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Cuiabá
2017
ADINIL CARLOS DA SILVA VIEIRA
Cuiabá
2017
AGRADECIMENTOS
From the examination of historical data, and paying attention to the different poetic lines
of two composers who are part of the framework of Brazilian nationalist composers,
Camargo Guarnieri and Cláudio Santoro, try this research highlight the particularities and
nuances of Brazilian nationalist music, so that refute the idea of a nationalism with a
single and cohesive version. For this, studies on aesthetics, history, and mainly music
were used. We also cite some of the major Brazilian composers who were in evidence in
the first half of the twentieth century, as well as musical critics, punctuating questions
about nationalist ideology in concert music. Considering the trajectories of Cláudio
Santoro and Guarnieri, especially the nationalist music developed by them, we found
some proposals for development of a national music, and we pay attention to the outcomes
of the same. The particularities of these proposals as well as their outcome is thus the
focus of this research. Taking into account two works for solo piano, Dansa Negra
(Guarnieri) and Dansa Brasileira nº 02 (Santoro), this research found that the endings of
the stylistic paths of both Guarnieri and Santoro gradually distance themselves from the
main objective of nationalism, that is , to make the composers speak the national musical
language as their mother tongue, to reflect the aspirations of a people, and to be
assimilated by it.
Keywords: Nationalism. Concert music. Cláudio Santoro. Camargo Guarnieri.
Sumário
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa visa examinar dados históricos explorando as distintas linhas poéticas
de dois compositores que fazem parte do quadro dos compositores nacionalistas brasileiros,
Camargo Guarnieri e Cláudio Santoro, com a finalidade de evidenciar as particularidades e
nuances da música nacionalista brasileira, de maneira que refute a ideia de um nacionalismo
com versão única e congruente. Para tal, foram utilizados estudos sobre estética, história, e
principalmente da música. Também citamos alguns dos principais compositores brasileiros que
estiveram em evidência na primeira metade do século XX, bem como críticos musicais,
pontuando questões sobre a ideologia nacionalista na música de concerto.
Diferente da Europa, onde em determinados períodos constata-se os estilos ou escolas,
como barroco, classicismo, romantismo, no Brasil, no entanto, essas etapas não foram
evidenciadas, resultando em experiências composicionais distintas até se chegar à música
contemporânea; devido a essa pluralidade e mescla de estilos, o nacionalismo na música
brasileira de concerto na verdade apresenta diversas facetas que se diferem entre si, não apenas
poeticamente, mas esteticamente e ideologicamente.
Dessa forma, entendemos que há uma série de nacionalismos diferenciados que
coexistiram nos primeiros anos do século passado. Como nos diz Bruno Kiefer “o ‘primeiro’
nacionalismo brasileiro ocorreu com o advento do Romantismo, com a intenção, embora tímida,
de tornar mais brasileiros os temas das obras, destacam-se nomes como Carlos Gomes, Alberto
Nepomuceno” (KIEFER apud PRADA, 2010, p.25). Esse nacionalismo, no entanto, difere do
nacionalismo de Marlos Nobre, de Cláudio Santoro (que trabalhou com técnicas
dodecafônicas), também se distingue do nacionalismo de Guarnieri.
Atualmente temos um amplo acervo, no que diz respeito a pesquisas e estudos sobre o
nacionalismo na música brasileira, e grande parte se deve as pesquisas realizadas pelo
historiador Arnaldo Daraya Contier. Em seus trabalhos destacam-se os relevantes estudos sobre
a pessoa de Mário de Andrade. É imprescindível compreender a importância de Mário de
Andrade na história da música brasileira. No entanto, com base nos relatos históricos de alguns
autores como José Maria Neves, Gilberto Mendes e Teresinha Prada entendemos que não houve
um período musical no Brasil, como temos na Europa (O período Clássico), tão coeso a ponto
de nos referir a ele como um estilo, ou escola. O que temos são múltiplas experiências
composicionais, que nos conduziram até onde nos encontramos, na contemporaneidade.
10
1
A grafia foi "Dansa" até a reforma ortográfica de 1944. Nessa ocasião, a palavra passou a ser escrita com "Ç".
Não obstante, Guarnieri e Santoro mesmo após a reforma permaneceram por um tempo utilizando a palavra com
a letra “S”.
11
compositores, estudamos parte de suas trajetórias, com suas propostas de elaborar uma música
que transmitisse brasilidade e o desfecho destes percursos.
Ainda neste trabalho seguem as Considerações Finais, Referências e os Anexos. Para
uma melhor ilustração, nos anexos estão inseridas as partituras das obras Dansa Negra
(Guarnieri) e Dansa Brasileira nº02 (Santoro).
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Capítulo I
O PENSAMENTO NACIONAL
O artista não é, sob esse ponto de vista, um ser isolado, mas alguém inserido e afetado
pelo seu tempo e seus contemporâneos. O tempo e o espaço do objeto em criação são
únicos e singulares e surgem de características que o artista vai lhes oferecendo, porém
se alimentam do tempo e espaço que envolvem sua produção. (SALLES, 1998, p.
38).
2
PRADA, Teresinha. Gilberto Mendes: Vanguardas e utopia nos mares do sul. São Paulo: Terceira Margem,
2010.
13
Dessa forma, pensar sobre estes momentos históricos é também uma forma de
compreender e entender melhor o contemporâneo. Na verdade, podemos até mesmo incluir na
referida contemporaneidade alguns desses períodos históricos que serão posteriormente
mencionados.
Enfim, nos convém compreender as nuanças do contexto espaço-temporal onde
situavam os compositores de música de concerto para melhor entendimento de suas respectivas
obras. Para tal, julgamos ser necessário apresentar um breve apanhado histórico para que sirva
de sustentáculo para uma posterior análise musical.
A música de concerto brasileira está edificada sobre três principais pilares, estes são o
pensamento musical europeu, africano e indígena. Contudo cada um destes contribuiu em
diferentes medidas. É perceptível o fato de que a música europeia tem ocupado o maior destaque
seguido de perto pela musicalidade africana e em menor grau a música indígena. Em
conformidade com este pensamento Bruno Kiefer (1977, p.7) afirma:
Realmente, no que se refere à música erudita brasileira - termo inadequado, mas não
há outro - observa-se no Brasil uma nítida e quase exclusiva consciência europeia.
Para se convencer disto, basta examinar o que ocorre em nossas escolas superiores de
música.
Embora a música dos indígenas praticamente não deixasse vestígios em nossa música,
constituindo até hoje um fenômeno exótico, não se pode iniciar uma história da música
brasileira sem breves referências a seu respeito. (KIEFER, 1977, p. 09).
Atentando para a música de concerto europeia, é perceptível uma sequência que levou
desde o tonalismo na sua forma mais “pura” até o atonalismo. Não pura no sentido de isenção
de interferências, mas no sentido de que as formas e conteúdo das obras ainda tinham longo
percurso de desdobramentos e transformações. Essas etapas foram sequenciais, ou seja,
sucessivas. Assim, temos a música medieval, renascentista, o Barroco de Bach, o Classicismo
de Mozart, passando para o Romantismo de Chopin e Beethoven, em seguida os cromatismos
de Wagner que muito contribuiu para o surgimento da música moderna, passando pelo
Impressionismo de Debussy e a música de Stravinsky, para chegar ao Serialismo de
Schoenberg, a música de Anton Webern, a Música Eletrônica de Schaeffer, Varèse e por fim à
Música Aleatória de Pierre Boulez. (GROUT e PALISCA, 1994; GRIFFITHS, 1987).
Em meio a esses períodos, os primeiros indícios de compositores se empenhando em
engendrar obras embebidas dos ideais nacionais, dos cantos populares e temas folclóricos
surgem no início do século XIX. Na Rússia desponta a figura de Mikhail Ivanovich Glinka
(1804-1857) que se tornou conhecido como o pai da música erudita russa, suas obras
alimentadas também do folclore local vão influenciar a posteridade dos compositores russos.
Posteriormente a Rússia, vários países europeus não tardaram a apresentar
compositores cujas obras denotavam as particularidades de suas nações, como o sueco Ivar
Hallstroem (1826-1901), o húngaro Franz Erkel (1810-1893), o dinamarquês Niels Vilhelm
Gade (1817-1890) o polonês Stanislaw Moniuszko (1819-1872). Entretanto, nenhum dos
compositores citados sobressairia à figura de Frédéric Chopin (1810-1849) compositor este
considerado ilustre e aclamado internacionalmente, cujas composições para piano são
significativas para o repertório de estudo desse instrumento.
Havia uma música pianística na Polônia do começo do século XIX que se aproveitava
de ritmos folclóricos, eram as polonesas3 e mazurcas4 de Michael Kleophas Oginski (1765-
1833), que o jovem compositor Chopin conhecia muito bem, ademais os noturnos de John Field
(1782-1837), compositor irlandês também conhecido como o primeiro compositor de noturnos.
Assim, apesar de morar a maior parte de sua vida na França, Chopin mantinha forte relação
3
Na música, polonesa é uma forma de origem polonesa. Naturalmente folclórica, ela surge nos meios da música
erudita a partir da promenade. Caracteriza-se por uma dança típica em compasso ternário (3/4).
4
A mazurca é uma dança tradicional de origem polaca, feita por pares formando figuras e desenhos diferentes, em
compasso de 3/4 e tempo vivo. Característico é o ritmo pontuado, com acento típico no 2º e 3º tempo do compasso.
15
com suas origens polonesas. Portanto, encabeçado por Glinka e Chopin, temos o que podemos
chamar de um primeiro segmento de nacionalismo na música europeia.
O segundo momento do nacionalismo no continente europeu se dá em meados do
século XIX e início do século XX. Destacam-se compositores como Robert Schumann (1810-
1856) na Alemanha, o austro-húngaro Franz Liszt (1811-1886) que expressou seu
nacionalismo, sobretudo em suas rapsódias5 húngaras. Na República Tcheca despontam as
figuras de Bedrich Smetana (1824-1884) e Antonín Dvorák (1841-1904). Smetana é
considerado como o fundador de um estilo musical autenticamente tcheco, sendo que a maior
parte de sua obra musical é composta por peças de temática folclórica e nacionalista, com
destaque para sua obra intitulada Má Vlast (Minha Terra), um conjunto composto por seis
poemas sinfônicos que retratam a região da Boêmia. Ainda nesse período destacam-se o
compositor Edvard Grieg (1843-1907) na Noruega, que defendia que a música norueguesa
deveria basear-se apenas no rico folclore musical da nação, mesmo que causasse incômodo ao
público europeu; e o compositor Jean Sibelius (1865-1957) na Finlândia, cuja obra é
considerada importante para a formação da identidade nacional finlandesa.
O Impressionismo francês, principalmente com Debussy (1862-1918) e Maurice Ravel
(1875-1937), desencadeou uma terceira onda de nacionalismo musical. Nesse período, aparece
na Tchecoslováquia o compositor Leos Janácek (1854-1928), que desde cedo se dedicou à
crítica e a pesquisa da música folclórica. Na Espanha destacaram os compositores Isaac Albéniz
(1860-1909) e Manuel de Falla (1876-1946). Na Inglaterra desponta o compositor Frederik
Delius (1863-1934).
