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Falar sobre a origem do blues é traçar uma linha do tempo cujo início é a primeira década do
século passado e que desemboca até os dias de hoje, dando origem a frutos díspares como
o rock e o rap. A imagem é gasta, mas é como se o blues fosse uma grande árvore cujos inú-
meros galhos, ramos e folhas fossem as mais variadas possibilidades estéticas, todas elas
altamente derivativas, originadas de uma mesma base composta por tronco e raízes.
É também razoável, e talvez seja ainda mais adequado, interpretar o blues como uma lingua-
gem e uma gramática própria. Nesse sentido, poderia ser tomado como o latim e, mais uma
vez, gêneros como o rock e o rap como línguas neolatinas (português, espanhol, francês etc.).
Aqui é possível juntar as duas metáforas: a botânica e a linguística. Isto é, se o blues é uma
árvore, certamente é uma espécie nativa, endêmica aos EUA. E, se o blues é uma lingua-
gem, é preciso afirmar também, logo de cara, que se trata de uma linguagem tipicamente
norte-americana. O blues é um universo em expansão e fornece uma métrica estética que
pauta não apenas a música, em suas mais variadas formas, como também, de um modo
ainda mais amplo e geral, o cinema, a literatura e a cultura norte-americanos. Em 1917
Marie Cahill, uma atriz musical daquele país, cantou: “The blues ain’t nothing but a good
man feeling bad”. Ainda que de fato o blues tenha sido ao longo do tempo associado a um
canto de lamento e de sofrimento, na verdade não faltam exemplos de canções cômicas
e, digamos assim, festeiras.
Ainda em 1912 ocorre o que a maior parte dos historiadores tende a estabelecer como o
marco do nascimento e da primeira explosão de popularidade do blues: é o momento no
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qual a canção “Memphis Blues”, de W.C. Handy — ao lado de duas outras (“Dallas Blues” e
“Baby Seal Blues”) —, causou comoção nacional. W.C. Handy era um professor de música e
compositor que morava em Memphis, Tennessee. “Memphis Blues” havia sido criada a partir
de antigas canções que ele havia escutado na região do Delta do Mississipi. Já a melodia
chegou até os ouvidos de James Reese Europe, um famoso bandleader nova-iorquino, que na
época era empregado dos instrutores de dança mais famosos nos EUA: Vernon e Irene Castle.
Ocorre que os Castle desempenhariam um papel importante na divulgação do blues ao usar a
canção como acompanhamento do aprendizado do passo da moda de então: o fox-trot.
Compreender a origem do blues passa por olhar a tradição de canções populares que per-
meia toda a experiência cultural afro-americana. E por canções populares eu me refiro às
músicas cantadas pelos negros no Sul dos EUA, de modo não profissional, apenas por prazer
e junto apenas de colegas, familiares e vizinhos. A maior parte dos elementos que são hoje
em dia associados ao blues pode ser retraçada desde a África Ocidental. A verdade é que rit-
mos e técnicas instrumentais típicos dessa região foram adaptados pelos negros do Sul dos
EUA. O blues, por exemplo, possui em sua estrutura formal algo conhecido como “chamada e
resposta” — isto é, enquanto o cantor lança uma determinada linha/verso, as pessoas ao seu
redor reforçam o verso ou, ainda, respondem com um verso complementar. Usando um exem-
plo familiar à experiência brasileira, é algo próximo ao que conhecemos como “partido alto”.
O blues, organizado a partir dessa estrutura de “chamada e resposta”, adaptou-se aos tra-
balhos escravos nas plantações dos EUA e posteriormente ao trabalho nas ferrovias e aos
ofícios dos marinheiros. Além disso, havia as formas de improvisos vocais conhecidas como
hollers e moans (“gritos” e “gemidos”, respectivamente). Para compreender a dinâmica
dos hollers basta pensar em um canto no qual o sujeito meio que “geme” ou balbucia a
melodia, enquanto improvisa e cita e rememora trechos de letras, de melodias, pedaços
de salmos, histórias profanas, causos e reflexões sobre os seus sentimentos. Um dos
hollers mais ar-quetípicos foi o preservado pelo folclorista Alan Lomax e intitulado
“Tangle Eye Blues”, um lamento de um detento da Penitenciária Estadual do Mississipi,
Walter “Tangle Eye” Jack-son, gravado em 1947: “Well, it must have been the devil that foo-
ooled me he-ee-ere, Hey-ey, hey, hey-ey.”
Aqui, aliás, um ponto importante e interessante de notar é que a música negra nos EUA
sempre borrou os limites entre o sagrado e o profano. Ou, dito ainda de outra forma, sempre
houve um grande conjunto de interseção entre esses universos: o religioso e o secular. A in-
fluência invariavelmente foi recíproca, bidirecional. Se por um lado era corriqueiro identificar
harmonias europeias e, com alguma frequência, uma linguagem que lembrava o inglês da Bí-
blia do rei Jaime, por outro lado essas influências invariavelmente estavam a serviço de uma
estética, de uma imaginação e de uma sensibilidade artística inegavelmente afro-americana.
Ao mesmo tempo que técnicas, estratégias retóricas e mesmo uma determinada concepção
de arte eram aprendidas na igreja, tudo isso passava, de um jeito ou de outro, pelo filtro da
rua e das encruzilhadas.
O blues sempre foi um guarda-chuva temático bem grande, a ponto de abrigar desde uma
murder ballad, escrita em primeira pessoa, na qual uma prostituta descreve com detalhes
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gráficos como havia cortado a garganta de seu cafetão abusivo; até canções solenes, pra-
ticamente indistintas de salmos religiosos. Ma Rainey, uma das primeiras intérpretes a po-
pularizar o gênero, cantava sobre uma personagem com um passado de abusos e violência
doméstica nas mãos de um homem que “taken all my money, blacken both of my eyes, give
it to another woman, come home and tell me lies”. A mesma Ma Rainey cantava também, em
chave positiva, afirmativa e alegre, a cultura lésbica: “Went out last night with a crowd of my
friends /They must’ve been women, ‘cause I don’t like no men.”
Gabriel Trigueiro
é doutor em História Comparada pela UFRJ
e colunista da Revista Época.
Ouça as
músicas
citadas.
https://open.spotify.com/
playlist/3ZehZxlL3opYuTIpNCrUxV
?si=Fw9_YTZxSYe3cv_ox4OqWQ