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1.

Plano de Disciplina

1. IDENTIFICAÇÃO

CURSO: LETRAS PERÍODO: 7° ANO: 2015

DISCIPLINA: Literatura Amazonense SIGLA:

CARGA HORÁRIA TOTAL: 60 horas-aula

TEÓRICA: 60 PRÁTICA: — CRÉDITOS: 04

PROFESSOR: Dr. Marcos Frederico Krüger Aleixo PRÉ-REQUISITO: —

2. EMENTA

Literatura de informação da terra. Período colonial. Das incidências românticas ao


Clube da Madrugada. Manifestações contemporâneas.

3. OBJETIVOS

Geral:
Compreender a Literatura Amazonense como um fenômeno social e histórico.
Específicos:
Estudar aspectos relevantes de textos literários dos períodos indicados;

Compreender as diferenças estilísticas e ideológicas entre os principais estilos de


época que vão do século XVI ao final do século XIX, no Brasil.

Ler um romance de importância do Romantismo, do Realismo ou do Naturalismo.


4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Aulas expositivas;
Leitura de contos e poemas em sala de aula;
Discussão, em grupo, de textos teóricos;
Exibição de filme(s);
Resolução de exercícios.

5. AVALIAÇÃO

Serão realizadas três avaliações, como segue:

a) A primeira nota será o resultado de uma avaliação escrita;


b) A segunda nota será apurada pelo conjunto de uma prova escrita e de um
seminário (em grupo);
c) A nota final será o resultado de outra avaliação escrita.

6. REFERÊNCIAS

BATISTA, Djalma. Amazônia – cultura e sociedade. Manaus: Valer, Governo do Estado do


Amazonas, Universidade Federal do Amazonas, 2003. (Poranduba, 7)
BRASIL, Assis. A Poesia amazonense no século XX (antologia). Rio de Janeiro: Imago, 1998.
(Poesia brasileira)
_________. A Representação da conquista da Amazônia em Simá, Beiradão e Galvez, o
imperador do Acre: ficção e história. Manaus: Universidade do Amazonas, 1996.
JOBIM, Anísio. A Intelectualidade no extremo Norte (contribuições para a história da literatura
no Amazonas). Manaus: Livraria Clássica, 1934.
LINS, José dos Santos. Seleta literária do Amazonas. Manaus: Governo do Estado do Amazonas,
1966.
MONTEIRO, Mario Ypiranga. Fases da literatura amazonense. Manaus: Imprensa Oficial, 1977.
_________. Fatos da literatura amazonense. Manaus: Universidade do Amazonas, 1976.
MORAES, Péricles. Os Intérpretes da Amazônia. Manaus: Valer, Governo do Estado do
Amazonas, 2001. (Poranduba, 4)
PINTO, Zemaria. O Conto no Amazonas. Manaus: Valer, 2011.
SOUZA, Márcio. A Expressão amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo. 2. ed. rev.
Manaus: Valer, 2003.
_________. História da Amazônia. Manaus: Valer, 2009.
TELLES, Tenório & KRÜGER, Marcos Frederico, org. Antologia do conto amazonense. 3. ed.
Manaus: Valer, 2009.
_________. Poesia e poetas do Amazonas. Manaus, Governo do Estado do Amazonas, 2004.
TUFIC, Jorge. Clube da Madrugada: 30 anos. Manaus: Imprensa Oficial, 1984.
_________. Existe uma literatura amazonense? Manaus: Madrugada, 1983.
_________. Roteiro da literatura amazonense. Manaus: Madrugada, 1983.

Local/Data: Local/Data:

Manaus, março de 2015 Manaus, março de 2015

Assinatura do Professor: Assinatura do Coordenador:


VISÃO DAS AMAZONAS

Publicado no jornal O Estado do Amazonas,


Caderno “História do Amazonas”, em 10/10/2004, domingo
Autor: Marcos Frederico Krüger

O mais intrigante episódio da história de nosso estado é o que diz respeito


ao encontro da expedição de Francisco Orellana com as amazonas, mítica tribo
exclusivamente integrada por mulheres.

