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Trabalho de interpretação da novela:

Concerto Barroco –
de Alejo Carpentier
O primeiro capítulo da inicio a uma contextualização, situando a história nos períodos
que remetem às navegações, da América espanhola, das riquezas conquistadas da fartura de
prata, da questão indígena, da relação servo e senhor. Já no segundo capítulo nos é introduzido
a história de Filomeno, o bisneto de Salvador -que era um negro livre e heroico- homem negro,
honrado e talentoso, que virá a servir o Amo, como substituto de um falecido servo, tendo
cativado o viajante durante a contação da história de seu ancestral.

Aqui é interessante fazer nota sobre a construção do concerto em si, toda as questões
que envolvem a novela, trazendo desde o vocabulário, às descrições das cenas que são repletas
de sonoridade, de luz e cores, o imaginário riquíssimo que o narrador nos apresenta como o
mundo o qual está nos mostrando, de forma que a leitura não perde o sentido ao passarmos
por trechos de detalhamento, e sim nos dá a clareza e possibilidade de construir uma imagem
elaborada e mais completa possível do ambiente.

Outra interpretação importante é o momento em que Filomeno, travestido das peças


de servente do Amo, usando inclusive a prata, sente-se mais poderoso, superior aos escravos,
de forma que de tão orgulhoso por estar no oficio, seria possível remontar a idealização de que
ele se sente como seu antepassado: valoroso, incluso; o que é uma leitura de contradições, pela
sua posição, mas também uma coerência em relação ao sentimento, de ser respeitado, de
passar a pertencer como cidadão, e a partir desse momento virar-se “contra” aqueles que estão
na mesma posição que ele antes esteve, ao terminar o capítulo dirigindo aos escravos palavras
“feias”.

Partindo em sua jornada pela Europa, chegam a Madri, e se deparam com um mundo
muito menos vivo, por assim dizer, do que o Amo experienciara no México, segue-se uma série
de comparações e lamentações, da parte do Amo, ao sentir que nada ali era como esperava e
decide encurtar a estadia ali. Filomeno, no entanto, havia se divertido, como figura notável,
estando com mulheres brancas, precisou ser “convencido” pelo Amo a seguir viagem.

Chegando ao destino, encontra-se uma Europa em festa, momentos em meio a um


carnaval, onde nos é explicitado um universo um pouco arquetípico da cidade europeia, bem
como o de seus personagens: o momento em que o Amo, vestido de Montezuma entra em um
café, fugido do alvoroço das ruas, e apresenta a história da vestimenta, mexicana pertencente
certa vez à um rei, cujo império havia sido tomado por espanhóis com ajuda de uma índia
apaixonada pelo chefe dos invasores, numa história completamente alegórica do período dos
conflitos na américa espanhola. Há outras alegorias presentes também, como a figura do Amo
esbanjando sua prata e riquezas, e o servo que “sobe de nível”, sentindo-se incluso, mesmo
numa sociedade racista e elitista, em sua inocência ou ignorância, e se esquece dos seus iguais.

A ideia de sinestesia que o texto traz, se faz sempre presente e bem marcada, com todos
os elementos inseridos em cena muito bem detalhadas, com ideias do ambiente em cores, sons,
cheiros e ânimo, ainda mais contrapondo os sentimentos das personagens que se expressam no
capitulo 3 e 4, em relação as duas cidades da Europa, e como atendem ou não às suas
expectativas.

Ao quinto capítulo, após uma discussão sobre operas e música, onde o narrador nos
introduz ao cenário desse ciclo, elucidando episódios frequentes nos teatros e camarins, chegam
a um convento, que é também uma escola musical, encabeçada por frei Antônio, que em meio
a apresentação das musicistas que o chamam mestre, acaba por se revelar como sendo Antônio
Vivaldi, e seu amigo como Domenico Scarlatti.

