Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Os Autores
Esce livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor.
Inclui referências.
ISBN: 978-85-7041 •489·2
coo: 781.7
CDU: 781. 7(81)
Elaborada pela CCQC- Central de Controle de Qualidade da Catalogação da Bíblioreca Universitária · UFMG
EDJ10RA UPMG
Av. Amõnio Carlos, 6627 - Ala dlreica da Biblioteca Central - térreo
Campus PampuJha • 31270-901 • Belo Horizonte/MG
Tel.: (31) 3409-4650 Fax: (31) 3409-4768
www.ediLora.ufmg.br
edilora@ufmg,br
115
indo da üngua falada à alimentação, à religião, ao equipamento
domêsti'co. passando pelos universos gerais da adaptação ao meio
ambiente e da genética e por muitos e muitos outros domitli0s?
Segunda: qual o sentido da falta de congru~ncia entre esse
pensamento - o pensamento musical brasileiro. linear. por ·assim
dízer - e o respectivo pensamento social. erguido com base no
triângulo, conforme a clássica análise de DaMatta {1981 )?
Última pergunta: por que, afinal, esses dois sistemas de
pensamento sobre o .Brasil - o musical e o social - não parecem
levar muito a sério um ao outro, dando as costas à sua falta de con-
gruência? Será que simplesmente o pensamento soç:ial brasileiro
"não entende nada de música··. curiosa frase feita do saber viso-
verbal sobre o musical? Poderá .s er que o pensamento musical
brasileiro não ouve~ ou seja. "entende'', "compreende" - um palmo
adiante de suas próprias orelhas, condenação da estética kantiana à
música, pura sensoriwidade da mais baixa hierarquia no siscema
das Belas Arces, ele mesmo baixo com relação aos saberes de outras
estirpes: científicos. filosóficos?
Pretendo, no presente ensaio; retomar essas questões que
tanto me vêm ocupando há muitos anos. Entendo que e1as têm uma
grande relevância. que extravasa os limites musicológicos para
atingir o universo das relações das musicologias com as ciências
hw11anas e, dai, o próp~io cerne destas.3
Problematizar a música de um estado-nação moderno como
o Brasil - tanto quanto a de um grupo étnico. uma camada ou
classe social, umà cívfüzação (como a ocidental. por exemplo) - é
questiotiar a sua essência e o seu projeto. A música - este discurso
profético (Atta1i. 1977) - é um sistema absolutamente fundamental
na direç-ão do diseernimento da fronteira e da margem, dó de.ntró e
do fora de todà e qualquer formação social. Assim pensando, filió-
me à linhagem de Max Weber, quando ·ele - tanto na É.tica (1967)
como em Economia e socie.dade (1944) - vai buscar na música a
distinção niais .fina do Ocidente com relação ao mundo oriental e a
todos os outros mundos ("primüivos''). Filio-me também, assim
pensando - isto é, constituindo ·a música como um sis.tema de
· 116
interesse decjsivo para a compreensão da "dlstintiVldade'' do
"mesmo" com relação ao "outro"-, ao pensamento ameríndio (re-
firo-me ao cia!;i terras baixas da América do $u1). que r.amo recorre à
música (como à dança e à festa) para a eonstrução e o reconhe-
cimento da.identidade,
A primeira partê dd título deste texto "O Íridio na Música
Brasileira" é o título, ele mesmo, de um célebre ensaio de Luciano
Gallet, de 1928, publicado postumamente em 1934 - juntamente
com outros escritos seus -, por Már'io de Andrade na coletânea
Estudos de folclore. (GalÍet. 1934). Entre esses escritos - intro-
duzidos por Andrade -, háum outro ensaio tg.ualmeme célebre çie
Gallet, intitulado O negro na müsica brasilé:ira. também de 1928. Fói
fundamentalmente através desses dois textos que Gallet pôde
formular ·seu pensamento sobre a música brasileira. Sugiro.que este
pensamento está na base do que acima chamei de pensamento
musical brasileiro, encontrando na obra de Mário de Andrade -
tipicamente através do Ensaio sobre a müsica brasile-ira (1962) e dos
textos publicados entre 1936 e t 941 e reunidos nos Aspectos da
música brqsileira (1965), mas de maneira geral em grande parte de
sua obra monumental - seu momento de cristalização c0mo para-
di.gma sobre a questão das origens da música brasileira.4
O pensamento de Gallet - rapidamente resumindo-o -
aponta que a músita brasileira formou-se a partir do ·universo
meló~co e harmônico português e do mundo rítmico africano
(petguntar-se-ia: não tem, a "música afrícana". melodia e harmonia?
