promoveu, a pedido de Herbie Mann, de quem já era
amigo, um jantar em sua casa com a presença da nata da Bossa
Nova. Chico Feitosa, Durval Ferreira, Menescal, Vinicius, Luizinho
Eça, Baden Powell, Tom e Sérgio Mendes tocaram para Nesuhi e
Herbie, que sacou da flauta e entrou direto no ritmo e no som da
Bossa Nova. Lá mesmo combinaram que antes de retornar para
Nova York deveriam gravar um disco do flautista com os músicos
brasileiros. O resultado foi a gravação do disco Do the Bossa Nova
com o americano e os músicos brasileiros Baden Powell, Gabriel,
Papão, Juquinha, Paulo Moura, Pedro Paulo, Sérgio Mendes, Durval
Ferreira, Otávio Bailly, Dou Um Romão e Luiz Carlos Vinhas. No
estúdio, Nesuhi Ertegun comandava a parte técnica e Tom Jobim
coordenava e dava sugestões sobre os arranjos. Não demorou
muito e começou uma migração de músicos americanos para o
Brasil em busca das composições de Bossa Nova. Paul Winter, Bud
Shank e Cannonball Adderley colocaram o Rio em seu roteiro. Nos
EUA o novo som do Brasil era o novo filão para gravadoras e
editores de música. Tudo era Bossa Nova. Até o que não era. O
violonista brasileiro Laurindo de Almeida, que residia há anos na
América e não tinha rigorosamente nada a ver com a Bossa Nova,
gravou um disco chamado Laurindo Almeida and the Bossa Nova all
Stars. Os músicos eram excelentes jazzistas como Howard Roberts,
Al Viola, Shelly Mane, Milt Holland, Chico Guerrero, Jimmy Rowles,
Max Bennett, Bob Cooper, Don Fagerquist e Justin Gordon, mas
quanto à Bossa Nova eram mais inocentes do que o próprio
Laurindo de Almeida. O músico David Pike, mais esperto, gravou
com os músicos Clark Terry e Kenny Burrell um disco com as
músicas do pianista e grande compositor João Donato, que também
morava na América. Donato voltou para o Brasil e foi imediatamente
agregado ao movimento, até porque havia sido um dos primeiros a
mudar o toque e as harmonias da música brasileira ainda no
começo dos anos 50.
A música de Tom Jobim rapidamente estourava na
América: Charlie Byrd e Dizzy Gillespie gravaram composições suas
e Stan Getz fez a famosa gravação de Desafinado, da qual vendeu
mais de um milhão de exemplares. Mas Tom Jobim só foi conhecer
os Estados Unidos quando embarcou junto com outros brasileiros
para o famoso concerto no Carnegie Hall, onde a Bossa Nova foi
oficialmente apresentada ao mundo.
Em setembro de 1962, a Bossa Nova conquistou
definitivamente seu lugar no mundo da música, no histórico
espetáculo apresentado no tradicional Carnegie Hall de Nova York.
Tudo começou quando Sidney Frey, presidente da gravadora
americana Audio Fidelity, resolveu convidar Tom Jobim e João
Gilberto para um show em Nova York. Frey, que já havia estado no
Brasil algumas vezes, passou um telegrama para a Divisão de
Difusão Cultural do Itamaraty cujo chefe era o conselheiro Mário
Dias Costa —demonstrando seu interesse e pedindo o apoio do
governo brasileiro. Na época a política cultural do Itamaraty estava
mais ligada à promoção de músicos, como Nelson Freire e Jacques
Klein, e acontecimentos como a Bienal de Veneza. Apesar disso,
Mário Dias Costa, amante da música brasileira e da cultura nacional,
achou que deveria conhecer a Bossa Nova mais de perto. Arnaldo
Carrilho, então terceiro-secretário da Divisão de Difusão Cultural,
encarregou-se de fazer o contato entre ele e Chico Feitosa, que por
sua vez levou o diplomata a uma reunião na casa de Nara Leão.
Dias Costa, encantado com o que viu e ouviu naquela noite,
resolveu que o grupo deveria participar do espetáculo em Nova
York, com eventual ajuda do Governo brasileiro através do Ministério
das Relações Exteriores. Com a autorização de seu chefe, o
ministro das Relações Exteriores Hermes Lima, e de seu superior
imediato, ministro Lauro Escorel, Mário Dias Costa resolveu usar a
verba disponível para eventos de difusão cultural e financiar as
passagens do grupo para Nova York. A hospedagem ficaria por
conta do Consulado do Brasil em Nova York, o que foi providenciado
pela cônsul-geral do Brasil Dora Vasconcellos, uma das mais
encantadoras e eficientes personalidades da diplomacia brasileira.
Chico Feitosa encarregou-se de elaborar a lista dos músicos que
iriam participar. A lista inicial, com 17 nomes, incluía Ronaldo
Bôscoli como apresentador do espetáculo. No entanto, Tom Jobim
sugeriu que, no lugar de Bôscoli, embarcasse Aloysio de Oliveira,