Fatos históricos comprovados relatam que, em 1541, o espanhol Orellana


partiu de Quito para a exploração de um grande rio que, futuramente, se chamaria
Amazonas. Integrava a expedição um frade da Ordem de São Domingos de
Guzman chamado Gaspar de Carvajal, com a função de relatar os eventos
sucedidos. Era costume, na época, levar nas viagens alguém que soubesse escrever
– coisa não muito comum no século 16. Temos um outro exemplo semelhante na
história do Brasil: a vinda de Pedro Álvares Cabral, em 1500, só se tornou
conhecida graças ao relato do escrivão de bordo, Pero Vaz de Caminha.

Gaspar de Carvajal apresenta as diversas fases da viagem e, a exemplo dos


escritores de ficção, cria um certo suspense em relação a dois fatos: o primeiro
seria a abundância de ouro na terra pela primeira vez percorrida; o segundo, a
existência de uma tribo só de mulheres, governadas por uma digna senhora
chamada Conhorí.

Segundo o cronista Carvajal, o encontro com as “mulheres guerreiras” se


deu em 24 de junho de 1542, no dia de São João. Os expedicionários viram,
inicialmente, uns índios que, amedrontados, e sendo súditos das amazonas, foram
pedir socorro a elas. O conflito que então se estabeleceu teve lugar na foz do rio
Nhamundá. As amazonas eram, segundo o que se lê, “muito alvas e altas, com o
cabelo muito comprido, entrançado e enrolado na cabeça”.

Valentes em demasia, elas lançaram várias flechas nos bergantins (tipo de


barco movido a vela e a remo), tentando acertar os invasores. O relato da luta é
hiperbólico: “começaram a atacar-nos e a flechar-nos tão bravamente, que não nos
víamos uns aos outros”. Apesar da bravura, as mulheres sofreram sérias baixas,
pois os castelhanos “mataram sete ou oito destas amazonas”.

Infelicitado nessa refrega, Gaspar de Carvajal lamenta ter ficado cego de


uma vista: “me deram um flechaço num olho, que passou a flecha para o outro
lado”.

O que o frade relatou é verdade ou mentira? À luz da Ciência, é impossível


que qualquer civilização tenha se constituído em caráter permanente só com
homens ou só com mulheres.

No caso das amazonas, a sua reprodução é explicada do seguinte modo, de


acordo com uma das versões do mito: anualmente, elas receberiam varões de uma
tribo próxima para o ritual da procriação. Aos amados elas davam um presente: o
muiraquitã, pequena escultura moldada em um barro de cor verde, quase sempre
em forma de sapo. Os filhos nascidos homens eram entregues aos pais; as meninas
ficavam sob a sua tutela e passavam a integrar a tribo.

Como não há comprovação alguma sobre o relato de Carvajal, teses têm


sido levantadas para explicar o que de fato ocorreu.
A mais comum diz se tratava de uma tribo em que as mulheres também
lutavam, motivo que levou à criação, no imaginário popular, das chamadas
amazonas. Como complemento dessa, afirma-se que se trata de um transplante
cultural. Essa é a proposta do historiador Sérgio Buarque de Hollanda, no livro
“Visão do Paraíso”. Ele diz que os conquistadores do Novo Mundo tinham como
referência cultural a mitologia grega, motivo que justifica, dentre outros, a
existência do mito das “mulheres sem homens”. Na cultura dos antigos gregos, o
nono trabalho de Hércules foi exatamente o confronto com essas guerreiras. Ele
saiu vitorioso, conquistando o cinturão de Hipólita, a rainha amazona. Os
colonizadores, então, queriam ver na terra recém-descoberta as maravilhas do
imaginário europeu da época e, por isso, Carvajal inventou o episódio.

Outra tese admite que as índias avistadas por Carvajal seriam mulheres
rebeladas contra o patriarcado e que, por tal motivo, resolveram se separar dos
homens. O que vem a ser, no entanto, patriarcado? A partir do momento em que o
ser humano passa a dominar a agricultura e a pecuária, ele deixa de ser nômade,
não mais tendo necessidade de vagar atrás de alimentos. Então, tem origem a
família e o mando passa a ser do homem. Isso é o patriarcado, fenômeno que nos
mitos indígenas tem sempre uma narrativa a ilustrá-lo. Aliás, foi com base nessa
concepção, que Márcio Souza escreveu uma peça intitulada “Jurupari, a guerra dos
sexos”.