E a "portuguesa", é ela sem ritmo?). Não há lugar aqui para o
"indi9", senão atravé:5 de uma vaga. maneira .de expressão, que
Gallet ancora na psicologia racial. (sto. devido ao fato de que os
sistemas musicais indígenas seriam muito diferentes do (e, entã0,
incompatíveis com) portugués,. não tendo então vingado como el~-
mentos para a mistura nem resiStido:à paidéia Jesuítica (perguntar-
se-ia agora: os sistemas musicais africanos - imagine-se. por
exemplo, os de configuração Bamu e lorubá, tão presentes no Brasil
- são semelhantes e, então, compatíveis, com o europeu?).
Observe-se que grande parre dos cronistas coloniais - com as
c.onhecidâs magistrais exçeçôes (de um Léry. por exemplo) ~
117
simplesmente recusa-se a empregar a palavra indo-européia
"música'' para indicar aqueles por eles assim chamados "grunhi-
dos··. "zoadas", "sons gururais", "gncos", ··zumbidos•· etc. A incom-
patibilidade detectada por Gallet parece estar assentada. assim,
numa visão por parte do não-índio, do encontro entre índios e
brancos de acordo com a qual a aplicabilidade da própria palavra
"música" - e, é claro, de seu conceito-valor - é problemática
Retomando rninha reflexão sobre a obra de Gallet, cujo
título, como disse, é o mesmo do da primeira parte do pr~sente
texto: é bom lembrar que estamos em fins dos anos 20, começo dos
30, período tão decisivo para a história moderna do Brasil. parti-
cularmente para a de sua música. Então, a música gue Gallet ali
chama de "música brasileira" é eonheclda G:ômo "músie::a popular"
rio sentjdo de que, a partir de pouco tem,po depois até hoje, será
conhecido entre nós e na grande maioria dos países (mas, não. na
ltáJ~a,_por exem~lo) _pelo rótul~ ~e "música ~lcl~rica·~ Essa_en2ão
"musica popular ·. uda como np1cameme ruràl mclwa pro)eçoes
urbanas do ripo que hoje levariam a etiqueta de "música popular".
Mas tanto Gallet quanto Andrade (e toda a plêiade de pensadores de
seu círculo) somente admitiam referidas projeções como efeti-
vamente "popularey" para as espécies de música que eles ava'"
liavam como de "õoa qualidade'' e "autênticas". isto pór oposição
àquelas que eles reuniam sob o rótulo depreciativo de "música
popularesca··, vistas por e1es como dlabolícamente "comerciais".5
As fontes utilizadas por Gallet, no sentido de sua com-
preensão do uníverso indígena no Brasil - sua música espe·
cialmente - , inclui autores clássicos como Gabrlel Soares de Sóuza,
Jean de Lêry - autor, segundo C901ey (1997: 6), da primeira
documentação de índole etnomusicológica feita no mundo -,
Pernão Cardim, Spix e Martius, Sílvio Romero e Roquete Pinto -
autor de gravações fonográficas up to dat? na época, de múska dos
índios paresí -, e outros. Note-se, assim. que ele empregava as
melhores e mais adequadas fontes disponíveis em sua época para
ab-ordar 0 referido ui;frverso, delas fazendo uso extremamente
cuidadoso. Não se trata, portanto - o nosso autor-. de alguém que
formulava idéias simplesmente desconexas e idiossincráticas, como
· 11 8
uma cerra visão onipotence do presente sobre o passado poderia
supor. Não, Galler era um intelectual s(>lido. apesar de ainda jovem
(em 1928, Linha .33 anos) e da vída meteórica (faleceu em 1931. aos
36 anos).
Finalmente. vale registrar que a ciência de GalleL, sua
musicologia - como ocorreu também nos começos da musicologia
na Alemanha (Menezes Bastos, 1995) -, é uma ciência interessada.
Interessada na arte. leia-se música. Ela é feita como base para seu
trabalho de compositor (repetindo o que uma vez já disse: os artistas
sempre acharam a ciência algo de muito sério para ser deixada nas
mãos e-ão-somente dos cientistas). Como Mário de Andrade registra.
porém, em sua introdução aos escritos de Gallet. este compositor
desgraçadamente morreu cedo. pouco concretizando, assim, as pro-
messas que tanta pesquisa e investigação nele potencializavam,
Na rradiçâo brasileira - refiro-me às ideologias de estado
(colonial e nacional), o que não exclui a agência da sociedade na
mesma direção-. os seres índio, branco e negro se desenharam de
maneira altamente diferenciada. Quanto ao índio, seu ser supõe a
idéia ou de uma pureza protoúpica. congelada noi:empo. ou de uma
completa provisoriedade na direção do apagamento étnico no caso
de sua inserç~o no processo de contato com o mundo dos brancos.