A quarta onda de nacionalismo na música de concerto se dá no final do século XIX e
início do século XX. Nesse período destacam-se os compositores norte-americanos e latino-
americanos. George Gershwin (1898-1937), compositor estadunidense, empregou em suas
obras os ritmos bem marcados do jazz6 e a melancolia do blues, o mesmo defendia que o jazz
é o verdadeiro folclore norte-americano. Além de Gershwin podemos citar Samuel Barber
(1910-1981) e Aaron Copland (1900-1990). Mas é, sobretudo, no México e no Brasil que
despontam os compositores que chamariam a atenção neste último momento. No México
destacaram-se Manuel Ponce (1886-1948), Silvestre Revueltas (1899-1940) e Carlos Chávez
5
Composição musical formada por vários cantos tradicionais ou populares. Também pode conter fragmentos de
outras obras.
6
Música originalmente do povo negro dos Estados Unidos, caracterizada pelo ritmo sincopado, pela improvisação,
pelas mudanças rápidas de tom e pelo emprego original dos instrumentos de percussão.
.
16
No que se refere ao Brasil, no entanto, é preciso levar em conta, antes de mais nada,
que o movimento romântico só entrou aqui com muito atraso em relação à Europa.
Além disto, a produção inicial na música revela-se tão escassa em valor e/ou
significado histórico que se é obrigado a situar a fase inicial do romantismo entre nós
por volta da metade do século passado. (KIEFER, 1977, p. 64).
Neves afirma que o nacionalismo no Brasil tem seu ápice nos primeiros 30 anos do
século XX, regido pela influente personalidade de Heitor Villa-Lobos e foi marcado pelos
princípios estéticos das técnicas composicionais herdadas do século XIX. (NEVES, 1981).
17
O referido autor é quem melhor nos elucida sobre a questão dos primórdios da música
de concerto no Brasil, principalmente a música nacionalista. Em seu livro Música
Contemporânea Brasileira (1981), José Maria Neves detalha minuciosamente a trajetória da
música de concerto brasileira e por este motivo o destaco nesta contextualização histórica.
Atentando para os primeiros passos da música brasileira de concerto, Neves assevera
que a produção musical brasileira, num primeiro momento, se dividia entre: religião e diversão.
Com esta afirmação o autor não pretende alegar que toda música religiosa era revestida
estritamente do pensamento musical europeu e que a música dita profana não possuía aspectos
da mesma. Apenas aponta que a música religiosa procurava manter as tradições europeias
enquanto que a música popular se separa lentamente da mesma e isto não com linhas
demarcatórias tão rigorosamente definidas. (NEVES, 2008). Em seguida, explica:
O centro musical sai, então, da igreja e vai para o teatro, ficando aí por meio século.
E é certamente no terreno da ópera que aparecerão os primeiros sinais do nacionalismo
musical, mais como preocupação do que como realização. (NEVES, 2008, p. 27).
Tal preocupação referida acima por Neves, é o que nos leva a inferir que o
nacionalismo brasileiro emerge a partir duma busca intencional, como dito anteriormente, e não
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por desgaste temporal. É, sobretudo, neste momento em que a Academia de Música e Ópera
Nacional é criada com o intuito de preparar compositores e demais artistas para criação de obras
em língua nacional. Nesse momento que surge Carlos Gomes (1836-1896) que se torna um dos
principais compositores desse período. Não obstante, é através da figura de Alberto
Nepomuceno (1864-1920) que a preocupação de dar às obras um caráter nacional toma corpo.
Para Neves (2008, p. 36):
Mas bem antes do aparecimento das primeiras obras claramente filiadas à estética
nacionalista, o diplomata Brasílio Itiberê da Cunha (1846-1913) mostraria o caminho
a ser seguido. Esse compositor, que foi na verdade um diletante, sentia o desejo de
nacionalizar a expressão musical popular. É o que ele realiza através da rapsódia A
sertaneja para piano, editada em 1869, cujo tema central é a canção gaúcha Balaio,
que será depois usada por muitos outros compositores. (NEVES, 2008, p. 30).
Houve assim, esforços conscientes por parte dos compositores de tornar mais
brasileiras suas obras, esforços que Kiefer chamaria de “tendências criadoras”, assim ele
explica:
Essa forma objetiva na qual Kiefer se refere pode muito bem ser notada nas obras de
Villa-Lobos, que, como já mencionado, foi o grande representante do nacionalismo brasileiro,
sendo que em suas composições percebe-se esta “consciência nacional” (expressão usada por
Mário de Andrade e que será discutida mais adiante neste trabalho), já assimilada e diluída. Daí
19
possivelmente sua conhecida expressão “o folclore sou eu”, onde nos passa a ideia de que o
compositor não é um mero estudioso e colecionador de conteúdos folclóricos e populares, mas
ele próprio já se torna a fonte das manifestações e características populares.
Não obstante a música de Villa-Lobos ser uma das que melhor apresenta uma
assimilação dos elementos folclóricos e populares, esta pesquisa volta-se para os compositores
Cláudio Santoro e Camargo Guarnieri sobretudo devido a intenção primeira de apresentar
algumas singularidades da música nacionalista brasileira, e para tal, as obras desses dois
compositores muito corroboram devido aos elementos que apresentam.
Sendo assim, não se pode discorrer sobre a música nacionalista de concerto deixando
de lado a temática do popular. Referimo-nos então às obras que refletem a realidade de um
povo, uma cultura, uma nação. De acordo com Neves:
Isto nos remete à discussão sobre forma e conteúdo. Comumente, a obra de arte possui
um aspecto de pura contemplação pela maneira que é construída, mas também contempla e
contém a vida de onde surge, isto é, um engajamento com questões de ordem políticas, sociais,
etc. Pareyson (1918-1991) nos mostra que houve uma mudança na maneira de abordar estes
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dois temas. Primeiramente, os dois termos se apresentavam dissociados, tanto conteúdo quanto
forma poderiam ser considerados separadamente. Assim, ele nos explica:
Por longo tempo o conteúdo foi visto no simples assunto ou argumento a ser tratado,
que podia ser um objeto natural a ser representado, uma história a ser contada ou um
sentimento a ser cantado. Paralelamente a essa concepção, a forma era vista na
perfeição exterior da obra, isto é, no esmero técnico e estilístico com que se tratava e
se deveria tratar um determinado argumento, isto é, naqueles valores formais nos
quais reside a qualidade artística da obra e que a distinguem das outras obras não
artísticas que, porventura, tenham os mesmos conteúdos. (PAREYSON, 1997, p. 55).
Pareyson descreve essa forma de considerar a arte como “a teoria do ornato”, isto é,
reduz a arte a um aspecto externo, um exercício técnico, como se a forma, vinda de fora, se
acrescenta ao conteúdo, modelando-o e conferindo a este um aspecto de obra de arte.
Entretanto, posteriormente, viu-se que o conteúdo poderia ir além desta descrição,
agora, ele recebe um sentido mais “profundo” como nos explica Pareyson:
Da mesma forma com que o conteúdo agora possui um sentido mais profundo, nesta
etapa, segundo Pareyson, “elaborou-se uma forma “menos extrínseca” da forma, reconhecida
agora na inteireza da expressão” (PAREYSON, 1997, p. 56). Deste modo, nota-se uma
interrelação e interdependência dos termos, apresentando-se inseparáveis. Pareyson, assim,
sintetiza:
Forma e conteúdo são vistos assim na sua inseparabilidade: o conteúdo nasce como
tal no próprio ato em que nasce a forma, e a forma não é mais que a expressão acabada
do conteúdo. Analisando bem, nesta concepção a inseparabilidade de forma e
conteúdo é afirmada do ponto de vista do conteúdo: fazer arte significa “formar”
conteúdos espirituais, dar uma “configuração” à espiritualidade, traduzir o sentimento
em imagem, exprimir sentimentos. (Ibid., p. 56).
Colocada sobre o signo da arte, a personalidade do artista torna-se ela própria energia
formante, vontade e iniciativa de arte, ou melhor, modo de formar, isto é, estilo. É o
modo de formar, o modo de fazer arte, o modo de escolher e conectar as palavras, de
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Percebe-se assim, a linha tênue que Pareyson traça entre assunto e tema, em outras
palavras uma ideia sobre algo poderia constituir o assunto, enquanto que o modo como o artista
vê e sente a referida ideia seria o tema. Desse modo assunto e tema, frequentemente estão
presentes na obra e dialogam entre si.
Ainda acrescenta que é possível elaborar uma obra de arte sem assunto e tema, não,
porém, sem o conteúdo. Neste sentido, podemos verificar que entre os ideais do nacionalismo
brasileiro, discutia-se mais as questões relacionadas com o tema, e que, como sabemos,
refletiria no conteúdo empregado pelo artista. Isto é, os compositores nacionalistas se voltariam
para o motivo inspirador, o modo de ver e sentir determinadas ideias, e isso ressoaria no “modo
de fazer” destes compositores, toda sua espiritualidade no modo de formar, isto é, o conteúdo.
Os compositores brasileiros, portanto, muitas vezes se viram diante da escolha de criar
obras embebidas dos ideais nacionalistas e ao mesmo tempo seduzidos pelas técnicas advindas
do exterior. Neves (2008) relembra, no entanto, que Villa-Lobos tentou sempre agregar o
moderno e o nacional, mas que esse último acabou se sobressaindo.
Esta é uma postura adotada pela maioria dos compositores deste período, uma posição
de aproximação com o povo, com algumas exceções como foi o caso do compositor Glauco
Velásquez (1884-1914) que, muitas vezes, abriu mão das normas tradicionais de composição.
Nas palavras de Neves “a música de Velásquez aproxima-se muitas vezes da estética
expressionista, ainda que no plano da realização tenha mais de Stravinsky do que de Shoenberg”
(NEVES, 2008, p. 38). Tal fenômeno não se deu apenas no Brasil, mas também em outras
partes. Referindo-se ao compositor Carl Orff, Neves diz:
De modo geral, a música de Orff é uma das que melhor responde aos ideais do
populismo: seu caráter forte e dinamogênico facilita sua aceitação pelas massas e sua
compreensão é imediata; nela nada há de elaboração e racionalização que exija atitude
especial de escuta. Orff faz música populista, música a serviço de uma causa que
nunca foi muito bem definida. (NEVES, 2008, p. 172).
A prática musical, no sentido que vai desde as performances até a reflexão sobre a
mesma, é terreno fértil para discussões e debates por parte de músicos e pensadores. Não seria
diferente no caso da música brasileira. Juntamente com aquele desejo de dar um caráter
brasileiro às músicas de concerto e com toda as controvérsias que isso gerou, veio a lume figuras
importantes, dentre elas destaco Mário de Andrade (1893-1945), eminente representante do
nacionalismo emergente, e mentor intelectual de novos compositores. Como descreve José
Maria Neves (2008, p.66):
Dos vinte volumes que compõem as Obras completas de Mário de Andrade, nada
menos que oito grandes volumes são relacionados à música: vol. VI - Ensaio sobre a
música brasileira; vol. VII - Música, doce música (crítica musical); vol. VIII -
Pequena história da música; vol. IX - Namoros com a medicina (a primeira parte se
refere à terapêutica musical); vol. XI - Aspectos da música brasileira (ensaios
musicais); vol. XIII - Música de feitiçaria no Brasil; vol. XVIII - Danças dramáticas
do Brasil (3 tomos); vol. XIX - Modinhas imperiais. (NEVES, 2008, p. 65).