que já tinha morado nos EUA e tinha bons contatos e ótimas
relações por lá. Bôscoli acabou ficando no Rio.
A esta altura, Sidney Frey já havia convocado a imprensa
para uma entrevista coletiva, em que anunciou que alugara o
Carnegie Hall para um show de Bossa Nova, e que o Itamaraty
financiaria as passagens. Isto bastou para que dezenas de pessoas
batessem à porta de Dias Costa, garantindo serem integrantes
genuínos do movimento. Em São Paulo, um grupo se reuniu e
resolveu participar também, conseguindo suas passagens através
da gravadora RGE. Entre eles, os cantores Agostinho dos Santos,
Caetano Zama e Ana Lúcia.
Aloysio de Oliveira ficou preocupadíssimo com a
quantidade de músicos inexperientes (alguns sem terem mesmo
nada a ver com a Bossa Nova) que estavam prestes a embarcar
para a apresentação. Ele acreditava que a proposta inicial de Frey
era melhor: um show apenas com João Gilberto e Tom Jobim seria
mais do que suficiente para mostrar todo o valor da música
brasileira, sem correr o risco de um eventual fracasso na principal
casa de espetáculos americana, o que poderia comprometer a
intenção de apresentar a Bossa Nova como o que de melhor se
fazia em música fora dos EUA.
Com esta preocupação martelando sua cabeça, Aloysio
tentou suspender a ida do grupo: convocou uma reunião na casa de
Tom Jobim, à qual compareceram Carlos Lyra, João Gilberto,
Vinícius de Moraes e outros. Lá, Aloysio sugeriu que seria melhor
que todos desistissem do espetáculo, uma vez que o show poderia
transformar-se em uma grande bagunça. Carlos Lyra recorda que
Aloysio foi tão convincente em seus argumentos, que todos saíram
dali acreditando que seria mesmo melhor desistir da empreitada.
Mas Vinícius chamou Lyra num canto e disse: ”Parceirinho, não
deixa de ir não, porque Tomzinho e João vão”. “Na verdade o
Aloysio preferia que todo mundo desistisse para só irem ele, o Tom
e o João Gilberto”, conta Carlos Lyra, que imediatamente avisou
Menescal e os outros, que resolveram enfrentar o desafio. Dias
depois, embarcaram para Nova York, onde já estava o violonista
Luiz Bonfá, que já desfrutava de grande prestígio junto ao público e
aos músicos americanos.
No dia do embarque, criou-se um certo constrangimento
quando Aloysio entrou no avião: todos fizeram um silêncio mortal. O
produtor acabou sentando-se sozinho num canto, onde passou toda
a viagem. Na última hora, Tom Jobim, que detestava avião, não quis
embarcar naquele vôo, alegando que o motor do avião estava sujo,
e deixou para viajar no dia seguinte. Mas ele não perdeu muita
coisa: Caetano Zama não esquece o tomento que foi ouvir o cantor
Charles Aznavour, que também estava no avião, tocar cavaquinho
durante toda a viagem. “Ele não tocava nada. O João Gilberto
queria matar o cara, todo mundo queria jogá-lo pela janela. Mas o
Aznavour foi tocando daqui até lá”, lembra Zama.
A chegada aos Estados Unidos foi uma espécie de sonho.
Era outono em Nova York, com dias belíssimos e vários tons de
amarelo colorindo a cidade, coberta de folhas secas. Aquela
atmosfera inebriante contagiou a todos. “Parecia um daqueles
musicais da Metro”, lembra Carlos Lyra.
Tom Jobim deu um susto em Mário Dias Costa:
desapareceu no dia seguinte ao de sua chegada em Nova York.
Todos ficaram preocupadíssimos, até que alguém lembrou-se de
que ele tinha dito alguma coisa sobre ir à casa do saxofonista Gerry
Mulligan em New Jersey. Foram atrás dele e encontraram “Tom e
Gerry”, ao lado de uma pilha de latas de cerveja. Tinham passado a
tarde toda bebericando e tocando juntos.
Finalmente a grande noite chegou: no dia 21 de novembro
de 1962, a Bossa Nova subiu ao palco do Carnegie Hall.
Compareceram ao histórico espetáculo Luiz Bonfá, o conjunto de
Oscar Castro Neves, Agostinho dos Santos, Carlos Lyra, Sérgio
Mendes, Roberto Menescal, Chico Feitosa, Normando Santos,
Caetano Zama, Ana Lúcia, Cláudio Miranda, Milton Banana, Sérgio
Ricardo, Antonio Carlos Jobim e João Gilberto, além do violonista
Bola Sete, a cantora Carmen Costa, o ritmista José Paulo e o
pianista argentino Lalo Schiffrin.
Ninguém, nem mesmo o próprio Itamaraty, imaginaria que
aquele concerto pudesse superar o sucesso do samba de Carmen
Miranda, que chegara às telas de Hollywood nos anos 40. Cerca de
três mil pessoas lotaram o Carnegie Hall e outras mil ficaram do
lado de fora. Na platéia estavam nomes como Tony Bennett, Peggy