Uma última referência a respeito da origem do nome deve ser feita: o termo
“amazonas” significaria “as sem seios”. O vocábulo se formaria com o prefixo
negativo a (sem) e o termo grego mazon (seio). Trata-se aí de nítido transplante
cultural, pois Carvajal não faz referência à ausência de seios, coisa que ele teria
notado.

Seja qual for a tentativa de interpretação, o mito das amazonas ainda está
aí, a nos desafiar. Ele faz parte do imenso e complexo imaginário amazônico.

Observações complementares

O relato de Gaspar de Carvajal, intitulado Relación del nuevo descubrimiento


del famoso Rio Grande de las Amazonas, pode ser considerado a obra que dá início
à literatura no Amazonas. Haveria, no caso, um paralelo com a Carta de Pero Vaz
de Caminha, escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, que se considera o marco
inicial da literatura brasileira.

Ambos os textos – o de Caminha e o de Carvajal – apresentam


características de um gênero literário muito atual: a crônica. Isso ocorre porque há,
por exemplo, a preocupação com detalhes do cotidiano dos indígenas. Se
consideramos, além disso, que o diário de Carvajal contém um episódio inventado –
o encontro com as amazonas –, estamos diante de uma obra que apresenta
características do gênero de ficção.

Pode-se, entretanto, não admitir o frade dominicano como o precursor de


nossas letras, em virtude, dentre outros motivos, de a civilização local ainda não
estar instalada. Nesse caso, teríamos de situar as origens da literatura amazonense
mais de dois séculos depois, com o português Henrique João Wilkens, de intensa
vivência na região.
HENRIQUE JOÃO WILKENS
Desconhecem-se as datas de nascimento e morte desse militar português
que serviu na Amazônia durante quase toda a vida. Sua obra resume-se ao poema
épico Muhuraida, 1785 (só publicado em Lisboa em 1819). Possui seis cantos, com
um total de 134 estrofes. Com visível influência de Luís de Camões, tem como
assunto a cristianização dos índios muras.

Trechos selecionados

Escolhemos dois momentos expressivos e de boa engenharia poética da


Muhuraida. O primeiro pertence ao Canto 3.O, estrofes 16 a 22, em que um ancião
mura procura persuadir os índios, em fase de cristianização, a não abandonarem os
antigos valores da tribo. É um trecho calcado no episódio do Velho do Restelo, de
Os Lusíadas (Canto IV, est. 94 a 104). Observe-se que através do velho, Wilkens
denuncia todas as traições e maldades que os brancos cometeram contra os índios.
O segundo momento, composto de dois fragmentos, está no Canto 6 o.,
estrofes 4 a 9 e 12 e 13. Nele se vê como Satanás, numa última tentativa para
manter os muras sob o domínio do mal, incentiva suas legiões a impedir a
cristianização; e, finalmente, as providências que um anjo, enviado por Deus com o
objetivo de converter os índios, toma para que o embarque que levará os muras à
pia batismal se realize sem problemas. É significativo o fato de o Diabo registrar
que os índios não possuem alma, concordando com posições colonialistas que com
isto justificavam o seu extermínio.

Do Canto 3o.

Atentos ouvem todos a proposta, A


Ainda que estranha, sem maior reparo, B
Pois a Verdade bela nada oposta A
É bárbara fereza, ou peito avaro. B
Mas entre os Anciões, um Velho encosta A
A ressecada mão, com gesto raro, B
Na negra face adusta, e enrugada, C
Estremado responde, em Voz irada. C

Oh, dos teus poucos anos, louco efeito!


Da confiança vil, temeridade!
Que atenção nos merece, ou que conceito,
Conselho, que envilece a tua idade?
Queres, que ao ferro, generoso peito
Entregue a Paz? Ou perca a liberdade,
A doce liberdade, o valeroso
Muhura, em grilhão pesado, e vergonhoso?