24
Mário de Andrade vai dizer que num primeiro momento o compositor brasileiro
deveria se ater à busca e ao estudo dos elementos folclóricos brasileiros para que posteriormente
tal consciência do nacional fosse assimilada. Pelo seu profundo engajamento com o estudo do
folclore nacional, foi nomeado por muitos de sua época como folclorista.
Não sou folclorista não. Me parece que não sou nada, na questão dos limites
individuais, nem poeta. Sou mais um indivíduo que, quando senão quando, imagina
sobre si mesmo, repara no ser gozado, morto de curiosidade por tudo que faz no
mundo. Curiosidade cheia daquela simpatia que o poeta chamou de quase amor. Isso
me permite ser múltiplo e tenho até a impressão que é bom. (ANDRADE, 1933, p.
67).
Apesar desta afirmação, é sabido que Mário de Andrade dedicou-se com afinco,
através de um intenso estudo, à pesquisa do folclore nacional, onde reuniu considerável
quantidade de documentos de todas as partes do país, investigando-os, e disponibilizando de
maneira organizada para os interessados no estudo.
Como nos conta Neves (2008), Mário de Andrade vai se deparar com muitos desafios,
um destes é a ideia admitida de que a música boa é aquela que tem maior universalidade; e
acerca deste pensamento Andrade é enfático:
Não há música internacional e muito menos música universal; o que existe são gênios
que se universalizam por demasiado fundamentais, Palestrina, Bach, Beethoven, ou
mulheres que se internacionalizam por demasiado fáceis, a Traviata, a Carmem, a
Butterfly. Porém, mesmo dentro desta internacionalidade e daquela universalidade,
tais músicos e tais mulheres não deixam nunca de ser funcionalmente nacionais.
(ANDRADE, 1943, p. 28-29).
(2008), nada se preocupando com o caráter nacional. Sobre esta postura Mário de Andrade
teceu críticas contundentes:
Por mais sublime que seja, não só a obra não é brasileira como é anti-nacional. E
socialmente o autor dela deixa de nos interessar. Digo mais: por valiosa que a obra
seja, devemos repudiá-la que nem faz a Rússia com Stravinsky e Kandinski.
(ANDRADE, 1928, p. 18).
E ainda:
Todo artista brasileiro que no momento atual fizer arte brasileira é um ser eficiente
com valor humano. O que fizer arte internacional ou estrangeira, se não for gênio, é
um inútil, um nulo. E é uma reverendíssima besta. (ANDRADE, 1928, p. 19).
1.2.2 Folclore
folclóricos que sirva quase como um dogma. Não obstante, alguns compositores alcançaram
maior notoriedade pela forma como fizeram uso desses recursos. Ainda mencionando Bartók,
Neves (2008, p.170) exemplifica:
E no plano do nacionalismo, esse compositor parece ter sido o que conseguiu maior
coerência no emprego do material de origem folclórica, incomparavelmente superior
àquele feito por Manuel de Falla, que parece ter ficado nos domínios do pitoresco.
João Gomes de Araújo, colega de Levy na época de sua estada em Paris, conta a
preocupação nacionalista desse compositor e sua consciência da necessidade de
estudar seriamente a música folclórica para que seu emprego fosse correto e eficaz:
“Discorria sobre a arte de sons, dizendo que cada nação tinha a sua música
característica e que o Brasil um dia haveria de revelar a sua. Afirmava que, para
escrever música brasileira, era preciso estudar a música popular de todo o Brasil,
sobretudo a do Norte do país.” (AZEVEDO, 1956, p. 59, apud NEVES, 2008, p. 33).
Não as nego nem nunca as neguei. Mas rejeito que me queiram catalogar como
folclorista, hábil na estilização da música nativa brasileira. Muitas de minhas obras
transformam em música culta o espírito do meu povo e a alma da minha raça. Plasmam
a sensação de suas danças e de suas canções, de seus mitos e lendas (Presença de
Villa-Lobos, apud NEVES, 2008 p. 44).
27
O uso ou não uso dos elementos folclóricos e populares sobretudo fica evidente entre
os nacionalistas adeptos do pensamento “marioandradiano”, e outro grupo de compositores com
visão mais cosmopolita e que em dado momento se entregaram ao estudo da técnica
dodecafônica7 e da música politonal8. Tal postura foi duramente criticada na Carta Aberta
(1950) onde Guarnieri aponta tais compositores como aqueles que “não se deram ao cuidado
elementar de estudar os tesouros da herança clássica, o desenvolvimento autônomo da música
brasileira e suas raízes populares e folclóricas.”9
Para alguns compositores, como Villa-Lobos, a música vanguardista atonal seria muito
acadêmica, - há que se distinguir que existem dois significados em se tratando de “música
acadêmica”, por um lado já foi mencionada se referindo ao sistema de ensino pautado no
pensamento predominantemente europeu e um tanto quanto “acomodado”, mas também esta
7
Técnica em que as doze notas da escala cromática são tratadas como equivalentes, ou seja, sujeitas a uma
relação ordenada e não hierárquica.
8
Termo que designa a sobreposição de melodias, cada uma com tonalidade diferente.
9
GUARNIERI, Camargo. ―Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil‖. Revista Fundamentos, São Paulo,
1950.
28
expressão pode se referir à um público minoritário, de experts, mais distante das massas
populares – e é a este último que se refere Villa-Lobos, para ele a música dodecafônica era
muito cerebral, voltada para uma minoria específica, não tinha um apelo popular, como bem
explica José Maria Neves:
[...] Villa-Lobos se caracterizará pela recusa das fórmulas consagradas e dos processos
clássicos de criação, pela reação contra os artifícios, que, levando à liberação do
tonalismo, constrangiam demais o compositor (ele jamais aceitou o sistema
dodecafônico) e dificultavam o contato com o povo (para ele, a música experimental
destinava-se à elite, o que era a negação de seu desejo de popularização da arte
erudita). Sua música terá a amplidão melódica e a força rítmica da música popular.
(NEVES, 2008, p. 45).
Sob orientação direta de Mário de Andrade, uma nova “escola nacional” nasce.
Segundo José Maria Neves, Mário de Andrade mesmo assumira a posição de mentor intelectual
dos jovens nacionalistas, e defenderia até o fim de sua vida a necessidade de perseverar na
construção de uma linguagem expressiva essencialmente brasileira, na linha de
amadurecimento e de um desenvolvimento progressivo das técnicas composicionais. E segundo
Contier (1985), o nacionalismo baseado nas ideias de Mário de Andrade possuía diretrizes bem
definidas e teria em sua base o sistema tonal. Em suas palavras:
[...] se era aos nacionalistas que se atribuía uma arte brasileira por direito nacional (já
que eles usavam os temas nacionais, folclore, etc..), aos vanguardistas-dodecafonistas
era-lhes imputado o ato de serem antinacionais, porque estavam atentos e atuando de
acordo com as novas possibilidades vindas do estrangeiro. (PRADA, 2010, p.22)
10
ANDRADE, Mário de. Música, doce música, São Paulo. Martins. 1963, p. 352.
30
O que é certo é que nenhum dos compositores que aderiram ao dodecafonismo pelas
mãos de Koellreutter perseverou nessa direção; uns poucos conservaram uma
linguagem de caráter atonal, mas não dodecafônica, e a grande maioria voltou ao
tonalismo mais direto, trocando o hermetismo que se manifestava em obras desse
período por um populismo frequentemente primário, fazendo-se logo em defensores
apaixonados do nacionalismo[...]. Mas não há dúvida de que a experiência
dodecafônica marcou-os profundamente e muitos deles voltaram, anos depois, a uma
postura musical mais aberta, em síntese próxima a do serialismo predominante na
década de 1970. (NEVES, 2008, p. 133).
É sobretudo devido essas experiências com técnicas estrangeiras e com a música dita
nacional, mais voltada para o tonal, que notamos a presença não apenas de um nacionalismo no
Brasil, mas nacionalismos que segundo Prada (2010, p.32) “ainda é pouco difundido no ensino
formal de música, na academia.”
Atentando para a música dita nacionalista, principalmente por aquela música edificada
sobre o populário nacional, notamos a presença de alguns elementos musicais recorrentes, que
são traços deste “discurso” musical que visa dar um aspecto de brasilidade. Para mencionar
alguns exemplos simples, temos a afirmação de Mário de Andrade, presente na sua conhecida
obra Ensaio sobre a música brasileira (1972):
A música brasileira tem na síncopa uma das constâncias dela porêm não uma
obrigatoriedade. E mesmo a chamada “síncopa” do nosso populário é um caso suptil
e discutível. Muitas vezes a gente chama de síncopa o que não o é. (ANDRADE, 1972,
p. 30).
preferentemente para os modalismos, uma vez que grande parte da música folclórica brasileira
é modal” (NEVES, 2008, p. 23).
Quanto à questão da estrutura da harmonia e do timbre, Neves se referindo às
observações de Mário de Andrade, nos diz:
De fato, ao mesmo tempo que o negro aceitou certos elementos da cultura europeia
para poder subsistir, não deixou de exercer influência sobre essa cultura que se dizia
superior, transformando-a de modo sensível. Desse modo, encontramos, de um lado,
diferentes formas de adaptação dos costumes e das crenças negras (entre as quais o
sincretismo religioso é a mais aparente e clara); de outro, a assimilação, pela classe
dominante, de um sem-número de costumes claramente negros (NEVES, 2008, p. 25).
[...] as Variações sobre um tema brasileiro, o Tango brasileiro e a Suíte brasileira são
exemplos de tratamento especial de material de origem brasileira popular, dentro dos
princípios do nacionalismo nascente, com especial enfoque no caráter melódico [...] e
com aproveitamento consciente da rítmica afro-brasileira (em linha que terá como
principais seguidores Luciano Gallet e Francisco Mignone).
Alberto Nepomuceno deixa também transparecer em sua obra o caráter da música afro-
brasileira. Em uma de suas principais obras, a Série brasileira (1892), suíte em quatro partes:
“Alvorada na serra”, “Intermédio”, “A sesta na rede” e “Batuque”. Esta última em especial, nas
32
Entretanto é importante mencionar que essas misturas de saberes culturais não têm seu
início com a chegada dos negros ao Brasil. Sabe-se que os negros trazidos da África já vinham
em processo de hibridação considerando que diferiam em seus idiomas, vinham de regiões e
etnias distintas, com costumes, cultura e visão de mundo diferentes entre si. Tomar consciência
desse aspecto é relevante para entendermos que a musicalidade africana não estava isenta das
ressonâncias do pensamento musical europeu, dispondo assim de uma musicalidade africana
pura. Como vimos, a música brasileira tem em sua base a música europeia, africana e indígena,
no entanto, processo similar ocorreu em terras africanas, por meio das colonizações, antes da
chegada dos negros ao Brasil.
11
Entrevista concedida à Teresinha Prada em 14/03/2003.