Lee, Dizzy Gillespie (este na primeira fila), Miles Davis, Gerry
Mulligan, Erroll Garner e Herbie Mann, entre muitos outros ilustres
representantes da música americana. O master of ceremonies, o
famoso crítico de jazz Leonard Feather, fez uma introdução
explicando o que era a Bossa Nova. O Sexteto de Sérgio Mendes,
por sugestão de Lula Freire batizado como Bossa Rio (o nome
original do grupo era Samba Rio), abriu o espetáculo e sua
interpretação foi aplaudidíssima. Anos depois, Mário Dias Costa
confessou que chegou a chorar quando o grupo tocou Samba de
Uma Nota Só, com arranjo de Paulo Moura.
Alguns jornais publicaram a notícia de que o concerto havia
sido um fracasso. Realmente, o sistema de amplificação não era
dos melhores, chegando a pifar quando Normando cantava sua
música. Boa parte do público que estava nos balcões e galerias não
ouviu direito o concerto, o que prejudicou a qualidade de audição do
espetáculo, mas sem dúvida foi a partir dali que João Gilberto, Tom
Jobim e Carlos Lyra, entre outros, deslancharam suas carreiras
internacionais, e foi também a partir dali que a Bossa Nova
conquistou definitivamente o mundo.
O comportamento artístico de alguns participantes do show
sofreu algumas críticas dos próprios companheiros de espetáculo,
que não entenderam os passos de dança ensaiados por Caetano
Zama, os malabarismos do violonista Bola Sete e a presença da
cantora Carmem Costa, que a rigor nada tinha a ver com a Bossa
Nova.
No meio disso tudo, Carlinhos Lyra quase apanhou de um
guarda americano, porque estava fumando bem embaixo de um
aviso de No Smoking, quando foi alertado por Tom Jobim, que o fez
apagar o cigarro alegando que nos EUA Lyra poderia ir parar na
cadeira elétrica por infringir a lei. No meio do espetáculo, que durou
quase três horas, o Sindicato dos Trabalhadores em Teatro de Nova
York ameaçou apagar todas as luzes, pois já tinham estourado sua
carga horária de trabalho. A cônsul Dora Vasconcellos teve que usar
de toda a sua diplomacia para conseguir que eles continuassem a
trabalhar.
Apesar de todos estes contratempos, quem estava
presente ao espetáculo pôde presenciar momentos inesquecíveis.
Tom Jobim foi muito aplaudido em Samba de Uma Nota Só, mesmo
tendo errado a letra. Apesar do nervosismo, ele teve grande
presença de espírito ao parar de tocar para recomeçar. “Just a
second”, disse Tom para então recomeçar com brilhantismo. Depois
cantou Corcovado. Sob aplausos, Tom Jobim saiu do palco e logo
depois voltou para dizer: “It’s my first time in New York and I’m very,
very, very glad to be here. I’m loving the people, the town,
everything. I’m very happy to be with you.
João Gilberto, na última hora, implicou com o vinco de sua
calça. Chamou o conselheiro Mário Dias Costa e explicou-lhe que o
vinco não estava paralelo à costura, o que prejudicaria sua
apresentação e conseqüentemente poderia comprometer a imagem
da música brasileira no exterior. Apavorado, Mário Dias Costa pediu
socorro à cônsul Dora Vasconcellos, que localizou a costureira do
teatro para conseguir um ferro de passar. Até hoje algumas pessoas
garantem que a própria Dora passou a calça de João, enquanto ele
esperava tranqüilamente, de meias e cueca.
João entrou no palco com um violão emprestado por Billy
Blanco. Ele aguardou o silêncio e cantou Samba da Minha Terra
com Milton Banana na bateria e emendou com Corcovado e
Desafinado, com Tom Jobim ao piano. Levou o Carnegie Hall ao
delírio. Os aplausos não eram à toa: somente naquele ano,
Desafinado tivera onze gravações nos Estados Unidos, uma delas a
de um milhão de discos vendidos, com Stan Getz e Charlie Byrd.
Outro ponto alto do espetáculo foi a apresentação de Luiz
Bonfá ao violão e Agostinho dos Santos cantando Manhã de
Carnaval. Bonfá lembra que Agostinho, muito nervoso, abordou-o
pouco antes do show começar: “Bonfá, você vai tocar Manhã de
Carnaval”? Bonfá confirmou. “Posso cantar com você?”, pediu
Agostinho. Bonfá, muito sem jeito, disse que não, já que o que
estava combinado era que ele faria apenas um solo com o violão, e
não queria se indispor com Sidney Frey. Agostinho não desistiu:
“não tem importância, você modula que depois eu entro..” . Depois
de muita insistência, Bonfá cedeu: combinaram que ele faria
primeiro uma introdução instrumental e depois anunciaria Agostinho.
Mas quando o violonista começou a tocar, os aplausos abafaram o