Noce~se comiessa maneira de abordar o índio no Brasil o vê sempre
como "parte" de nosso país e, não, "em situação~ nele. como aponta
Peirano (1992: 73).ó
No primeiro caso. relativo ao que chamei de pureza proto•
típica. o estado brasileiro - bem como seu antecessor colonial-
ponuguês. a este respeito conrinuo com relação ao nacional-
brasileiro - elabora a idéia do indígena no país enquanto um
absolutamente irreal e uniforme "índio puro" - paradisíaco ou
diabólico -. isolado. atrasado, distante da "civilização': Observe-se
como aqui o peso da categoria "indio" é imenso. monolitizando
uma diversidade sociocultural de grande magnitude.
Escudos recenles arqueológicos, no entanto, apontam para
as terras baixas da América do Sul, ao tempo da chegada aqui dos
colonizadores europeus, como um grande universo relacional.
119
extremamente diverso e no qual não parecia haver lugar para iso-
lamento. Universo este densamente populoso, onde. além da exis-
tência de b.anctos e tribos igualitários. a aparição do estàdo -
através dos cacicados amazônicos (chefaturas hierárquicas), simi-
lares aos estados clássicos do mar Egeu e do vale do lndo, segundo
Roosevelt (1992, 1998) e outros (Roosevelt. 1994) - é um dado
básico. Há rei, há lei, há igreja aqui, sim, embora de naturezas, sem
dúvida, diferentes das correspondentes européias do séc.ulo XVI.
Tombém, segundo essa arqueologia recente. os índios rupinambá e
guarani - ocupantes da larga fai,xa do litotal brasileiro e os indí-
genas modelares da literatura quinhentista e seiscentista -
parecem constituir, no século XVl. o resultado de um longo processo
de expansão territorial {de cerca de 3.000 anos) de duas grandes
configurações estatais emergentes tupi-guarani. com orígem no
Amazonas (Noelli et at. , 1996, Rack~nb.efger et ai., 1998). O que do
"índio puro" aqui. então, uniforme, atrasado. isolado?
No segundo caso, quando o estado brasileiro - e (foi ó que
sugeri) a sociedade que lhe âãsusten.to e consentini.erttó - constitui
o indio em contato com a ~civilizi1ção'' sob o prisma de uma com-
pleta provisoriedade na direção do apagamento étnico, o sistema de
pensamento que as ideologias de estado operar.:n se fecha, cla-
rq.1nente evidenciando seu interesse: quando o índio deixa de ser
"puro", •'isolado", ele simplesmente deixa de ser "índio". assrm
devendo liberar as terras respectivas para a ocuP.,ação colonial ou
nacional. As políticas coloníais de aldeamento ou naçionais de
reservamento apontam nessa direção. Recorde-se. aliás, como o
nome original do Serviço de Proteção aos índios (o célebre SPI),
tu.lidado no começo do século XX muito em função do labor e da
luta de um alemã,o "indigenizado" (CunNimuendaju). eraSPILTN. as
ultimas iniciais da sigla devendo ser lidas: ··e Localização de
Trabalhadores Nacionais".
A teoria da cuJt.u ra em que se apóia essa forma d.e pensar e
agir-- onde o contato é sempre, tipicamente para o índio, o veículo
de uma contaminação absolutamente l~tal - não parece se adequar
ao pensamento indígena. ele mesmo. e a utnà antropologia 9ue se
· 120
interessa em dar e::onta da visã0 indígena do mundo. mundq este,.
aliás. onde o contâto deve ser visto como fenômeno antes ti pico q_ue
especial. Pergunto: por que nas célebres missões jesuíticas os
Guarani simplesmente nãe fugiam. quando se sabe que em cada
uma delas havia. tipicamente, dóis ou três p·adres e cerca de 8.000
índios? Por que os Guarani ção-sornente nãp trucidava111 esses
padres, fugindo para o mato? Porque desejavam o contato. membros
que são de sociedades onde a construção do ''mesmo" mais
essencialmente. interior só pode ser conquistada através da aliança
- regulada ou forçada - com o "oucro", exterior. O que, agora.
então, do indio que simplesmente se derrete co1no sorvece no
contato coma "civilização", isto como se-a "que-ntura·· desta - para
recordar Lévi-Strauss - sempre inviabili2asse a "frieza" modelar do
indio?