33
Em meio a tantos personagens que integram essa temática, destacamos duas figuras
que tomaram caminhos diferentes e são o ponto central desta pesquisa: Cláudio Santoro,
compositor e maestro nascido em Manaus no ano de 1919, professor fundador do Departamento
de Música da Universidade de Brasília. Em 1941 passou a estudar com Hans-Joachim
Koellreutter, compositor alemão radicado no Brasil, integrando também o grupo Música Viva,
do qual se tornou um dos nomes mais ativos. Passou a adotar o dodecafonismo como técnica
de composição. Após seu regresso a música tonal ainda deixou transparecer o passado
dodecafonista em sua obra.
E Camargo Guarnieri, compositor e regente brasileiro nascido em São Paulo no ano
de 1907. Exerceu o cargo de assessor artístico-musical do Ministério da Educação. Em 1975
assumiu a direção da recém-criada Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo
(OSUSP), cargo que exerceu até o fim da vida. Amigo próximo do escritor Mário de Andrade,
seguia fielmente o pensamento deste em suas obras.
Assim separamos duas facetas do nacionalismo, ou melhor, “nacionalismos” na
música brasileira de concerto, sob a perspectiva desses renomados compositores, que serão
posteriormente analisadas do ponto de vista poético juntamente com alguns temas relacionados
à estética.
34
Capítulo II
POÉTICA E ESTÉTICA
Pareyson aqui não pretende simplificar e reduzir tudo que é conceituação à estética e
relegar o caráter prático à poética. Trata-se da sua essência. Em outra oportunidade ele explica
que a estética não é meramente especulação filosófica, mas uma especulação sobre a prática, a
experiência, a performance. Do contrário seria mera abstração. Em suas palavras:
De modo especial, não se pode assimilar a crítica à estética, nem dizendo que a
reflexão crítica é de natureza filosófica, nem dizendo que a estética é, essencialmente,
metodologia da crítica. [...] O trabalho do crítico nem se inclui no do filósofo, nem se
alinha ao seu lado, como se fossem dois modos paralelos de considerar a arte. Antes
põe-se ao lado do artista e ambos são objeto da estética, um enquanto produz arte, o
outro enquanto a aprecia e julga. (PAREYSON, 1997, p. 12)
A estética musical faz parte da própria técnica do músico. Todo músico sabe Estética
musical e tem a dele. Senão não é músico. Dantes ela era de aquisição autodidática
resumida às observações e reflexões do próprio artista. Porém com a harmonia se deu
o mesmo e com a instrumentação também. Não tem compositor sem estética musical.
Um estudo preliminar da matéria evita a porção de tolices que os compositores dizem
a respeito dessa matéria. Vem daí a desconfiança e descrédito com que certos estetas
e cientistas observam os compositores em geral. Aliás desconfiança e descrédito
justificadamente recíproco. (ANDRADE, 1995, p. 10)
Essa linha demarcatória que separa a estética da poética pode ser muito tênue, assim
não poucas vezes pode-se referir como estética algo que na verdade trata-se de programa de
arte, uma poética. Nesse sentido, num primeiro momento fica a impressão de que Andrade e
Pareyson possuíam concepções divergentes no que se refere a estética. Enquanto que, se
referindo à estética musical, Andrade (1995, p.11) diz:
Há, no entanto, quem pense que o filósofo deva fornecer ao crítico um critério para
suas avaliações. Isto não é um absurdo menor; se de fato o filósofo fornecesse critérios
de juízo ao crítico, por isso mesmo estaria pretendendo prescrever leis ao artista,
36
Mas o aparente contraste se deve ao anacronismo. Mário de Andrade escreve antes dos
estudos de Pareyson, quando ainda o termo “estética” também era empregado para se referir a
poética.
Portanto, este trabalho dedica-se a uma reflexão sobre a poética dos compositores
nacionalistas Camargo Guarnieri e Cláudio Santoro, por vezes, se referindo a questões estéticas
dalém da poética, mas sem a pretensão de apresentar uma teoria ou especulação filosófica sobre
o tema.
2.1 Poética
Enquanto que a estética não possui caráter normativo nem valorativo, não prescreve
instruções ou orientações na qual o artista possa se apoiar, e por isso mesmo não pode
estabelecer critérios de julgamento de uma obra de arte, a poética é carregada de sentidos, de
mensagens, de ideais, por vezes, explícitas, por outras, implícitas.
Assim, quando nos referimos à estética podemos mencionar como exemplos a estética
da formatividade (como discutida por Pareyson), estética relacional (abordada por Bourriaud),
estética da existência (Foucault), etc. Tais exemplos não possuem conjuntos de normas que
possam validar, valorar ou julgar uma obra de arte e subsiste ao tempo, justamente por não estar
ligada a um ideal, ou manifesto. Entretanto, quando tratamos de poética verifica-se que estão
presentes todo um pensamento de uma época, uma visão de mundo, um ideal. Como exemplo,
temos a poética do realismo, cubismo, minimalista, etc. Estas apresentam uma proposta de arte,
orientações, mesmo que abertas, nas quais o artista pode se valer. Em suma, a poética não é
estética, contudo é objeto de estudo da mesma.
Do ponto de vista estético, todas as poéticas são igualmente legítimas: não importa
que a arte seja compromissada ou de evasão, realista ou idealista, naturalista ou lírica,
figurativa ou abstrata, pura ou carregada de pensamento, douta ou popular, espontânea
ou refinada, e assim por diante; o essencial é que seja arte. O estético, como tal, não
toma posições em questões de poéticas. (PAREYSON, 1997, p. 16).
A técnica está intimamente ligada à expressão poética do artista, não obstante Andrade
ter introduzido a questão da técnica enquanto discorria sobre estética. Para ele, “a estética
musical faz parte da própria técnica do músico”. (ANDRADE, 1995, p. 10). Como mencionado
anteriormente, nota-se que a técnica é de maior proveito para o crítico de arte.
Que a poética e a crítica estão essencialmente ligadas à atividade artística fica claro
não apenas quando se pensa que a poética diz respeito à obra por fazer e a crítica à
obra feita: a primeira tem a tarefa de regular a produção da arte, e a crítica a de avaliar
a obra de arte. São indispensáveis ao nascimento e à vida da arte, porque nem o artista
consegue produzir arte sem uma poética declarada ou implícita, nem o leitor consegue
avaliar a obra sem um método de leitura mais ou menos conscientes [...]
(PAREYSON, 1997, p. 11).
Tanto a poética quanto a crítica possuem esse caráter de reflexão sobre a arte, porém,
essa reflexão não pode ser tomada como estética. Para Pareyson o ofício do crítico de arte não
pode ser nem incluída no do filósofo, nem vista como um modo alternativo de pensar a arte
como se fossem iguais. Segundo ele:
[...] poética e crítica, mesmo podendo ser traduzidas em termos de reflexão, nem se
incluem na estética nem se identificam com ela, porque, de preferência fazem parte
de seu objeto, isto é, da experiência estética. A estética é filosofia, e, relativamente a
ela, a arte, com as conexas crítica e poética, são experiência, isto é, objeto de reflexão.
(PAREYSON, 1997, p. 10).
essa poética e converte-la numa concepção geral de arte e inferir que só será arte a obra que se
adequar aos valores nela propostos.
A música brasileira, após ser submetida, por determinado período, aos ideais
nacionalistas ligados ao Modernismo de Mário de Andrade, viria a dividir o espaço com a
música experimental, sobretudo com o surgimento de vários grupos de renovações. Aqui no
Brasil se destacou o grupo Música Viva criado em 1939 por Hans-Joachim Koellreutter (1915-
2015) e um pequeno grupo de músicos. Cláudio Santoro se juntaria ao grupo, juntamente com
Guerra-Peixe, Geni Marcondes, Eunice Catunda para citar alguns. Neste ínterim, Camargo
Guarnieri se posicionaria ao lado de Mário de Andrade.
Dodecafonismo não é um estilo, não é uma tendência estética, mas sim o emprego de
uma técnica de composição criada para a estruturação do atonalismo, linguagem
musical em formação, lógica consequência de uma evolução e da conversão das
mutações quantitativas do cromatismo em qualitativas, através do modalismo e do
tonalismo. Não tendo, por um lado – como toda outra técnica de composição -, outro
fim a não ser o de ajudar o artista a expressar-se e servindo, por outro lado, à
cristalização de qualquer tendência estética, a técnica dodecafônica garante liberdade
absoluta de expressão e a realização completa da personalidade do compositor. (Folha
da Tarde, Porto Alegre, 13 de janeiro de 1951).
Com esta afirmação Koellreutter separa a técnica do que ele chamou “tendência
estética”. Para ele o compositor não seria “antinacional” apenas por lançar mão desta técnica
composicional, ao contrário, o uso da técnica concederia liberdade criativa ao compositor. Em
sua resposta à Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil escrita por Guarnieri, Koellreutter
afirma:
Neste momento histórico do Brasil, em meados do séc. XX, podemos ver facetas
diversas do nacionalismo, onde dois grupos distintos, voltados para os princípios do
nacionalismo, viriam a produzir obras de caráter nacionalista, entretanto com diferenciações
poéticas.
Assim, entrando nos anos 50 o clima era de uma grande luta teórica no Brasil e o
curioso é que o Nacionalismo surgido dessa discussão mostrou que existiriam, dali
em diante, nacionalistas pelas razões mais diferentes, estéticas, políticas ou ambas”
[...]. (PRADA, 2010, p. 25).
É neste sentido que esta pesquisa trata a questão poética, partindo do estudo das obras
destes compositores, Guarnieri e Santoro, observa-se o emprego das técnicas composicionais,
juntamente com os fatores extramusicais, isto é, questões políticas e sociais que acabam por
reverberarem nas composições, enfim, o programa de arte com suas normas, operosidades,
engajamentos, etc.
2.1.3 Estética
A estética é discutida desde os tempos antigos, é bem verdade que não sob o termo
que a designa no contemporâneo. Desde que a filosofia se preocupou em esquadrinhar os
sentidos referentes ao bom, o mau, o bem, a verdade, também incluiu o pensar sobre o Belo e
suas implicações. Dessa forma, a antiga reflexão ou especulação filosófica sobre o belo,
inclusive na arte, seria o que hoje denominamos estética. O emprego da terminologia “estética”
iria despontar apenas no séc. XVIII.
Todavia nem sempre houve uma definição precisa do termo “estética”. A estética,
como vai dizer Pareyson (1997), traz consigo o problema de sua definição, que o autor chama
de “o primeiro problema da estética”. Segundo Pareyson, existem muitas extensões do termo,
fazendo com que nos dias atuais entendamos por estética:
Estas sucessivas extensões do termo fizeram com que hoje se entenda por estética toda
teoria que, de qualquer modo, se refira à beleza ou à arte; seja qual for a maneira como
se delineie tal teoria. (PAREYSON, 1997, p. 02).
Na realidade a Estética inda não está bem determinada no seu conceito porque oscila
entre dois objetos: o Belo e a Arte. Cada disciplina do saber humano só admite um
objeto. Dois objetos implicam duas disciplinas distintas.
41
Em síntese, a Estética seria toda teoria que, de qualquer modo, se refira à beleza ou à
arte. Proporcionando assim uma série de aparentes “estéticas particulares”, como se expressou
Andrade (1995, p. 8). Contudo ainda continuamos nos referindo a uma estética “geral” que
pode ser utilizada em vários âmbitos, da mesma forma como na arte possuímos distintas áreas
artísticas, mas que na totalidade formam apenas um campo, o da arte. Desse modo, podemos
pensar numa estética musical como uma ramificação desse vasto campo.
