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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA

ADINIL CARLOS DA SILVA VIEIRA

Poéticas nacionalistas na música


brasileira de concerto: Proposições de Camargo Guarnieri
e Cláudio Santoro

Cuiabá
2017
ADINIL CARLOS DA SILVA VIEIRA

Poéticas nacionalistas na música


brasileira de concerto: Proposições de Camargo Guarnieri
e Cláudio Santoro

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Estudos de Cultura
Contemporânea na Faculdade de
Comunicação e Artes da Universidade
Federal de Mato Grosso, como requisito
para obtenção do título de Mestre em
Estudos de Cultura Contemporânea na
Área de Concentração Estudos
Interdisciplinares de Cultura. Linha de
pesquisa: Poéticas contemporâneas.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Taís Helena
Palhares

Cuiabá
2017
AGRADECIMENTOS

Sou grato a Deus por me sustentar, me capacitar, me conceder a vida. Também à


minha esposa Érica Lisboa, pela paciência, o apoio e compreensão. À minha orientadora
Prof.ª Drª Tais Helena Palhares pelas orientações, paciência, pela disponibilidade e
encorajamento.
Aos professores examinadores Drª Teresinha Rodrigues Prada Soares e Drª
Nilceia Protásio Campos por aceitarem o convite para compor a banca examinadora, e
pelas sugestões e direcionamento. Também ao Drº Sérgio Barrenechea pela ajuda e
proposições.
Aos meus pais Adiron Vieira e Marta Nazaré pelo auxílio e pelo incentivo,
juntamente com os demais membros da família.
Aos amigos, professores e colegas do Programa de Pós Graduação em Estudos de
Cultura Contemporânea por toda ajuda. Obrigado.
RESUMO

Partindo do exame de dados históricos, e atentando para as distintas linhas


poéticas de dois compositores que fazem parte do quadro dos compositores nacionalistas
brasileiros, Camargo Guarnieri e Cláudio Santoro, procuramos nesta pesquisa evidenciar
as particularidades e nuances da música nacionalista brasileira, de maneira que refute a
ideia de um nacionalismo com versão única e coesa. Para tal, foram utilizados estudos
sobre estética, história, e principalmente da música. Também citamos alguns dos
principais compositores brasileiros que estiveram em evidência na primeira metade do
século XX, bem como críticos musicais, pontuando questões sobre a ideologia
nacionalista na música de concerto. Considerando as trajetórias de Cláudio Santoro e
Guarnieri, especialmente a música nacionalista desenvolvida pelos mesmos, constatamos
algumas propostas para elaboração de uma música nacional, e atentamos para os
desfechos das mesmas. As particularidades destas propostas bem como seu desfecho é
assim o centro desta pesquisa. Tomando para observação duas obras para piano solo,
Dansa Negra (Guarnieri) e Dansa Brasileira nº 02 (Santoro), esta pesquisa constatou que
os desfechos dos percursos estilísticos tanto de Guarnieri quanto de Santoro distanciam-
se gradativamente do principal objetivo do nacionalismo, isto é, fazer com que os
compositores falassem a linguagem musical nacional como sua língua materna, que
refletisse os anseios de um povo, e que fosse assimilável pelo mesmo.

Palavras-chave: Nacionalismo. Música de concerto. Cláudio Santoro. Camargo Guarnieri


ABSTRACT

From the examination of historical data, and paying attention to the different poetic lines
of two composers who are part of the framework of Brazilian nationalist composers,
Camargo Guarnieri and Cláudio Santoro, try this research highlight the particularities and
nuances of Brazilian nationalist music, so that refute the idea of a nationalism with a
single and cohesive version. For this, studies on aesthetics, history, and mainly music
were used. We also cite some of the major Brazilian composers who were in evidence in
the first half of the twentieth century, as well as musical critics, punctuating questions
about nationalist ideology in concert music. Considering the trajectories of Cláudio
Santoro and Guarnieri, especially the nationalist music developed by them, we found
some proposals for development of a national music, and we pay attention to the outcomes
of the same. The particularities of these proposals as well as their outcome is thus the
focus of this research. Taking into account two works for solo piano, Dansa Negra
(Guarnieri) and Dansa Brasileira nº 02 (Santoro), this research found that the endings of
the stylistic paths of both Guarnieri and Santoro gradually distance themselves from the
main objective of nationalism, that is , to make the composers speak the national musical
language as their mother tongue, to reflect the aspirations of a people, and to be
assimilated by it.
Keywords: Nationalism. Concert music. Cláudio Santoro. Camargo Guarnieri.
Sumário

LISTA DE FIGURAS ................................................................................................................. 8


INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 9
CAPÍTULO I: O PENSAMENTO NACIONAL .................................................................... 12
1.1 Contexto histórico Europeu e Brasileiro ........................................................................... 13
1.1.1 Quatro momentos da música de concerto................................................................... 14
1.1. 2 Etapas vivenciadas pelos compositores brasileiros: ............................................. 16
1.1.3 Forma e conteúdo: O Nacional e o popular ................................................................ 19
1.2 Particularidades do nacionalismo ...................................................................................... 23
1.2.1 Ideologia e Mário de Andrade: ................................................................................... 23
1.2.2 Folclore ...................................................................................................................... 25
1.2.3 Nacionalismo tonal e vanguardismo atonal................................................................ 27
1.3 Evidências do nacionalismo .............................................................................................. 30
1.3.1Traços da música nacionalista: .................................................................................... 30
1.3.2. Herança africana:....................................................................................................... 31
1.4 Trajetórias díspares ........................................................................................................... 32
CAPÍTULO II: POÉTICA E ESTÉTICA .............................................................................. 34
2.1 Poética ........................................................................................................................... 36
2.1.1 Poética e nacionalismo ............................................................................................... 38
2.1.2 Cláudio Santoro e Mozart Camargo Guarnieri........................................................... 38
2.1.3 Estética ....................................................................................................................... 40
2.1.4 Estética e nacionalismo .............................................................................................. 42
CAPÍTULO III: PROPOSIÇÕES NACIONALISTAS DE CAMARGO GUARNIERI:
DANSA NEGRA........................................................................................................................ 44
CAPÍTULO IV: PROPOSIÇÕES NACIONALISTAS DE CLÁUDIO SANTORO:
DANSA BRASILEIRA Nº 02 ................................................................................................... 61
4.1 O Congresso de Praga ................................................................................................... 64
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 76
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 80
ANEXOS .................................................................................................................................... 83
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 (compassos 32 a 34 e 38 a 40) - Apogiaturas e cromatismos .................46


Figura 2 (compassos 1 a 3) - Escala pentatônica – Do#-Re#-Fá#-Sol#-La# ........47
Figura 3 (compassos 120 a 123) - Cromatismos e dissonâncias............................48
Figura 4 (compassos 10 a 12) - Início do segundo tema........................................54
Figura 5 (compassos 23-25) - Notas acentuadas e retorno ao primeiro tema........55
Figura 6 (compassos 29-34) - Reapresentação do segundo tema com variação....55
Figura 7 (compassos 41-47) - Abertura da segunda seção: reapresentação do
primeiro tema. .......................................................................................................56
Figura.8 (compassos 51 a 56) - Segundo tema com variação................................57
Figura 9 (compassos 57 a 65) - Preparação para o clímax....................................57
Figura 10 (Compassos 78 a 83) - Clímax .............................................................58
Figura 11 (Compassos 84 a 89) - Abertura da terceira seção: retorno primeiro tema
...............................................................................................................................59
Figura 12 (Compassos 112 a 123) - Coda ............................................................59
Figura 13 (Compassos de 01 a 06) - Trecho do ostinato na mão esquerda...........68
Figura 14 (Compassos de 19 a 24) - Emprego do modo Lídio de dó....................69
Figura 15 (compassos 56 a 61) - Transição modal................................................70
Figura 16 (Compassos 01 a 06) - Apresentação do tema. ....................................70
Figura 17 (compassos 25 a 36) - Reapresentação do tema. ..................................71
Figura 18 (compassos 48 a 54) - Tema com variação. .........................................71
Figura 19 (compassos 62 a 67) - Perguntas e respostas. .......................................72
Figura 20 (compassos 84 a 99) - Clímax da peça. ................................................72
Figura 21 (compassos 84 a 94) - Síncope..............................................................73
Figura 22 (compassos 100 a 103) - Trecho em fortíssimo ....................................73
Figura 23 (compassos 104 a 108) - Coda final. ....................................................74
9

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa visa examinar dados históricos explorando as distintas linhas poéticas
de dois compositores que fazem parte do quadro dos compositores nacionalistas brasileiros,
Camargo Guarnieri e Cláudio Santoro, com a finalidade de evidenciar as particularidades e
nuances da música nacionalista brasileira, de maneira que refute a ideia de um nacionalismo
com versão única e congruente. Para tal, foram utilizados estudos sobre estética, história, e
principalmente da música. Também citamos alguns dos principais compositores brasileiros que
estiveram em evidência na primeira metade do século XX, bem como críticos musicais,
pontuando questões sobre a ideologia nacionalista na música de concerto.
Diferente da Europa, onde em determinados períodos constata-se os estilos ou escolas,
como barroco, classicismo, romantismo, no Brasil, no entanto, essas etapas não foram
evidenciadas, resultando em experiências composicionais distintas até se chegar à música
contemporânea; devido a essa pluralidade e mescla de estilos, o nacionalismo na música
brasileira de concerto na verdade apresenta diversas facetas que se diferem entre si, não apenas
poeticamente, mas esteticamente e ideologicamente.
Dessa forma, entendemos que há uma série de nacionalismos diferenciados que
coexistiram nos primeiros anos do século passado. Como nos diz Bruno Kiefer “o ‘primeiro’
nacionalismo brasileiro ocorreu com o advento do Romantismo, com a intenção, embora tímida,
de tornar mais brasileiros os temas das obras, destacam-se nomes como Carlos Gomes, Alberto
Nepomuceno” (KIEFER apud PRADA, 2010, p.25). Esse nacionalismo, no entanto, difere do
nacionalismo de Marlos Nobre, de Cláudio Santoro (que trabalhou com técnicas
dodecafônicas), também se distingue do nacionalismo de Guarnieri.
Atualmente temos um amplo acervo, no que diz respeito a pesquisas e estudos sobre o
nacionalismo na música brasileira, e grande parte se deve as pesquisas realizadas pelo
historiador Arnaldo Daraya Contier. Em seus trabalhos destacam-se os relevantes estudos sobre
a pessoa de Mário de Andrade. É imprescindível compreender a importância de Mário de
Andrade na história da música brasileira. No entanto, com base nos relatos históricos de alguns
autores como José Maria Neves, Gilberto Mendes e Teresinha Prada entendemos que não houve
um período musical no Brasil, como temos na Europa (O período Clássico), tão coeso a ponto
de nos referir a ele como um estilo, ou escola. O que temos são múltiplas experiências
composicionais, que nos conduziram até onde nos encontramos, na contemporaneidade.
10

Contier traz à tona a ideia de “nacionalismos” na música brasileira erudita, porém, o


faz por um viés histórico, pouco desenvolvendo a questão estético-musical, que é a proposta
desta pesquisa.
Considerando as trajetórias de Cláudio Santoro e Camargo Guarnieri, especialmente a
música nacionalista desenvolvida pelos mesmos, constatamos algumas propostas para
elaboração de uma música nacional, e atentamos para os desfechos das mesmas. As
particularidades destas propostas bem como seu desfecho é assim o centro desta pesquisa.
No primeiro capítulo é feito um levantamento histórico pontuando aspectos do
nacionalismo na música de concerto ocidental, com o intuito de servir de sustentáculo para
posterior estudo do nacionalismo brasileiro, principalmente aquele presente nas obras dos
compositores Cláudio Santoro e Camargo Guarnieri. É também neste capítulo que são
apresentadas algumas particularidades do nacionalismo, questões sobre forma e conteúdo do
mesmo, sua ideologia, bem como alguns importantes personagens que fizeram parte deste
momento histórico da música brasileira.
No segundo capítulo são discutidas questões relacionadas à poética e estética, com a
finalidade de compreender melhor a construção do pensamento nacional, e como isso ressoa
nas obras musicais. Deste modo, a estética nos ajuda a ponderar sobre a relação que o indivíduo
tem com a obra de arte, seus engajamentos, contemplação, a reflexão sobre a arte manifestada.
E a poética, como objeto de estudo da estética, nos aponta para a maneira como o artista
desenvolve e aplica através de meios técnicos seu pensamento, suas idiossincrasias, na obra de
arte.
Para os estudos relacionados com a estética foram utilizados os conceitos trabalhados
por Luigi Pareyson e Mário de Andrade. Em relação aos dados históricos acerca da música
brasileira foram utilizados trabalhos desenvolvidos por Bruno Kiefer, José Maria Neves,
Teresinha Prada e Gilberto Mendes, Sérgio Nogueira Mendes, dentre outros.
Nos capítulos três e quatro são apresentados os compositores Cláudio Santoro e
Camargo Guarnieri discutindo suas trajetórias e a busca dos mesmos de elaborar uma música
que representasse o povo brasileiro. Em cada um destes capítulos selecionamos uma obra do
período nacionalista de ambos compositores: no capítulo três a Dansa1 Negra - Guarnieri -
(1946) e no capítulo quatro a Dansa Brasileira nº 02 - Santoro - (1951) como base de
observação. Propondo investigar aspectos da música nacionalista desenvolvida por esses dois

1
A grafia foi "Dansa" até a reforma ortográfica de 1944. Nessa ocasião, a palavra passou a ser escrita com "Ç".
Não obstante, Guarnieri e Santoro mesmo após a reforma permaneceram por um tempo utilizando a palavra com
a letra “S”.
11

compositores, estudamos parte de suas trajetórias, com suas propostas de elaborar uma música
que transmitisse brasilidade e o desfecho destes percursos.
Ainda neste trabalho seguem as Considerações Finais, Referências e os Anexos. Para
uma melhor ilustração, nos anexos estão inseridas as partituras das obras Dansa Negra
(Guarnieri) e Dansa Brasileira nº02 (Santoro).
12

Capítulo I

O PENSAMENTO NACIONAL

A pesquisa sobre música de concerto se mostra complexa tanto pela imensidão de


componentes que podem ser analisados quanto pela possibilidade de se observar por diferentes
prismas um mesmo elemento. Outro fator que corrobora para tal complexidade é sua
abrangência – um estudo sobre pensamento musical europeu diferiria em quase todos os
sentidos se contraposto com a música oriental, por exemplo. Assim, neste estudo me restrinjo
à música de concerto ocidental, mais especificamente à europeia (devido a maior
disponibilidade de registros e pela familiaridade com o tema) bem como, evidentemente, por
se tratar de uma pesquisa sobre o nacionalismo brasileiro, à música de concerto brasileira.
Para compreendermos com maior lucidez o atual cenário musical brasileiro, faz-se
necessário um entendimento substancial acerca dos processos históricos relativos à música de
concerto.
Assim, quando observamos o desenrolar da história da música, atentando para aqueles
períodos onde identificamos os estilos ou escolas (Barroco, clássico, romântico, etc.)
compreendemos que a mudança gradual na forma, ou no sistema musical, sempre esteve
atrelada ao desenvolvimento das técnicas composicionais. Como observado por Prada2, tais
técnicas são desenvolvidas, seja por desgaste temporal ou por meio de uma busca intencional.
Concomitantemente com o desenvolvimento destas técnicas de composição as obras
musicais carregavam em si - assim como na atualidade - valores, pensamentos e ideologias do
espaço-tempo de onde surgiam. Como bem se expressou Cecília Almeida Salles:

O artista não é, sob esse ponto de vista, um ser isolado, mas alguém inserido e afetado
pelo seu tempo e seus contemporâneos. O tempo e o espaço do objeto em criação são
únicos e singulares e surgem de características que o artista vai lhes oferecendo, porém
se alimentam do tempo e espaço que envolvem sua produção. (SALLES, 1998, p.
38).

2
PRADA, Teresinha. Gilberto Mendes: Vanguardas e utopia nos mares do sul. São Paulo: Terceira Margem,
2010.
13

Dessa forma, pensar sobre estes momentos históricos é também uma forma de
compreender e entender melhor o contemporâneo. Na verdade, podemos até mesmo incluir na
referida contemporaneidade alguns desses períodos históricos que serão posteriormente
mencionados.
Enfim, nos convém compreender as nuanças do contexto espaço-temporal onde
situavam os compositores de música de concerto para melhor entendimento de suas respectivas
obras. Para tal, julgamos ser necessário apresentar um breve apanhado histórico para que sirva
de sustentáculo para uma posterior análise musical.

1.1 Contexto histórico Europeu e Brasileiro

A música de concerto brasileira está edificada sobre três principais pilares, estes são o
pensamento musical europeu, africano e indígena. Contudo cada um destes contribuiu em
diferentes medidas. É perceptível o fato de que a música europeia tem ocupado o maior destaque
seguido de perto pela musicalidade africana e em menor grau a música indígena. Em
conformidade com este pensamento Bruno Kiefer (1977, p.7) afirma:

Realmente, no que se refere à música erudita brasileira - termo inadequado, mas não
há outro - observa-se no Brasil uma nítida e quase exclusiva consciência europeia.
Para se convencer disto, basta examinar o que ocorre em nossas escolas superiores de
música.

E ainda sobre a música indígena:

Embora a música dos indígenas praticamente não deixasse vestígios em nossa música,
constituindo até hoje um fenômeno exótico, não se pode iniciar uma história da música
brasileira sem breves referências a seu respeito. (KIEFER, 1977, p. 09).

A despeito da afirmação de Kiefer se tratar de décadas atrás, continua válida em nossos


dias, sua observação ainda encontra respaldo considerando nosso cenário atual. Mesmo entre
as instituições de ensino superior, comumente verifica-se uma prevalência do estudo da música
europeia, geralmente estudada em disciplina intitulada “história da música ocidental”,
distinguindo assim o Brasil do ocidente. Quanto às disciplinas voltadas para a música brasileira,
frequentemente há distinção entre a história da música popular brasileira e a história da música
brasileira de concerto.
Assim, devido à inconteste proeminência das ressonâncias da música europeia na
música brasileira, ressaltarei alguns momentos históricos importantes na construção da
consciência musical na Europa.
14

1.1.1 Quatro momentos da música de concerto

Atentando para a música de concerto europeia, é perceptível uma sequência que levou
desde o tonalismo na sua forma mais “pura” até o atonalismo. Não pura no sentido de isenção
de interferências, mas no sentido de que as formas e conteúdo das obras ainda tinham longo
percurso de desdobramentos e transformações. Essas etapas foram sequenciais, ou seja,
sucessivas. Assim, temos a música medieval, renascentista, o Barroco de Bach, o Classicismo
de Mozart, passando para o Romantismo de Chopin e Beethoven, em seguida os cromatismos
de Wagner que muito contribuiu para o surgimento da música moderna, passando pelo
Impressionismo de Debussy e a música de Stravinsky, para chegar ao Serialismo de
Schoenberg, a música de Anton Webern, a Música Eletrônica de Schaeffer, Varèse e por fim à
Música Aleatória de Pierre Boulez. (GROUT e PALISCA, 1994; GRIFFITHS, 1987).
Em meio a esses períodos, os primeiros indícios de compositores se empenhando em
engendrar obras embebidas dos ideais nacionais, dos cantos populares e temas folclóricos
surgem no início do século XIX. Na Rússia desponta a figura de Mikhail Ivanovich Glinka
(1804-1857) que se tornou conhecido como o pai da música erudita russa, suas obras
alimentadas também do folclore local vão influenciar a posteridade dos compositores russos.
Posteriormente a Rússia, vários países europeus não tardaram a apresentar
compositores cujas obras denotavam as particularidades de suas nações, como o sueco Ivar
Hallstroem (1826-1901), o húngaro Franz Erkel (1810-1893), o dinamarquês Niels Vilhelm
Gade (1817-1890) o polonês Stanislaw Moniuszko (1819-1872). Entretanto, nenhum dos
compositores citados sobressairia à figura de Frédéric Chopin (1810-1849) compositor este
considerado ilustre e aclamado internacionalmente, cujas composições para piano são
significativas para o repertório de estudo desse instrumento.
Havia uma música pianística na Polônia do começo do século XIX que se aproveitava
de ritmos folclóricos, eram as polonesas3 e mazurcas4 de Michael Kleophas Oginski (1765-
1833), que o jovem compositor Chopin conhecia muito bem, ademais os noturnos de John Field
(1782-1837), compositor irlandês também conhecido como o primeiro compositor de noturnos.
Assim, apesar de morar a maior parte de sua vida na França, Chopin mantinha forte relação