som. Agostinho, achando que já era sua hora, entrou. E acabou
cantando desde o início, exatamente como queria. O Carnegie Hall
aplaudiu de pé e cravos vermelhos foram atirados no palco.
Nos dias seguintes, alguns inimigos da Bossa Nova na
imprensa brasileira noticiaram com fartura o “fracasso histórico” do
show. A mentira e o exagero causaram uma repercussão tão
negativa, que Mário Dias Costa foi chamado pelo ministro das
Relações Exteriores para explicar o que havia se passado. No
entanto, o show havia sido filmado por uma equipe de TV
americana. Dora Vasconcellos comprou o filme por 450 dólares e
mandou-o para o Brasil na bagagem do radialista Walter Silva, o
famoso Pica-pau. As TVs Continental e Tupi encarregaram-se de
exibi-lo, e a verdade veio à tona: o que se via era algo bem diferente
do que a imprensa noticiara. Mostrava, por exemplo, a platéia
aplaudindo entusiasticamente Tom, João, Bonfá, Agostinho dos
Santos e os demais participantes do show.
Logo depois do concerto no Carnegie Hall, vários
brasileiros fecharam contratos para continuar por lá. João Gilberto
assinou um contrato de três semanas com a boate Blue Angel e
outro com a gravadora Verve para gravar um disco. Tom Jobim foi
contratado como arranjador pela Leeds Corporation. O conjunto de
Oscar Castro Neves foi para o Empire Room do Waldorf Astoria.
Chico Feitosa foi convidado por Mel Tormé para assistir ao
seu espetáculo em New Jersey. Após a apresentação, no camarim,
Chico ficou tocando suas músicas durante uma hora para Mel
Tormé, enquanto ele tirava a maquiagem. Tormé resolveu: “Quero
gravar todas. Vamos nos encontrar na casa do Nesuhi Ertegun em
Nova York depois de amanhã, para acertar tudo.” Chico voltou para
Nova York, caiu no redemoinho das festas para a Bossa Nova,
esqueceu de Mel Tormé e voltou para o Brasil sem voltar a ligar para
o grande cantor.
Duas semanas depois do Carnegie Hall, aconteceu um
novo show da Bossa Nova nos Estados Unidos — que muita gente,
como o próprio Carlos Lyra, garante ter sido o “verdadeiro” — no
George Washington Auditorium, em Washington. Dele participaram
Tom Jobim, João Gilberto, Carlos Lyra, Roberto Menescal, o Sexteto
Sérgio Mendes, Sérgio Ricardo, o quarteto de Oscar Castro Neves,
Luiz Bonfá, Agostinho dos Santos e Milton Banana. O grupo fechou
sua apresentação em Washington, sendo recebido na Casa Branca.
Tom Jobim ficou em Nova York por nove meses, período
em que foi considerado o melhor arranjador musical pela National
Academy of Recording Arts and Sciences, da qual recebeu seu
primeiro troféu internacional. O prêmio foi concedido por causa dos
arranjos do disco de João Gilberto que a Odeon havia enviado para
os Estados Unidos. Em maio de 1963 Tom gravou Antonio Carlos
Jobim —The Composer of Desafinado Plays, com 12 músicas suas,
entre elas Garota de Ipanema, que em breve seria o maior sucesso
da Bossa Nova e da música brasileira no exterior.
No final daquele ano também chegaria às lojas o disco
Getz/Gilberto — Featuring Antonio Carlos Jobim, que em menos de
um ano vendeu mais de dois milhões de exemplares. O principal
êxito do disco foi The Girl from Ipanema, interpretada por Astrud
Gilberto. Getz e Gilberto se conheceram poucos dias depois do
concerto no Carnegie Hall, num encontro do qual também
participaram Tom Jobim e o produtor Creed Taylor, dono da Verve. A
gravação do disco foi uma novela: João e Getz brigavam feitos cão
e gato, o primeiro criticando a altura do sax do segundo, que por sua
vez brigava com a voz sussurrada de João. Mesmo assim, as oito
faixas foram gravadas em apenas dois dias e o LP estourou nas
paradas, conquistando vários prêmios Grammy.
Carlos Lyra também ficou algum tempo nos Estados
Unidos, acompanhando o grupo de Stan Getz. “Ajudou muito o fato
do Getz ser um músico ligado à Bossa Nova. Ele queria um
elemento brasileiro que cantasse acompanhado pelo conjunto dele”,
conta. Lyra cantava somente suas canções e era acompanhado por
músicos da melhor qualidade: Getz no sax, Gary Burton no
vibrafone e Chick Corea no piano. Juntos, apresentaram-se nos
Estados Unidos, Japão, Europa, México, Canadá e até no Brasil.
Quando se separou do grupo, Lyra continuou sua carreira no
exterior por conta própria. O Carnegie Hall havia enfim provado que
o evento tinha sido um sucesso na vida dos compositores e na vida
da própria Bossa Nova.
4.