.
42
Em relação à estética, mais precisamente sobre o que afirma Luigi Pareyson (1997)
sobre as nuances entre arte e a vida, nos é dito que a arte foi entendida como uma atividade que
sobrevém quando o homem já satisfez suas necessidades econômicas e cognoscitivas, resolveu
os seus deveres morais e políticos, como mero deleite, evasão da vida, refúgio na pura
contemplação, voo da imaginação, etc. Mas Pareyson também nos mostra que há uma arte que
quer ser empenhada, militante, engajada, que quer enfrentar os problemas vitais de seu tempo,
que quer difundir uma determinada concepção religiosa, política, social. “Com frequência não
se trata senão de uma diferença de poética, isto é, de programa de arte” (PAREYSON, 1997,
p.39). Ele conclui afirmando que nestes casos trata-se da alternada e exclusiva acentuação de
dois aspectos que, na arte, são inseparáveis e indivisos. Por um lado, a arte está presente na
vida, na operosidade humana, o que ele chama de extensão da arte, e “por outro lado a arte é
também uma atividade especificada, que emerge da vida, e dela emergindo, dela se distingue”
(PAREYSON, 1997, p.40). Mas essa adesão e distanciamento, responsabilidade e evasão,
funcionalidade e gratuidade encontram- se e colaboram entre si. Assim como ele defende a
ideia de uma passagem gradual entre a arte especificada e a extensão da arte (o fazer arte e fazer
com arte), assim também há uma ligação entre arte engajada e arte por pura contemplação.
Tanto essa arte de evasão quanto a arte empenhada, para Pareyson, deve ser explicada
pela estética, e “uma estética que não explique esses dois tipos de arte não é uma estética, mas
uma poética travestida”. (PAREYSON, 1997, p.67). Faz-se necessário compreender sobre essas
funções da arte acima mencionadas, pois se percebe que a música brasileira de concerto das
primeiras décadas do século XX é uma arte fortemente engajada, empenhada.
O grande projeto vai se mostrando, desse modo, como princípios éticos e estéticos, de
caráter geral, que direcionam o fazer do artista: princípios gerais que norteiam o
momento singular que cada obra representa. Trata-se da teoria que se manifesta no
“conteúdo” das ações do artista: em suas escolhas, seleções e combinações. Cada obra
representa uma possível concretização de seu grande projeto. (SALLES, 1998, p.39).
Capítulo III
Por outro lado, Mário de Andrade se tornaria para Guarnieri um orientador em questões
estéticas, filosóficas e culturais. Escritor este que participou ativamente através dos seus escritos
no campo da música brasileira, principalmente com sua obra “Ensaio sobre a música
brasileira” (1928), que segundo Rodrigues trata-se de um “livro que é um verdadeiro divisor
de águas do nosso modernismo de cunho nacionalista. (RODRIGUES, 2015, p. 108).
Muito da música nacionalista, nesta primeira metade do século XX, seria elaborada
considerando os princípios descritos neste livro de Mário de Andrade e as próprias críticas de
Andrade às obras de Guarnieri estariam baseadas no mesmo. Rodrigues nos conta que “em suas
críticas às primeiras obras de Guarnieri, Mário foi coerente com o texto do “Ensaio”. Elogiava
a música, a prática polifônica do compositor, mas fazia restrições ao uso excessivo de
contraponto. ” (RODRIGUES, 2015, p.109).
Na intenção de examinar alguns aspectos da música nacionalista de Guarnieri,
tomamos a peça “Dansa Negra” composta em 1946, um ano após o falecimento de Mário de
Andrade. Posteriormente, isto é, no ano seguinte, Camargo Guarnieri também apresentaria um
arranjo, ou adaptação desta obra, para orquestra. Em seguida, também, escreveria uma versão
para dois pianos. Segundo Verhaalen (2001, p. 435), “a Dansa Negra” completa o ciclo das três
danças de Guarnieri”, quais sejam, a Dansa Brasileira (1928), a Dansa Selvagem (1931) e a
45
Dansa Negra (1946); ambas escritas para piano solo e com versões adaptadas para orquestras
pelo próprio compositor.
A primeira versão, escrita para piano solo, teve lugar após a visita do compositor a um
terreiro de candomblé, na Bahia. Verhaalen, em seu livro Camargo Guarnieri: Expressões de
uma vida (2001, p. 101), nos conta que:
A dança negra surgiu de uma visita que Guarnieri fez a uma cerimônia de candomblé
durante a sua viagem a Bahia, em 1937. Ele contava que, acompanhado de um amigo,
o escritor Jorge Amado, foi de táxi ao local da cerimônia. O táxi precisava subir uma
íngreme ladeira e em certo ponto o motorista avisou que eles teriam que andar o resto
do caminho. Os dois foram até o topo em silêncio, em escuridão total, ouvindo o som
dos cantos e das danças. À medida que se aproximavam do terreiro, os sons se
tornavam cada vez mais alto. Essa estória explica o arco dinâmico que se encontra na
peça. Guarnieri dizia: “A obra deve se iniciar em pianíssimo e crescer até atingir o
volume máximo; a partir daí, diminui novamente. ”
Nossa primeira impressão ao escutar a peça, estando ela ainda nos primeiros
compassos, é notar um ostinato introduzido pelo compositor, que tem lugar na mão esquerda
do pianista. Posteriormente inicia-se uma melodia cantante e regular. Essa melodia cantante é
característica da modinha brasileira. A esse respeito Rabelo nos diz:
Através do relato narrado por Verhaalen, entendemos que toda a ritualística africana
do candomblé foi levada em conta nesta obra pelo compositor, assim, a peça toma um gesto de
ostinato aludindo à cerimônia afro e aos movimentos inerentes do ritual para o transe hipnótico
dos seus adeptos. Partindo do título da obra, Dansa Negra, nota-se tanto os elementos da cultura
popular considerados pelo compositor, isto é, as danças populares, o canto, o ritual, o povo, o
que outrora nos referimos como o assunto da obra de arte, bem como a maneira como Guarnieri
traduziu esses elementos, envolvendo toda sua espiritualidade no modo de formar, isto é o
conteúdo da obra de arte.
Em alguns trechos da Dansa Negra é perceptível o uso dos cromatismo e apogiaturas
sendo, hipoteticamente, uma referência aos glissandos, comuns nas vozes do canto afro, como
circulado na figura 1.
46
Após a morte de Mário de Andrade, em 1945, Guarnieri ousou compor obras mais
livres dos princípios contidos no Ensaio, porém, logo tomaria para si a responsabilidade de
defender as bases do nacionalismo marioandradiano. Deste modo, Camargo Guarnieri tornou-
se o principal defensor dos ideais nacionalistas, fazendo com que em 1950 publicasse sua Carta
aberta. Rodrigues nos conta:
Em sua Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil (1950), Guarnieri chamou sobre
si a responsabilidade de defender o nacionalismo musical ante as influências
internacionalistas e retomando o discurso de Mário de Andrade, que morrera cerca de
cinco anos antes, reiterou a importância do folclore e seu estudo, na formação dos
compositores brasileiros. (RODRIGUES, 2015, p.120).
O folclore, nesse sentido, integra o assunto da obra de arte, um dos elementos que
Guarnieri procurou enfatizar o estudo por parte dos compositores, por conseguinte, esse estudo
e assimilação do folclore ressoaria na espiritualidade formante do compositor, isto é, o
conteúdo.
A música nacionalista de Guarnieri possui algumas características recorrentes, dentre
elas destacam a textura polifônica, mencionado anteriormente, também o uso das chamadas
“terças caipiras” - um traço mais regional, o ostinato e o emprego de escalas modais. Sobre as
terças, Rodrigues explica:
[...] nada é mais característico de Guarnieri, tornando-se sua própria marca registrada,
que o uso de melodias em terças paralelas, o que se convencionou denominar “terças
47
Na Dansa Negra, no entanto, as terças paralelas são empregadas de maneira sutil, por
vezes, se mostrando invertidas, isto é, por meio de intervalos de sexta, já o emprego do ostinato
é evidente. Guarnieri também se valia dos modos como uma forma de livrar-se da rigidez da
tonalidade. Esta foi uma característica que se tornou cada vez mais presente na obra do
compositor, uma fuga gradativa da sonoridade tonal, como corrobora a afirmação de Rodrigues:
dos acordes. Rodrigues afirma que “Na maioria das vezes, a direcionalidade dos acordes não
determina seus sucessores e ambos são escolhidos somente pelas suas cores. ” (RODRIGUES,
2015, p. 128). O próprio Guarnieri viria afirmar: “O uso de certos agrupamentos de som, mais
como efeito de bloco sonoro, sem relação alguma com a tonalidade ou com acorde, no sentido
clássico, está me abrindo novos caminhos para resolver certas dificuldades que outrora
encontrava”. (GUARNIERI, 1943, apud SILVA, 2001, p. 293). Estes blocos de acordes,
principalmente aqueles que são empregados apenas pelas “cores” e que não determinam seus
sucessores, não estão presentes na Dansa Negra; os agrupamentos de acordes que Guarnieri
emprega nesta obra integram a melodia principal, com exceção do último compasso da peça,
onde está presente um acorde bem dissonante.
Guarnieri, apesar de ter suas obras firmadas no tonalismo, possuía um apreço pelas
dissonâncias. Rodrigues a esse respeito nos elucida:
Guarnieri nutria um gosto especial pela dissonância e esta, na maioria das vezes,
possuía finalidade colorista, não o objetivo de intensificar a direcionalidade dos
acordes. Assim sendo, pode-se estabelecer um remoto parentesco entre o pensamento
musical do impressionismo francês e seu comportamento pessoal em relação à
harmonia. Entretanto, em sua música a dissonância é mais dura, mais contundente que
aquela normalmente empregada pelo grupo de compositores franceses.
(RODRIGUES, 2015, p.128).
Na Dansa Negra esse apreço pela dissonância é melhor percebido nos quatro últimos
compassos da peça, onde Guarnieri utiliza um movimento ascendente, com muito cromatismo
numa dinâmica pianíssimo, e que conduz ao último acorde da peça que conta com atritos de
semitons.
O emprego de dissonâncias por parte de Guarnieri passou por uma curvatura. Por um
tempo, Guarnieri passou a escrever músicas mais voltadas para o atonalismo, e esse período foi
um tempo de experimentação.
Em 1933, comecei a estudar muito Hindemith e neste período minha música se tornou
meio atonal. Mas, depois, cheguei à conclusão de que aquilo era muito fútil. Então
adicionei os elementos que me interessavam e continuei com minha música.
(GUARNIERI, 1981, p. 8).
Neste período de experiências com uma música “mais atonal”, Mário de Andrade não
deixaria de tecer suas críticas às obras de Guarnieri. Mais inclinado à música tonal, e com
aversão à música de vanguarda de caráter atonal, por meio de cartas, teceu comentários acerca
de sua música:
Mas você, levado pela mania da dissonância, do cromatismo, da alteração que acabou
dissolvendo a função harmônica da dissonância, perdeu totalmente as estribeiras [...]