Eis aqui uma reviravolta foi inesperada, apesar da indicação de que a leitura fosse
acompanhada a Opera Montezuma de Vivaldi, não havia indícios de que a história tornar-se-ia
uma ficção histórica, apresentando personagens tão renomados da história real, introduzindo-
os de forma tão sutil, como dois estranhos que se encontra em um bar, ou mesmo a passagem
em que é citada a pintora Rosalba Carriera.

O desenrolar desse capítulo dá-se de forma emocionante, e aqui retomamos a


importância da escrita, que numa brincadeira nada pretenciosa porém certeira podemos
chamar de barroca, pois não se poupa em detalhes e descrição, cheia de cores, luz e sinestesia,
onde a ambientação criada, tornou a reviravolta algo digno de um ápice risório até, mas no bom
sentido, inesperado e revigorante para a leitura que até então se tratava de maneira muito
simplória, permeado pelas relações cotidianas e alegóricas do período.

É então, o momento mais importante, pois aqui ganham sentido toda as discussões
levantadas pelo texto: a ânsia por pontuar a busca em saciar os prazeres de vícios da carne; as
questões sociais da relação do senhor rico, que toma a história dos povos conquistado e as veste
como suas, relembrando que até esse momento não é clara a descendência do Amo passa a ser
chamado de Montezuma pelo narrador; do apreço pela arte e o vislumbre que outras culturas
representavam para os europeus, desde o momento que Filomeno “conquista” o Amo ao
momento em que ele passa a ser apreciado pelos musicistas; e por fim a afirmação ao início da
novela, na passagem: “Brancos e pardos confundidos em semelhante folia?” — pergunta o
viajante — “Impossível harmonia!”, onde o Amo, diz não acreditar na festa que se segue após,
e em comemoração, ao ato heroico de Salvador, bisavô de Filomeno, e que se repete nesse
momento.

Sem dúvida impressionante o modo como a cena é construída de forma sutil, como o
ritmo da leitura é guiado pelas falas atravessadas e jocosas dos personagens que apenas
imaginaríamos como cultos e cordiais, e a mente vai acelerando e rodopiando junto do passeio
dançante pelo convento, num festejar de tirar o folego, numa contradição cômica do ode à
serpente do Éden dentro de um convento, da referência à cultura africana de e como o ato
glorioso de fazer música faz exatamente o oposto do que afirma o Amo, e une os personagens
numa harmonia impossível.

Eis então, que em certo momento os musicistas ficam desconcertados pela


improvisação livre de Filomeno, seu ritmo, e aqui relembramos do peso que suas culturas tem,
como as características eruditas contrastam com a liberdade de uma cultura oral e africana que
ele representa, e com isso enriquece a cena, mas também levanta uma questão antropofágica
da arte nesse momento de “descobertas” e interação com outras culturas do “novo mundo”: “
— Diabo de negro! — exclamava o napolitano. — Quando quero seguir num compasso, ele me
impõe o dele. Acabarei tocando música de canibais. “.
Essa frase pode ser interpretada como uma referencia a musicas tribais talvez, mas a
questão da antropofagia cultural me surgiu, da condensação de culturas, da miscelânia e
contraste que hora é benéfica e hora impede avanços quando colocada a ganancia e vontade de
um sobre o outro, de como são apropriadas questões particulares de cada uma dessas culturas,
mescladas à outras e a forma de expressar-se também.

No sexto capitulo, outro cenário é introduzido: um cemitério, onde os personagens


ilustres vão para descansar, comer e conversar, e a principal discussão que surge é acerca das
operas a serem produzidas, onde pedem para que a história de Montezuma seja contada
novamente, pois a ideia seria transforma-la em ópera. Então Filomeno sugere que façam uma
ópera sobre seu ancestral Salvador, ideia que é imediatamente ridicularizada, pois nunca
haveria de um negro ser protagonista.

Nesse momento acabou por ocorrer uma lembrança sobre cemitérios de Salvador-
Bahia, que são grande atrativo cultural, com túmulos barrocos, góticos e renascentistas, mas
acabou sendo apenas um devaneio sem muita correlação.