3
Na música, polonesa é uma forma de origem polonesa. Naturalmente folclórica, ela surge nos meios da música
erudita a partir da promenade. Caracteriza-se por uma dança típica em compasso ternário (3/4).
4
A mazurca é uma dança tradicional de origem polaca, feita por pares formando figuras e desenhos diferentes, em
compasso de 3/4 e tempo vivo. Característico é o ritmo pontuado, com acento típico no 2º e 3º tempo do compasso.
15

com suas origens polonesas. Portanto, encabeçado por Glinka e Chopin, temos o que podemos
chamar de um primeiro segmento de nacionalismo na música europeia.
O segundo momento do nacionalismo no continente europeu se dá em meados do
século XIX e início do século XX. Destacam-se compositores como Robert Schumann (1810-
1856) na Alemanha, o austro-húngaro Franz Liszt (1811-1886) que expressou seu
nacionalismo, sobretudo em suas rapsódias5 húngaras. Na República Tcheca despontam as
figuras de Bedrich Smetana (1824-1884) e Antonín Dvorák (1841-1904). Smetana é
considerado como o fundador de um estilo musical autenticamente tcheco, sendo que a maior
parte de sua obra musical é composta por peças de temática folclórica e nacionalista, com
destaque para sua obra intitulada Má Vlast (Minha Terra), um conjunto composto por seis
poemas sinfônicos que retratam a região da Boêmia. Ainda nesse período destacam-se o
compositor Edvard Grieg (1843-1907) na Noruega, que defendia que a música norueguesa
deveria basear-se apenas no rico folclore musical da nação, mesmo que causasse incômodo ao
público europeu; e o compositor Jean Sibelius (1865-1957) na Finlândia, cuja obra é
considerada importante para a formação da identidade nacional finlandesa.
O Impressionismo francês, principalmente com Debussy (1862-1918) e Maurice Ravel
(1875-1937), desencadeou uma terceira onda de nacionalismo musical. Nesse período, aparece
na Tchecoslováquia o compositor Leos Janácek (1854-1928), que desde cedo se dedicou à
crítica e a pesquisa da música folclórica. Na Espanha destacaram os compositores Isaac Albéniz
(1860-1909) e Manuel de Falla (1876-1946). Na Inglaterra desponta o compositor Frederik
Delius (1863-1934).
A quarta onda de nacionalismo na música de concerto se dá no final do século XIX e
início do século XX. Nesse período destacam-se os compositores norte-americanos e latino-
americanos. George Gershwin (1898-1937), compositor estadunidense, empregou em suas
obras os ritmos bem marcados do jazz6 e a melancolia do blues, o mesmo defendia que o jazz
é o verdadeiro folclore norte-americano. Além de Gershwin podemos citar Samuel Barber
(1910-1981) e Aaron Copland (1900-1990). Mas é, sobretudo, no México e no Brasil que
despontam os compositores que chamariam a atenção neste último momento. No México
destacaram-se Manuel Ponce (1886-1948), Silvestre Revueltas (1899-1940) e Carlos Chávez

5
Composição musical formada por vários cantos tradicionais ou populares. Também pode conter fragmentos de
outras obras.
6
Música originalmente do povo negro dos Estados Unidos, caracterizada pelo ritmo sincopado, pela improvisação,
pelas mudanças rápidas de tom e pelo emprego original dos instrumentos de percussão.
.
16

(1899-1978). Já no Brasil, Alberto Nepomuceno (1864-1920) seria o virtual fundador da


corrente nacionalista brasileira, através de obras como a Suíte Brasileira, de que faz parte um
conhecido Batuque. Outros grandes nomes da música brasileira de concerto nesse período são
Carlos Gomes (1836-1896), Lorenzo Fernandez (1897-1948), Alexandre Levy (1864-1892),
Alberto Nepomuceno (1864-1920), Heitor Villa-Lobos (1887-1959) dentre outros. (GROUT e
PALISCA, 1994; GRIFFITHS, 1987).

1.1.2 Etapas vivenciadas pelos compositores brasileiros:

Assim, a música de concerto europeia perpassa por todas essas correntes de


pensamento, estilos ou escolas, não através de rupturas bruscas, mas por meio de uma transição
gradual. No Brasil, no entanto, essas etapas não foram evidenciadas, resultando em experiências
composicionais distintas até se chegar à música contemporânea; o que fica visível, segundo
Neves (1981), é uma música dita Nacionalista edificada sobre um Impressionismo e
Romantismo europeu “prolongado” seguida de um anseio para as técnicas de composição
atonais.
O Nacionalismo brasileiro vai passar por diversas fases, e será influenciado por
diversas escolas europeias. Como já mencionado, os compositores utilizavam-se do
pensamento musical europeu para conduzir suas experiências musicais, ora utilizando certo
conteúdo ora outro. Sobre essas ressonâncias da música europeia, continua Neves:

No Brasil, como em muitos outros países da América Latina, a busca de expressão


musical própria, aceitando a funcionalidade programática da composição, representa
certo afastamento das influências wagnerianas e, inicialmente, uma total adesão ao
impressionismo, que será depois igualmente recusado, sobretudo a partir do
Movimento Modernista. (NEVES, 2008, p. 32).

Kiefer (1977) em consonância com Neves (2008) acrescenta:

No que se refere ao Brasil, no entanto, é preciso levar em conta, antes de mais nada,
que o movimento romântico só entrou aqui com muito atraso em relação à Europa.
Além disto, a produção inicial na música revela-se tão escassa em valor e/ou
significado histórico que se é obrigado a situar a fase inicial do romantismo entre nós
por volta da metade do século passado. (KIEFER, 1977, p. 64).

Neves afirma que o nacionalismo no Brasil tem seu ápice nos primeiros 30 anos do
século XX, regido pela influente personalidade de Heitor Villa-Lobos e foi marcado pelos
princípios estéticos das técnicas composicionais herdadas do século XIX. (NEVES, 1981).
17

Contier é categórico ao estabelecer o momento em que o nacionalismo se consolida no Brasil,


segundo ele:

Em 1928, com a publicação do Ensaio sobre a Música Brasileira, de autoria de Mário


de Andrade, o descritivismo romântico e as peças de cunho pianísticos são duramente
criticadas iniciando-se em momentos posteriores uma nova fase da música no Brasil:
o Nacionalismo Musical. (CONTIER, 1985, p. 27).

De acordo com a maioria dos pesquisadores e músicos brasileiros, as etapas, ou fases


da música de concerto no Brasil podem ser resumidas em um romantismo tardio europeu, um
neo-romantismo, seguindo-se para a música de caráter nacionalista, isto é, uma música que
busca apresentar elementos da cultura popular. Contudo, todos esses momentos da música
brasileira acontecem em um tempo considerado curto. De acordo com Kiefer, “vivemos em
um país onde as tradições culturais próprias tiveram início em época relativamente recente”
(KIEFER, 1977, p.75). Em concordância com Kiefer, Neves ratifica:

Na verdade, só há bem pouco tempo - na metade do século XIX - descobrem-se no


Brasil os primeiros sinais da síntese que irá caracterizar sua música própria. Antes
disso, o que se via era a justaposição de elementos contrastantes, que, influenciando-
se mutuamente, mantinham sua validade com relação aos usos e costumes das
diferentes camadas que compunham o povo brasileiro (NEVES, 2008, p. 23).

O referido autor é quem melhor nos elucida sobre a questão dos primórdios da música
de concerto no Brasil, principalmente a música nacionalista. Em seu livro Música
Contemporânea Brasileira (1981), José Maria Neves detalha minuciosamente a trajetória da
música de concerto brasileira e por este motivo o destaco nesta contextualização histórica.
Atentando para os primeiros passos da música brasileira de concerto, Neves assevera
que a produção musical brasileira, num primeiro momento, se dividia entre: religião e diversão.
Com esta afirmação o autor não pretende alegar que toda música religiosa era revestida
estritamente do pensamento musical europeu e que a música dita profana não possuía aspectos
da mesma. Apenas aponta que a música religiosa procurava manter as tradições europeias
enquanto que a música popular se separa lentamente da mesma e isto não com linhas
demarcatórias tão rigorosamente definidas. (NEVES, 2008). Em seguida, explica:

O centro musical sai, então, da igreja e vai para o teatro, ficando aí por meio século.
E é certamente no terreno da ópera que aparecerão os primeiros sinais do nacionalismo
musical, mais como preocupação do que como realização. (NEVES, 2008, p. 27).

Tal preocupação referida acima por Neves, é o que nos leva a inferir que o
nacionalismo brasileiro emerge a partir duma busca intencional, como dito anteriormente, e não
18

por desgaste temporal. É, sobretudo, neste momento em que a Academia de Música e Ópera
Nacional é criada com o intuito de preparar compositores e demais artistas para criação de obras
em língua nacional. Nesse momento que surge Carlos Gomes (1836-1896) que se torna um dos
principais compositores desse período. Não obstante, é através da figura de Alberto
Nepomuceno (1864-1920) que a preocupação de dar às obras um caráter nacional toma corpo.
Para Neves (2008, p. 36):

Nepomuceno é, portanto, o primeiro dos compositores nacionalistas aquele que abrirá


os caminhos para várias gerações de compositores, mostrando-lhes a enorme riqueza
do material de origem folclórica e popular e as maneiras de utilizá-lo.

É evidente que houve compositores anteriores a Nepomuceno que iniciaram o processo


de nacionalização das obras, como o já mencionado Carlos Gomes que apesar de manter em
suas obras fortes características da música italiana, fez uso da temática do índio baseando seu
“Il Guarany” no romance de José Alencar, tornando assim essa obra um ponto de partida do
nacionalismo brasileiro. Da mesma forma, ainda antes de Carlos Gomes citamos o compositor
Elias Álvares Lobo (1834-1901) onde em sua ópera “A noite de São João” toma a temática das
festividades brasileiras religiosas. Ainda em relação a esses precursores, destaco aqui a
afirmação de Neves:

Mas bem antes do aparecimento das primeiras obras claramente filiadas à estética
nacionalista, o diplomata Brasílio Itiberê da Cunha (1846-1913) mostraria o caminho
a ser seguido. Esse compositor, que foi na verdade um diletante, sentia o desejo de
nacionalizar a expressão musical popular. É o que ele realiza através da rapsódia A
sertaneja para piano, editada em 1869, cujo tema central é a canção gaúcha Balaio,
que será depois usada por muitos outros compositores. (NEVES, 2008, p. 30).

Houve assim, esforços conscientes por parte dos compositores de tornar mais
brasileiras suas obras, esforços que Kiefer chamaria de “tendências criadoras”, assim ele
explica:

Aquele esforço no terreno da composição que situamos na perspectiva de tendências


criadoras pode revelar, a uma análise mais detida, movimentos que antecipam futuras
manifestações realmente criadoras, tendências inconscientes que mais tarde assumirão
forma objetiva, influências em estado ainda puro e que, no futuro se diluirão.
(KIEFER, 1977, p. 75).

Essa forma objetiva na qual Kiefer se refere pode muito bem ser notada nas obras de
Villa-Lobos, que, como já mencionado, foi o grande representante do nacionalismo brasileiro,
sendo que em suas composições percebe-se esta “consciência nacional” (expressão usada por
Mário de Andrade e que será discutida mais adiante neste trabalho), já assimilada e diluída. Daí
19

possivelmente sua conhecida expressão “o folclore sou eu”, onde nos passa a ideia de que o
compositor não é um mero estudioso e colecionador de conteúdos folclóricos e populares, mas
ele próprio já se torna a fonte das manifestações e características populares.
Não obstante a música de Villa-Lobos ser uma das que melhor apresenta uma
assimilação dos elementos folclóricos e populares, esta pesquisa volta-se para os compositores
Cláudio Santoro e Camargo Guarnieri sobretudo devido a intenção primeira de apresentar
algumas singularidades da música nacionalista brasileira, e para tal, as obras desses dois
compositores muito corroboram devido aos elementos que apresentam.

1.1.3 Forma e conteúdo: O Nacional e o popular

A respeito do propósito do nacionalismo brasileiro Travassos vai dizer que “a meta


ambiciosa do modernismo nacionalista era fazer com que os compositores falassem a língua
musical do Brasil como quem fala sua língua materna”. (TRAVASSOS, 2000, p.38). Da mesma
forma, também, o movimento nacionalista na música de concerto tem como alvo a criação de
obras que apresentem, através de seu conteúdo e forma, uma forte ligação com a cultura de
determinado povo, ou nação. Quem melhor nos elucida sobre essa questão é José Maria Neves.
Em suas palavras, o nacionalismo seria:

[...] Essa preocupação em forjar linguagens caracteristicamente nacionais que reflitam


a realidade de um povo e que, ao mesmo tempo, sejam imediatamente compreensíveis
por esse mesmo povo é, na verdade, a grande meta do nacionalismo. (NEVES, 2008,
p. 23).

Sendo assim, não se pode discorrer sobre a música nacionalista de concerto deixando
de lado a temática do popular. Referimo-nos então às obras que refletem a realidade de um
povo, uma cultura, uma nação. De acordo com Neves:

O fenômeno nacionalista é essencialmente populista, o que condiciona uma postura


criativa de aceitação e de cultivo de uma linguagem musical facilmente compreensível
pelo povo, em anacrônico prolongamento da tradição romântica. (NEVES, 1981,
p.77).

Isto nos remete à discussão sobre forma e conteúdo. Comumente, a obra de arte possui
um aspecto de pura contemplação pela maneira que é construída, mas também contempla e
contém a vida de onde surge, isto é, um engajamento com questões de ordem políticas, sociais,
etc. Pareyson (1918-1991) nos mostra que houve uma mudança na maneira de abordar estes
20

dois temas. Primeiramente, os dois termos se apresentavam dissociados, tanto conteúdo quanto
forma poderiam ser considerados separadamente. Assim, ele nos explica:

Por longo tempo o conteúdo foi visto no simples assunto ou argumento a ser tratado,
que podia ser um objeto natural a ser representado, uma história a ser contada ou um
sentimento a ser cantado. Paralelamente a essa concepção, a forma era vista na
perfeição exterior da obra, isto é, no esmero técnico e estilístico com que se tratava e
se deveria tratar um determinado argumento, isto é, naqueles valores formais nos
quais reside a qualidade artística da obra e que a distinguem das outras obras não
artísticas que, porventura, tenham os mesmos conteúdos. (PAREYSON, 1997, p. 55).

Pareyson descreve essa forma de considerar a arte como “a teoria do ornato”, isto é,
reduz a arte a um aspecto externo, um exercício técnico, como se a forma, vinda de fora, se
acrescenta ao conteúdo, modelando-o e conferindo a este um aspecto de obra de arte.
Entretanto, posteriormente, viu-se que o conteúdo poderia ir além desta descrição,
agora, ele recebe um sentido mais “profundo” como nos explica Pareyson:

[...] passou-se a ver o conteúdo no tema ou motivo, entendido sobretudo como


sentimento inspirador: a reação sentimental que acompanha determinado argumento,
ou o sentimento profundo que diverge do argumento tratado na superfície, ou a
emoção cantada de per si e tornada, ela própria, argumento, como um movimento de
amor, ou de nostalgia, ou de desejo, ou de melancolia, ou de dor [...] (Ibid., p. 56).

Da mesma forma com que o conteúdo agora possui um sentido mais profundo, nesta
etapa, segundo Pareyson, “elaborou-se uma forma “menos extrínseca” da forma, reconhecida
agora na inteireza da expressão” (PAREYSON, 1997, p. 56). Deste modo, nota-se uma
interrelação e interdependência dos termos, apresentando-se inseparáveis. Pareyson, assim,
sintetiza:

Forma e conteúdo são vistos assim na sua inseparabilidade: o conteúdo nasce como
tal no próprio ato em que nasce a forma, e a forma não é mais que a expressão acabada
do conteúdo. Analisando bem, nesta concepção a inseparabilidade de forma e
conteúdo é afirmada do ponto de vista do conteúdo: fazer arte significa “formar”
conteúdos espirituais, dar uma “configuração” à espiritualidade, traduzir o sentimento
em imagem, exprimir sentimentos. (Ibid., p. 56).

Outro termo recorrente entre os compositores das primeiras décadas do séc. XX no


Brasil era o estilo, a estilização. É bem verdade que por vezes foi empregada como um termo
pejorativo, ou seja, um “fazer à moda de”, entretanto esta expressão utilizada na referida época
ainda se mostra consonante com a visão de Pareyson.

Colocada sobre o signo da arte, a personalidade do artista torna-se ela própria energia
formante, vontade e iniciativa de arte, ou melhor, modo de formar, isto é, estilo. É o
modo de formar, o modo de fazer arte, o modo de escolher e conectar as palavras, de
21

configurar os sons, de traçar a linha ou de pincelar, em suma, o “gesto” do fazer, o


“estilo”, que introduz na obra toda a espiritualidade do artista e aí a entrega, de modo
tão eloquente e definitivo, que a respeito da espiritualidade do autor é bem mais
reveladora a sua obra do que qualquer documento ou confissão ou testemunho direto
sobre sua vida [...] (PAREYSON, 1997, p. 62).

As questões referentes ao conteúdo da obra de arte, facilmente podem ser tomadas de


maneira inapropriada, ou seja, por vezes pode-se referir ao assunto, ou tema de uma obra de
arte como sendo conteúdo. Pareyson buscou esclarecer a diferença entre estes termos, e assim
ele os resume:

O assunto é o argumento tratado: um objeto real ou possível de representar ou


descrever, um fato histórico ou imaginário para narrar, uma idéia a ser tratada e
sistematizada, e assim por diante. O tema é o motivo inspirador: o particular
sentimento cantado pelo artista, ou o seu modo de ver ou de sentir um determinado
argumento ou um complexo de determinadas idéias, emoções, aspirações. O conteúdo
é, como vimos, a inteira espiritualidade do artista toda feita modo de formar, isto é,
significado espiritual do aspecto sensível da obra, o próprio estilo como humanidade.
(Ibid., p. 69).

Percebe-se assim, a linha tênue que Pareyson traça entre assunto e tema, em outras
palavras uma ideia sobre algo poderia constituir o assunto, enquanto que o modo como o artista
vê e sente a referida ideia seria o tema. Desse modo assunto e tema, frequentemente estão
presentes na obra e dialogam entre si.
Ainda acrescenta que é possível elaborar uma obra de arte sem assunto e tema, não,
porém, sem o conteúdo. Neste sentido, podemos verificar que entre os ideais do nacionalismo
brasileiro, discutia-se mais as questões relacionadas com o tema, e que, como sabemos,
refletiria no conteúdo empregado pelo artista. Isto é, os compositores nacionalistas se voltariam
para o motivo inspirador, o modo de ver e sentir determinadas ideias, e isso ressoaria no “modo
de fazer” destes compositores, toda sua espiritualidade no modo de formar, isto é, o conteúdo.
Os compositores brasileiros, portanto, muitas vezes se viram diante da escolha de criar
obras embebidas dos ideais nacionalistas e ao mesmo tempo seduzidos pelas técnicas advindas
do exterior. Neves (2008) relembra, no entanto, que Villa-Lobos tentou sempre agregar o
moderno e o nacional, mas que esse último acabou se sobressaindo.

[...] os grandes compositores brasileiros deste período estavam perfeitamente


satisfeitos com os recursos musicais oferecidos pela tradição, seja porque as formas
de expressão tradicionais permitiam-lhes maior aproximação com o público, ou por
faltar-lhes maior curiosidade e inconformismo intelectual, nenhum deles se permitiu
ousadias que levassem a descobertas importantes ou à exploração de caminhos ainda
virgens. (NEVES, 1981, p.79).
22

Assim, fica perceptível a forte ligação entre compositor e o público. As composições


têm como matéria-prima elementos da cultura popular, e estes, por se tratarem de um complexo
de ideias, ajusta-se no que Pareyson denomina de assunto da obra de arte, enquanto que a
maneira como o artista vê ou sente esse complexo de ideias concerne ao tema. O povo, neste
caso específico o povo brasileiro, é não somente parte imprescindível da criação das obras, mas
na verdade é início meio e fim de toda a criação artística. Nas palavras de Villa-Lobos:

O povo é, no fundo, a origem de todas as coisas belas e nobres, inclusive da boa


música. O que é uma sinfonia, senão a expressão musical dos sentimentos de um povo
expressada por um indivíduo? O compositor genuíno, por mais cosmopolita que seja,
é mais do que nada a expressão de um povo, de um ambiente (Presença de Villa-
Lobos, apud NEVES, 2008 p. 78).

Esta é uma postura adotada pela maioria dos compositores deste período, uma posição
de aproximação com o povo, com algumas exceções como foi o caso do compositor Glauco
Velásquez (1884-1914) que, muitas vezes, abriu mão das normas tradicionais de composição.
Nas palavras de Neves “a música de Velásquez aproxima-se muitas vezes da estética
expressionista, ainda que no plano da realização tenha mais de Stravinsky do que de Shoenberg”
(NEVES, 2008, p. 38). Tal fenômeno não se deu apenas no Brasil, mas também em outras
partes. Referindo-se ao compositor Carl Orff, Neves diz:

De modo geral, a música de Orff é uma das que melhor responde aos ideais do
populismo: seu caráter forte e dinamogênico facilita sua aceitação pelas massas e sua
compreensão é imediata; nela nada há de elaboração e racionalização que exija atitude
especial de escuta. Orff faz música populista, música a serviço de uma causa que
nunca foi muito bem definida. (NEVES, 2008, p. 172).