Mas aí se introduz o problema mais terrível da música do nosso tempo: o atonalismo.
É a libertação da tonalidade e consequentemente do acorde que criou essa epidemia
da alteração, que acabou usando a alteração pela alteração, isto é, sem nenhuma razão
humana. A dissonância se tornou inteiramente gratuita e se introduziu no corpo da
própria melodia, com a mesma gratuidade. [...] Uso da dissonância pela dissonância,
gratuitamente. Abuso da alteração, atingindo um atonalismo perigoso. (ANDRADE,
1934, apud SILVA, 2001 p. 206-208).
Essa foi a primeira inclinação de Guarnieri a um material de caráter mais atonal. Como
mencionado, o compositor retornaria à sua maneira de compor, entretanto mais uma vez,
lentamente, Guarnieri caminharia em direção à atonalidade, e nas décadas de 60 e 70 atingiria
seu ápice de distanciamento do tonalismo. Assim escreve Rodrigues (2015, p.125):
Mesmo Guarnieri, anos mais tarde, utilizava com frequência o termo “meio atonal”
para qualificar sua música de então, mas preferia o termo “tonalidade fugidia” ou
“tonalidade fugitiva” para denominar o comportamento harmônico daquela música.
Este termo foi empregado por Guarnieri e Mário de Andrade, em algumas ocasiões,
referindo-se à “tonalidade fugitiva de Machabey12”. (RODRIGUES, 2015, p. 132).
Você se deixa levar demais pelas formas existentes. Você ainda não criou uma forma
sua, ou formas livres sua. [...] suas peças instrumentais para piano são todas um dormir
na rede duma forma já estereotipada que você jamais se preocupou de transformar.
Um eterno ABA que está na Canção sertaneja, como na Toada ou na Dança
Selvagem. Pra você um allegro de sonata tem que ter a forma fixa, e nem ao menos
você se amola ao sutilizá-la, transformá-la, de forma que, sendo a mesma de todos,
tenha a modalidade sua. (ANDRADE apud SILVA, 2001, p. 216-217).
Não obstante, Guarnieri não conferiu à Dansa Negra a forma ABA, comum em suas
composições. Todavia, entendemos que a obra conta com três seções (A, A’, A), como veremos
a seguir. Assim, a peça apresenta dois temas que surgem por onze vezes no decorrer da obra,
geralmente com variações. Deste modo, a primeira seção (A) compreende os compassos 1 a 41,
vide partitura em anexo. É sobretudo nesta instância que Guarnieri apresenta os dois temas de
maneira intercalada num sistema 1-2-1-2. O acompanhamento, em ostinato, se inicia antes do
12
Armand Machabey (1886-1966) foi um compositor e musicólogo francês.
51
primeiro tema, e é desenvolvido por meio do emprego de uma escala pentatônica (Dó#-Ré#-
Fá#-Sol#-Lá#). Inicialmente, Guarnieri prescreve para este ostinato na mão esquerda a
dinâmica piano. Como dito anteriormente, a peça foi composta após visita de Guarnieri a um
terreiro de candomblé. Como se dirigiu a pé para o local, os sons ouvidos por ele começaram
de maneira tênue e cresciam à medida em que se aproximava do local. Desta forma, o segundo
tema inicia com a dinâmica piano aludindo ao som fraco ouvido por Guarnieri devido à
distância do compositor.
Em relação à articulação, propõe-se que a mão esquerda seja executada em Legato.
Aparentemente para dar um efeito sombrio, obscuro, como sugerido pelo compositor,
juntamente com o uso do registro grave do instrumento.
O andamento é claramente estabelecido no início da peça com a mínima estabelecida
em 76 bpm, e não deve ser ignorado. O ostinato da mão esquerda juntamente com a melodia da
direita confere à peça uma fluidez, e o movimento ascendente da mão esquerda contribui para
isso. Deste modo, uma execução muito rápida ou lenta da peça poderia descaracterizar a
proposta sonora pretendida pelo compositor
Voltando-se para os rituais africanos, se alcança um estágio de transe, geralmente
através da repetição de sons e movimentos, e isto não ocorre de maneira imediata, é necessário
manter-se em absorvido nos processos do ritual e gradualmente, eventualmente, se atinge o
ponto do clímax. Da mesma maneira, esta composição de Guarnieri indica que o executante
deve seguir com naturalidade uma trajetória que vai desde a sutileza sonora até a um clímax
transcendental.
A melodia do primeiro tema tem seu início no terceiro compasso. Guarnieri faz uso de
outra escala pentatônica na melodia (Sol#-Lá#-Dó#-Ré#-Mi#), resultando em escalas
pentatônicas sobrepostas, uma na mão direita e outra diferente na mão esquerda. Para esta
melodia, utilizou-se o registro médio do piano, apresentado de maneira cantante – uma forte
característica da música folclórica brasileira – fazendo com que se assemelhasse a uma melodia
vocal. Provavelmente daí a sugestão do legato e respirações nos finais das frases, apontando
para as características da voz humana.
O emprego dessas características folclóricas, para Guarnieri, viria por meio de sua
própria experiência de vida; para ele, seu nacionalismo seria algo espontâneo, sua música era
nacional devido a sua nacionalidade apenas. Ele mesmo tomaria para si mesmo uma definição
encontrada em O banquete (1978), onde um dos personagens de Mário de Andrade, o
compositor Janjão, respondendo a quem o classificou como nacionalista diria: “Não sou
nacionalista, Pastor Fido, sou simplesmente nacional. Nacionalismo é uma teoria política,
52
mesmo em arte. Perigosa para a sociedade, precária como inteligência. ” (ANDRADE 1989, p.
60). Para Rodrigues (2015, p. 115), “Guarnieri, que adotou o posicionamento acima para si
mesmo, bem gostaria de ser ele mesmo o Janjão [...]. O próprio Koellreutter, compositor alemão
radicado no Brasil, confirmaria isto quando teceu comentários sobre a música de Guarnieri:
Esse estilo abusivo do material folclórico, também foi criticado pelo próprio Guarnieri.
O folclore, para os nacionalistas, seria a fonte principal de material para elaboração de uma
música nacional, entretanto o desafio estava na maneira como o compositor abordaria este
conteúdo. Guarnieri (1945, p?), a esse respeito, viria exortar:
13
A entrevista foi publicada em 9 de novembro de 1945, no jornal A Noite, de São Paulo, porém o recorte não
exibe o número de página.
53
Guarnieri quis deixar claro que seu estilo, toda essa inclinação para a música nacional,
antecedia seu contato com Mário de Andrade. Tratava de um estilo pessoal, como ele próprio
afirmaria “à minha moda”. Assim o compositor se expressou:
Olha, vou dizer com toda franqueza: quando conheci o Mário, eu já estava escrevendo
música nacional, a Dança Brasileira, a Canção Sertaneja, depois escrevi a Sonatina
de 1928, que é dedicada a ele [...] Então ele mandou tocar e eu toquei, à minha moda.
E o Mário disse: “É, encontrei aquilo que estava esperando. ” (GUARNIERI, 1981,
p. 9).
Somente a observação dos títulos das obras de difusão interdita, compostas entre1918
e 1928, já sugere que muitas delas deveriam possuir características musicais
brasileiras: Toada da minha terra (1923), Samba (1924), A viola lá de casa (1925),
Canção das Yaras (1927), restringindo-se somente àquelas que possuem títulos mais
indicativos. (RODRIGUES, 2015, p.115).
Não obstante Guarnieri apresentar sempre uma autonomia em suas obras, não estando
totalmente à mercê das posições de Mário de Andrade, ainda assim procurava observar alguns
critérios que a música nacional haveria de possuir, e tais critérios estariam condensados no
conhecido Ensaio sobre a música brasileira de Mário de Andrade.
Mário de Andrade, pela sua proximidade com Guarnieri, compreendia muito bem os
elementos que compunham a música do compositor. E em certa ocasião, escrevendo para
Guarnieri sobre uma discussão em que os críticos apontavam a música de Guarnieri como
regional e não nacional, fez uma leitura muito clara sobre a música de Guarnieri:
há um tom geral (que também deriva deles), tonalizando suas obras, e que é caipira,
fundamentalmente caipira, quintessenciadamente caipira. É um dado de caráter, um
dado de personalidade, uma contribuição muito sua e, por tudo isto, só digna de
louvor. (ANDRADE apud SILVA, 2001, p.270).
Em relação às dinâmicas, a música parte desde o ppp ao fff. O teclado do piano é bem
explorado, desde os sons mais graves aos mais agudos.
A segunda seção (A’) da peça tem seu início no compasso 45 e perdura até o compasso
84, e também apresenta os dois temas de maneira intercalada, num sistema 1-2-1-2. Do
compasso 41 ao 44 a característica do crescendo contínuo, mencionada anteriormente, está em
curso, conduzindo para o compasso 45 onde o primeiro tema reaparece de maneira enfatizada
através de melodias oitavadas com dinâmica forte, sob um ostinato enérgico e opulento que
também conta com acordes que se intercalam, contribuindo para um aspecto agitado.
A partir do compasso 71, o segundo tema é repetido na mão direita. O ostinato também
surge por meios de acordes que saltam da região grave para a média. Por meio do cromatismo,
o resultado sonoro apresenta uma característica cada vez mais tensa, assim, contribuindo com
um crescendo acompanhado de um acelerando que conduzem ao fff. (Clímax – estágio de
transcendência) nos compassos 78 a 83. Logo após, há um refreio no andamento e na textura
com o propósito de retomar o trecho inicial.
Por último, temos a terceira seção da peça (A), que compreende os compassos 85 a
123, onde os temas configuram-se num sistema 1-2-1. Do compasso 85 ao 114, há uma
repetição idêntica à parte inicial, que compreende os compassos de 1 a 30.
59
Com estes dados, fica evidente nesta obra a musicalidade afro, sobretudo a presente
no candomblé, expressada através do desenvolvimento do ostinato que parte da sutileza até o
transe, ou clímax.
Observando assim a trajetória de Guarnieri como compositor, percebe-se que a o ideal
nacionalista pensado por Mário de Andrade, e aderido e defendido por Guarnieri na metade do
séc. XX, quando este publicou a Carta aberta, isto é, uma música nacional que seja próxima e
palatável ao popular, afastando o atonalismo, principalmente o dodecafonismo por se tratar de
técnica estrangeira, não foi o resultado final atingido pela música de Guarnieri, visto que este
em suas últimas obras não demonstrou preocupação em conservar a tonalidade harmônica em
suas obras. Nas palavras do próprio Guarnieri: “Eu não tenho mais preocupação com
tonalidade. Hoje nem me interessa saber o acorde, o que vale é o som que ouço. Aquilo que eu
sinto, vou escrevendo. ” (GUARNIERI, 1991, p. 7). Rodrigues complementa:
Ao início da década de 1960, pouco a pouco, pode-se perceber que a tonalidade das
obras de Guarnieri torna-se imprecisa, chegando mesmo à atonalidade, porém de
maneira mais decisiva e intencional que no início da década de 1930. Um conceituado
crítico14 observou que havia uma “atmosfera de indeterminação tonal”, na Sonata nº
5 para violino e piano (1961), e a “libertação inteligente quanto ao tonalismo
harmônico”, no Quarteto de cordas nº 3 (1962). (RODRIGUES, 2015, p. 134).