É minha opinião que as narrativas de Gallet (e Andrade)
sobre as origens "da música brasileira" - narrativas esras que
prímam em esquecer a contribuição indígena na formação da dita
música - são interessadas não somente na arte (música) do
compositor respectivo. Vianna (1995) registra como Gallet é um dos
protagonistas do importante-encontro. realizado em 1926 no Rlo de
Janeiro. em que Gilberto Freire. Sérgio Buarque de Rollanda, V!lla-
Lobos, Luciano Gallet e outros, de um lado - representando as elites
dominantes - . e os músicos Donga. Pixinguinha e P?trício Teixeira
- delegados das classes populares -. todos sob um estado
expandido de consciência alcançãéÍo pelo álcool. estabelecem a
aliança que irá t0mar o samba çarioca de segundo tipo - para-
digmarízado por Ismael Silva ("Se você jurar... ") - em instrumento
de colonização nacional. Neste encontro. a fábula gas três raças é
feita tábula rasa daquela que se l11e seguirá, transform<!n'do-se
exatamente na de duas. "Negros" e "brancos" são constituídos ali
nos elementos da mestiçagem que a partir de em.ão representará a
nacionalidade brasileira, urna nacionalidade fabricada sob a êgrde
do modernismo e de uma úvalorização do negro" atrelada à visão
propiciac;la pela teoria da aculturação - onde a música (e a dança!)
ocupam uma posição absolutamente central enquanto instru-
mentos de ilustração e exemplo (Menezes Bastos. Ms.) - que o
121
condenava ao branqueamento. Em contraposição a isto, o •·fndio" é
remetido para os confins do sistema, para o mato. a floresta, o
abismo do estado-nação moderno brasileiro que ali se engendrava.
Essa profunda transformação no Pais - quando a rnesti-
_çagem deixa de ser problema para se tornar soluçàô. como bem
elabora Vianna - não é isolada em termos internacionais. a edi-
ficação do samba como emblema do Brasil sendo parale'la à da
tumba com relação à Cuba, do jazz quanto aos Estados Unidos, do
tango no que respeita à Argentina (Menezes Bastos, 2000). Observe-
se como negros e índios sã0 aqui dois pesos e duas medidas, os
primeiros sendo admitidos como contribuintes para a · gênese do
mundo brasileiro (e mnericaf)o) moderno enquanro pura corpo-
ralidade - senha de seu passado escravo-, daí a leitura do aporte
de sua música-dança sob o signo-dó- "ritmo··. Quanto ao frtdiô. ele é
expressamente çç1.0celado, passa:r;ido a ser visto - como bem
expressa Andrade na epigrafe deste texm - ou como passado
assimilado, táb_ula rasa do moderno e, então, componente
irreconhecível e esquecido - doador forç.ado de terras-. ou como
"ameríndio", signo de sua inc.amparlbllidade com o Brasil que então
se desenhava, entrave sem futuro a ,seu desenvôJ.vimento. Aí, o nexo
do esquecimento objeto de minha prtrfleira pergunta,.
Vamos à segunda questão: qual o sentido da falta de con-
gruência entre o pensa:ment-o musical brasileiro, linear. e o corres-
pondente pensamento social, triangular? Como aqui se viu, no seio
do primeiro - que constitui a umúsica brasileira", a partir dos anos
20 do século XX - . o ''índio" é suprimido; no do segundo - que
constrói o Brasil como passado, base do presente e do futuro- , ele
comparece, Note--s~ que, como estou propondo, o primeiro sjstema
cronolog-icamente rhont-a-se sobre o segundo, que, entretanto, não
se extingue. o pensamento social brasileiro e o respectivo pensa-
mento mu.sical são, assim, instânci~. ôa mesma forma de pensar.
O que um registra o outro ttsquece, isto num jogo de espelhos,
tremido, que pode às vezes espantar. A falta de con.gruência ques-
tibnada. então. a rigor não exÍ$te entre os dois sistemas, na medida
em que eles articuladamente fabricam temporalidades encalx.a da-
menre sucessiv,as.
· 122
Por que, enfim. para COIJcluir, a indiferença referid_a entre o
pensamento social brasileiro e o correspondente pensamento mu-
sical? Farinha do mesmo. saco que rião se olham, interessadamente
("quem desdenha quer comprar'')? A narrativa de Gallet - atua-
lização da primeira. segundo proponho - cónstittti o ritmo da
música brasileira como negro e sua melodia e harmonia como
brancas, nada nela constando sobre o "índio'' senão, como já disse,
que ele não seria_comparivel para a mistura, não tendo sido capaz,
pot outro lado, de resistir á paidéia jesuítica e ao contato em geral.