Aquele foi um momento que não vai se repetir nunca mais em


nenhum lugar do mundo.

EDU LOBO

Apesar das críticas negativas ao show no Carnegie Hall, a


Bossa Nova no Brasil estava mais forte do que nunca no início dos
anos 60. Incansáveis, os músicos não paravam de compor e novas
parcerias surgiam da noite para o dia. Foi assim com Baden Powell
e Vinícius de Moraes. Apresentado a Baden pelo empresário Nilo
Queiroz, aluno do violonista, os dois acabaram passando três
meses trancados na casa de Vinícius, onde beberam dezenas de
garrafas de uísque e criaram 25 canções, entre elas Berimbau e
Canto de Ossanha.
Em 1962, mesmo ano do Carnegie Hall, Tom Jobim,
Vinicius de Moraes e João Gilberto finalmente se reuniram para um
espetáculo juntos. O antológico O encontro teve lugar na boate Au
Bon Gourmet, em Copacabana. A temporada, prevista para um
mês, acabou sendo prorrogada por mais duas semanas, tal foi o
sucesso. Aquela foi a primeira vez que “o poetinha” cantou em
público, e também foi a primeira vez que Garota de Ipanema foi
apresentada num espetáculo. A música, que se tornaria um dos
hinos da Bossa Nova em todo o mundo, foi composta por Tom
alguns meses antes do espetáculo no Carnegie Hall, e Vinícius
colocou a letra mais tarde, inspirado pela famosa garota que eles
viram passar da varanda do Veloso, em Ipanema. Helô Pinheiro
tinha apenas 15 anos na época, e costumava passar pela Rua
Montenegro, atual Rua Vinicius de Moraes, a caminho do mar.
Na mesma época, João Gilberto lançou seu terceiro disco,
que levava apenas seu nome, viajando em seguida para os EUA,
onde passaria alguns anos sem gravar e até mesmo sem voltar ao
Brasil. Entre 1963 e 1969, João Gilberto apresentou-se em várias
cidades dos EUA, Canadá e Europa, conquistando para sempre
suas platéias. Em 1965, já separado de Astrud, conheceria em Paris
sua segunda mulher, Miúcha Buarque de Holanda.
Aloysio de Oliveira resolveu sair da Odeon e, em 1963,
criou sua própria gravadora, a Elenco, que se tornou um reduto da
Bossa Nova. Entre os nomes que faziam parte de seu cast, estavam
Sylvinha Telles (então casada com o produtor), Dick Farney, Lúcio
Alves, João Donato, Sérgio Mendes, Baden Powell, Roberto
Menescal, Billy Blanco, Vinícius de Moraes e Nara Leão, entre
outros. As capas dos discos, sempre brancas e com fotos de Chico
Pereira, tornaram-se uma marca registrada da gravadora.
Um personagem que marcou época na Bossa Nova foi o
bailarino Lennie Dale. Ele chegou ao Brasil trazido por Carlos
Machado para coreografar o show Elas Atacam pelo Telefone.
Encantado com o Rio, Lennie foi ficando e se enturmou com os
músicos do Beco das Garrafas, conseguindo convencê-los da
importância dos ensaios para uma melhor performance profissional.
Antes disso, a improvisação costumava comandar os espetáculos.
Lennie chegou inclusive a estrelar um espetáculo antológico, em
que cantava O Pato com seu forte sotaque, segurando uma fruteira
com um pato de verdade dentro. E foi Lennie também que resolveu
inventar passos de dança para a Bossa Nova, já que na época
qualquer novo ritmo musical sempre era associado a uma dança
específica.
Neste inicio dos anos 60, já começava a se formar a
segunda geração dos compositores da Bossa Nova, da qual fizeram
parte, entre outros, Marcos Valle, Edu Lobo, Francis Hime,
Pingarilho e Antonio Adolfo. Mais tarde, ainda sob a influência do
primeiro grupo, apareceram Milton Nascimento, Chico Buarque e
Toquinho.
A cantora Elis Regina chegou ao Rio, vinda de Porto
Alegre, em março de 1964, aos 19 anos. Ela já havia gravado três
LPs na capital gaúcha: Viva a Brotolândia (1961), Poema (1962) e O
Bem do Amor (1963), nos quais demonstrava a influência de sua
maior admiração, Ângela Maria. Miéle e Bôscoli criaram para ela um
pocket show no Little Club, do qual também participavam o conjunto
Copa Trio, do baterista Dom Um, a bailarina Marly Tavares e o
pandeirista Gaguinho. Lennie Dale encarregou-se de ensaiar a
“baixinha”: foi dele a idéia de rodopiar os braços feitos moinhos de
vento, o que valeu a Elis o bem-humorado apelido de “Hélice”
Regina.
Marcos Valle conta que a música sempre esteve presente
em sua vida. “Estudei música clássica durante 13 anos, e meu
interesse por música brasileira começou muito cedo, ainda criança”,
lembra ele, que, em 58, quando surgiu Chega de Saudade, ainda
era um adolescente de 15 anos e só tocava nas festinhas dos
amigos. Através da cantora Tita, Marcos foi apresentado a Johnny
Alf. “Ele achou que eu tinha talento e começou a freqüentar a minha
casa e me estimulava muito”, lembra Marcos. Mas sua atividade
musical só começou a crescer quando reencontrou Edu Lobo, seu
amigo de infância do Colégio Santo Inácio, dentro de um ônibus.
Edu comentou que estava tocando violão e que sempre se reunia
com Dori Caymmi, filho de Dorival. Entusiasmado, Marcos resolveu
se juntar aos dois e em breve eles formariam um trio vocal, com Edu