Assim, no período que vai de 1965 a 1982, Guarnieri compunha uma música onde o
material de origem popular estaria inserido de uma maneira muito sutil, quase imperceptível
num primeiro momento. Ao mesmo tempo em que a tonalidade de suas composições se tornou
tão indefinida que beirou a atonalidade, por vezes o sendo.
Deste modo, tomando a Dansa Negra como base de observação, percebemos a
consideração de Guarnieri para com a cultura popular, os cantos, o ritual, a religiosidade, o
folclore, não obstante também constatamos seu apreço pelas dissonâncias, que são indícios de
seu gradativo afastamento da tonalidade.
14
João da Cunha Caldeira Filho (1900-1982), músico e crítico musical paulista. In: Caldeira Filho, J. C. A
aventura da música: subsídios críticos para apreciação musical. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1968, p. 84 e 87.
61
Capítulo IV
Lembro me quando fui estudar com Koellreutter em 1940 e meses depois lhe
apresentei o início da minha sinfonia para 2 orq. de cordas, que dava o nome de
“sinfonieta”, e que este perguntou se conhecia Shoenberg e a técnica dos 12 sons,
disse-lhe que não como era a verdade, mas ele não acreditou muito porque disse: “
isto parece escrito por quem conhece a técnica dos 12 sons”. (SANTORO apud
MENDES, 2009, p. 23).
Esse compor “à minha maneira” aponta para a liberdade referida acima, como vimos
Santoro aliava princípios composicionais de Hindemith, o dodecafonismo, e o que Mendes
chamou de “tonalidade ampliada” (MENDES, 2009, p. 29), que foi um estilo utilizado por
62
Santoro antes do seu contato com Koellreutter. Mendes ainda afirma: “para Santoro sua música
não deveria sujeitar-se às imposições da ordenação interna da série, mas, ao contrário, a série é
que deveria adaptar-se às suas necessidades expressivas de cada momento”. (MENDES, 2009,
p. 39). Sobre seu percurso estilístico Cláudio Santoro explicou:
Para eles, a música dodecafônica (e tudo que escapava ao tonalismo estrito era
chamado de dodecafônico) carecia de força expressiva (confundida com a
sensibilidade epidérmica de certo romantismo), correspondia somente ao desejo de
rápida notoriedade (sucesso pelo escândalo), justificava-se apenas pela aplicação de
normas técnicas super-racionais, tirando sua lógica do capricho incontrolado dos
compositores. Em outras palavras, a nova música era acusada, ao mesmo tempo, de
falta e excesso de organização (falta de organização por não responder às normas
estruturais da música tonal, excesso de organização pelo extremo rigor lógico dos seus
processos composicionais). (NEVES, 2008, p. 148).
Santoro, neste período, muito se distinguiria daquele nacionalismo que bebia da fonte
do folclore e da música popular, pelo contrário, sua música não se preocupava com esses
elementos que conferiam à música uma brasilidade. Neves nos diz que sua obra nesse período
é “feita de rico pensamento polifônico construído sobre estruturas harmônicas ásperas, que
fogem intencionalmente de toda exteriorização sentimental e recusam qualquer ligação direta
com a temática melódica ou rítmica da música folclórica brasileira. ” (NEVES, 2008, p. 150).
63
Entretanto, Santoro não permaneceria nesta posição por muito tempo, e a partir de
1946 ele entraria num período de transição para uma música que se aproximava mais do povo,
que fosse mais inteligível ao público.
De qualquer forma, Santoro não manteria essa postura, como ele próprio escreveria
posteriormente a Koellreutter: “Você bem que tinha razão quando dizia que voltaria [ao
serialismo] um dia. É verdade. A experiência dos últimos 10 anos não foi em vão. Deu-me
segurança para poder fazer hoje o que desejar com o material sonoro. ” (SANTORO 1962 apud
MENDES, 2009, p. 141).
Para observamos algumas características da música nacionalista de Santoro, ou sua
proposta de elaboração de uma música nacional, tomamos a Dansa Brasileira nº 02. A referida
obra está inserida no período nacionalista do compositor, assim como a Dansa Brasileira nº 01,
ambas escritas para piano solo e compostas no mesmo ano.
A Dansa Brasileira nº 02 foi composta em 1951 por Cláudio Santoro, compositor este
que segundo Mendes, perpassou por seis períodos estéticos composicionais: Serialismo
dodecafônico (1939-1946); período de transição (1946-1948); Nacionalismo (1949-1960);
retorno ao serialismo (1960-1966); período Avant-Garde (1966-1977); período de maturidade
(1979-1989). (MENDES, 2009).
Neste período de transição do serialismo dodecafônico para o nacionalismo, as
primeiras divergências ideológicas apareceriam entre Cláudio Santoro e Koellreutter. Santoro
passaria a se preocupar mais para que sua música estivesse em consonância com sua ideologia
política, enquanto que Koellreutter assumiria uma postura mais comedida, de modo que as
ideologias não viessem a afetar, de maneira tão incisiva, sua produção musical.
Esse seria o período de transição estilística de Santoro, que alcançaria seu ápice após
sua ida para a França e principalmente após sua participação no II Congresso de Compositores
de Praga (1948).
Acredito que as pesquisas e as experiências na técnica dos doze sons são importantes,
principalmente no que concerne em auxiliar o desenvolvimento da forma. Porque,
com a dilatação da expressão, sua renovação para uma tendência pró-atonalismo,
15
Título em Francês: “Lé Problème du Compositeur Contemporain Dans sa Position Sociale”.
65
Não obstante, Santoro viria a perceber que o objetivo e a direção que o congresso
apontaria seria o da assimilação e compreensão da arte pelo povo, divergindo assim da sua
apresentação. Como nos explica Mendes:
Para sua surpresa, a defesa que empreendera do atonalismo como reflexo de uma
evolução social deflagrada pelo avanço do mundo socialista sequer fora considerada.
Ainda que estivesse de acordo com a tese de que “a compreensão da arte pelo povo”
se firmava como “o critério fundamental da estética progressista” [...] em momento
algum, Santoro teria imaginado que uma de suas principais convicções, qual seja, “a
simplificação das concessões”, estaria em franca oposição ao que seus pares
defendiam como a postura estética de um compositor engajado na causa comunista.
(MENDES, 2009, p. 102).
16
SANTORO, Cláudio. Oú va la Musique? “Le Problème du Compositeur Contemporain Dans sa Position
Sociale”. [1948] p. 1.
17
SANTORO, Cláudio. Correspondência a Vasco Mariz: 25/10/48
66
Santoro, portanto, apresenta uma reviravolta em suas crenças após sua participação no
congresso. A sua primeira postura, isto é, a que antecedia ao congresso, seria uma defesa do
sistema atonal como elemento chave da arte revolucionária, entretanto, após a conferência,
passa a afirmar que a arte revolucionária verdadeira seria aquela oriunda de elementos que
constituem o proletariado, que está próxima e inteligível ao povo.
Por ter passado a dar importância à música do povo, o que não demonstrava no começo
de sua carreira como compositor, Santoro viu-se na necessidade de conhecer melhor a referida
música, assim ele revela através de uma correspondência:
[...] um deles é ver se fico uns dois anos no norte, isto é, Recife, por exemplo, a fim
de estudar seriamente o nosso folclore e formar uma série de estudos profundos sobre
a origem modal da nossa música, quais as leis que inconscientemente a regem, colher
tudo o que puder para ver se organizo um livro sobre as bases da construção da nossa
música, como formação melódica e daí partir para um possível livro sobre contraponto
e harmonia.18 (SANTORO apud HARTMANN, 2010, p. 462).
Tal decisão foi tomada por Santoro, pois, dentre um dos assuntos em pauta no
congresso de Praga era a de uma educação musical fundamentada nas bases populares e
folclóricas de cada região.
Como vimos, Santoro demonstrou grande engajamento com os assuntos discutidos na
conferência, enquanto que Koellreutter não abraçaria de todo às resoluções do congresso de
Praga, pois discordava que compor música atonal ou dodecafônica seria um retrocesso, para ele
havia uma “confusão” sobre expressões do tipo “forma”, “conteúdo” e “técnica”. Em
correspondência a Santoro ele viria a argumentar:
A técnica é apenas um meio, mas nunca um fim e tão pouco um característico. [...]
Acho que não devemos discutir a “técnica”, mas o “conteúdo”. [...] pode-se estar
ideologicamente dentro do “Manifesto de Praga” de uma como de outra maneira.
(Escrevendo em dó-maior ou na técnica dos doze sons). Em tudo isso, em toda essa
discussão, é necessário separar o conteúdo, a técnica e os elementos formais da obra.
O nosso problema é o conteúdo. Um novo conteúdo. Este criará uma nova forma como
todos sabemos. (KOELLREUTTER apud MENDES, 2009, p. 114).
Por meio desta sua afirmação, Koellreutter também procurou demonstrar que como se
tratava de um problema de conteúdo e não de técnica, poder-se-ia compor música tonal com
um conteúdo pobre. Através desta afirmação de Koellreutter, notamos que há uma distinção
entre o conceito de conteúdo da maneira que foi concebida por Pareyson; Koellreutter separa
conteúdo da técnica, como se a técnica fosse apenas um meio do artista elaborar o conteúdo, já
18
SANTORO, Cláudio. Correspondência a Curt Lange: 13/09/48
67
para Pareyson, a técnica é parte integrante do conteúdo, que é todo o modo de formar do artista,
toda sua espiritualidade formante.
Após sua estada na França, Santoro também se preocuparia com questões como
“conteúdo negativo” e “conteúdo positivo” na música. Tomando como conteúdo negativo a
música que abate o ânimo e o conteúdo positivo como a que incita o indivíduo à ação. Assim
Santoro consideraria a música dodecafônica como sendo possuidora de um conteúdo pessimista
ou negativo. E nesse sentido, ele também reprovaria aspectos do nacionalismo vigente no
Brasil. Segundo ele:
[...] também a afirmação categórica feita por Santoro através de seu artigo de que o
atonalismo gerava obras de conteúdo mórbido e pessimista só poderia encontrar
resistência por parte de Koellreutter. Para ele, se o conteúdo era algo independente da
técnica, não teria que ocorrer necessariamente esta relação obrigatória entre
atonalismo e conteúdo negativo, já que este último poderia surgir em qualquer obra
independente da técnica empregada. (MENDES, 1999, p. 47).
Um dos recursos técnicos de composição mais empregado por Santoro neste período
nacionalista foi o ostinato, e trata-se do primeiro aspecto percebido na audição da Dansa
Brasileira nº02; um ostinato na mão esquerda com as notas Do e Fá#. Acerca do ostinato na
obra de Santoro, Mendes afirma:
Assim, Santoro introduz nesta sua obra um longo ostinato na mão esquerda que vai do
compasso 01 ao 77, com algumas rápidas interrupções presentes nos compassos 46 e 48.
Aqui, o referido ostinato, como mencionado por Mendes, tem como propósito
constituir uma base harmônica, sobre a qual a melodia, que se inicia desde o primeiro compasso,
se desenvolve.