O que isto poderá apontar senão os corpos que trabalham. dos
negros (o "ritmo"), as inteligências q~e comandam, dos brancos (a
"melodia" e a "harmonia"), as terras cuja desapropriação legitimam
e fazem esquecer; dos índios. ausentes no sistema (Menezes Bastos.
1997)? Como no caso da qm:stão anterior, quando uma aparente
incongruência recobre um encaixe afinado. sugiro que a indiferença
levantada é ilusória, os dois sistemas de pensamento na verdade ·se
articulando à perfeição.
Embora as pesquisas sobre os impactos das músicas
indígenas nas músicas brasileiras sejam incipientes, elas nos
permitem desconfiar da transparência desse universo de repre-
sentações onde a contribuição amerinctia é apagada_ Desta maneira
- e na demanda de contra~exemplos para a narrativa analisada-,
pode-st levantar a hipótese, sim, de que as músicas indígenas estão
na base de grande parte dos universos musicais conhecidos como
"folclóricos" de vastas regiões do país_ O caso do nordeste revela-se,
a este respeito, riquíssimo, ali onde o universo músico-ritual do toré
parece constituir-se como urna espécie de linguagem fránca de toda
a região, da )3ahia ao Cea.rá. 7 A eyentual pequena magnitude do nJvel
de contraste existente emre o que consuetudinariamente se
considera, naquela região - para nela ficar- , "indígena" e ~brasi-
leiro·•, ao invés de simplesmente poder ser lida como desgua-
lifieante da "indianidade" das práticas culturais indigenas da área,
poderá antes apontar para algo tão surpreendente quanto insisten-
tememe negado por grande parte dos brasileiros e por muita
antropologia: o contraste referido é pequeno, às vezes até m[nitno,
porque não somente os "índios'; ali - para limitar-me rão-somente
123
ao nordeste - são ubrasileiros", mas, também eao revés. porque lã
estes (óu grande parte deles) também são "índios". Como pensar o
Brasil assim? Estado-nação moderno ameríndio?
NOTAS
· 124
"paneH. não do 8ras.il. rnas· do Ócid(;)nte, tipicamente no seio de sua
ex-ótica iluminista (Mene~s Bastos, 1998}.
BTBLIOGRA.E'íA
ANDRADE, Mário de. 1962. Ensaio sobre a músiea brasi(eira. São Paulo:
Martins.
ATTALI, Jacques. 1977. Bruits: essai sur 1·êconomie poli tique de la musique.
Paris: Presses Universitaires de France.
CASCUDO, Luís da Câm ara. 1980 Dicionário dofolclore brasileiro. 5. ed. São
Paulo: Melhoramentos,
GALLET. Luciano. 1934,. Estudos defolclore. Rio de Janeiro: Carlos Wehrs & Cia.
\
HACKENBERGBR, M. etal. 1998. De ondesurgem os modelos? As origens e
expansões Tupi na Amazônia Cenc:ral. Revista de Antmpologia 41 (1 ): 69-96.
MENEZES .BAS10S. Rafae.l José de. 1995. Esboço de uma teoria da música:
para alem de uma antropologia sem música e de uma musicologia sem
homem. Anuário antropológico 1993: 9-73.
MENEZES BASTOS. Rafael José de. 19%. A origem do samba como invenção
do Brasil (Por que as canções têm música?). Revisra Brasileira de Ciências
Sociais 31: J56-I 77.
MENEZES BASros, Rafael José de. 1997. Manipulação étnica e música entre
os indios kiriri de Mir;rndela. Estado da Bahia, Brasil. ln: Portugal e o Mundo:
o encontro de culturas na música. Sá:lwa El-Shawan Castelo Btanco Ed.
Lisboa: Publicações Dom Quixote. p. 495-506.
MENEZES BAS10S, Rafael José de. 1998. Amropologia como critica cultural
e com<:> crítica a esta: dois momentos extremos de exercício da édca
antropológica (Entre índios e ilhéus). ln: LElTE. Tlka B. (Org.). ética e estética
na antropo1ogia. Florianópolis: PPGAS/UFSC. p. 99-115.
·126
NOELLI. Francisco S. et ai. 1996. Debate: hipóteses sobre a o_rigem e a
expansão dos Tupi. Revista de Antropologia 39 (2): 7- U8.
127