Orff é aqui mencionado com o propósito de evidenciar que esta posição de


aproximação com o povo está presente em várias culturas, neste caso, a cultura europeia; e que
não foi uma preocupação exclusiva dos compositores brasileiros.
A crítica levantada sobre essa questão é divergente. Enquanto muitos defendem a
aproximação com o público, adaptando suas obras para se tornarem mais “inteligíveis”, outros
possuem opiniões contrárias como o próprio Neves declara:

[...] com frequentes citações da temática popular ou emprego das estruturas


composicionais da música do povo. Justificando essa orientação, que leva sempre a
um lamentável empobrecimento das obras – como se vê em Copland, em Bernstein
ou em Gould – o desejo de aproximar-se mais do público, de fazer a obra
imediatamente inteligível e assimilável. (NEVES, 2008, p. 174).
23

Sabe-se que esta discussão, aproximação-afastamento com o povo, música


desinteressada-engajada com os assuntos do popular, culminou em diversas discussões no
Brasil, envolvendo vários personagens, dentre eles compositores e outros que pensavam a
música.

1.2 Particularidades do nacionalismo

1.2.1 Ideologia e Mário de Andrade:

A prática musical, no sentido que vai desde as performances até a reflexão sobre a
mesma, é terreno fértil para discussões e debates por parte de músicos e pensadores. Não seria
diferente no caso da música brasileira. Juntamente com aquele desejo de dar um caráter
brasileiro às músicas de concerto e com toda as controvérsias que isso gerou, veio a lume figuras
importantes, dentre elas destaco Mário de Andrade (1893-1945), eminente representante do
nacionalismo emergente, e mentor intelectual de novos compositores. Como descreve José
Maria Neves (2008, p.66):

Totalmente imbuído do folclore e convicto da necessidade de dar caráter social à


criação musical, nada mais normal que tornar-se apóstolo do nacionalismo. A tudo
isso vinha acrescentar-se o fato de a música brasileira desse período estar literalmente
dominada pela Europa, sendo os compositores meros reflexos das tendências
dominantes (e dominantes porque tradicionalistas) na Itália, na França e na Alemanha,
contentando-se em seguir os últimos modelos românticos (até mesmo do romantismo
operístico italiano) ou dos impressionistas já bem aceitos.

Mário de Andrade, poeta, escritor de contos, ensaios, professor e mentor de escritores


e artistas, também musicólogo, crítico de música dentre outras atribuições, encarrega-se do
ofício da maior relevância no que diz respeito à estruturação da música de caráter nacional.
Andrade reservou grande parte de sua atenção para os assuntos relativos à música,
tanto que dentre sua extensa obra encontra-se diverso material concernente à música como
apresenta Neves:

Dos vinte volumes que compõem as Obras completas de Mário de Andrade, nada
menos que oito grandes volumes são relacionados à música: vol. VI - Ensaio sobre a
música brasileira; vol. VII - Música, doce música (crítica musical); vol. VIII -
Pequena história da música; vol. IX - Namoros com a medicina (a primeira parte se
refere à terapêutica musical); vol. XI - Aspectos da música brasileira (ensaios
musicais); vol. XIII - Música de feitiçaria no Brasil; vol. XVIII - Danças dramáticas
do Brasil (3 tomos); vol. XIX - Modinhas imperiais. (NEVES, 2008, p. 65).
24

Mário de Andrade vai dizer que num primeiro momento o compositor brasileiro
deveria se ater à busca e ao estudo dos elementos folclóricos brasileiros para que posteriormente
tal consciência do nacional fosse assimilada. Pelo seu profundo engajamento com o estudo do
folclore nacional, foi nomeado por muitos de sua época como folclorista.

Não sou folclorista não. Me parece que não sou nada, na questão dos limites
individuais, nem poeta. Sou mais um indivíduo que, quando senão quando, imagina
sobre si mesmo, repara no ser gozado, morto de curiosidade por tudo que faz no
mundo. Curiosidade cheia daquela simpatia que o poeta chamou de quase amor. Isso
me permite ser múltiplo e tenho até a impressão que é bom. (ANDRADE, 1933, p.
67).

Apesar desta afirmação, é sabido que Mário de Andrade dedicou-se com afinco,
através de um intenso estudo, à pesquisa do folclore nacional, onde reuniu considerável
quantidade de documentos de todas as partes do país, investigando-os, e disponibilizando de
maneira organizada para os interessados no estudo.
Como nos conta Neves (2008), Mário de Andrade vai se deparar com muitos desafios,
um destes é a ideia admitida de que a música boa é aquela que tem maior universalidade; e
acerca deste pensamento Andrade é enfático:

Não há música internacional e muito menos música universal; o que existe são gênios
que se universalizam por demasiado fundamentais, Palestrina, Bach, Beethoven, ou
mulheres que se internacionalizam por demasiado fáceis, a Traviata, a Carmem, a
Butterfly. Porém, mesmo dentro desta internacionalidade e daquela universalidade,
tais músicos e tais mulheres não deixam nunca de ser funcionalmente nacionais.
(ANDRADE, 1943, p. 28-29).

Mário de Andrade vai se diferenciar de outros pesquisadores da música nacional


principalmente, por sua postura diante das técnicas estrangeiras. Neves é quem melhor nos
explica este fato:

Ao defender a nacionalização da expressão musical, Mário de Andrade não comete os


mesmos erros de outros teóricos do nacionalismo na América Latina, que pretendiam
leva-la a um total afastamento da Europa, esquecendo-se de que toda a técnica
composicional (a estruturação melódica e harmônica, o tratamento orquestral e
formal) era importada, condicionando e deformando o material temático de
procedência folclórica. Mário de Andrade, mais realista, não sustentava esse corte
impossível. (NEVES, 2008, p. 68).

Assim, Andrade vai reprovar de maneira contundente os compositores


descompromissados com a temática nacional que se adequavam às fórmulas consagradas
europeias de compor numa espécie de “adesão impensada”, expressão utilizada por Neves
25

(2008), nada se preocupando com o caráter nacional. Sobre esta postura Mário de Andrade
teceu críticas contundentes:

Por mais sublime que seja, não só a obra não é brasileira como é anti-nacional. E
socialmente o autor dela deixa de nos interessar. Digo mais: por valiosa que a obra
seja, devemos repudiá-la que nem faz a Rússia com Stravinsky e Kandinski.
(ANDRADE, 1928, p. 18).

E ainda:

Todo artista brasileiro que no momento atual fizer arte brasileira é um ser eficiente
com valor humano. O que fizer arte internacional ou estrangeira, se não for gênio, é
um inútil, um nulo. E é uma reverendíssima besta. (ANDRADE, 1928, p. 19).

Não obstante, como já mencionado, sua oposição às técnicas e formas estrangeiras de


composição musical, Mário de Andrade não as nega de todo, ele entende que também faz parte
da construção da música brasileira tais ressonâncias e heranças europeias. Isso se verifica em
sua afirmação: “A reação contra o que é estrangeiro deve ser feita espertalhonamente pela
deformação e adaptação dele. Não pela repulsa.” (ANDRADE, 1928, p. 18).

1.2.2 Folclore

Mário de Andrade esquematizou a trajetória do compositor em três etapas, o que ele


chamou de tese nacional – aquele momento em que o compositor se lança ao estudo sistemático
do folclore e da música popular, analisando dados pesquisados e procurando empregá-los em
suas composições – Em seguida o sentimento nacional, ou identidade nacional –onde não se
emprega dados dos estudos de modo tão direto, dessa forma funcionando como uma transição
a fase seguinte – e por fim a consciência nacional – onde o compositor já possui esses elementos
nacionais internalizados refletindo em suas obras sem esforço ou busca proposital.
Estas etapas envolveriam todo compositor que buscasse dar um caráter nacional a suas
obras, seja este brasileiro ou não. Como exemplo temos o que ocorreu com o compositor
húngaro Béla Bartók (1881-1945).

Bartók, depois de séria pesquisa, assimilará profundamente o acervo popular a seu


idioma pessoal, sempre expressivo, claro e perfeitamente estruturado. Sua experiência
com o folclore é, de certo modo, uma continuação dos trabalhos realizados na segunda
metade do século XIX pelos compositores russos e tchecos. (NEVES, 2008, p. 170).

É bem verdade que o êxito no emprego desses elementos folclóricos depende


exclusivamente do compositor. Não há uma única maneira ou regra da utilização dos elementos
26

folclóricos que sirva quase como um dogma. Não obstante, alguns compositores alcançaram
maior notoriedade pela forma como fizeram uso desses recursos. Ainda mencionando Bartók,
Neves (2008, p.170) exemplifica:

E no plano do nacionalismo, esse compositor parece ter sido o que conseguiu maior
coerência no emprego do material de origem folclórica, incomparavelmente superior
àquele feito por Manuel de Falla, que parece ter ficado nos domínios do pitoresco.

No Brasil a transição entre o “consumo” estrito do repertório estrangeiro para


apresentações com composições nacionais aconteceu de maneira gradativa. Em meados do
século XIX despontam diversos grupos musicais com o propósito de apresentar as grandes
obras do repertório europeu e obras de autores nacionais. Alguns destes grupos foram a
Sociedade Filarmônica (1834), o clube Mozart (1867), o clube Beethoven (1882), a Sociedade
de Concertos Clássicos (1883), o clube Haydn (1883), o Quarteto Paulista (1884), a Sociedade
Coral Club Mendelssohn e a Sociedade de Concertos Populares (1896). Com tais grupos
multiplicaram os concertos e o surgimento de novos compositores. Sobre isto Neves (2008, p.
30) nos afirma:

Os jovens compositores de então foram os responsáveis pela criação de uma nova


música brasileira, cada vez mais próxima das tradições musicais do país, em trabalho
pioneiro de levar a música ao povo e de fazer com que essa música fosse facilmente
aceita. Para isso, a presença da temática folclórica era de grande eficácia.

No final do século XIX, compositores como Alexandre Levy e Alberto Nepomuceno,


em especial, demonstrarão grande interesse e engajamento em relação à temática nacional.

João Gomes de Araújo, colega de Levy na época de sua estada em Paris, conta a
preocupação nacionalista desse compositor e sua consciência da necessidade de
estudar seriamente a música folclórica para que seu emprego fosse correto e eficaz:
“Discorria sobre a arte de sons, dizendo que cada nação tinha a sua música
característica e que o Brasil um dia haveria de revelar a sua. Afirmava que, para
escrever música brasileira, era preciso estudar a música popular de todo o Brasil,
sobretudo a do Norte do país.” (AZEVEDO, 1956, p. 59, apud NEVES, 2008, p. 33).

Os compositores brasileiros tiveram divergências quanto ao uso de elementos do


folclore nacional em suas obras. Quanto às ressonâncias do folclore em suas composições Villa-
Lobos afirmou:

Não as nego nem nunca as neguei. Mas rejeito que me queiram catalogar como
folclorista, hábil na estilização da música nativa brasileira. Muitas de minhas obras
transformam em música culta o espírito do meu povo e a alma da minha raça. Plasmam
a sensação de suas danças e de suas canções, de seus mitos e lendas (Presença de
Villa-Lobos, apud NEVES, 2008 p. 44).
27

O uso ou não uso dos elementos folclóricos e populares sobretudo fica evidente entre
os nacionalistas adeptos do pensamento “marioandradiano”, e outro grupo de compositores com
visão mais cosmopolita e que em dado momento se entregaram ao estudo da técnica
dodecafônica7 e da música politonal8. Tal postura foi duramente criticada na Carta Aberta
(1950) onde Guarnieri aponta tais compositores como aqueles que “não se deram ao cuidado
elementar de estudar os tesouros da herança clássica, o desenvolvimento autônomo da música
brasileira e suas raízes populares e folclóricas.”9

1.2.3 Nacionalismo tonal e vanguardismo atonal

As mudanças ocorridas no pensamento musical europeu certamente ressoariam no


Brasil. Entretanto, é sabido que isto aconteceria com uma certa taxa de atraso. Não obstante,
afetou, em certa medida, a maneira de pensar a música no Brasil.

O período imediatamente posterior à Primeira Grande Guerra é marcado por


profundas transformações no pensamento musical europeu, que exerceriam grande
influência sobre os músicos latino americanos. Pouco a pouco a liberação dos cânones
composicionais herdados do Romantismo se tornará o núcleo central do novo
pensamento musical [...]. (NEVES, 2008, p. 163).

Essas mudanças na maneira de pensar e compor música intervieram tanto na forma


musical quanto também em seu conteúdo, isto é, houve mudanças tanto em relação aos
elementos, os argumentos, ideias que compunham a criação da obra de arte nacionalista, como
a técnica de compor, por exemplo, assim como no modo e toda a espiritualidade na maneira de
formar a mesma. Nesse sentido, iniciando por uma mudança no sistema harmônico, Neves
(2008, p.164) afirma:

Afastando-se da tradição germânica, os compositores do período pós-Primeira Guerra


(e alguns mesmo antes disto) recusaram o sistema harmônico adotado pelos últimos
românticos, ao menos durante certa época, preferiram entregar-se a pesquisas que
partiam dos esquemas harmônicos do impressionismo [...].

Para alguns compositores, como Villa-Lobos, a música vanguardista atonal seria muito
acadêmica, - há que se distinguir que existem dois significados em se tratando de “música
acadêmica”, por um lado já foi mencionada se referindo ao sistema de ensino pautado no
pensamento predominantemente europeu e um tanto quanto “acomodado”, mas também esta

7
Técnica em que as doze notas da escala cromática são tratadas como equivalentes, ou seja, sujeitas a uma
relação ordenada e não hierárquica.
8
Termo que designa a sobreposição de melodias, cada uma com tonalidade diferente.
9
GUARNIERI, Camargo. ―Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil‖. Revista Fundamentos, São Paulo,
1950.
28

expressão pode se referir à um público minoritário, de experts, mais distante das massas
populares – e é a este último que se refere Villa-Lobos, para ele a música dodecafônica era
muito cerebral, voltada para uma minoria específica, não tinha um apelo popular, como bem
explica José Maria Neves:

[...] Villa-Lobos se caracterizará pela recusa das fórmulas consagradas e dos processos
clássicos de criação, pela reação contra os artifícios, que, levando à liberação do
tonalismo, constrangiam demais o compositor (ele jamais aceitou o sistema
dodecafônico) e dificultavam o contato com o povo (para ele, a música experimental
destinava-se à elite, o que era a negação de seu desejo de popularização da arte
erudita). Sua música terá a amplidão melódica e a força rítmica da música popular.
(NEVES, 2008, p. 45).

Até então os compositores brasileiros estavam, em sua maioria, voltados para o


“academicismo” que tinha suas bases sobretudo pautadas no pensamento europeu, como vimos
anteriormente, com determinada defasagem, no entanto, como nos assegura Prada (2010, p.
20):

O Nacionalismo perderia sua posição de evidência na composição musical brasileira


quando surgisse em cena uma estética de vanguarda. E isto aconteceria com a vinda
de Koellreutter ao Brasil. Ele chegou ao Brasil em 1937. Ele é apontado como o
responsável pela divulgação de informações mais precisas sobre as novas técnicas
composicionais e por seu ensino no país. Criou o grupo Música Viva na cidade do Rio
de Janeiro. Fizeram parte desse grupo: Cláudio Santoro, César Guerra Peixe, Eunice
Catunda, Esther Scliar, Edino Krieger, entre outros.

Sob orientação direta de Mário de Andrade, uma nova “escola nacional” nasce.
Segundo José Maria Neves, Mário de Andrade mesmo assumira a posição de mentor intelectual
dos jovens nacionalistas, e defenderia até o fim de sua vida a necessidade de perseverar na
construção de uma linguagem expressiva essencialmente brasileira, na linha de
amadurecimento e de um desenvolvimento progressivo das técnicas composicionais. E segundo
Contier (1985), o nacionalismo baseado nas ideias de Mário de Andrade possuía diretrizes bem
definidas e teria em sua base o sistema tonal. Em suas palavras:

O projeto de Mário de Andrade indica que a utilização do folclore pelos compositores


numa primeira etapa apresentava uma proposta de cunho didático objetivando-se,
assim, criar uma escola de composição. Por este motivo, José Miguel Wisnik aponta
um dualismo ou mesmo conflito existente no interior dessa proposta, pois, sob a
perspectiva temática, o compositor deveria se basear nas chamadas raízes populares
e, sob o ponto de vista da técnica, deveria se prender ao sistema tonal, ao contraponto,
à harmonia, evitando-se sempre a atonalidade, que não se coadunava ao clima cultural
pós-22. (CONTIER, 1985, p.18).
29

Ainda sobre o referido “projeto nacionalista” marioandradiano, é necessário pontuar a


postura dos compositores adeptos a esta ideologia frente à técnica dodecafônica. Reagindo
negativamente, tais compositores alegam que “o método dodecafônico era excessivamente
formalista, impessoal e nitidamente antinacionalista”, nas palavras de Contier (1985, p. 37).
Em relação à transformação do sistema musical, percebe-se que Mário de Andrade
tinha como ideal uma alteração com o passar do tempo, ou seja, as técnicas serem substituídas
por desgaste, e não intencionalmente, como observamos em sua própria fala, em resposta a
busca proposital da técnica dodecafônica: “A arte é mais funcional que isto, e a honestidade um
pouco mais difícil. Evolução não se faz por decreto” 10
. Com a vinda de Koellreutter (1915-
2005), com seus ensinos dodecafonistas juntamente com esse nacionalismo “romântico/tonal”
vigente, ao final da década de 40, a discussão entre nacionalistas e dodecafonistas se
radicalizou.

[...] se era aos nacionalistas que se atribuía uma arte brasileira por direito nacional (já
que eles usavam os temas nacionais, folclore, etc..), aos vanguardistas-dodecafonistas
era-lhes imputado o ato de serem antinacionais, porque estavam atentos e atuando de
acordo com as novas possibilidades vindas do estrangeiro. (PRADA, 2010, p.22)

Essa dicotomia, nacionalismo/dodecafonismo, obrigou os compositores a decidirem


sobre que rumo tomar, no entanto, observa-se que muitos dos compositores que trabalharam
com a música dodecafônica, em determinado momento, se viram acuados a regressar ao
nacionalismo, alguns como Gilberto Mendes para ter algum contato com o folclore brasileiro.
Outro ponto que contribuiu para este recuo foi a publicação da “Carta aberta” de Camargo
Guarnieri, o que de certa forma os tornariam “politicamente incorretos” em permanecerem
utilizando técnicas dodecafônicas ou estrangeiras. (PRADA, 2010).
Quanto aos compositores que regressaram ao nacionalismo brasileiro Gilberto Mendes
afirma “[...] só que uma música nacionalista noutro estágio – se você pegar o nacionalismo do
Guarnieri é uma coisa, do Santoro já é outra” (PRADA, 2010, p.25). Isso deveu-se ao fato de
que os compositores que passaram pela experiência de compor utilizando os procedimentos de
vanguarda não seriam os mesmos. Segundo Teresinha Prada “A influência ou ressonância do
uso da vanguarda é perceptível em suas obras, pois, independentemente de suas escolhas
políticas, esses compositores já haviam sido modificados em sua formação” (PRADA, 2010,
p.25). Neves não sustenta claramente que a experiência destes compositores refletiria em suas
obras nacionalistas, mas acrescenta que os compositores que passaram pela experiência da

10
ANDRADE, Mário de. Música, doce música, São Paulo. Martins. 1963, p. 352.
30

música de vanguarda, se tornariam indivíduos mais abertos com relação às técnicas de


composição:

O que é certo é que nenhum dos compositores que aderiram ao dodecafonismo pelas
mãos de Koellreutter perseverou nessa direção; uns poucos conservaram uma
linguagem de caráter atonal, mas não dodecafônica, e a grande maioria voltou ao
tonalismo mais direto, trocando o hermetismo que se manifestava em obras desse
período por um populismo frequentemente primário, fazendo-se logo em defensores
apaixonados do nacionalismo[...]. Mas não há dúvida de que a experiência
dodecafônica marcou-os profundamente e muitos deles voltaram, anos depois, a uma
postura musical mais aberta, em síntese próxima a do serialismo predominante na
década de 1970. (NEVES, 2008, p. 133).

É sobretudo devido essas experiências com técnicas estrangeiras e com a música dita
nacional, mais voltada para o tonal, que notamos a presença não apenas de um nacionalismo no
Brasil, mas nacionalismos que segundo Prada (2010, p.32) “ainda é pouco difundido no ensino
formal de música, na academia.”

1.3 Evidências do nacionalismo

1.3.1Traços da música nacionalista:

Atentando para a música dita nacionalista, principalmente por aquela música edificada
sobre o populário nacional, notamos a presença de alguns elementos musicais recorrentes, que
são traços deste “discurso” musical que visa dar um aspecto de brasilidade. Para mencionar
alguns exemplos simples, temos a afirmação de Mário de Andrade, presente na sua conhecida
obra Ensaio sobre a música brasileira (1972):

A música brasileira tem na síncopa uma das constâncias dela porêm não uma
obrigatoriedade. E mesmo a chamada “síncopa” do nosso populário é um caso suptil
e discutível. Muitas vezes a gente chama de síncopa o que não o é. (ANDRADE, 1972,
p. 30).