Nesta obra, Santoro utiliza figuras rítmicas bem regulares, geralmente empregando
articulações como acento, tenuto e staccato, dispensando o uso de apogiaturas; ao longo de toda
composição, apenas quatro figuras rítmicas são empregadas, a mínima, semínima, colcheia e
semicolcheia. A partir do compasso 47 também há o emprego da semínima e da colcheia
pontuada.
Apesar da peça não possuir acidentes na armadura de clave, e também iniciar e recorrer
frequentemente à nota dó, a peça constitui-se de um sistema modal. Santoro utiliza o modo
Lídio de dó (do-ré-mi-fá#-sol-la-si); o intervalo de quarta aumentada, no caso fá#, é bem
recorrente.
69
A utilização dos modos é uma característica muito marcante nas obras de Cláudio
Santoro no período em que sua orientação estética estava voltada para o nacionalismo. Como
afirma Mendes:
A escolha de Santoro pela utilização das escalas modais se deu sobretudo pela maior
liberdade de criação em relação ao sistema tonal convencional, tal como explica Mendes:
Livre dos estereótipos harmônicos do sistema tonal clássico, tal como, por exemplo,
a relação dominante-tônica gerada pelo emprego da sensível, as melodias modais
predominantes no período possibilitaram o emprego no acompanhamento de um
vocabulário harmônico amplo, contendo, desde as formações triádicas tradicionais,
acrescidas ou não de dissonâncias variadas, até as harmonias baseadas na
superposição intervalar de quartas e quintas. (MENDES, 2009, p.120).
Retornando ao princípio da peça, temos o tema inicial apresentado nos primeiros quatro
compassos da obra, iniciando uma seção que vai do compasso 01 ao 28.
A partir deste ponto Santoro utiliza um esquema de “pergunta e resposta”, que servirá
também de transição para a parte de maior intensidade da composição.
72
A partir do compasso 77, se encerra o uso do ostinato na mão esquerda e a peça passa a
contar com apenas uma nota oitavada no primeiro tempo forte do compasso. Em seguida, temos
o início de outra seção da peça com novas figuras rítmicas, partindo do compasso 79 ao 97. Na
Dança Brasileira nº 02, Santoro não emprega uma forma musical “consagrada”, como um ABA;
a peça, pelas figuras rítmicas que apresenta, parece contar com duas seções, a primeira
compreende os compassos 01 a 78 e a outra seção parte do compasso 79 ao 105.
A música, assim, caminha para atingir seu clímax, através de uma dinâmica que parte
do ff e vai ao fff, acompanhado de blocos de acordes de quatro notas.
É neste trecho também que Santoro emprega a figura rítmica sincopada muito utilizada
na música brasileira, semicolcheia-colcheia-semicolcheia.
73
A peça é conduzida para uma coda, onde Santoro salta de uma dinâmica fortíssima para
um súbito piano, com notas executadas num andamento lento, como sugerido pelo compositor.
Após uma fermata em pianíssimo, a peça se encerra retomando sistema modal na qual se
iniciou, novamente com uma dinâmica fortíssima e com o andamento prestíssimo.
74
A Dansa Brasileira nº02 de Cláudio Santoro é uma peça de curta duração, com um
andamento por volta das 92 a 100 bpm para a semínima. A peça dura entre 2’20’’ a 2’30’’
aproximadamente, e não conta com ritornelos.
Pode-se afirmar que a Dansa Brasileira nº 02 foi composta num período em que
Cláudio Santoro contava com grandes desafios, pois segundo ele, após sua participação no
Congresso de Praga, seria necessário todo um período de estudos, pesquisas e a reformulação
de uma nova maneira de compor, que estivesse mais de acordo com seus princípios, que haviam
sido alterados recentemente. Sobre estes desafios para construir uma nova musicalidade
Mendes nos diz:
Ainda sobre esta questão, Bandeira nos dá uma lúcida descrição dos desafios que
Santoro viria a enfrentar:
Várias foram as tentativas, erros e acertos, que Santoro viria a experienciar. Por vezes
iniciou obras que terminariam por inacabadas, diante dessa “crise” ele mesmo viria afirmar:
75
A crise que atravesso é terrível e não sei ainda qual será a consequência. ...Tenho
mudado muito e meu Balet [ballet] “A Fábrica” continua caminhando muito
lentamente, porque representa a primeira obra escrita dentro da nova linha. Os temas
embora sejam meus são de caráter puramente populares e brasileiros, quanto ao
conteúdo, este é expressado principalmente no final porque os dois primeiros quadros
são muito dramáticos pela tragédia e brutalidade com que se desenvolve a cena, mas
o final representa a vitória do proletariado sobre as forças da reação burguesa, dando
aí um ensejo de facilitar a procura de um conteúdo positivo. (SANTORO apud
MENDES, 1999, p. 52).
Assim como Guarnieri, Santoro não viu no sistema tonal estrito, o meio ideal para a
criação de sua música. Apesar do seu forte posicionamento no tocante a elaboração de uma
música inteligível à população, Santoro também empregaria dissonâncias em suas obras.
Mendes nos descreve alguns elementos empregados por Santoro na composição musical desta
fase do compositor:
[...] Santoro tomaria inicialmente as escalas modais como o principal material para a
construção de grande parte de suas melodias nacionalistas [...] Livre dos estereótipos
harmônicos do sistema tonal clássico, tal como, por exemplo, a relação dominante-
tônica gerada pelo emprego da sensível, as melodias modais predominantes no
período possibilitaram o emprego no acompanhamento de um vocabulário harmônico
amplo, contendo desde as formações triádicas tradicionais, acrescidas ou não de
dissonâncias variadas, até as harmonias baseadas na superposição intervalar de
quartas e quintas. (MENDES, 2009, p. 120).
Santoro permanece atento aos aspectos dessa “musicalidade brasileira”, e até se oporia
ao pensamento de Koellreutter quando surge a afamada discussão sobre a Carta Aberta
publicada por Guarnieri. Entretanto, isto não permaneceria assim. Outra vez o compositor
gradativamente retornaria à música atonal e até dodecafônica como nos conta Mendes:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da complexidade que é o estudo da música, como dito em outra ocasião, devido
sua abrangência, pudemos observar alguns aspectos que constituíram o nacionalismo brasileiro
na música de concerto, seja sua ideologia, alguns de seus atores, seu contexto histórico, pontos
sobre a estética e poética presente neste período. Notadamente, essa preocupação em forjar
músicas que representam uma nação antecedeu o movimento nacionalista brasileiro, sendo já
percebida no início do século XIX na Europa.
Naturalmente, os compositores brasileiros também apresentariam esse anseio em criar
uma música que expressasse a alma brasileira, como visto, a princípio encontramos mais
tendências criadoras que uma música objetiva já com os elementos nacionais bem diluídos.
Dentre tais compositores essa pesquisa tomou Camargo Guarnieri e Cláudio Santoro
devido suas trajetórias e pela busca dos mesmos de elaborar uma música que representasse o
povo brasileiro. Para isto, optamos pela escolha de duas obras do período nacionalista de ambos
compositores: a Dansa Negra (Guarnieri) e a Dansa Brasileira nº 02 (Santoro) como base de
observação.
Alguns critérios foram elegidos na escolha das duas obras apresentadas nesta pesquisa,
Dansa Negra (1946) de Camargo Guarnieri e Dansa Brasileira nº02 (1951) de Cláudio Santoro.
O primeiro aspecto que pode ser percebido é o fato das duas obras se constituírem danças.
Ademais há um recorte temporal que aproxima as duas obras. As duas composições também
são para instrumento solo, neste caso piano. E a característica fundamental é que as duas obras
constituem parte da nossa música nacionalista de concerto.
Este nacionalismo, principalmente no que se refere aos dois compositores
mencionados, se apresenta nestas obras de maneira distinta, em diferentes momentos. Essa
distinção, como vimos, vai além da questão poética, que normalmente se difere. Constituem-se
também de divergências ideológicas, estéticas.
Podemos situar a música nacionalista de Santoro pós-Praga entre as chamadas
“tendências criadoras,” termo cunhado por Kiefer, devido ao fato de Santoro estar iniciando
uma jornada nova, onde todos os aspectos de sua música deveriam ser reformulados, novos
princípios acrescentados e apreendidos, devido essa proximidade com o povo almejada pelo
compositor. Guarnieri naturalmente teve um percurso diferente, sua música não precisou ser
reformulada.
77
No período em que a Dansa negra foi escrita por Guarnieri, Santoro apresentava suas
primeiras divergências ideológicas com relação a Koellreutter, e como mencionado nesta
pesquisa, é no ano de 1948 que a grande mudança ocorre, através de sua participação no II
Congresso de Compositores de Praga.
A partir deste momento se inicia o nacionalismo de Cláudio Santoro. Embora tenha
apontado Villa-Lobos e Guarnieri como modelos a serem seguidos pelos jovens compositores
interessados em compor música nacionalista, seu nacionalismo diferiria do de Guarnieri
principalmente devido a sua formação anterior, isto é, pelo seu contato com o dodecafonismo.
A Dansa brasileira nº 2 é escrita no ano de 1951, isto é, três anos após o Congresso de
Praga, sendo que no ano de 1949 Santoro pouco produziu devido à sua crise, já mencionada
nesta pesquisa. Situa-se, portanto, dentro das primeiras obras de cunho nacionalista do
compositor.
A proposta nacionalista de Cláudio Santoro possuiria muitos pontos em comum com
a de Camargo Guarnieri. Entretanto, além da aproximação com o povo, suas cantigas, seu
folclore, Santoro, como vimos, daria grande importância ao caráter “negativo” e “positivo” da
música. Assim, o nacionalismo na música, para Santoro deveria se afastar do aspecto atonal, na
qual ele categorizou como negativo e que recebeu críticas por parte de Koellreutter.
Deste modo, as obras de Santoro de cunho nacionalista se utilizam de melodias
modais, ostinatos, polimodalidade, aspectos estes que podemos encontrar na Dansa Brasileira
nº2, discutida nesta pesquisa.
Assim como Guarnieri, gradativamente Santoro passa a regressar ao atonalismo, e ao
dodecafonismo, entretanto, Santoro não abriria mão de todo seu aprendizado do período
nacionalista, como ele próprio afirmou em correspondência a Koellreutter, já discutido no
capítulo IV deste trabalho. No entanto, Santoro viria demonstrar uma descrença para com o
projeto nacionalista, Mendes afirma que: “O desinteresse pela continuidade do projeto
nacionalista não significou um imediato retorno à antiga prática serialista.” (MENDES, 2009,
p.148). Acrescenta que suas obras posteriores, isto é, compostas em 1960 e 1961 exibem como
tendência um distanciamento da música de temática nacional.
Em se tratando de forma e conteúdo, Guarnieri e Santoro tiveram um cuidado todo
especial, principalmente no tocante ao conteúdo. Os elementos que compunham o nacionalismo
brasileiro, como o folclore por exemplo, foram bem desenvolvidos e empregados pelos dois
compositores, de maneira que não resultasse numa obra simplista com citações diretas do
populário nacional. Estes elementos foram bem assimilados pelos mencionados compositores
e traduzidos em obras de rica sonoridade.
79
REFERÊNCIAS
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1965.
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81
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