Apenas interessa a questão aprofundada pela discussão que se sucede sobre o tumulo
de Igor Stravinsky, e sobre como “um cemitério ao crepúsculo é sempre algo melancólico que
induz a meditações pouco prazerosas sobre o destino das pessoas” pensando também que é
muitas vezes imprescindível e importante para o barroco tratar de temas como a morte e o
tempo, como é sinalizado no próximo capitulo.

Discute-se nesse capitulo, ainda, sobre a perspectiva de um emburrado Filomeno, - três


vezes insultado aqui: uma ao ter sua ideia ridicularizada; outra ao insultarem a improvisação de
sua música; e por fim uma reprimida ao tocar trompete no cemitério, perturbando o repouso
dos que ali descansavam a muito - os avanços da arte que esses eruditos vem observando, e que
eles consideram grotesca as interpretações que tem surgido tratando de assuntos e histórias
absurdas de assassinatos e traição, mas que ainda assim, o mais inaceitável seria ter um negro
como protagonista.

No capitulo sétimo, temos a figura dos mori ou mouros, chamados assim pelos
venezianos por sua cor bronze “marrom”, dai se dá a relação mais direta do porque Filomeno
os chama de “meus irmãos”, mas que talvez pudesse significar algo mais profundo como a
relação de servidão, seja ao tempo/ao seu oficio de marcar o tempo e o oficio de Filomeno, que
em sequência, aparece em uma cena que representa bem a sua posição como servo, barbeando
e preparando o Amo para ir ao ensaio da opera Montezuma que foi afinal, produzida por Vivaldi.

Porém a adaptação da opera acaba sendo um completo fiasco do ponto de vista


histórico, ou mesmo do ponto de vista cultural representado pelo amo-Montezuma-indígena,
que encarna todas essas facetas do ser transfigurado pelas mudanças sociais que ocorrem ao
seu redor: o que ele era antes da chegada dos espanhóis, um mexicano; o que ele passa a ser ao
ser conquistado pelo modo de vida introduzido pelos espanhóis, como amo, detentor de
riquezas da exploração da própria terra; e por fim como Montezuma, a representatividade
alegórica de ser a história/cultura de onde ele veio, transformado em arquétipo que é
consumido pela cultura europeia e regurgitado como uma essência sem essência, onde cabe a
interpretação mais interessante; é por fim, então, que torna-se o indígena que observa sua
cultura ser desfigurada pela antropofagia.

O capitulo termina com a menção dos mori novamente, o que nos leva a retomar a
referência ao tempo, como uma representação do “avanço” da civilização, do oficio assumido
pelo europeu em reescrever a história das culturas alheias adaptando à sua própria visão, ou
mesmo mantendo o que lhes é interessante.

Também pode relacionar-se a importância dos acontecimentos: enquanto o índio vê


sua história ser destroçada e desfigurada, em meio a todas as questões falseadas, mentiras
contadas e adaptações pitorescas para efeito e pomposidade, percebemos o assombro e
incredulidade com a qual ele repudia a opera, e ao mesmo tempo observamos a indiferença
com que Vivaldi, que nesse momento, não atoa, é chamado de Padre, representando o papel da
sociedade, principalmente a igreja, da cultura e Deus civilizado, que fazem pouco caso do
estrago causado pela sua interpretação, e sai apressado do teatro.

Com o final marcado pelo trabalho dos martelos dos mori -símbolo do tempo
veneziano/europeu - dado o lugar em que estão localizados, a praça de San Marco - como se
insinuassem: apesar do seu estarrecimento nosso ponto de vista é sob o qual a história será
contada, a vida continua, esse é o nosso tempo.

De certa forma essa mensagem também se aplica ao último capítulo da obra, onde ainda
impactado pelo efeito da opera de Vivaldi, vemos finalmente o viajante assumir seu papel como
indígena, revelando os anseios que teve durante a apresentação: o desejo de que os mexicanos
triunfassem, que o Montezuma vencesse, apesar de conhecer a história e saber seu final, ele
finalmente enxerga-se como alguém que esteve há muito “do lado errado”.