A síncopa ou síncope como mencionado, deveras é uma característica rítmica


frequente nas obras nacionalistas brasileiras. E ainda que tendamos a atribuir de pronto esta
rítmica às origens africanas, Mário de Andrade cautelosamente vai afirmar que “É possível que
a síncopa, mais provavelmente importada de Portugal que da África, tenha ajudado a formação
da fantasia rítmica do brasileiro.” (ANDRADE, 1972, p. 32).
Se tratando das escalas mais frequentemente utilizadas no discurso musical brasileiro,
vale ressaltar alguns outros aspectos que marcam as obras nacionalistas. Dentre eles se destaca
a opção pelos modos, como explica Neves (2008), “O nacionalismo brasileiro se voltará
31

preferentemente para os modalismos, uma vez que grande parte da música folclórica brasileira
é modal” (NEVES, 2008, p. 23).
Quanto à questão da estrutura da harmonia e do timbre, Neves se referindo às
observações de Mário de Andrade, nos diz:

No plano da estruturação harmônica, ele observará a pobreza do folclore brasileiro,


que se contenta com as formas cadencias fundamentais e com o emprego sistemático,
em certos gêneros e em certas regiões, do falso bordão[...] No plano do timbre, Mário
de Andrade chamará a atenção para este fato pouco observado: a importância dos
conjuntos instrumentais e sua formação, assim como da maneira especial de cantar,
afirmando que aí reside uma maneira segura de nacionalizar a manifestação
instrumental. (NEVES, 2008, p. 71).

Referente à forma musical, também se nota a frequência dos recitativos, especialmente


na região nordeste, também temas com variações, danças e suítes.

1.3.2. Herança africana:

O sistema de colonização tem como uma de suas características o processo de


aculturação, pela qual teve grande impacto especialmente sobre a cultura indígena brasileira.
Segundo Neves, tal cultura quando não foi aniquilada teve que aceitar a cultura europeia bem
como sua fé religiosa (NEVES, 2008). Já em relação à cultura negra, observa-se um processo
diferente.

De fato, ao mesmo tempo que o negro aceitou certos elementos da cultura europeia
para poder subsistir, não deixou de exercer influência sobre essa cultura que se dizia
superior, transformando-a de modo sensível. Desse modo, encontramos, de um lado,
diferentes formas de adaptação dos costumes e das crenças negras (entre as quais o
sincretismo religioso é a mais aparente e clara); de outro, a assimilação, pela classe
dominante, de um sem-número de costumes claramente negros (NEVES, 2008, p. 25).

É certo que a musicalidade africana ressoaria em grande medida na música brasileira


emergente. Prontamente podemos notar reverberações destas características africanas na
música brasileira de concerto. Em alguns compositores esse fato é mais evidente. Referindo-se
à algumas obras do compositor Alexandre Levy, José Maria Neves (2008, p.34) vai nos dizer:

[...] as Variações sobre um tema brasileiro, o Tango brasileiro e a Suíte brasileira são
exemplos de tratamento especial de material de origem brasileira popular, dentro dos
princípios do nacionalismo nascente, com especial enfoque no caráter melódico [...] e
com aproveitamento consciente da rítmica afro-brasileira (em linha que terá como
principais seguidores Luciano Gallet e Francisco Mignone).

Alberto Nepomuceno deixa também transparecer em sua obra o caráter da música afro-
brasileira. Em uma de suas principais obras, a Série brasileira (1892), suíte em quatro partes:
“Alvorada na serra”, “Intermédio”, “A sesta na rede” e “Batuque”. Esta última em especial, nas
32

palavras de Neves (2008), construída sobre células rítmicas de grande simplicidade e


diretamente tomadas das danças afro-brasileiras. Sobre a música de Nepomuceno ainda
acrescenta Neves: “Como em Levy, a influência de temática afro-brasileira será muito forte e,
dentro dela, as pequenas ideias melódicas e as células rítmicas, bem marcadas” (NEVES, 2008,
p. 36).
A presença marcante das características africanas na música brasileira é facilmente
percebida. Tal influência é mais notada em se tratando da questão rítmica, e segundo Gilberto
Mendes está presente também nas bases do folclore brasileiro. Em entrevista concedida à
Prada11 ele explica:

O folclore brasileiro, o cubano e o norte-americano têm a influência negra, o ritmo


negro, enquanto que países como Argentina, Chile e Venezuela têm mais a influência
espanhola. O folclore de influência espanhola é mais leve, é mais música de salão. Ao
negro a gente deve a música popular urbana. Aqui nasceu a música urbana; fox trot
nos Estados Unidos, a rumba em Cuba, o samba no Rio, coisa de cidade grande,
músicas “sujas”, que recebem todas as influências enquanto que o folclore é “puro”.
A música popular dos outros países é mais folclore mesmo porque não é propriamente
urbana. (PRADA, 2010, p. 29).

Entretanto é importante mencionar que essas misturas de saberes culturais não têm seu
início com a chegada dos negros ao Brasil. Sabe-se que os negros trazidos da África já vinham
em processo de hibridação considerando que diferiam em seus idiomas, vinham de regiões e
etnias distintas, com costumes, cultura e visão de mundo diferentes entre si. Tomar consciência
desse aspecto é relevante para entendermos que a musicalidade africana não estava isenta das
ressonâncias do pensamento musical europeu, dispondo assim de uma musicalidade africana
pura. Como vimos, a música brasileira tem em sua base a música europeia, africana e indígena,
no entanto, processo similar ocorreu em terras africanas, por meio das colonizações, antes da
chegada dos negros ao Brasil.

1.4 Trajetórias díspares

Podemos vislumbrar a complexidade das questões relativas à música de concerto no


tocante à criação de um pensamento musical que exprimisse o ser brasileiro. Quantos tópicos
envolvendo assuntos que vão desde o desenvolvimento de técnicas composicionais até a um
discurso político engajado.

11
Entrevista concedida à Teresinha Prada em 14/03/2003.
33

Em meio a tantos personagens que integram essa temática, destacamos duas figuras
que tomaram caminhos diferentes e são o ponto central desta pesquisa: Cláudio Santoro,
compositor e maestro nascido em Manaus no ano de 1919, professor fundador do Departamento
de Música da Universidade de Brasília. Em 1941 passou a estudar com Hans-Joachim
Koellreutter, compositor alemão radicado no Brasil, integrando também o grupo Música Viva,
do qual se tornou um dos nomes mais ativos. Passou a adotar o dodecafonismo como técnica
de composição. Após seu regresso a música tonal ainda deixou transparecer o passado
dodecafonista em sua obra.
E Camargo Guarnieri, compositor e regente brasileiro nascido em São Paulo no ano
de 1907. Exerceu o cargo de assessor artístico-musical do Ministério da Educação. Em 1975
assumiu a direção da recém-criada Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo
(OSUSP), cargo que exerceu até o fim da vida. Amigo próximo do escritor Mário de Andrade,
seguia fielmente o pensamento deste em suas obras.
Assim separamos duas facetas do nacionalismo, ou melhor, “nacionalismos” na
música brasileira de concerto, sob a perspectiva desses renomados compositores, que serão
posteriormente analisadas do ponto de vista poético juntamente com alguns temas relacionados
à estética.
34

Capítulo II

POÉTICA E ESTÉTICA

Para compreender melhor a construção de um pensamento nacional, e como isso ressoa


nas obras musicais, há que atentar para os estudos relacionados à estética e poética, neste caso
específico, uma estética e poética nacionalista. Sendo que a estética nos ajuda a ponderar sobre
a relação que o indivíduo tem com a obra de arte, seus engajamentos, contemplação, a reflexão
sobre a arte manifestada. E a poética, como objeto de estudo da estética, nos indica a maneira
como o artista desenvolve e aplica através de meios técnicos seu pensamento, suas
idiossincrasias, na obra de arte.
Há todo um cuidado quando discorremos sobre estética e poética. Não obstante suas
diferenças sejam admitidas de pronto, ainda assim podemos tropeçar quando discutimos as
particularidades de cada um desses termos. Trata se de um assunto que não pode ser
desconsiderado, ou deixado em segundo plano pelos estudiosos da arte em geral devido à
relevância que apresenta quando o assunto é análise, ou reflexão sobre a manifestação artística.
Pareyson, teórico que muito bem discutiu essa temática, sobretudo em sua obra Os
problemas da estética (1997, p.15) nos alerta:

A distinção entre estética e poética é particularmente importante e representa, entre


outras coisas, uma preocupação metodológica cuja negligência conduz a resultados
lamentáveis. Se nos lembrarmos que a estética tem um caráter filosófico e
especulativo enquanto que a poética, pelo contrário tem um caráter programático e
operativo, não devemos tomar como estética uma doutrina que é, essencialmente, uma
poética, isto é, tomar como conceito de arte aquilo que não quer ou não pode ser senão
um determinado programa de arte.

Pareyson aqui não pretende simplificar e reduzir tudo que é conceituação à estética e
relegar o caráter prático à poética. Trata-se da sua essência. Em outra oportunidade ele explica
que a estética não é meramente especulação filosófica, mas uma especulação sobre a prática, a
experiência, a performance. Do contrário seria mera abstração. Em suas palavras:

O filósofo que pretenda legislar em campo artístico ou que deduza, artificialmente,


uma estética de um sistema filosófico preestabelecido, ou que, em qualquer caso,
proceda sem considerar a experiência estética, torna-se incapaz de explicar esta última
e sua reflexão cessa de ser filosofia para reduzir-se a mero jogo verbal. (PAREYSON,
1997, p. 3)
35

A intenção primeira desta pesquisa foi de concentrar-se na questão estética do


nacionalismo da música brasileira de concerto, teorizando a partir das análises feitas das obras
dos compositores Camargo Guarnieri e Cláudio Santoro, elaborando toda uma conceituação
artística referente às suas obras. Todavia, tal incumbência se mostrou inviável considerando
que a estética repousa sobretudo no campo de conhecimento da filosofia. E que cabe,
especialmente, ao filósofo a devida reflexão. Pareyson (1997) explica que tanto o artista quanto
o crítico de arte em algum momento apresentam um caráter de reflexão sobre a arte, entretanto
isto não poderia ser confundido com o papel do filósofo ou da estética. Em suas palavras:

De modo especial, não se pode assimilar a crítica à estética, nem dizendo que a
reflexão crítica é de natureza filosófica, nem dizendo que a estética é, essencialmente,
metodologia da crítica. [...] O trabalho do crítico nem se inclui no do filósofo, nem se
alinha ao seu lado, como se fossem dois modos paralelos de considerar a arte. Antes
põe-se ao lado do artista e ambos são objeto da estética, um enquanto produz arte, o
outro enquanto a aprecia e julga. (PAREYSON, 1997, p. 12)

Se tratando de estética, Mário de Andrade vai diferir de Pareyson em alguns pontos.


Para ele, o artista sabe e tem uma estética, no caso do músico, uma estética musical. Não ficando
assim a análise tão restrita ao campo da filosofia.

A estética musical faz parte da própria técnica do músico. Todo músico sabe Estética
musical e tem a dele. Senão não é músico. Dantes ela era de aquisição autodidática
resumida às observações e reflexões do próprio artista. Porém com a harmonia se deu
o mesmo e com a instrumentação também. Não tem compositor sem estética musical.
Um estudo preliminar da matéria evita a porção de tolices que os compositores dizem
a respeito dessa matéria. Vem daí a desconfiança e descrédito com que certos estetas
e cientistas observam os compositores em geral. Aliás desconfiança e descrédito
justificadamente recíproco. (ANDRADE, 1995, p. 10)

Essa linha demarcatória que separa a estética da poética pode ser muito tênue, assim
não poucas vezes pode-se referir como estética algo que na verdade trata-se de programa de
arte, uma poética. Nesse sentido, num primeiro momento fica a impressão de que Andrade e
Pareyson possuíam concepções divergentes no que se refere a estética. Enquanto que, se
referindo à estética musical, Andrade (1995, p.11) diz:

A obra de muito compositor vivo interessante parece mais uma demonstração de


orientações estéticas que uma fruta de legítima inspiração. Tenho essa impressão
diante das obras de Shöenberg de Busoni de Satie. [...] Todo esse abarrotamento de
teoria estética que entorpece a criação de certos músicos de agora não é porém razão
suficiente para desacreditar a Estética musical.

Tais palavras parecem contrastar com o pensamento de Pareyson:

Há, no entanto, quem pense que o filósofo deva fornecer ao crítico um critério para
suas avaliações. Isto não é um absurdo menor; se de fato o filósofo fornecesse critérios
de juízo ao crítico, por isso mesmo estaria pretendendo prescrever leis ao artista,
36

porque qualquer critério de juízo externo à obra de arte assume, imediatamente, o


caráter de norma que o artista deveria ter seguido ao fazê-la. A estética longe de
prescrever leis ao artista ou critérios ao crítico, estuda a estrutura da experiência
estética e aqui se encontra com o problema da poética e da crítica. (PAREYSON,
1997, p. 11).

Mas o aparente contraste se deve ao anacronismo. Mário de Andrade escreve antes dos
estudos de Pareyson, quando ainda o termo “estética” também era empregado para se referir a
poética.
Portanto, este trabalho dedica-se a uma reflexão sobre a poética dos compositores
nacionalistas Camargo Guarnieri e Cláudio Santoro, por vezes, se referindo a questões estéticas
dalém da poética, mas sem a pretensão de apresentar uma teoria ou especulação filosófica sobre
o tema.

2.1 Poética

Enquanto que a estética não possui caráter normativo nem valorativo, não prescreve
instruções ou orientações na qual o artista possa se apoiar, e por isso mesmo não pode
estabelecer critérios de julgamento de uma obra de arte, a poética é carregada de sentidos, de
mensagens, de ideais, por vezes, explícitas, por outras, implícitas.
Assim, quando nos referimos à estética podemos mencionar como exemplos a estética
da formatividade (como discutida por Pareyson), estética relacional (abordada por Bourriaud),
estética da existência (Foucault), etc. Tais exemplos não possuem conjuntos de normas que
possam validar, valorar ou julgar uma obra de arte e subsiste ao tempo, justamente por não estar
ligada a um ideal, ou manifesto. Entretanto, quando tratamos de poética verifica-se que estão
presentes todo um pensamento de uma época, uma visão de mundo, um ideal. Como exemplo,
temos a poética do realismo, cubismo, minimalista, etc. Estas apresentam uma proposta de arte,
orientações, mesmo que abertas, nas quais o artista pode se valer. Em suma, a poética não é
estética, contudo é objeto de estudo da mesma.

Do ponto de vista estético, todas as poéticas são igualmente legítimas: não importa
que a arte seja compromissada ou de evasão, realista ou idealista, naturalista ou lírica,
figurativa ou abstrata, pura ou carregada de pensamento, douta ou popular, espontânea
ou refinada, e assim por diante; o essencial é que seja arte. O estético, como tal, não
toma posições em questões de poéticas. (PAREYSON, 1997, p. 16).

Assim, a poética está intimamente ligada ao gosto, tanto do artista quanto do


pensamento de determinado momento histórico; ela é ferramenta essencial para o exercício do
crítico de arte justamente por dispor de algumas características peculiares de determinado ideal
37

ou cosmovisão. “À atividade artística, é indispensável uma poética, explícita ou implícita, já


que o artista pode passar sem um conceito de arte, mas não sem um ideal, expresso ou
inexpresso, de arte. (PAREYSON, 1997, p.18).
Dentre as vias de análise das poéticas dos artistas nos deparamos com a técnica; em se
tratando da música, a técnica musical. Muitos dos momentos históricos da música de concerto
citados nesta pesquisa, apoiavam-se num ideal de composição, sujeitos ao desgaste temporal e
sustentado por determinada técnica, como o cromatismo wagneriano; tratando-se, portanto, de
uma poética. Em consonância com este pensamento, Miranda (2013, p. 531) afirma:

O século XIX sinaliza a dissolução tonal. Compositores começaram a usar novas


poéticas. O caso modelar é o cromatismo de Tristão e Isolda (1854), de Richard
Wagner. Mesmo que o cromatismo já fosse usado antes – Schumann em Carnaval
(1834), Chopin na Balada nº 4 (1843) ou Liszt em Die Lorelein 1853) -, nenhum fora
feito com a vigorosa intenção de Wagner, atingindo o limiar da dissolução tonal, numa
clara intenção dramático-expressiva.

A técnica está intimamente ligada à expressão poética do artista, não obstante Andrade
ter introduzido a questão da técnica enquanto discorria sobre estética. Para ele, “a estética
musical faz parte da própria técnica do músico”. (ANDRADE, 1995, p. 10). Como mencionado
anteriormente, nota-se que a técnica é de maior proveito para o crítico de arte.

Que a poética e a crítica estão essencialmente ligadas à atividade artística fica claro
não apenas quando se pensa que a poética diz respeito à obra por fazer e a crítica à
obra feita: a primeira tem a tarefa de regular a produção da arte, e a crítica a de avaliar
a obra de arte. São indispensáveis ao nascimento e à vida da arte, porque nem o artista
consegue produzir arte sem uma poética declarada ou implícita, nem o leitor consegue
avaliar a obra sem um método de leitura mais ou menos conscientes [...]
(PAREYSON, 1997, p. 11).

Tanto a poética quanto a crítica possuem esse caráter de reflexão sobre a arte, porém,
essa reflexão não pode ser tomada como estética. Para Pareyson o ofício do crítico de arte não
pode ser nem incluída no do filósofo, nem vista como um modo alternativo de pensar a arte
como se fossem iguais. Segundo ele:

[...] poética e crítica, mesmo podendo ser traduzidas em termos de reflexão, nem se
incluem na estética nem se identificam com ela, porque, de preferência fazem parte
de seu objeto, isto é, da experiência estética. A estética é filosofia, e, relativamente a
ela, a arte, com as conexas crítica e poética, são experiência, isto é, objeto de reflexão.
(PAREYSON, 1997, p. 10).

Em síntese, a poética, de acordo com o pensamento pareysiano, constitui um programa


de arte, tem um caráter normativo e operativo, que não pode ser tomado como critério de
avaliação ou validação de outras obras de arte. Se é legítimo propor um programa de arte
pautado em valores políticos, sociais, morais ou religiosos, não significa que é legítimo tomar
38

essa poética e converte-la numa concepção geral de arte e inferir que só será arte a obra que se
adequar aos valores nela propostos.

2.1.1 Poética e nacionalismo

Ponderando sobre a estética e a poética, considerando a questão do nacionalismo na


música de concerto brasileira, e ainda observando a proposta dessa pesquisa, que é investigar
as nuanças entre as obras dos compositores nacionalistas Guarnieri e Santoro, entendo que
abdicar totalmente um desses conceitos deixaria este trabalho incompleto. Contudo, a poética
abre todo um espaço para liberdade de reflexão, análise e crítica e por esta razão será mais
empregada que os estudos relacionados à estética.
A poética torna possível abordar a obra de determinado compositor sob a óptica dos
ideais políticos vigentes quando a obra tomou forma. Sabe-se que, antes de tudo, o nacionalismo
está coadunado com a questão política. Como nos explica Prada (2010, p.19):

De fato, chegar-se-ia a um tal ponto que para os nacionalistas a necessidade de se criar


a partir de uma temática brasileira seria inerente à sua condição natural de
compositores brasileiros, e os (ex) vanguardistas focariam a intenção primordial em
se adequar ao realismo-socialista, pela força da ideologia de esquerda, usando também
uma construção mais brasileira e menos “estrangeira”.

Quando analisamos obras artísticas considerando a questão política, a poética se


mostra mais conveniente, e para Pareyson, parece ser a única opção viável:

Perguntemo-nos, antes de tudo, se seu intento é o de propor o programa de uma arte


impregnada de sentidos morais, ou dirigida ao ensinamento do bem, ou marcada por
uma concepção filosófica, política ou religiosa. Se este é o seu intento, ela é uma
poética e, como tal, exprime um determinado gosto e um determinado ideal de arte.
(PAREYSON, 1997, p. 15).

A música brasileira, após ser submetida, por determinado período, aos ideais
nacionalistas ligados ao Modernismo de Mário de Andrade, viria a dividir o espaço com a
música experimental, sobretudo com o surgimento de vários grupos de renovações. Aqui no
Brasil se destacou o grupo Música Viva criado em 1939 por Hans-Joachim Koellreutter (1915-
2015) e um pequeno grupo de músicos. Cláudio Santoro se juntaria ao grupo, juntamente com
Guerra-Peixe, Geni Marcondes, Eunice Catunda para citar alguns. Neste ínterim, Camargo
Guarnieri se posicionaria ao lado de Mário de Andrade.

2.1.2 Cláudio Santoro e Mozart Camargo Guarnieri


39

Quando atentamos para trajetória do compositor Cláudio Santoro, especificamente


quando este era membro do grupo Música Viva, juntamente com Koellreutter, nos lembramos,
sobretudo, do seu contato e experiência com a música dodecafônica, que, posteriormente, o
próprio Koellreutter apontaria esta forma de compor não como uma tendência estética e sim
como uma técnica.

Dodecafonismo não é um estilo, não é uma tendência estética, mas sim o emprego de
uma técnica de composição criada para a estruturação do atonalismo, linguagem
musical em formação, lógica consequência de uma evolução e da conversão das
mutações quantitativas do cromatismo em qualitativas, através do modalismo e do
tonalismo. Não tendo, por um lado – como toda outra técnica de composição -, outro
fim a não ser o de ajudar o artista a expressar-se e servindo, por outro lado, à
cristalização de qualquer tendência estética, a técnica dodecafônica garante liberdade
absoluta de expressão e a realização completa da personalidade do compositor. (Folha
da Tarde, Porto Alegre, 13 de janeiro de 1951).