e Dori nos violões e Marcos no piano. Edu Lobo frisa que, nesta
época, nenhum deles pensava em música como uma profissão. “Eu
já estava programado para estudar Direito e seguir carreira
diplomática”, conta Edu, filho do jornalista e compositor Fernando
Lobo. Mesmo assim, começaram a freqüentar as reuniões da Bossa
Nova. Marcos Valle lembra da primeira vez em que esteve na casa
de Ary Barroso: “estava todo mundo lá, Vinícius, Carlos Lyra, Baden
Powell. Eles eram meus ídolos e de repente eu estava ali, no meio
deles”. Numa outra reunião, esta na casa de Vinícius, Marcos
reencontrou Lula Freire, amigo de infância de seu irmão Paulo
Sérgio. Quando, já no fim da noite, Marcos pegou o violão, Lula
imediatamente convidou-o para ir no dia seguinte à sua casa para
apresentá-lo aos músicos do Tamba Trio de Luizinho Eça. Marcos
foi, mostrou algumas de suas primeiras composições, Sonho de
Maria, Amor de Nada, Razão do Amor e Vem o Sol, e Luizinho, que
já estava com disco praticamente pronto, resolveu voltar ao estúdio
para gravar uma das canções de Marcos, que mais o havia
encantado: Sonho de Maria. Nesse mesmo dia Marcos foi
apresentado a Carlos Lyra, Roberto Menescal, Luis Carlos Vinhas e
Chico Feitosa. Menescal acabou levando-o aos Cariocas, que
gravaram Vamos Amar, parceria com Edu Lobo, e Amor de Nada.
No ano seguinte Marcos foi chamado para um teste na Odeon,
gravadora na qual acabou ficando por 12 anos. Seu primeiro disco,
Marcos Valle Samba Demais, foi lançado em 1964.
Edu Lobo lembra que aquela época foi muito especial, e
que talvez nunca mais se repita em nenhum lugar do mundo.
“Bastava você trabalhar muito para que as coisas acontecessem”,
conta Edu. A história de sua parceria com Vinícius é um exemplo.
Edu Lobo conheceu Vinícius de Moraes numa festa na casa de
Olivia Hime, em Petrópolis. “Ela me ligou no final da tarde e disse
para eu ir até lá, porque o Vinícius também estava indo. Eu nunca
tinha visto o Vinícius antes, a não ser em shows, e fui correndo”,
lembra. Na festa, Edu pegou o violão e começou a tocar algumas
músicas. Vinicius, interessado, perguntou se ele não teria uma
música nova, ainda sem letra. Edu tinha. Mostrou a música e
Vinícius perguntou se poderia fazer a letra. “Dormi aquela noite sem
acreditar e no dia seguinte, quando eu acordei, era parceiro do
Vinícius de Moraes! Esse tipo de coisa não acontece em lugar
nenhum do mundo. Se um grande letrista americano, por exemplo,
encontrar um jovem compositor, antes de começar a parceria ele no
mínimo vai ligar para o advogado”, garante Edu. A musica em
questão era Só Me Fez Bem. “Isso foi mais que um prêmio, mais
que qualquer empurrão”, lembra Edu, que ainda nesta época não
pretendia seguir carreira musical. “Eu fazia música como quem pega
onda, era uma coisa da geração. Inclusive muita gente que tocava
bem na época, hoje em dia faz outra coisa”, diz. Edu atualmente
acha inacreditável a facilidade que se tinha de entrar nas casas de
pessoas públicas como Vinícius e Tom Jobim. “A gente ficava só
olhando enquanto eles trabalhavam. Na casa do Tom, eu tocava a
campainha e entrava, a Teresa trazia um cafezinho e eu ficava ali,
feliz da vida, só ouvindo. E eles deixavam. Era como se fosse uma
escola”, garante.
Musicalmente, no entanto, tanto Edu Lobo quanto Marcos
Valle já começavam a trilhar seus próprios caminhos. Apesar da
influência explícita da Bossa Nova, a inovação chegava através da
versatilidade em termos de ritmo e principalmente nas letras, que
começaram a apresentar mais temas políticos, deixando de lado a
máxima “amor, sorriso e flor” da primeira geração da Bossa Nova.
Marcos Valle, um dos primeiros surfistas cariocas, que freqüentava
o Arpoador com seu pranchão, chegou a compor várias canções
ligadas ao mar. O clima para músicas de fundo social começou a
crescer no meio artístico como uma forma de protesto contra o
sistema político vigente. Várias canções foram censuradas, e outras
tiveram frases mutiladas, o que só serviu para aumentar mais ainda
a curiosidade e o prestigio das mesmas.
Ainda em 1963, após muito hesitar, Nara Leão aceitou o
convite de Carlos Lyra e Vinícius para estrelar a comédia musical
Pobre Menina Rica, no Au Bon Gourmet. Entre as canções do
espetáculo, todas compostas pela dupla, estavam Samba do
Carioca, Sabe você?, Pau de Arara, Maria Moita e Primavera. A
temporada, de apenas três semanas, foi um sucesso. Nara havia
começado um namoro com o cineasta Ruy Guerra, também letrista
e parceiro de Edu Lobo. Carlos Lyra, na época, estava mergulhado
em pesquisas sobre a música dos velhos sambistas do morro, como
Cartola, Nélson Cavaquinho e Zé Kéti, tentando inclusive compor
com alguns deles.
Nara, entusiasmada com a idéia, resolveu gravar algumas
composições dos sambistas. O disco Nara, lançado pela Elenco em
1963, reunia composições como Diz Que Vou Por Aí, de Zé Keti, O
Sol Nascerá, de Cartola e Elton Medeiros, e Luz Negra, de Nelson