Filomeno diz então: “— E o que se procura com a ilusão cênica, a não ser tirar-nos de
onde estamos para levar-nos aonde não poderíamos chegar por nossa própria vontade? (...)
“Graças ao teatro podemos recuar no tempo e viver, coisa impossível para nossa carne atual,
em épocas para sempre findas. —” seguido da fala do indígena: “Às vezes é necessário afastar-
se das coisas, pôr um mar no meio, para ver as coisas de perto.”

E ao que se pode dizer em síntese, isso se refere à própria obra, aos personagens, à
história, e a pluralidade/polifonia, mas principalmente ao papel da arte, especialmente a arte
barroca, como representadora e transformadoras de mundos: quando Filomeno é “escolhido”
como servo por suas qualidades e talentos; quando Vivaldi interpreta a história a seu modo na
opera, sem pensar que isso tomará proporções gigantescas, ou mesmo todos os arquétipos
reproduzidos em literaturas, que limitam nosso olhar a partir de uma perspectiva mais
difundida; quando o Amo-viajante-Montezuma-índio encontra sua posição finalmente, ao
questionar-se através da opera; e quando Filomeno, decidido a ficar em Veneza mais uma noite,
vai ao concerto barroco de Louis Armstrong: musicista e cantor “a personificação do jazz”,
tocador de trompete como anseia ser Filomeno. Mas tudo isso só é possível, porque o contexto
em si é o da harmonia controversa barroca.

A arte barroca dá espaço ao ser, permite a construção e condensação de


questionamentos, permite ver o mundo com olhos curiosos e detalhistas, e sentir a vida com
sinestesia e conexão, entendendo que tudo está em harmonia: mesmo que esse ritmo se dê no
improviso, como a festança, a música e sentimento memorável vivenciados “naquela noite”; no
contraste entre o velho e o novo, como a figura dos mori “o velho que bate as horas dois minutos
antes, marcando sua chegada, e o moço que bate dois minutos depois, afirmando que essa hora
passou” ; ou na condensação confusa à primeira vista, mas que só precisa de um olhar em
perspectiva diferente, como os dois personagens que saíram de seus contextos para enfim
enxergar-se, tendo a viagem como o cenário, representando o discurso da construção e conflito
do ser no espaço-tempo, onde mexicano com a arte torna-se/descobre-se quem era, e o negro
torna-se/encontra quem ele pode ser.
Acredito que para além das colocações da obra como uma ficção barroca, contando a
história de um período de relações barrocas e que se vale de artifícios “barrocos” de escrita,
existe uma discussão sobre o lugar das culturas, muito mais profunda que trata-se de quem
escolhemos e como deixamos apresentá-las para o mundo, acima de tudo, sobre qual
perspectiva vemos a nossa própria história, como latino americanos, como bem pontua o
viajante em:

“Parecia-me que o cantor estava representando um papel que me fora


reservado e que eu, por fraqueza, por covardia, tivesse sido incapaz de assumir.
E logo me senti como fora de contexto, exótico neste lugar, fora de situação,
distante de mim mesmo e de tudo que é realmente meu...”

Pois enquanto não assumirmos nossos papéis, ou fazer como fizeram grandes artistas
como Aleijadinho, ao colocar a mão na massa e mostrar a que viemos e como devolveremos
nossos sentimentos e vivências ao mundo, perderemos a chance de fazer valer nossa cultura,
porque mesmo que em novas linguagens, o que devemos aos nossos antepassados e a nossa
história é o respeito de nunca aceitar ser o homem cordial, sem essência, para enfim deixar de
viver para sempre uma reinterpretação barroca europeia de nossa própria história, e passar a
ser mais como nós mesmos, vivendo não a história que nos foi conferida, mas uma história real
que tem a possibilidade de um futuro fabuloso.

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