Com esta afirmação Koellreutter separa a técnica do que ele chamou “tendência
estética”. Para ele o compositor não seria “antinacional” apenas por lançar mão desta técnica
composicional, ao contrário, o uso da técnica concederia liberdade criativa ao compositor. Em
sua resposta à Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil escrita por Guarnieri, Koellreutter
afirma:

É errôneo, portanto, o conceito de que o Dodecafonismo “atribua valor preponderante


à forma ou despoje a música de seus elementos essenciais de comunicabilidade”; que
“lhe arranque o conteúdo emocional”; que “lhe desfigure o caráter nacional”. O que
leva à “degenerescência do sentimento nacional” [...]. (Folha da Tarde, Porto Alegre,
13 de janeiro de 1951).

Para Koellreutter seria perfeitamente possível o artista compor música nacionalista


música brasileira valendo-se da técnica dodecafônica. De acordo com Contier, “Mário apontou
a impossibilidade de uma conciliação entre a linguagem atonal e a temática nacionalista como
critério básico para escrever música no Brasil” (CONTIER, 1985, p. 19). Entretanto cabe
ressaltar que Mário de Andrade também indicou que há uma mudança gradativa na técnica
musical.
Da mesma forma que a imagem de Cláudio Santoro está fortemente ligada à pessoa de
Koellreutter, Camargo Guarnieri está a Mário de Andrade. Outro grupo de compositores se
destacou juntamente com os participantes do grupo Música Viva.

Já outro grupo de nacionalistas seriam os compositores optantes do Nacionalismo,


daquele proveniente das teorias do Modernismo de Mário de Andrade, e que não
acolheram o conhecimento trazido por Koellreutter. Esse grupo estava reunido ao
redor do nome do compositor paulista Mozart Camargo Guarnieri” [...]. (PRADA,
2010, p. 25).
40

Neste momento histórico do Brasil, em meados do séc. XX, podemos ver facetas
diversas do nacionalismo, onde dois grupos distintos, voltados para os princípios do
nacionalismo, viriam a produzir obras de caráter nacionalista, entretanto com diferenciações
poéticas.

Assim, entrando nos anos 50 o clima era de uma grande luta teórica no Brasil e o
curioso é que o Nacionalismo surgido dessa discussão mostrou que existiriam, dali
em diante, nacionalistas pelas razões mais diferentes, estéticas, políticas ou ambas”
[...]. (PRADA, 2010, p. 25).

É neste sentido que esta pesquisa trata a questão poética, partindo do estudo das obras
destes compositores, Guarnieri e Santoro, observa-se o emprego das técnicas composicionais,
juntamente com os fatores extramusicais, isto é, questões políticas e sociais que acabam por
reverberarem nas composições, enfim, o programa de arte com suas normas, operosidades,
engajamentos, etc.

2.1.3 Estética

A estética é discutida desde os tempos antigos, é bem verdade que não sob o termo
que a designa no contemporâneo. Desde que a filosofia se preocupou em esquadrinhar os
sentidos referentes ao bom, o mau, o bem, a verdade, também incluiu o pensar sobre o Belo e
suas implicações. Dessa forma, a antiga reflexão ou especulação filosófica sobre o belo,
inclusive na arte, seria o que hoje denominamos estética. O emprego da terminologia “estética”
iria despontar apenas no séc. XVIII.
Todavia nem sempre houve uma definição precisa do termo “estética”. A estética,
como vai dizer Pareyson (1997), traz consigo o problema de sua definição, que o autor chama
de “o primeiro problema da estética”. Segundo Pareyson, existem muitas extensões do termo,
fazendo com que nos dias atuais entendamos por estética:

Estas sucessivas extensões do termo fizeram com que hoje se entenda por estética toda
teoria que, de qualquer modo, se refira à beleza ou à arte; seja qual for a maneira como
se delineie tal teoria. (PAREYSON, 1997, p. 02).

Não obstante, Pareyson reconhece que tal afirmação se configura demasiadamente


ampla. Para Andrade (1995, p. 6), tal amplitude ocorre devido sobretudo ao objeto de estudo
da estética.

Na realidade a Estética inda não está bem determinada no seu conceito porque oscila
entre dois objetos: o Belo e a Arte. Cada disciplina do saber humano só admite um
objeto. Dois objetos implicam duas disciplinas distintas.
41

Desse modo, em meio a tal multiplicidade de significados referentes à estética, o


próprio Pareyson reconhece uma necessidade de delimitação de sua definição. E para o autor,
o primeiro passo é saber se ela constitui reflexão filosófica ou reflexão empírica. Nesse sentido,
Mário de Andrade nos lembra:

De primeiro a Estética geral foi unicamente filosófica e especulativa. Desprezados os


elementos da experiência a preocupação quase única era determinar o conceito de
Belo e estabelecer a função dele. Platão é o arquétipo de tal Estética. (ANDRADE,
1995, p. 03).

Tal pensamento, pautado apenas na especulação, resultou em diversos filosofismos


metafísicos que na maioria das vezes não apresentavam uma ligação coerente com a realidade.
Essa postura, que mais tarde viria a esvaecer, foi contestada severamente fazendo com que se
incorressem numa outra forma de pensar, contrária à primeira, onde a experiência era o fator
principal constituindo a base na qual a estética iria se fundamentar. Essas formas extremas de
pensar, de um lado especulação sem experiência e na outra parte experiência sem reflexão,
foram também observadas por Pareyson (1997, p. 5).

A estética é filosofia justamente porque é reflexão especulativa sobre experiência


estética, na qual entra toda experiência que tenha a ver com o belo e com a arte: a
experiência do artista, do leitor, do crítico, do historiador, do técnico da arte e daquele
que desfruta de qualquer beleza.

Apesar dos teóricos e pensadores terem caminhado por esses extremos,


especulação/experiência, não devemos imaginar que os mesmos são conceitos opostos. Como
podemos inferir, partindo da afirmação de Pareyson, na verdade são elementos
complementares. O erro consiste em considerar um desprezando o outro. Mário de Andrade,
em concordância com Pareyson, chega a essa conclusão afirmando que:

O método da Estética não pode ser exclusivamente experimental e muito menos


exclusivamente metafísico. Tem de ser sincrético pra que não caia na especialização
ou exclusivismo, o que é pior. (ANDRADE, 1995, p. 05).

Em síntese, a Estética seria toda teoria que, de qualquer modo, se refira à beleza ou à
arte. Proporcionando assim uma série de aparentes “estéticas particulares”, como se expressou
Andrade (1995, p. 8). Contudo ainda continuamos nos referindo a uma estética “geral” que
pode ser utilizada em vários âmbitos, da mesma forma como na arte possuímos distintas áreas
artísticas, mas que na totalidade formam apenas um campo, o da arte. Desse modo, podemos
pensar numa estética musical como uma ramificação desse vasto campo.
.
42

2.1.4 Estética e nacionalismo

Em relação à estética, mais precisamente sobre o que afirma Luigi Pareyson (1997)
sobre as nuances entre arte e a vida, nos é dito que a arte foi entendida como uma atividade que
sobrevém quando o homem já satisfez suas necessidades econômicas e cognoscitivas, resolveu
os seus deveres morais e políticos, como mero deleite, evasão da vida, refúgio na pura
contemplação, voo da imaginação, etc. Mas Pareyson também nos mostra que há uma arte que
quer ser empenhada, militante, engajada, que quer enfrentar os problemas vitais de seu tempo,
que quer difundir uma determinada concepção religiosa, política, social. “Com frequência não
se trata senão de uma diferença de poética, isto é, de programa de arte” (PAREYSON, 1997,
p.39). Ele conclui afirmando que nestes casos trata-se da alternada e exclusiva acentuação de
dois aspectos que, na arte, são inseparáveis e indivisos. Por um lado, a arte está presente na
vida, na operosidade humana, o que ele chama de extensão da arte, e “por outro lado a arte é
também uma atividade especificada, que emerge da vida, e dela emergindo, dela se distingue”
(PAREYSON, 1997, p.40). Mas essa adesão e distanciamento, responsabilidade e evasão,
funcionalidade e gratuidade encontram- se e colaboram entre si. Assim como ele defende a
ideia de uma passagem gradual entre a arte especificada e a extensão da arte (o fazer arte e fazer
com arte), assim também há uma ligação entre arte engajada e arte por pura contemplação.
Tanto essa arte de evasão quanto a arte empenhada, para Pareyson, deve ser explicada
pela estética, e “uma estética que não explique esses dois tipos de arte não é uma estética, mas
uma poética travestida”. (PAREYSON, 1997, p.67). Faz-se necessário compreender sobre essas
funções da arte acima mencionadas, pois se percebe que a música brasileira de concerto das
primeiras décadas do século XX é uma arte fortemente engajada, empenhada.

“A antinomia música nacional/música universal tornou-se o ponto nodal das


principais polêmicas afloradas entre compositores, historiadores, críticos, intérpretes
durante as décadas de 20 e 50”. “Esses intelectuais agregavam as noções de “música
revolucionária”, “arte engajada”, “música independente” à temática sobre o
“nacional” e o “internacional” no campo artístico. ” (CONTIER, 2004, p.1)

Assim, o nacionalismo na música de concerto, incluindo é claro o nacionalismo


brasileiro, é arte engajada, no sentido de que tinha como propósito criar uma “linguagem”
expressiva essencialmente brasileira, era predominantemente funcional.
Nesta busca de elaborar uma arte engajada, isto é, que se preocupava com uma
aproximação com o povo brasileiro, que fosse inteligível aos mesmos, que expressasse seus
anseios, Guarnieri e Santoro trilharam caminhos diferentes e em diversos pontos propuseram
orientações para o compositor empenhado em elaborar uma música nacional.
43

Como compositores e estudiosos da música, inventivos e criativos que foram,


naturalmente as carreiras de Camargo Guarnieri e Cláudio Santoro passariam por variações
estilísticas em seus percursos. Suas obras apresentam variações tanto na técnica utilizada quanto
na sua forma e conteúdo. São obras que diferem entre si, no entanto, compõe o “grande projeto”
do artista, como explica Salles:

O grande projeto vai se mostrando, desse modo, como princípios éticos e estéticos, de
caráter geral, que direcionam o fazer do artista: princípios gerais que norteiam o
momento singular que cada obra representa. Trata-se da teoria que se manifesta no
“conteúdo” das ações do artista: em suas escolhas, seleções e combinações. Cada obra
representa uma possível concretização de seu grande projeto. (SALLES, 1998, p.39).

Propondo investigar aspectos da música nacionalista desenvolvida por esses dois


compositores, passamos a descrever a trajetória destes, com suas propostas de elaborar uma
música que expressasse a alma brasileira e o desfecho destes percursos.
44

Capítulo III

PROPOSIÇÕES NACIONALISTAS DE CAMARGO GUARNIERI: DANSA NEGRA

A formação pessoal, cultural e musical do compositor Guarnieri está fortemente ligada


a duas personalidades que foram significativas na trajetória do compositor. O próprio
compositor várias vezes tornou pública a sua gratidão para com esses mentores e amigos.
Quanto à formação musical, Lamberto Baldi (1895-1979), maestro italiano, o orientou nas
questões musicais, o que certamente ressoou na música de Guarnieri. Nas palavras de
Rodrigues:

É provável que a característica mais marcante e pessoal da linguagem musical do


compositor, presente em toda sua obra, seja o predomínio da textura polifônica. Sua
origem costuma ser atribuída aos ensinamentos do maestro italiano Lamberto Baldi
(1895-1979), professor de contraponto e composição de Guarnieri, que viveu cinco
anos em São Paulo. (RODRIGUES, 2015, p.108).

Por outro lado, Mário de Andrade se tornaria para Guarnieri um orientador em questões
estéticas, filosóficas e culturais. Escritor este que participou ativamente através dos seus escritos
no campo da música brasileira, principalmente com sua obra “Ensaio sobre a música
brasileira” (1928), que segundo Rodrigues trata-se de um “livro que é um verdadeiro divisor
de águas do nosso modernismo de cunho nacionalista. (RODRIGUES, 2015, p. 108).
Muito da música nacionalista, nesta primeira metade do século XX, seria elaborada
considerando os princípios descritos neste livro de Mário de Andrade e as próprias críticas de
Andrade às obras de Guarnieri estariam baseadas no mesmo. Rodrigues nos conta que “em suas
críticas às primeiras obras de Guarnieri, Mário foi coerente com o texto do “Ensaio”. Elogiava
a música, a prática polifônica do compositor, mas fazia restrições ao uso excessivo de
contraponto. ” (RODRIGUES, 2015, p.109).
Na intenção de examinar alguns aspectos da música nacionalista de Guarnieri,
tomamos a peça “Dansa Negra” composta em 1946, um ano após o falecimento de Mário de
Andrade. Posteriormente, isto é, no ano seguinte, Camargo Guarnieri também apresentaria um
arranjo, ou adaptação desta obra, para orquestra. Em seguida, também, escreveria uma versão
para dois pianos. Segundo Verhaalen (2001, p. 435), “a Dansa Negra” completa o ciclo das três
danças de Guarnieri”, quais sejam, a Dansa Brasileira (1928), a Dansa Selvagem (1931) e a
45

Dansa Negra (1946); ambas escritas para piano solo e com versões adaptadas para orquestras
pelo próprio compositor.
A primeira versão, escrita para piano solo, teve lugar após a visita do compositor a um
terreiro de candomblé, na Bahia. Verhaalen, em seu livro Camargo Guarnieri: Expressões de
uma vida (2001, p. 101), nos conta que:

A dança negra surgiu de uma visita que Guarnieri fez a uma cerimônia de candomblé
durante a sua viagem a Bahia, em 1937. Ele contava que, acompanhado de um amigo,
o escritor Jorge Amado, foi de táxi ao local da cerimônia. O táxi precisava subir uma
íngreme ladeira e em certo ponto o motorista avisou que eles teriam que andar o resto
do caminho. Os dois foram até o topo em silêncio, em escuridão total, ouvindo o som
dos cantos e das danças. À medida que se aproximavam do terreiro, os sons se
tornavam cada vez mais alto. Essa estória explica o arco dinâmico que se encontra na
peça. Guarnieri dizia: “A obra deve se iniciar em pianíssimo e crescer até atingir o
volume máximo; a partir daí, diminui novamente. ”

Nossa primeira impressão ao escutar a peça, estando ela ainda nos primeiros
compassos, é notar um ostinato introduzido pelo compositor, que tem lugar na mão esquerda
do pianista. Posteriormente inicia-se uma melodia cantante e regular. Essa melodia cantante é
característica da modinha brasileira. A esse respeito Rabelo nos diz:

Como um melodista nato, Guarnieri incorporou o nostálgico caráter de gêneros


populares tais como a modinha e a moda de viola. Suas melodias são frequentemente
expandidas e dão efeito de se auto-desenvolverem. Elas normalmente se originam em
pequenos motivos rítmicos ou melódicos que formam a base de todo o material.[...]
Movimento por grau conjunto, notas repetidas, e linhas descendentes são elementos
melódicos predominantes. Escalas modais são usadas com abundância, especialmente
provenientes dos modos mixolídio, frígio, lídio ou uma mistura destes. (RABELO,
2002, p. 43).

Através do relato narrado por Verhaalen, entendemos que toda a ritualística africana
do candomblé foi levada em conta nesta obra pelo compositor, assim, a peça toma um gesto de
ostinato aludindo à cerimônia afro e aos movimentos inerentes do ritual para o transe hipnótico
dos seus adeptos. Partindo do título da obra, Dansa Negra, nota-se tanto os elementos da cultura
popular considerados pelo compositor, isto é, as danças populares, o canto, o ritual, o povo, o
que outrora nos referimos como o assunto da obra de arte, bem como a maneira como Guarnieri
traduziu esses elementos, envolvendo toda sua espiritualidade no modo de formar, isto é o
conteúdo da obra de arte.
Em alguns trechos da Dansa Negra é perceptível o uso dos cromatismo e apogiaturas
sendo, hipoteticamente, uma referência aos glissandos, comuns nas vozes do canto afro, como
circulado na figura 1.
46

Figura 1 (compassos 32 a 34 e 38 a 40) - Apogiaturas e cromatismos

Após a morte de Mário de Andrade, em 1945, Guarnieri ousou compor obras mais
livres dos princípios contidos no Ensaio, porém, logo tomaria para si a responsabilidade de
defender as bases do nacionalismo marioandradiano. Deste modo, Camargo Guarnieri tornou-
se o principal defensor dos ideais nacionalistas, fazendo com que em 1950 publicasse sua Carta
aberta. Rodrigues nos conta:

Em sua Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil (1950), Guarnieri chamou sobre
si a responsabilidade de defender o nacionalismo musical ante as influências
internacionalistas e retomando o discurso de Mário de Andrade, que morrera cerca de
cinco anos antes, reiterou a importância do folclore e seu estudo, na formação dos
compositores brasileiros. (RODRIGUES, 2015, p.120).

O folclore, nesse sentido, integra o assunto da obra de arte, um dos elementos que
Guarnieri procurou enfatizar o estudo por parte dos compositores, por conseguinte, esse estudo
e assimilação do folclore ressoaria na espiritualidade formante do compositor, isto é, o
conteúdo.
A música nacionalista de Guarnieri possui algumas características recorrentes, dentre
elas destacam a textura polifônica, mencionado anteriormente, também o uso das chamadas
“terças caipiras” - um traço mais regional, o ostinato e o emprego de escalas modais. Sobre as
terças, Rodrigues explica:

[...] nada é mais característico de Guarnieri, tornando-se sua própria marca registrada,
que o uso de melodias em terças paralelas, o que se convencionou denominar “terças
47

caipiras”, procedimento que estaria ligado à origem do compositor no interior paulista


[...]. As terças caipiras estão presentes em toda a sua música, em diferentes contextos,
mesmo em obras em que o compositor mais se acercou da atonalidade, tal como o
segundo movimento da Sinfonia nº 05. (RODRIGUES, 2015, p.121).

Na Dansa Negra, no entanto, as terças paralelas são empregadas de maneira sutil, por
vezes, se mostrando invertidas, isto é, por meio de intervalos de sexta, já o emprego do ostinato
é evidente. Guarnieri também se valia dos modos como uma forma de livrar-se da rigidez da
tonalidade. Esta foi uma característica que se tornou cada vez mais presente na obra do
compositor, uma fuga gradativa da sonoridade tonal, como corrobora a afirmação de Rodrigues:

Durante a década de 1960, pouco a pouco, a música do compositor foi trazendo


indícios de que ele procurava novos rumos. Dentre outras transformações, a
tonalidade tornou-se menos definível, beirando a atonalidade. Essa tendência
acentuou-se ainda mais na década de 1970, trazendo também mudanças na relação do
compositor com os elementos de origem popular. (RODRIGUES, 2015, p.120).

Nesse sentido, Guarnieri implementa na Dansa Negra a abordagem tonal livre. No


entanto a harmonia converge frequentemente para dó sustenido. Nota-se também que Guarnieri
utiliza constantemente escalas pentatônicas, tanto na mão esquerda quanto na direita, o que
parece conferir a peça uma característica sombria, soturna como proposto pelo próprio
compositor.

Figura 2 (compassos 1 a 3) Escala pentatônica – Do#-Re#-Fá#-Sol#-La#

Comumente nesta peça, os temas apresentados sofrem mudanças em suas


reapresentações numa espécie de variação improvisada.
Guarnieri, iria se diferenciar dos demais compositores nacionais, isto é, daqueles
adeptos ao pensamento de Mário de Andrade, por não se prender tanto às regras do tonalismo
e também pela maneira como tratava a harmonia e o ritmo. Evitou o uso da síncope, por se
tratar de um ritmo excessivamente característico, e quanto à harmonia foi comparado à
Stravinsky (1882-1971) devido ao fato de dar mais importância ao timbre e o caráter rítmico
48

dos acordes. Rodrigues afirma que “Na maioria das vezes, a direcionalidade dos acordes não
determina seus sucessores e ambos são escolhidos somente pelas suas cores. ” (RODRIGUES,
2015, p. 128). O próprio Guarnieri viria afirmar: “O uso de certos agrupamentos de som, mais
como efeito de bloco sonoro, sem relação alguma com a tonalidade ou com acorde, no sentido
clássico, está me abrindo novos caminhos para resolver certas dificuldades que outrora
encontrava”. (GUARNIERI, 1943, apud SILVA, 2001, p. 293). Estes blocos de acordes,
principalmente aqueles que são empregados apenas pelas “cores” e que não determinam seus
sucessores, não estão presentes na Dansa Negra; os agrupamentos de acordes que Guarnieri
emprega nesta obra integram a melodia principal, com exceção do último compasso da peça,
onde está presente um acorde bem dissonante.
Guarnieri, apesar de ter suas obras firmadas no tonalismo, possuía um apreço pelas
dissonâncias. Rodrigues a esse respeito nos elucida:

Guarnieri nutria um gosto especial pela dissonância e esta, na maioria das vezes,
possuía finalidade colorista, não o objetivo de intensificar a direcionalidade dos
acordes. Assim sendo, pode-se estabelecer um remoto parentesco entre o pensamento
musical do impressionismo francês e seu comportamento pessoal em relação à
harmonia. Entretanto, em sua música a dissonância é mais dura, mais contundente que
aquela normalmente empregada pelo grupo de compositores franceses.
(RODRIGUES, 2015, p.128).