Cavaquinho, além de Feio Não é Bonito e Maria Moita, de Lyra,
Berimbau e Consolação, de Baden e Vinícius, Nanã, de Moacyr
Santos, e Canção da Terra e Réquiem Para Um Amor, de Edu Lobo
e Ruy Guerra. Quando o disco saiu, Nara foi ferozmente atacada
por alguns críticos, mas seu novo estilo acabou agradando. Em
janeiro de 1964 ela fez uma temporada no Bottle’s, e poucos meses
depois partiu para o Japão com o trio de Sérgio Mendes, Tião Neto
e Edison Machado. Quando voltou ao Brasil, Nara assinou com a
Philips para gravar o antológico Opinião. No repertório, Derradeira
Primavera, de Tom e Vinícius, Em tempo de Adeus, de Edu Lobo e
Ruy Guerra, Opinião e Acender as Velas, de Zé Kéti, entre outras
composições que iam de Baden e Vinícius a capoeiras do folclore
baiano. Nara estava fugindo de Ipanema, e o disco causou enorme
polêmica, tendo sido considerado na época totalmente anti-Bossa-
Nova. Logo ela estrearia o show Opinião, de Oduvaldo Viana Filho,
Armando Costa e Paulo Pontes, dirigido por Augusto Boal e
acompanhada por Zé Keti e João do Vale, no Teatro de Arena da
Rua Siqueira Campos, em Copacabana. O espetáculo, em toda a
sua temporada teve grande sucesso. E Nara passaria a ser a musa
de outro movimento: o protesto da nova geração universitária.
Nesta época começaram a surgir os festivais da canção,
que permitiam uma maior liberdade de composição. A partir de
1966, vários festivais começaram a acontecer nas emissoras
Excelsior, Tupi e Record.
Em 1966, Tom Jobim, já de volta ao Brasil após todo o
sucesso no exterior, estava tomando tranqüilamente seu chope no
bar Veloso, em Ipanema. O telefone do bar tocou. Tom foi chamado
e do outro lado da linha estava ninguém menos que Frank Sinatra,
diretamente dos Estados Unidos, convidando-o para gravarem
juntos um disco. Foi um encontro de gênios. O LP, chamado Francis
Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim, foi escolhido por
unanimidade pela crítica especializada dos Estados Unidos como o
álbum vocal do ano. Em 1967, o disco só perdeu em vendagem
para os Beatles, que haviam acabado de lançar Sgt. Pepper’s
Lonely Hearts Club Band.
Mais tarde, já em 1968, Marcos Valle estourou em todas as
paradas com a Viola Enluarada. E é ele quem conta como compôs a
música: “Eu estava nos Estados Unidos, em 1967, participando de
espetáculos e programas de televisão. E aquela saudade batendo.
Fui gravar um disco em Nova York com arranjos do Eumir Deodato.
Saudoso demais do Brasil, um dia entrei no banho e me veio,
embaixo d’água, a melodia completa de Viola Enluarada na cabeça.
Foi um ato de saudade, por isso ela é tão brasileira e tão triste
também. Quando voltei ao Brasil, conheci o Milton Nascimento.
Promoveram um encontro na casa do Tom para a gente se
conhecer. Ele era meu fã, e eu dele. Neste encontro, toquei Viola
Enluarada ainda sem letra. Todos adoraram a música e inclusive me
disseram que deveria ser gravada sem letra. Mas eu preferi pedir ao
Paulo Sérgio para fazer a letra. Quando ele me mostrou, fiquei um
pouco na dúvida se a letra deveria ser aquela mesma, mas acabei
concordando, e realmente o conjunto de letra e música deu super
certo.”
Marcos lembra que, antes de ser sucesso de público e
disco, Viola Enluarada já era sucesso no meio artístico e era item
obrigatório nas rodas de violão e nos shows. No espetáculo do
Quarteto em Cy, por exemplo, Juscelino Kubitschek em pessoa
levantou-se e cantou a plenos pulmões o refrão “Liberdade”. Logo
Marcos Valle convidou Milton Nascimento para gravar a música, que
rapidamente estouraria nas paradas.
Mais ou menos na mesma época, Marcos Valle foi
convidado para participar do programa Almoço com as Estrelas,
comandado por Aerton Perlingeiro na TV Tupi. A idéia do programa
era reunir algumas pessoas de destaque no meio artístico para um
almoço na frente das câmeras, onde se conversava sobre diversos
assuntos. Marcos seria agraciado com o prêmio Velho Capitão, uma
estatueta com a imagem de Assis Chateaubriand, dono dos Diários
Associados e da TV Tupi. “Eu resolvi convidar o meu irmão Paulo
Sérgio, já que ele era meu parceiro. O Paulo Sérgio se sentou num
canto da mesa, meio escondido, e ficou observando tudo. Quando o
Aerton anunciou o prêmio, eu comecei a agradecer e disse que
também queria oferecer o prêmio ao meu irmão. Quando eu falei
isso, o Paulo Sérgio já se levantou. Mas antes que ele chegasse
perto, o Perlingeiro disse: ‘De jeito nenhum!’ Ficou aquele clima, o
Paulo Sérgio já voltou pro lugar dele, e o Perlingeiro continuou: ‘Não
senhor, o prêmio é seu. Quando o seu irmão merecer um, ele vai
ganhar!’ Depois a gente chorava de rir e até hoje eu não sei se o
Aerton viu que o Paulo Sérgio estava ali”, lembra Marcos.
Poucos anos depois, o Brasil veria o surgimento de outro
movimento importante: o Tropicalismo dos baianos Caetano, Gil &
Cia. Mas a verdade é que nunca um movimento musical influenciou
tantos músicos em tantas partes do mundo como a Bossa Nova.
5.