Na Dansa Negra esse apreço pela dissonância é melhor percebido nos quatro últimos
compassos da peça, onde Guarnieri utiliza um movimento ascendente, com muito cromatismo
numa dinâmica pianíssimo, e que conduz ao último acorde da peça que conta com atritos de
semitons.

Figura 3 (compassos 120 a 123) - Cromatismos e dissonâncias


49

O emprego de dissonâncias por parte de Guarnieri passou por uma curvatura. Por um
tempo, Guarnieri passou a escrever músicas mais voltadas para o atonalismo, e esse período foi
um tempo de experimentação.

Em 1933, comecei a estudar muito Hindemith e neste período minha música se tornou
meio atonal. Mas, depois, cheguei à conclusão de que aquilo era muito fútil. Então
adicionei os elementos que me interessavam e continuei com minha música.
(GUARNIERI, 1981, p. 8).

Neste período de experiências com uma música “mais atonal”, Mário de Andrade não
deixaria de tecer suas críticas às obras de Guarnieri. Mais inclinado à música tonal, e com
aversão à música de vanguarda de caráter atonal, por meio de cartas, teceu comentários acerca
de sua música:

Mas você, levado pela mania da dissonância, do cromatismo, da alteração que acabou
dissolvendo a função harmônica da dissonância, perdeu totalmente as estribeiras [...]
Mas aí se introduz o problema mais terrível da música do nosso tempo: o atonalismo.
É a libertação da tonalidade e consequentemente do acorde que criou essa epidemia
da alteração, que acabou usando a alteração pela alteração, isto é, sem nenhuma razão
humana. A dissonância se tornou inteiramente gratuita e se introduziu no corpo da
própria melodia, com a mesma gratuidade. [...] Uso da dissonância pela dissonância,
gratuitamente. Abuso da alteração, atingindo um atonalismo perigoso. (ANDRADE,
1934, apud SILVA, 2001 p. 206-208).

Essa foi a primeira inclinação de Guarnieri a um material de caráter mais atonal. Como
mencionado, o compositor retornaria à sua maneira de compor, entretanto mais uma vez,
lentamente, Guarnieri caminharia em direção à atonalidade, e nas décadas de 60 e 70 atingiria
seu ápice de distanciamento do tonalismo. Assim escreve Rodrigues (2015, p.125):

A utilização contínua e prolongada de dissonâncias e acordes complexos pode criar o


que Guarnieri definia “como que indiferença harmônica”, fenômeno que ainda pode
ser mais agravado quando os andamentos são rápidos, desfavorecendo a percepção.
Essa sensação está mais presente nas obras compostas a partir da década de 1960,
quando o compositor procurou afastar-se cada vez mais do tonalismo harmônico.

Caldeira Filho, sintetizou de maneira lúcida e objetiva as características presentes na


música de Guarnieri, sobretudo, quanto ao seu tratamento com a questão da tonalidade. Assim
Caldeira Filho nos diz:

A linguagem musical de Camargo Guarnieri apóia-se no tonalismo harmônico, mas


sua obra mostra progressivo afastamento dele, alargando os seus conceitos até chegar
a um tonalismo livre e, não raro, a evidente atonalismo. Guarda, todavia, uma das
consequências do tonalismo: o esquema formal. A forma é para ele elemento
fundamental, por ser condição de inteligibilidade. Assim, sua harmonia é livre, sem
desprezar os contrastes consonância-dissonância; a rítmica assume todas as figurações
exigidas pelo momento e, por isso, liberta-se também da simetria tradicional
(CALDEIRA FILHO, 1979, apud SILVA 2001, p. 18).
50

Até então, no nacionalismo brasileiro, se tratando de compositores não vanguardistas,


apenas Villa-Lobos e Glauco Velásquez apresentaram em suas composições traços de uma
objeção ao tonalismo harmônico, não obstante, segundo Rodrigues, o próprio Guarnieri viria a
declarar com relação à sua própria música:

Mesmo Guarnieri, anos mais tarde, utilizava com frequência o termo “meio atonal”
para qualificar sua música de então, mas preferia o termo “tonalidade fugidia” ou
“tonalidade fugitiva” para denominar o comportamento harmônico daquela música.
Este termo foi empregado por Guarnieri e Mário de Andrade, em algumas ocasiões,
referindo-se à “tonalidade fugitiva de Machabey12”. (RODRIGUES, 2015, p. 132).

Além do uso excessivo do contraponto, apontado por Mário de Andrade, Guarnieri


concedia um tratamento especial em relação à forma musical, isto incluía a maneira como o
compositor tratava o tema de suas obras.

[...] a música de Guarnieri se mostra tecnicamente diferenciada, em relação aos demais


compositores brasileiros de seu tempo, sobretudo quanto ao uso dos elementos
melódicos de origem temática. Como na tradição clássica, o compositor utilizava
poucos temas, mas explorava-os de tal maneira, e a seus derivados, que quase não
havia lugar para elementos sem qualquer parentesco temático em seu discurso
musical. (RODRIGUES, 2015, p.110).

Quanto à forma musical, apesar das recomendações ou aconselhamentos de Mário de


Andrade para fugir das formas tradicionais, Guarnieri manteve seu posicionamento, que era
mais voltado para formas já existentes, o que suscitou algumas críticas nesse sentido por parte
de Andrade:

Você se deixa levar demais pelas formas existentes. Você ainda não criou uma forma
sua, ou formas livres sua. [...] suas peças instrumentais para piano são todas um dormir
na rede duma forma já estereotipada que você jamais se preocupou de transformar.
Um eterno ABA que está na Canção sertaneja, como na Toada ou na Dança
Selvagem. Pra você um allegro de sonata tem que ter a forma fixa, e nem ao menos
você se amola ao sutilizá-la, transformá-la, de forma que, sendo a mesma de todos,
tenha a modalidade sua. (ANDRADE apud SILVA, 2001, p. 216-217).

Não obstante, Guarnieri não conferiu à Dansa Negra a forma ABA, comum em suas
composições. Todavia, entendemos que a obra conta com três seções (A, A’, A), como veremos
a seguir. Assim, a peça apresenta dois temas que surgem por onze vezes no decorrer da obra,
geralmente com variações. Deste modo, a primeira seção (A) compreende os compassos 1 a 41,
vide partitura em anexo. É sobretudo nesta instância que Guarnieri apresenta os dois temas de
maneira intercalada num sistema 1-2-1-2. O acompanhamento, em ostinato, se inicia antes do

12
Armand Machabey (1886-1966) foi um compositor e musicólogo francês.
51

primeiro tema, e é desenvolvido por meio do emprego de uma escala pentatônica (Dó#-Ré#-
Fá#-Sol#-Lá#). Inicialmente, Guarnieri prescreve para este ostinato na mão esquerda a
dinâmica piano. Como dito anteriormente, a peça foi composta após visita de Guarnieri a um
terreiro de candomblé. Como se dirigiu a pé para o local, os sons ouvidos por ele começaram
de maneira tênue e cresciam à medida em que se aproximava do local. Desta forma, o segundo
tema inicia com a dinâmica piano aludindo ao som fraco ouvido por Guarnieri devido à
distância do compositor.
Em relação à articulação, propõe-se que a mão esquerda seja executada em Legato.
Aparentemente para dar um efeito sombrio, obscuro, como sugerido pelo compositor,
juntamente com o uso do registro grave do instrumento.
O andamento é claramente estabelecido no início da peça com a mínima estabelecida
em 76 bpm, e não deve ser ignorado. O ostinato da mão esquerda juntamente com a melodia da
direita confere à peça uma fluidez, e o movimento ascendente da mão esquerda contribui para
isso. Deste modo, uma execução muito rápida ou lenta da peça poderia descaracterizar a
proposta sonora pretendida pelo compositor
Voltando-se para os rituais africanos, se alcança um estágio de transe, geralmente
através da repetição de sons e movimentos, e isto não ocorre de maneira imediata, é necessário
manter-se em absorvido nos processos do ritual e gradualmente, eventualmente, se atinge o
ponto do clímax. Da mesma maneira, esta composição de Guarnieri indica que o executante
deve seguir com naturalidade uma trajetória que vai desde a sutileza sonora até a um clímax
transcendental.
A melodia do primeiro tema tem seu início no terceiro compasso. Guarnieri faz uso de
outra escala pentatônica na melodia (Sol#-Lá#-Dó#-Ré#-Mi#), resultando em escalas
pentatônicas sobrepostas, uma na mão direita e outra diferente na mão esquerda. Para esta
melodia, utilizou-se o registro médio do piano, apresentado de maneira cantante – uma forte
característica da música folclórica brasileira – fazendo com que se assemelhasse a uma melodia
vocal. Provavelmente daí a sugestão do legato e respirações nos finais das frases, apontando
para as características da voz humana.
O emprego dessas características folclóricas, para Guarnieri, viria por meio de sua
própria experiência de vida; para ele, seu nacionalismo seria algo espontâneo, sua música era
nacional devido a sua nacionalidade apenas. Ele mesmo tomaria para si mesmo uma definição
encontrada em O banquete (1978), onde um dos personagens de Mário de Andrade, o
compositor Janjão, respondendo a quem o classificou como nacionalista diria: “Não sou
nacionalista, Pastor Fido, sou simplesmente nacional. Nacionalismo é uma teoria política,
52

mesmo em arte. Perigosa para a sociedade, precária como inteligência. ” (ANDRADE 1989, p.
60). Para Rodrigues (2015, p. 115), “Guarnieri, que adotou o posicionamento acima para si
mesmo, bem gostaria de ser ele mesmo o Janjão [...]. O próprio Koellreutter, compositor alemão
radicado no Brasil, confirmaria isto quando teceu comentários sobre a música de Guarnieri:

Camargo Guarnieri é o compositor com tendências nacionalistas entre os jovens


compositores brasileiros. Mas o seu nacionalismo não é “proposital”. O caráter
nacional surge “inconscientemente” e tem as suas raízes na personalidade do autor. A
música de Camargo Guarnieri é brasileira, porque Guarnieri é brasileiro [...] Na
criação musical de Camargo Guarnieri, a música brasileira atinge sua máxima
identidade e coerência artística dentro de um estilo puramente nacional, porém livre
do emprego e do abuso de folclore como material temático. (KOELLREUTTER,
1945, p.47).

Esse estilo abusivo do material folclórico, também foi criticado pelo próprio Guarnieri.
O folclore, para os nacionalistas, seria a fonte principal de material para elaboração de uma
música nacional, entretanto o desafio estava na maneira como o compositor abordaria este
conteúdo. Guarnieri (1945, p?), a esse respeito, viria exortar:

Alguns compositores usam, nas suas criações, elementos temáticos tirados


diretamente do folclore; outros, estudando as manifestações espontâneas da alma
popular, procuram escrever uma música que, na sua linguagem, transpareça aquele
sentimento. Não sou pelo uso direto do folclore. Penso que o artista deve estuda-lo,
amá-lo de tal maneira que as suas características específicas se transformem, como
por encanto, e façam parte integrante da personalidade dele. Na alma do povo está a
essência verdadeira de cada manifestação artística. Devemos destilar esse manancial
de riquezas infinitas e produzir uma arte que traduza os sentimentos nativos 13

Ainda quanto à utilização do folclore, sabe-se também que Guarnieri incluía o


emprego de temas folclóricos em suas aulas de composição musical, evidenciando a
importância que o compositor conferia ao folclore. Nesta ocasião o uso deste recurso era mais
direto.

A questão do folclore também esteve presente em outra importante vertente da


atividade de Guarnieri, aquela de professor de composição, tarefa que se intensificou
justamente após a Carta aberta, visando oferecer aos jovens compositores a
possibilidade duma orientação condizente com a estética nacionalista. Segundo o
compositor Osvaldo Lacerda, discípulo de Guarnieri durante dez anos, o mestre
recorria a temas folclóricos somente como material básico, a ser moldado, nos
exercícios de técnica composicional. (RODRIGUES, 2015, p. 120).

13
A entrevista foi publicada em 9 de novembro de 1945, no jornal A Noite, de São Paulo, porém o recorte não
exibe o número de página.
53

Guarnieri quis deixar claro que seu estilo, toda essa inclinação para a música nacional,
antecedia seu contato com Mário de Andrade. Tratava de um estilo pessoal, como ele próprio
afirmaria “à minha moda”. Assim o compositor se expressou:

Olha, vou dizer com toda franqueza: quando conheci o Mário, eu já estava escrevendo
música nacional, a Dança Brasileira, a Canção Sertaneja, depois escrevi a Sonatina
de 1928, que é dedicada a ele [...] Então ele mandou tocar e eu toquei, à minha moda.
E o Mário disse: “É, encontrei aquilo que estava esperando. ” (GUARNIERI, 1981,
p. 9).

Dentre as diversas formas de conceder características nacionais a uma obra está o


próprio título e outras indicações relacionadas às expressões e dinâmicas. Na Dansa Negra
podemos identificar esse aspecto através da expressão “soturna”, indicada no início da peça,
em seu próprio título, bem como na dinâmica prescrita no compasso 31, “luminoso”. As obras
nacionalistas quase que em sua totalidade apresentavam textos na linguagem nacional.

Somente a observação dos títulos das obras de difusão interdita, compostas entre1918
e 1928, já sugere que muitas delas deveriam possuir características musicais
brasileiras: Toada da minha terra (1923), Samba (1924), A viola lá de casa (1925),
Canção das Yaras (1927), restringindo-se somente àquelas que possuem títulos mais
indicativos. (RODRIGUES, 2015, p.115).

Não obstante Guarnieri apresentar sempre uma autonomia em suas obras, não estando
totalmente à mercê das posições de Mário de Andrade, ainda assim procurava observar alguns
critérios que a música nacional haveria de possuir, e tais critérios estariam condensados no
conhecido Ensaio sobre a música brasileira de Mário de Andrade.

O primeiro encontro de Guarnieri com Mário de Andrade deu-se em março de 1928,


ano em que este publicou seu Ensaio sobre a música brasileira, obra em que, pela
primeira vez, ele sugeria os procedimentos que deveriam ser adotados por
compositores brasileiros que almejassem “nacionalizar” suas músicas. Suas sugestões
tornaram-se normas de conduta para as várias gerações de compositores nacionalistas
que se seguiram. O encontro dos dois, conforme os indicativos, imbuídos dos mesmos
propósitos, foi uma das convergências que mais deixou marcas na história da música
brasileira contemporânea. (RODRIGUES, 2015, p.115).

Mário de Andrade, pela sua proximidade com Guarnieri, compreendia muito bem os
elementos que compunham a música do compositor. E em certa ocasião, escrevendo para
Guarnieri sobre uma discussão em que os críticos apontavam a música de Guarnieri como
regional e não nacional, fez uma leitura muito clara sobre a música de Guarnieri:

Você tem se utilizado de elementos afro-brasileiros e ameríndios (não temáticos, mas


“a maneira de”) que não são absolutamente paulistas. Também o elemento modinheiro
de você nada tem de regional, é urbano-brasileiro. Agora existe pairando sobre toda a
obra de você, um substrato paulista, mais caipira que paulista propriamente, que
caracteriza propriamente sua obra. [...] Além destes elementos psicológicos caipiras,
54

há um tom geral (que também deriva deles), tonalizando suas obras, e que é caipira,
fundamentalmente caipira, quintessenciadamente caipira. É um dado de caráter, um
dado de personalidade, uma contribuição muito sua e, por tudo isto, só digna de
louvor. (ANDRADE apud SILVA, 2001, p.270).

Dentre essas características brasileiras, a melodia cantante está presente na obra


nacionalista de Guarnieri, sobretudo na Dansa Negra; onde fica perceptível um movimento
melódico, presente nas frases iniciais do primeiro tema, que vão do ascendente para o
descendente. Resultando em um trecho melódico ascendente juntamente com um crescendo
seguido de um movimento descendente acompanhado de um diminuindo, dando-nos a
impressão de “perguntas” e “respostas”.
Nos compassos 7 a 10, essa ideia de “perguntas e respostas” reaparece. Não obstante,
a frase deve ser executada numa intensidade sonora maior que a da primeira vez já que o
material melódico é bem parecido.
No compasso 11 o primeiro tema se encerra e tem início o segundo tema, que se
mostra mais intenso que o tema anterior, ver figura 4. Outra sonoridade deve ser trazida à tona.
A presença de acentos, frases curtas, e notas mais agudas, contribuem para que ele seja mais
agudo que o tema anterior. Nesse momento também se encontra uma melodia intermediária na
mão direita, enriquecendo o material sonoro. Guarnieri faz uso de outra escala pentatônica para
a formação da melodia do segundo tema (Mi-Fa#-Sol#-Si-Dó#).

Figura 4 (compassos 10 a 12) - Início do segundo tema

A proposta da melodia apresentada nos compassos 11 a 15 é descendente. Durante os


compassos 11 a 13, ela se fixa praticamente em uma nota, Do#4. É importante notar que devido
ao registro mais agudo do teclado do piano, esse trecho melódico apresenta assim um acréscimo
em sua intensidade.
Nos compassos 15 a 16, a melodia inicial dos compassos 11 e 12 são reapresentados.
Este trecho deve ser tocado numa intensidade sonora maior da que foi utilizada anteriormente.
A dinâmica crescendo é empregada conduzindo a frase até um Fa#4 no compasso 16. Apesar
55

da melodia neste trecho apresentar um caráter descendente pede-se um crescendo para o


compasso 18.
Notas acentuadas que surgem a partir do compasso 23, nos remete também às
acentuações rítmicas de origem afro, estas aparecem no fim das frases numa reapresentação do
primeiro tema, na mão direita.

Figura 5 (compassos 23-25) - Notas acentuadas e retorno ao primeiro tema

No compasso 31 o segundo tema reaparece, como sugerido pelo compositor, de


maneira mais “luminosa”. A variação se apresenta por meio do registro mais agudo, ornamentos
e pela voz intermediária bem requintada. O ostinato na mão esquerda é apresentado duma forma
mais irregular, através de acentos que contrapõem à pulsação. O compositor indica piano para
o início da melodia no compasso 31, que deve ser obedecido tendo em vista que a progressão
do tema conta cada vez mais com crescendos resultando num aumento de intensidade sonora.

Figura 6 (compassos 29-34) - Reapresentação do segundo tema com variação


56

Em relação às dinâmicas, a música parte desde o ppp ao fff. O teclado do piano é bem
explorado, desde os sons mais graves aos mais agudos.
A segunda seção (A’) da peça tem seu início no compasso 45 e perdura até o compasso
84, e também apresenta os dois temas de maneira intercalada, num sistema 1-2-1-2. Do
compasso 41 ao 44 a característica do crescendo contínuo, mencionada anteriormente, está em
curso, conduzindo para o compasso 45 onde o primeiro tema reaparece de maneira enfatizada
através de melodias oitavadas com dinâmica forte, sob um ostinato enérgico e opulento que
também conta com acordes que se intercalam, contribuindo para um aspecto agitado.

Figura 7 (compassos 41-47) - Abertura da segunda seção: reapresentação do primeiro tema

A apresentação das “perguntas e respostas”, assim como a dinâmica apresentada


através dos crescendos e diminuendos, são mantidas assim como na primeira exposição do
primeiro tema.
No compasso 53, o segundo tema reaparece com algumas mudanças. O fato de
reapresentar o mesmo material sonoro, porém com variações, passa a impressão de improviso.
57

Figura.8 (compassos 51 a 56) - Segundo tema com variação.

Em relação à articulação, as acentuações nas notas iniciais são mantidas. O ostinato


da mão esquerda apresenta uma característica peculiar acentuando-se colcheias agrupadas em
três. O segundo tema, assim, é reapresentado num registro mais grave.
No compasso 57, a maneira como a melodia transita num movimento ascendente
sugere um crescendo que deve ser sustentado até o compasso 63, quando o primeiro tema
reaparece por meio de acordes encaminhando a obra ao clímax.

Figura 9 (compassos 57 a 59 e 63 a 65) - Preparação para o clímax


58

A partir do compasso 71, o segundo tema é repetido na mão direita. O ostinato também
surge por meios de acordes que saltam da região grave para a média. Por meio do cromatismo,
o resultado sonoro apresenta uma característica cada vez mais tensa, assim, contribuindo com
um crescendo acompanhado de um acelerando que conduzem ao fff. (Clímax – estágio de
transcendência) nos compassos 78 a 83. Logo após, há um refreio no andamento e na textura
com o propósito de retomar o trecho inicial.

Figura 10 (Compassos 78 a 83) - Clímax

Por último, temos a terceira seção da peça (A), que compreende os compassos 85 a
123, onde os temas configuram-se num sistema 1-2-1. Do compasso 85 ao 114, há uma
repetição idêntica à parte inicial, que compreende os compassos de 1 a 30.
59

Figura 11 (Compassos 84 a 89) - Abertura da terceira seção. Retorno ao primeiro tema

A partir do compasso 115 inicia-se a coda. Apenas a mão esquerda se movimenta


enquanto que a direita mantém um “Do#”.

Figura 12 (Compassos 112 a 123) - Coda


60

Com estes dados, fica evidente nesta obra a musicalidade afro, sobretudo a presente
no candomblé, expressada através do desenvolvimento do ostinato que parte da sutileza até o
transe, ou clímax.
Observando assim a trajetória de Guarnieri como compositor, percebe-se que a o ideal
nacionalista pensado por Mário de Andrade, e aderido e defendido por Guarnieri na metade do
séc. XX, quando este publicou a Carta aberta, isto é, uma música nacional que seja próxima e
palatável ao popular, afastando o atonalismo, principalmente o dodecafonismo por se tratar de
técnica estrangeira, não foi o resultado final atingido pela música de Guarnieri, visto que este
em suas últimas obras não demonstrou preocupação em conservar a tonalidade harmônica em
suas obras. Nas palavras do próprio Guarnieri: “Eu não tenho mais preocupação com
tonalidade. Hoje nem me interessa saber o acorde, o que vale é o som que ouço. Aquilo que eu
sinto, vou escrevendo. ” (GUARNIERI, 1991, p. 7). Rodrigues complementa:

Ao início da década de 1960, pouco a pouco, pode-se perceber que a tonalidade das
obras de Guarnieri torna-se imprecisa, chegando mesmo à atonalidade, porém de
maneira mais decisiva e intencional que no início da década de 1930. Um conceituado
crítico14 observou que havia uma “atmosfera de indeterminação tonal”, na Sonata nº
5 para violino e piano (1961), e a “libertação inteligente quanto ao tonalismo
harmônico”, no Quarteto de cordas nº 3 (1962). (RODRIGUES, 2015, p. 134).

Assim, no período que vai de 1965 a 1982, Guarnieri compunha uma música onde o
material de origem popular estaria inserido de uma maneira muito sutil, quase imperceptível
num primeiro momento. Ao mesmo tempo em que a tonalidade de suas composições se tornou
tão indefinida que beirou a atonalidade, por vezes o sendo.
Deste modo, tomando a Dansa Negra como base de observação, percebemos a
consideração de Guarnieri para com a cultura popular, os cantos, o ritual, a religiosidade, o
folclore, não obstante também constatamos seu apreço pelas dissonâncias, que são indícios de
seu gradativo afastamento da tonalidade.

14
João da Cunha Caldeira Filho (1900-1982), músico e crítico musical paulista. In: Caldeira Filho, J. C. A
aventura da música: subsídios críticos para apreciação musical. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1968, p. 84 e 87.
61

Capítulo IV

PROPOSIÇÕES NACIONALISTAS DE CLÁUDIO SANTORO: DANSA BRASILEIRA Nº


02

No início da década de quarenta, com o encontro e a convivência entre Cláudio Santoro


e Koellreutter, e posteriormente com a adesão de outros compositores que compuseram o grupo
Música Viva (1939-1948), o estudo e a difusão do dodecafonismo se expandiu.
Entretanto, é importante apontar que Santoro antes de seu contato com Koellreutter já
tivera contato com a técnica dodecafônica, como o próprio Koellreutter indicou: “Foi com
Santoro que aprofundei meus conhecimentos sobre o dodecafonismo. Ao contrário do que
dizem, não fui o introdutor dessa técnica no Brasil”. (KOELLREUTTER. Apud: OLIVEIRA,
2005, p. 66). Segundo o próprio Cláudio Santoro:

Lembro me quando fui estudar com Koellreutter em 1940 e meses depois lhe
apresentei o início da minha sinfonia para 2 orq. de cordas, que dava o nome de
“sinfonieta”, e que este perguntou se conhecia Shoenberg e a técnica dos 12 sons,
disse-lhe que não como era a verdade, mas ele não acreditou muito porque disse: “
isto parece escrito por quem conhece a técnica dos 12 sons”. (SANTORO apud
MENDES, 2009, p. 23).

Os estudos de Santoro juntamente com Koellreutter não se resumiram à técnica


dodecafônica., Neves afirma que Koellreutter aprofundava-se no estudo de novas técnicas
composicionais “aliando o rigor clássico de Hindemith às buscas harmônicas e formais do
dodecafonismo, tudo isso dentro de tendência primordialmente expressionista.” (NEVES, 2008,
p. 129). Ademais, Cláudio Santoro também se mostrou ser um compositor que valorizava a
liberdade na composição, ao invés da restrição. Como ele próprio viria afirmar:

Estudei com Koellreutter mais técnica, estudei contraponto e muitas discussões


estéticas. Trabalhei diariamente com ele contraponto durante um ano e pouco, toda a
parte da polifonia eu fiz com ele, muito seriamente, intensivamente, diariamente. Sob
o ponto de vista da técnica da composição, aprendi muitas coisas com ele; a técnica
que ele usava era a de Hindemith, mas ele também estava começando a pesquisar
sobre serialismo, ele trouxe as idéias do Shoenberg e só me ensinou como se faz uma
série e mais nada, e daí em diante eu que trabalhei à minha maneira. (SANTORO apud
OLIVEIRA, 2005, p. 66).

Esse compor “à minha maneira” aponta para a liberdade referida acima, como vimos
Santoro aliava princípios composicionais de Hindemith, o dodecafonismo, e o que Mendes
chamou de “tonalidade ampliada” (MENDES, 2009, p. 29), que foi um estilo utilizado por
62

Santoro antes do seu contato com Koellreutter. Mendes ainda afirma: “para Santoro sua música
não deveria sujeitar-se às imposições da ordenação interna da série, mas, ao contrário, a série é
que deveria adaptar-se às suas necessidades expressivas de cada momento”. (MENDES, 2009,
p. 39). Sobre seu percurso estilístico Cláudio Santoro explicou:

Eu comecei a compor música no Brasil em 39/40, música atonal e depois em 1940,


fazendo música com serialismo, dodecafonismo, com uma certa serialização à minha
maneira, porque não havia nada codificado sobre disso, não havia teoria nem nada.
Foi muito posteriormente que surgiu o primeiro livro de contraponto dodecafônico,
quer dizer, nessa época, quando apareceu esse livro no Brasil, eu já tinha seis anos de
música escrita, dodecafônica, serial. (SANTORO apud SOUZA, 2003, p. 79).

Entretanto, o emprego da técnica dodecafônica, mesmo entre os membros do Música


Viva nunca foi regra. O objetivo maior do grupo era a libertação da música dos últimos elos que
ligavam ao pensamento romântico. No entanto, Neves afirma:

No Brasil, a técnica dodecafônica jamais representou uma proposta real às


necessidades expressivas dos jovens compositores, tendo funcionado muito mais
como disciplina técnica com vistas a uma melhor organização mental, uma vez que a
formação tradicional em composição deixava os jovens como que perdidos em meio
a mil possibilidades, sem que realizassem as idéias consagradas da fatalidade do
nascimento de obras musicais como fruto da inspiração. (NEVES, 2008, p. 141 ).

Entretanto, os compositores que apresentavam em suas obras um afastamento da


tonalidade não eram tidos como nacionalistas aos olhos do críticos e músicos adeptos ao
pensamento de Mário de Andrade.

Para eles, a música dodecafônica (e tudo que escapava ao tonalismo estrito era
chamado de dodecafônico) carecia de força expressiva (confundida com a
sensibilidade epidérmica de certo romantismo), correspondia somente ao desejo de
rápida notoriedade (sucesso pelo escândalo), justificava-se apenas pela aplicação de
normas técnicas super-racionais, tirando sua lógica do capricho incontrolado dos
compositores. Em outras palavras, a nova música era acusada, ao mesmo tempo, de
falta e excesso de organização (falta de organização por não responder às normas
estruturais da música tonal, excesso de organização pelo extremo rigor lógico dos seus
processos composicionais). (NEVES, 2008, p. 148).

Santoro, neste período, muito se distinguiria daquele nacionalismo que bebia da fonte
do folclore e da música popular, pelo contrário, sua música não se preocupava com esses
elementos que conferiam à música uma brasilidade. Neves nos diz que sua obra nesse período
é “feita de rico pensamento polifônico construído sobre estruturas harmônicas ásperas, que
fogem intencionalmente de toda exteriorização sentimental e recusam qualquer ligação direta
com a temática melódica ou rítmica da música folclórica brasileira. ” (NEVES, 2008, p. 150).
63

Entretanto, Santoro não permaneceria nesta posição por muito tempo, e a partir de
1946 ele entraria num período de transição para uma música que se aproximava mais do povo,
que fosse mais inteligível ao público.

Santoro passa a investir na tese da simplificação estilística com o intuito de


proporcionar o acesso de um público mais amplo em sua arte. A partir deste ponto, ao
qual se refere como de “alta crise”, preponderaria uma aproximação gradativa das
práticas composicionais mais diretamente ligados à tradição, o que pode ser
considerado um prenúncio das características que se solidificariam na fase
nacionalista subsequente. Abrandada em suas sonoridades “mais ásperas”, a técnica
dodecafônica ainda seria utilizada nas primeiras experiências, vindo a desaparecer por
completo nas últimas obras do período. (MENDES, 2009, p. 69).

De qualquer forma, Santoro não manteria essa postura, como ele próprio escreveria
posteriormente a Koellreutter: “Você bem que tinha razão quando dizia que voltaria [ao
serialismo] um dia. É verdade. A experiência dos últimos 10 anos não foi em vão. Deu-me
segurança para poder fazer hoje o que desejar com o material sonoro. ” (SANTORO 1962 apud
MENDES, 2009, p. 141).
Para observamos algumas características da música nacionalista de Santoro, ou sua
proposta de elaboração de uma música nacional, tomamos a Dansa Brasileira nº 02. A referida
obra está inserida no período nacionalista do compositor, assim como a Dansa Brasileira nº 01,
ambas escritas para piano solo e compostas no mesmo ano.
A Dansa Brasileira nº 02 foi composta em 1951 por Cláudio Santoro, compositor este
que segundo Mendes, perpassou por seis períodos estéticos composicionais: Serialismo
dodecafônico (1939-1946); período de transição (1946-1948); Nacionalismo (1949-1960);
retorno ao serialismo (1960-1966); período Avant-Garde (1966-1977); período de maturidade
(1979-1989). (MENDES, 2009).
Neste período de transição do serialismo dodecafônico para o nacionalismo, as
primeiras divergências ideológicas apareceriam entre Cláudio Santoro e Koellreutter. Santoro
passaria a se preocupar mais para que sua música estivesse em consonância com sua ideologia
política, enquanto que Koellreutter assumiria uma postura mais comedida, de modo que as
ideologias não viessem a afetar, de maneira tão incisiva, sua produção musical.

Apesar dos conselhos de Koellreutter, com o passar do tempo tornou-se quase


impossível para Santoro considerar separadamente sua produção de compositor e a
ideologia política na qual acreditava. Se o partido comunista tinha como bandeira a
defesa dos interesses do proletariado, fatalmente, sua música também deveria refletir
esta mesma causa, ainda que nesta época não admitisse concessões, ou seja, a fácil
assimilação deveria ser alcançada sem o auxílio de citações de música folclórica,
permanecendo, ao mesmo tempo, distanciada da música popular. (MENDES, 2009,
p. 78).
64

Esse seria o período de transição estilística de Santoro, que alcançaria seu ápice após
sua ida para a França e principalmente após sua participação no II Congresso de Compositores
de Praga (1948).

4.1 O Congresso de Praga

Após algum tempo residindo em solo francês, Santoro vê surgir a oportunidade,


através da informação da jornalista brasileira Zora Braga, de participar do II Congresso de
Compositores de Praga.
A tônica central do congresso seria os rumos que a música tomaria, portanto, o tema
escolhido para o congresso foi “Oú va la musique?” (Para onde vai a música?). Separadas em
tópicos, as conferências abordavam seis assuntos fundamentais:
• A estrutura e a expressão da música atual / música clássica e popular.
• Função social da música clássica e popular.
• O papel das tradições nacionais no desenvolvimento da música
• O método da crítica musical contemporânea.
• A formação dos críticos musicais
• Música, instrumento de paz e compreensão entre os povos.
O tema de interesse de Santoro não se encaixava em nenhum desses tópicos, ainda
neste período o referido compositor ainda não considerava o aproveitamento do folclore ou
temas populares, como nos explica Hartmann:

Como a música folclórica e o aproveitamento de temas nacionais não interessavam


muito a Santoro – visto que quase nada da rítmica brasileira e da temática folclórica
pode ser encontrada em sua obra da fase atonal - ele definiu sua conferência com o
próprio tema principal, “Para onde vai a música”. Como subtítulo acrescentou: “o
problema do compositor contemporâneo de acordo com a sua posição social. 15”
(HARTMANN, 2010, p. 461).

Em sua participação no congresso, Santoro apesar de já haver demonstrado


divergências quanto a posição de Koellreutter, acreditava ainda no emprego da técnica
dodecafônica, na sua apresentação ele afirma:

Acredito que as pesquisas e as experiências na técnica dos doze sons são importantes,
principalmente no que concerne em auxiliar o desenvolvimento da forma. Porque,
com a dilatação da expressão, sua renovação para uma tendência pró-atonalismo,

15
Título em Francês: “Lé Problème du Compositeur Contemporain Dans sa Position Sociale”.
65

portanto de abandono da tonalidade, entra-se em crise. A forma mais importante da


música tonal, que é a “forma sonata” e que se baseia no conceito tonal “cadência”,
entra em contradição com o novo conteúdo expressivo que é o abandono da
tonalidade, portanto sua função orgânica que a originou. Essa contradição é um fato
natural, daí a importância que dou ao princípio do dodecafonismo que talvez possa
satisfazer em parte as necessidades exigidas por esta nova expressão. 16 (SANTORO,
1948, p. 2).

Não obstante, Santoro viria a perceber que o objetivo e a direção que o congresso
apontaria seria o da assimilação e compreensão da arte pelo povo, divergindo assim da sua
apresentação. Como nos explica Mendes:

Para sua surpresa, a defesa que empreendera do atonalismo como reflexo de uma
evolução social deflagrada pelo avanço do mundo socialista sequer fora considerada.
Ainda que estivesse de acordo com a tese de que “a compreensão da arte pelo povo”
se firmava como “o critério fundamental da estética progressista” [...] em momento
algum, Santoro teria imaginado que uma de suas principais convicções, qual seja, “a
simplificação das concessões”, estaria em franca oposição ao que seus pares
defendiam como a postura estética de um compositor engajado na causa comunista.
(MENDES, 2009, p. 102).

Ao término do congresso, as resoluções estabelecidas pelos compositores levaram


Santoro a repensar sua produção musical, atentando mais para as aspirações do povo. Para tal,
deveria alterar radicalmente seu modo de fazer música. Através de uma correspondência ele
revela:

Na Europa, no Congresso de Praga, minha conferência é uma condenação ao


dodecafonismo mas com alguma esperança em sua técnica o que hoje chego a
conclusões de inteiro abandono da mesma. Assim como fui o primeiro brasileiro a
adotar essa técnica, quero ser também o primeiro a abandoná-lo. O grande movimento
na Europa atual é o novo Humanismo na arte. Quero ser conseqüente com minhas
idéias de fazer uma arte que contenha os anseios do nosso povo. Para isto terei que
falar a sua linguagem para que seja entendido. ”17 (SANTORO apud MENDES 2009,
p. 85).

No seu retorno ao Brasil, Santoro divulgaria as resoluções do congresso de Praga


afirmando que a música nacionalista brasileira deveria ser inteligível ao seu povo e que fosse
uma verdadeira expressão popular, e apontou alguns compositores que seriam exemplos a
serem seguidos “No que concerne ao Brasil, Santoro dirá que todos aqueles interessados a
“construir algo novo” deveriam tomar como ponto de partida a obra de Villa-Lobos e Camargo
Guarnieri. ” (MENDES, 2009, p. 108).

16
SANTORO, Cláudio. Oú va la Musique? “Le Problème du Compositeur Contemporain Dans sa Position
Sociale”. [1948] p. 1.
17
SANTORO, Cláudio. Correspondência a Vasco Mariz: 25/10/48
66

Santoro, portanto, apresenta uma reviravolta em suas crenças após sua participação no
congresso. A sua primeira postura, isto é, a que antecedia ao congresso, seria uma defesa do
sistema atonal como elemento chave da arte revolucionária, entretanto, após a conferência,
passa a afirmar que a arte revolucionária verdadeira seria aquela oriunda de elementos que
constituem o proletariado, que está próxima e inteligível ao povo.
Por ter passado a dar importância à música do povo, o que não demonstrava no começo
de sua carreira como compositor, Santoro viu-se na necessidade de conhecer melhor a referida
música, assim ele revela através de uma correspondência:

[...] um deles é ver se fico uns dois anos no norte, isto é, Recife, por exemplo, a fim
de estudar seriamente o nosso folclore e formar uma série de estudos profundos sobre
a origem modal da nossa música, quais as leis que inconscientemente a regem, colher
tudo o que puder para ver se organizo um livro sobre as bases da construção da nossa
música, como formação melódica e daí partir para um possível livro sobre contraponto
e harmonia.18 (SANTORO apud HARTMANN, 2010, p. 462).

Tal decisão foi tomada por Santoro, pois, dentre um dos assuntos em pauta no
congresso de Praga era a de uma educação musical fundamentada nas bases populares e
folclóricas de cada região.
Como vimos, Santoro demonstrou grande engajamento com os assuntos discutidos na
conferência, enquanto que Koellreutter não abraçaria de todo às resoluções do congresso de
Praga, pois discordava que compor música atonal ou dodecafônica seria um retrocesso, para ele
havia uma “confusão” sobre expressões do tipo “forma”, “conteúdo” e “técnica”. Em
correspondência a Santoro ele viria a argumentar:

A técnica é apenas um meio, mas nunca um fim e tão pouco um característico. [...]
Acho que não devemos discutir a “técnica”, mas o “conteúdo”. [...] pode-se estar
ideologicamente dentro do “Manifesto de Praga” de uma como de outra maneira.
(Escrevendo em dó-maior ou na técnica dos doze sons). Em tudo isso, em toda essa
discussão, é necessário separar o conteúdo, a técnica e os elementos formais da obra.
O nosso problema é o conteúdo. Um novo conteúdo. Este criará uma nova forma como
todos sabemos. (KOELLREUTTER apud MENDES, 2009, p. 114).

Por meio desta sua afirmação, Koellreutter também procurou demonstrar que como se
tratava de um problema de conteúdo e não de técnica, poder-se-ia compor música tonal com
um conteúdo pobre. Através desta afirmação de Koellreutter, notamos que há uma distinção
entre o conceito de conteúdo da maneira que foi concebida por Pareyson; Koellreutter separa
conteúdo da técnica, como se a técnica fosse apenas um meio do artista elaborar o conteúdo, já

18
SANTORO, Cláudio. Correspondência a Curt Lange: 13/09/48
67

para Pareyson, a técnica é parte integrante do conteúdo, que é todo o modo de formar do artista,
toda sua espiritualidade formante.
Após sua estada na França, Santoro também se preocuparia com questões como
“conteúdo negativo” e “conteúdo positivo” na música. Tomando como conteúdo negativo a
música que abate o ânimo e o conteúdo positivo como a que incita o indivíduo à ação. Assim
Santoro consideraria a música dodecafônica como sendo possuidora de um conteúdo pessimista
ou negativo. E nesse sentido, ele também reprovaria aspectos do nacionalismo vigente no
Brasil. Segundo ele:

Tais movimentos pouco adiantaram, no nosso sentido ideológico, e há muito a fazer


porque estando desligados dos movimentos de massa, dos movimentos progressistas,
desligados da evolução social, não produziram, portanto, maior número de obras de
caráter positivo; acertando, porém, as vezes, pelo fato de utilizarem um elemento que
por ser tão forte e poderoso, se sobrepunha às intenções e conseguia afirmar-se por si
só: o elemento da canção popular, o canto espontâneo do povo. (SANTORO, 1948, p.
239).

Como dito anteriormente, para Santoro a música atonal apresentaria um caráter


negativo, que a afastaria do povo. Koellreutter, viria discordar deste argumento, como nos conta
Mendes:

[...] também a afirmação categórica feita por Santoro através de seu artigo de que o
atonalismo gerava obras de conteúdo mórbido e pessimista só poderia encontrar
resistência por parte de Koellreutter. Para ele, se o conteúdo era algo independente da
técnica, não teria que ocorrer necessariamente esta relação obrigatória entre
atonalismo e conteúdo negativo, já que este último poderia surgir em qualquer obra
independente da técnica empregada. (MENDES, 1999, p. 47).

A essa altura, Santoro já não acataria ou daria ouvidos à crítica de Koellreutter.


Comprometido com sua nova postura ideológica, o compositor vê a necessidade de adotar um
novo estilo de composição.

Ao contrário das previsões de Santoro, as novas orientações estilísticas assimiladas a


partir do evento em Praga não se materializaram de imediato, o que o levou a
considerar o ano de 1949 um período de crise profunda. Para Mariz (1994, p. 29) a
principal barreira com que o compositor se deparou em sua intenção de desenvolver
um novo estilo foi a necessidade de “rever sua maneira de escrever” e “estudar mais
detidamente a música brasileira que nunca havia merecido grande atenção sua”.
(MENDES, 2009, p. 97).