Em qualquer lugar civilizado do mundo, você sempre ouvirá duas


coisas: Frank Sinatra e as músicas de Antonio Carlos Jobim.

SAMMY CAHN

Era incontestável que a música brasileira havia mudado, e


para muito melhor. O respeito com que os compositores e músicos
brasileiros começaram a ser tratados no exterior era a prova do
sucesso absoluto da Bossa Nova, O mercado internacional abria-se
para o grupo de jovens amadores e seus seguidores, que haviam
conquistado pela primeira vez um lugar de destaque para a música
brasileira, livre de sotaques, batucadas e cachos de bananas. Em
curto espaço de tempo, Antonio Carlos Jobim já era conhecido e
consagrado como um dos maiores compositores do mundo. A
gravação do seu disco com Frank Sinatra cantando suas músicas e
músicas americanas no embalo da Bossa Nova era o
reconhecimento da definitiva influência da moderna música
brasileira. O violonista Baden Powell foi morar em Paris, e tanto na
França como na Alemanha gravou inúmeros discos. O violonista
pernambucano Cussy de Almeida morava em Genebra, Suíça, e
chegou a ser o 1º violino da orquestra Suisse Romande. Voltando
ao Brasil encantou-se pela Bossa Nova. Viajava freqüentemente ao
Rio de Janeiro, onde conheceu diversos personagens da Bossa
Nova, terminando por gravar um belíssimo disco (O Mergulhador) de
violino e violão com Candinho.
Também para Paris mudou-se o violonista e cantor
Normando. Carlinhos Lyra foi para os Estados Unidos e México,
onde viveu e trabalhou com grande prestigio. O pianista e
compositor Eumir Deodato radicou-se em Nova York, onde ganhou
diversos prêmios e discos de ouro, sendo considerado um dos
maiores arranjadores pelos músicos americanos. Sérgio Mendes, há
anos com o seu espetacular som característico, já é uma instituição
no cenário da música internacional. João Gilberto transformou-se no
símbolo e no padrão de qualidade de interpretação que a música
pode oferecer. Astrud mora na Philadelphia e será sempre a suave
“Garota de Ipanema”. Edu Lobo, Dori Caymmi e Marcos Valle
deixaram a marca de sua presença em todos os locais em que a
Bossa Nova é ouvida. Vinícius de Moraes, o poeta dos poetas,
correu mundo contando e cantando sua poesia, e por algum tempo
chegou a morar na Itália, onde fez enorme sucesso. Oscar Castro
Neves fixou residência em Los Angeles como notável arranjador e
instrumentista. Roberto Menescal, dono de uma obra que é parte
fundamental do acervo da Bossa Nova, fez diversos shows pelo
mundo, e além da música tornou-se um dos maiores experts em
bromélias no Brasil. Moacyr Santos e Don Salvador fizeram da
América sua opção de vida e trabalho. A batida do violão e dos
ritmistas Juquinha, Hélcio Milito, João Palma, Milton Banana,
Paulinho Magalhães, Chico Batera, Edson Machado, Toninho
Pinheiro, Ronnie Mesquita, Paulinho Braga, Ruben Bassini e Dom
Um Romão, abriu no exterior o caminho para que os percussionistas
de vários países acompanhassem a Bossa Nova, que saiu das
noites de Copacabana e Ipanema para as luzes internacionais. De
um cantinho e um violão, para as grandes platéias e orquestras do
mundo. E 40 anos depois do seu nascimento, a riqueza, a
suavidade e o encanto da Bossa Nova não se encontrou nada que a
superasse.
Bossa Nova é como aquelas casas sólidas, que se faziam
antigamente com materiais de primeira qualidade, casas que duram
eternamente.

MARCOS VALLE
AGRADECIMENTOS

Agradecimentos muito especiais a todos os que cederam fotos e


gravações de seus acervos para a edição deste livro e do CD.
Amylton Godoy
Candinho
Carlinhos Lyra
Carlos Alberto Pingarilho
Chico Feitosa
Chico Pereira
Durval Ferreira
Edu Lobo
Fernando Lobo
Gera Ido Casé
João Evangelista Leão
Jorge Karam
Luiz Bonfá
Lula Freire
Manuel Gusmão
Marcos Valle
Maria Helena Toledo
Mário Lima
Marly Tavares
Pacifico Mascarenhas
Roberto Menescal
Sergio Augusto
Tião Neto
BIBLIOGRAFIA

CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa Nova e outras bossas.


Rio de janeiro, Perspectiva, 1968.

CASTRO, Ruy. Chega de saudade. São Paulo, Companhia das


Letras, 1990.

CHEDIAK, Almir. Songbook Carlos Lyra. Rio de Janeiro, Lumiar,


1994.

CHEDIAK, Almir Songbook Tom Jobim. Rio de Janeiro, Lumiar,


1990.

CHEDIAK, Almir. Songbook Vinícius de Moraes. Riu de Janeiro,


Lumiar, 1993.

MACIEL, Luiz Carlos; CHAVES, Angela. Eles e eu — Memórias de


Ronaldo Bôscoli. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1994.

RICARDO, Sérgio. Quem quebrou meu violão. Rio de Janeiro,


Record, 1991.
Este livro foi composto em desktop
publishing em Optima Regular e Huxley
Vertical e impresso nas cores preto e
azul Pantone 295 C em papel Couché
Reflex Matte 120g/m2 no mês de
novembro de 1995.

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