Nesta nova maneira de escrever música, Santoro passaria a empregar elementos


musicais como melodias modais, ostinato, polimodalidade e melodias cromáticas, para citar
alguns. Estas características seriam recorrentes no novo processo criativo do compositor.
68

Um dos recursos técnicos de composição mais empregado por Santoro neste período
nacionalista foi o ostinato, e trata-se do primeiro aspecto percebido na audição da Dansa
Brasileira nº02; um ostinato na mão esquerda com as notas Do e Fá#. Acerca do ostinato na
obra de Santoro, Mendes afirma:

Disseminados por toda obra nacionalista de Santoro, os motivos do acompanhamento


em forma de ostinato cumprem a função que, em geral, a eles se atribui: propiciar o
“fundo harmônico” por sobre o qual, o conteúdo melódico é sobreposto. Em geral, os
ostinato de Santoro estão elaborados em torno de uma figura rítmica bastante
pronunciada, com seu conteúdo variando entre, uma nota pedal, um acorde ressonante,
ou da combinação de dois ou mais acordes. (MENDES, 2009, p.126).

Assim, Santoro introduz nesta sua obra um longo ostinato na mão esquerda que vai do
compasso 01 ao 77, com algumas rápidas interrupções presentes nos compassos 46 e 48.

Figura 13 (Compassos de 01 a 06) - Trecho do ostinato na mão esquerda.

Aqui, o referido ostinato, como mencionado por Mendes, tem como propósito
constituir uma base harmônica, sobre a qual a melodia, que se inicia desde o primeiro compasso,
se desenvolve.
Nesta obra, Santoro utiliza figuras rítmicas bem regulares, geralmente empregando
articulações como acento, tenuto e staccato, dispensando o uso de apogiaturas; ao longo de toda
composição, apenas quatro figuras rítmicas são empregadas, a mínima, semínima, colcheia e
semicolcheia. A partir do compasso 47 também há o emprego da semínima e da colcheia
pontuada.
Apesar da peça não possuir acidentes na armadura de clave, e também iniciar e recorrer
frequentemente à nota dó, a peça constitui-se de um sistema modal. Santoro utiliza o modo
Lídio de dó (do-ré-mi-fá#-sol-la-si); o intervalo de quarta aumentada, no caso fá#, é bem
recorrente.
69

Figura 14 (Compassos de 19 a 24) - Emprego do modo Lídio de dó

A utilização dos modos é uma característica muito marcante nas obras de Cláudio
Santoro no período em que sua orientação estética estava voltada para o nacionalismo. Como
afirma Mendes:

No que concerne especificamente à elaboração melódica, de acordo com a tendência


já detectada no final do período de transição, Santoro tomaria inicialmente as escalas
modais como principal material para construção de grande parte de suas melodias
nacionalistas, embora a recorrência de elementos tonais, tanto diatônicos, quanto
cromáticos possam ser igualmente encontrados. (MENDES, 2009, p.126).

Na Dansa Brasileira nº02, Santoro não se restringe apenas ao uso de um modo


específico; assim como em outras obras de caráter nacionalista, o referido compositor cria um
amálgama de modos, tonalidades e cromatismos. Dentre os materiais e técnicas utilizadas por
Santoro nesse período, Mendes menciona o polimodalismo e o modalismo cromático.
(MENDES, 2009).
O emprego do modo Lídio de dó, na obra em questão, compreende o início da peça até
o compasso 57, onde ocorre uma transição nos compassos 58 a 60, que conduz ao emprego de
modos alternados, comumente utilizado por Santoro, como nos diz Mendes:

Recursos amplamente utilizados no decorrer de todo o período nacionalista, mais uma


vez, a polimodalidade e a politonalidade voltariam a integrar a paleta de materiais e
ferramentas composicionais de Santoro. (MENDES, 2009, p.240).

Após o compasso 60, a peça passa para o modo dórico de ré (ré-mi-fá-sol-la-si-do),


tendo o ostinato da mão esquerda apoiado na nota ré, com apenas alguns acidentes recorrentes
e estes nos tempos fracos do compasso.
70

Figura 15 (compassos 56 a 61) - Transição modal

A escolha de Santoro pela utilização das escalas modais se deu sobretudo pela maior
liberdade de criação em relação ao sistema tonal convencional, tal como explica Mendes:

Livre dos estereótipos harmônicos do sistema tonal clássico, tal como, por exemplo,
a relação dominante-tônica gerada pelo emprego da sensível, as melodias modais
predominantes no período possibilitaram o emprego no acompanhamento de um
vocabulário harmônico amplo, contendo, desde as formações triádicas tradicionais,
acrescidas ou não de dissonâncias variadas, até as harmonias baseadas na
superposição intervalar de quartas e quintas. (MENDES, 2009, p.120).

Retornando ao princípio da peça, temos o tema inicial apresentado nos primeiros quatro
compassos da obra, iniciando uma seção que vai do compasso 01 ao 28.

Figura 16 (Compassos 01 a 06) - Apresentação do tema.

A partir do compasso 29 há uma repetição do tema, entretanto com variação, sobretudo


na parte final da seção que compreende os compassos 43 a 50.
71

Figura 17 (compassos 25 a 36) - Reapresentação do tema.

Posteriormente, o tema novamente aparece a partir do compasso 51, onde o compositor


também acresce uma nova “voz” a peça musical, que passa a contar com três pautas musicais.

Figura 18 (compassos 48 a 54) - Tema com variação.

A partir deste ponto Santoro utiliza um esquema de “pergunta e resposta”, que servirá
também de transição para a parte de maior intensidade da composição.
72

Figura 19 (compassos 62 a 67) - Perguntas e respostas

A partir do compasso 77, se encerra o uso do ostinato na mão esquerda e a peça passa a
contar com apenas uma nota oitavada no primeiro tempo forte do compasso. Em seguida, temos
o início de outra seção da peça com novas figuras rítmicas, partindo do compasso 79 ao 97. Na
Dança Brasileira nº 02, Santoro não emprega uma forma musical “consagrada”, como um ABA;
a peça, pelas figuras rítmicas que apresenta, parece contar com duas seções, a primeira
compreende os compassos 01 a 78 e a outra seção parte do compasso 79 ao 105.
A música, assim, caminha para atingir seu clímax, através de uma dinâmica que parte
do ff e vai ao fff, acompanhado de blocos de acordes de quatro notas.

Figura 20 (compassos 94 a 97) - Clímax da peça

É neste trecho também que Santoro emprega a figura rítmica sincopada muito utilizada
na música brasileira, semicolcheia-colcheia-semicolcheia.
73

Figura 21 (compassos 84 a 94) - Síncope

Em seguida, o fortíssimo se prolonga através de uma profusão de semicolcheias bem


articuladas, encerrando, assim, a seção e conduzindo a parte final da peça.

Figura 22 (compassos 98 a 100) - Trecho em Fortíssimo.

A peça é conduzida para uma coda, onde Santoro salta de uma dinâmica fortíssima para
um súbito piano, com notas executadas num andamento lento, como sugerido pelo compositor.
Após uma fermata em pianíssimo, a peça se encerra retomando sistema modal na qual se
iniciou, novamente com uma dinâmica fortíssima e com o andamento prestíssimo.
74

Figura 23 (compassos 101 a 105) - Coda final

A Dansa Brasileira nº02 de Cláudio Santoro é uma peça de curta duração, com um
andamento por volta das 92 a 100 bpm para a semínima. A peça dura entre 2’20’’ a 2’30’’
aproximadamente, e não conta com ritornelos.
Pode-se afirmar que a Dansa Brasileira nº 02 foi composta num período em que
Cláudio Santoro contava com grandes desafios, pois segundo ele, após sua participação no
Congresso de Praga, seria necessário todo um período de estudos, pesquisas e a reformulação
de uma nova maneira de compor, que estivesse mais de acordo com seus princípios, que haviam
sido alterados recentemente. Sobre estes desafios para construir uma nova musicalidade
Mendes nos diz:

Na avaliação de Rangel Bandeira (1954, p.34), o fato de sua iniciação como


compositor ter ocorrido diretamente no dodecafonismo, fez com que Santoro não
experimentasse a necessidade de libertar-se das leis tonais dominantes, tal como havia
ocorrido com uma inteira geração de compositores. Ao decidir-se pelo abandono da
técnica dodecafônica, Santoro teria ficado “no ar”, precisando “ retomar por si mesmo
uma experiência musical” que não era sua. (MENDES, 2009, p. 98).

Ainda sobre esta questão, Bandeira nos dá uma lúcida descrição dos desafios que
Santoro viria a enfrentar:

Era um impasse interior, um recomeço de tudo. Tal como se fosse um principiante,


um jovem artista à procura de uma “linguagem” adequada à sua vocação. Por isso
nessa fase os seus passos foram tão indecisos, tão fracos, tão titubeantes. Nem parecia
o compositor forte, afirmativo, pessoal, daquela magnífica sonata (fase dodecafônica)
para violoncelo e piano. De compositor realizado, Cláudio Santoro voltou a ser uma
promessa, um talento novo em formação. Uma consciência nacionalista a querer
tomar corpo, a procurar suas raízes na terra. (BANDEIRA, 1959, p. 34).

Várias foram as tentativas, erros e acertos, que Santoro viria a experienciar. Por vezes
iniciou obras que terminariam por inacabadas, diante dessa “crise” ele mesmo viria afirmar:
75

A crise que atravesso é terrível e não sei ainda qual será a consequência. ...Tenho
mudado muito e meu Balet [ballet] “A Fábrica” continua caminhando muito
lentamente, porque representa a primeira obra escrita dentro da nova linha. Os temas
embora sejam meus são de caráter puramente populares e brasileiros, quanto ao
conteúdo, este é expressado principalmente no final porque os dois primeiros quadros
são muito dramáticos pela tragédia e brutalidade com que se desenvolve a cena, mas
o final representa a vitória do proletariado sobre as forças da reação burguesa, dando
aí um ensejo de facilitar a procura de um conteúdo positivo. (SANTORO apud
MENDES, 1999, p. 52).

Assim como Guarnieri, Santoro não viu no sistema tonal estrito, o meio ideal para a
criação de sua música. Apesar do seu forte posicionamento no tocante a elaboração de uma
música inteligível à população, Santoro também empregaria dissonâncias em suas obras.
Mendes nos descreve alguns elementos empregados por Santoro na composição musical desta
fase do compositor:

[...] Santoro tomaria inicialmente as escalas modais como o principal material para a
construção de grande parte de suas melodias nacionalistas [...] Livre dos estereótipos
harmônicos do sistema tonal clássico, tal como, por exemplo, a relação dominante-
tônica gerada pelo emprego da sensível, as melodias modais predominantes no
período possibilitaram o emprego no acompanhamento de um vocabulário harmônico
amplo, contendo desde as formações triádicas tradicionais, acrescidas ou não de
dissonâncias variadas, até as harmonias baseadas na superposição intervalar de
quartas e quintas. (MENDES, 2009, p. 120).

Santoro permanece atento aos aspectos dessa “musicalidade brasileira”, e até se oporia
ao pensamento de Koellreutter quando surge a afamada discussão sobre a Carta Aberta
publicada por Guarnieri. Entretanto, isto não permaneceria assim. Outra vez o compositor
gradativamente retornaria à música atonal e até dodecafônica como nos conta Mendes:

Por volta do início da década de sessenta, o percurso estilístico de Santoro seria


tomado por um novo ciclo de transformações. Tanto a preocupação em dar livre curso
à atualização estilística, quanto à descrença nas antigas convicções ideológicas
nutridas durante o transcorrer da fase nacionalista, gradativamente, o trariam de volta
à escrita dodecafônica da década de quarenta. (MENDES, 2009, p. 140).

A busca por novos caminhos, juntamente com o “espírito de sempre pesquisar”,


constituíam parte do argumento de Santoro referente à essa mudança estilística. Mendes ainda
nos conta que “com o passar do tempo, Santoro seria capaz de renegar publicamente grande
parte das teses defendidas em artigos e palestras na década anterior. ” (MENDES, 2009, p. 142).
Não obstante o seu retorno ao dodecafonismo, a música de Santoro apresentaria mudanças, não
mais se mostrando como o atonalismo ou dodecafonismo das primeiras décadas de composição.
76

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da complexidade que é o estudo da música, como dito em outra ocasião, devido
sua abrangência, pudemos observar alguns aspectos que constituíram o nacionalismo brasileiro
na música de concerto, seja sua ideologia, alguns de seus atores, seu contexto histórico, pontos
sobre a estética e poética presente neste período. Notadamente, essa preocupação em forjar
músicas que representam uma nação antecedeu o movimento nacionalista brasileiro, sendo já
percebida no início do século XIX na Europa.
Naturalmente, os compositores brasileiros também apresentariam esse anseio em criar
uma música que expressasse a alma brasileira, como visto, a princípio encontramos mais
tendências criadoras que uma música objetiva já com os elementos nacionais bem diluídos.
Dentre tais compositores essa pesquisa tomou Camargo Guarnieri e Cláudio Santoro
devido suas trajetórias e pela busca dos mesmos de elaborar uma música que representasse o
povo brasileiro. Para isto, optamos pela escolha de duas obras do período nacionalista de ambos
compositores: a Dansa Negra (Guarnieri) e a Dansa Brasileira nº 02 (Santoro) como base de
observação.
Alguns critérios foram elegidos na escolha das duas obras apresentadas nesta pesquisa,
Dansa Negra (1946) de Camargo Guarnieri e Dansa Brasileira nº02 (1951) de Cláudio Santoro.
O primeiro aspecto que pode ser percebido é o fato das duas obras se constituírem danças.
Ademais há um recorte temporal que aproxima as duas obras. As duas composições também
são para instrumento solo, neste caso piano. E a característica fundamental é que as duas obras
constituem parte da nossa música nacionalista de concerto.
Este nacionalismo, principalmente no que se refere aos dois compositores
mencionados, se apresenta nestas obras de maneira distinta, em diferentes momentos. Essa
distinção, como vimos, vai além da questão poética, que normalmente se difere. Constituem-se
também de divergências ideológicas, estéticas.
Podemos situar a música nacionalista de Santoro pós-Praga entre as chamadas
“tendências criadoras,” termo cunhado por Kiefer, devido ao fato de Santoro estar iniciando
uma jornada nova, onde todos os aspectos de sua música deveriam ser reformulados, novos
princípios acrescentados e apreendidos, devido essa proximidade com o povo almejada pelo
compositor. Guarnieri naturalmente teve um percurso diferente, sua música não precisou ser
reformulada.
77

Verificamos uma proposta de nacionalismo na música de Guarnieri quando do seu


envolvimento com Mário de Andrade, sobretudo quando é publicado o Ensaio sobre a música
brasileira em 1928. Um nacionalismo de proximidade com o povo, com seus cantos, embebidos
do folclore, um nacionalismo que buscava se distanciar do atonalismo, do dodecafonismo, que
concedia às obras títulos na linguagem nacional, como é o caso da Dansa Negra.
Este nacionalismo de Guarnieri aos poucos se torna mais flexível no tocante aos
princípios acima mencionados, de modo que já podemos notar na Dansa Negra, escrita em
1946, uma maior recorrência de dissonâncias, principalmente por meio de cromatismos.
A Dansa Negra evidencia uma rica sonoridade, através de ostinatos e blocos de acordes
sem intenção de manter as cadências harmônicas tradicionais. Guarnieri através desta dança se
mostra menos preso aos princípios nacionalistas descritos por Mário de Andrade. É importante
lembrar que Mário de Andrade faleceria no ano que antecedia a elaboração desta dança, isto é,
em 1945.
Entretanto, após o falecimento de Mário de Andrade, mais especificamente no ano de
1950, Guarnieri, de certa forma, tomaria para si a responsabilidade de defender as bases do
nacionalismo marioandradiano, assim ele publicaria sua Carta Aberta em 1950, onde reprovaria
a música dodecafônica e atonal. Segundo Rodrigues “Na última fase, a “fase final”, que vai de
1982 a 1993, Guarnieri sentiu duramente as consequências de haver escrito a Carta aberta. ”
(RODRIGUES, 2015, p. 138).
É sobretudo nesta “fase final” que temos o desfecho da trajetória de Camargo
Guarnieri e o nacionalismo empregado pelo mesmo. Não obstante seu engajamento na década
de cinquenta, evidenciados através das discussões relacionadas à Carta aberta, como vimos,
Guarnieri se afasta cada vez mais do seu nacionalismo primeiro, terminando até mesmo por
compor músicas consideradas atonais, ou com tonalidades “fugidias”. E a Dansa Negra
demonstra seus primeiros passos nesse sentido. Sobre o discurso musical de Guarnieri e seu
posterior afastamento do nacionalismo “marioandradiano”, Rabelo nos diz: “Guarnieri
caminhou para um idioma musical mais universal (em contraposição ao seu tradicional estilo
nacionalista), usando atonalismo e serialismo combinados com elementos nativos. (RABELO,
2002, p. 43).
Cláudio Santoro faria um percurso diferente de Guarnieri, sua música nacionalista
precisou ser estudada, pesquisada, experimentada. Santoro compunha música atonal
anteriormente, e como vimos, neste primeiro momento, não se importou com a música que
satisfizesse os anseios do povo.
78

No período em que a Dansa negra foi escrita por Guarnieri, Santoro apresentava suas
primeiras divergências ideológicas com relação a Koellreutter, e como mencionado nesta
pesquisa, é no ano de 1948 que a grande mudança ocorre, através de sua participação no II
Congresso de Compositores de Praga.
A partir deste momento se inicia o nacionalismo de Cláudio Santoro. Embora tenha
apontado Villa-Lobos e Guarnieri como modelos a serem seguidos pelos jovens compositores
interessados em compor música nacionalista, seu nacionalismo diferiria do de Guarnieri
principalmente devido a sua formação anterior, isto é, pelo seu contato com o dodecafonismo.
A Dansa brasileira nº 2 é escrita no ano de 1951, isto é, três anos após o Congresso de
Praga, sendo que no ano de 1949 Santoro pouco produziu devido à sua crise, já mencionada
nesta pesquisa. Situa-se, portanto, dentro das primeiras obras de cunho nacionalista do
compositor.
A proposta nacionalista de Cláudio Santoro possuiria muitos pontos em comum com
a de Camargo Guarnieri. Entretanto, além da aproximação com o povo, suas cantigas, seu
folclore, Santoro, como vimos, daria grande importância ao caráter “negativo” e “positivo” da
música. Assim, o nacionalismo na música, para Santoro deveria se afastar do aspecto atonal, na
qual ele categorizou como negativo e que recebeu críticas por parte de Koellreutter.
Deste modo, as obras de Santoro de cunho nacionalista se utilizam de melodias
modais, ostinatos, polimodalidade, aspectos estes que podemos encontrar na Dansa Brasileira
nº2, discutida nesta pesquisa.
Assim como Guarnieri, gradativamente Santoro passa a regressar ao atonalismo, e ao
dodecafonismo, entretanto, Santoro não abriria mão de todo seu aprendizado do período
nacionalista, como ele próprio afirmou em correspondência a Koellreutter, já discutido no
capítulo IV deste trabalho. No entanto, Santoro viria demonstrar uma descrença para com o
projeto nacionalista, Mendes afirma que: “O desinteresse pela continuidade do projeto
nacionalista não significou um imediato retorno à antiga prática serialista.” (MENDES, 2009,
p.148). Acrescenta que suas obras posteriores, isto é, compostas em 1960 e 1961 exibem como
tendência um distanciamento da música de temática nacional.
Em se tratando de forma e conteúdo, Guarnieri e Santoro tiveram um cuidado todo
especial, principalmente no tocante ao conteúdo. Os elementos que compunham o nacionalismo
brasileiro, como o folclore por exemplo, foram bem desenvolvidos e empregados pelos dois
compositores, de maneira que não resultasse numa obra simplista com citações diretas do
populário nacional. Estes elementos foram bem assimilados pelos mencionados compositores
e traduzidos em obras de rica sonoridade.
79

Ponderando acerca do principal objetivo do nacionalismo, isto é, fazer com que os


compositores falassem a linguagem musical nacional como sua língua materna, que refletisse
os anseios de um povo, e que fosse assimilável pelo mesmo (como já foi discutido no capítulo
I) notamos que os desfechos dos percursos estilísticos tanto de Guarnieri quanto de Santoro
distanciam-se gradativamente desta proposta. No entanto, esta afirmação carece de um estudo
mais amplo, que contemple outras obras compostas posteriormente pelos dois compositores.
De qualquer forma, este trabalho discute questões relevantes que podem inspirar e
auxiliar na realização de mais estudos envolvendo esta temática.
80

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VÁRIOS AUTORES

Presença de Villa-Lobos, n. 3. Rio de Janeiro: Museu Villa-Lobos/Fundação Pró-Memória,


1969a.

Presença de Villa-Lobos, n. 4. Rio de Janeiro: Museu Villa-Lobos/Fundação Pró-Memória,


1969b.
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ANEXOS
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