Já não lembra o agravo, a falsidade,


Que contra nós os Brancos maquinaram?
Os Autores não foram da crueldade?
Eles, que aos infelices a ensinaram?
Debaixo de pretextos de Amizade,
Alguns matando, outros maniataram,
Levando-os para um triste Cativeiro,
Sorte a mais infeliz, mal verdadeiro.
Grilhões, Ferros, Algemas, Gargalheira,
Açoutes, Fomes, Desamparo, e Morte,
Da ingratidão foi sempre a derradeira
Retribuição, que teve a nossa sorte.
Desse Madeira a exploração primeira,
Impediu, por ventura, o Muhura forte?
Suas Canoas vimos navegando,
Diz, fomos, por ventura, os maltratando?

Para os alimentar, matalotagem


Buscava nosso Amor, nosso cuidado;
A Tartaruga, o Peixe na viagem
Lhes dávamos, e tudo acompanhado
De frutas, e tributos de homenagem,
Em voluntária oferta, que frustrado
O receio deixasse; a Confiança
Aumentando, firmasse a Aliança.

Que mais fazer podia o Irmão? O Amigo?


Que provas queres mais de falsidade?
São estes entre os quais buscas Abrigo?
É nesta em que te fias amizade?
Ah Muhura incauto! Teme o inimigo
Que tem de falso toda a qualidade.
O que a força não pode; faz destreza,
Valor equivocando co’a Vileza.

Assim falando o Velho se levanta;


O lento passo ao Bosque encaminhando.
Mas o Orador de nada já se espanta,
Pois tal oposição stava esperando:
E como nele obrava força santa
De um Deus, que o mesmo esforço ia aumentando;
Nos bárbaros infunde um tal conceito,
Que a preferência alcança, co o respeito.
TRECHO DE OS LUSÍADAS, PARA COMPARAÇÃO

CANTO IV
94
EPISÓDIO DO Mas um velho d'aspeito venerando,
VELHO DO RESTELO Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:

95
—"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!

[.........................]

102

— "Ó maldito o primeiro que no mundo


Nas ondas velas pôs em seco lenho,
Dino da eterna pena do profundo,
Se é justa a justa lei, que sigo e tenho!
Nunca juízo algum alto e profundo,
Nem cítara sonora, ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória.
ESTRUTURA DE OS LUSÍADAS ESTRUTURA DA MUHURAIDA

Dez cantos Seis cantos


1102 estrofes 134 estrofes
8816 versos 1072 versos

Proposição Proposição
Invocação Invocação
Oferecimento [................] *
Narração Narração
Epílogo Epílogo

* O oferecimento é feito fora do texto.


OBS. A Muhuraida, no início de cada canto, apresenta um
argumento que funciona como resumo dos episódios apresentados.

CONTEXTO HISTÓRICO
Décadas de 1720 e 1730: revolta dos índios do rio Negro, sob o
comando de Ajuricaba.
Portugal, ao contrário de Castela (Espanha), tinha apenas duas
colônias na América: o Brasil e o Grão-Pará.
A imprensa era proibida, daí por que o manuscrito da Muhuraida teve
de ser enviado a Portugal.
OUTRO TRECHO DA MUHURAIDA

Do Canto 6o.

Mas já na Habitação do eterno dano,


O Príncipe das Trevas, Monstro informe,
Já no Sucesso vendo todo Arcano
Da Providência Santa; deu o enorme
Sinal acostumado, que do humano
Inimigo Esquadrão, negro, disforme,
Veloz, qual pensamento, logo ouvido,
Se ajunta, na aparência, destemido.

Eia, lhes diz, briosos Companheiros!


Dignos todos de eterna, milhor sorte!
Já que igualar quisesteis os primeiros,
A aquele Deus, que rege a Vida, a Morte,
Já que poder so imenso, prisioneiros
Fazer-vos pode, e por Barreira forte,
O imenso espaço pôr; que daqui dista
Ao Céu, que já se nega à nossa Vista.

Os olhos levantai, vede essas Feras,


(Pois serem racionais, só a forma indica)
Já quase a substituir-nos nas Esferas
Celestes destinadas; já publica
Veloz a Fama, conjecturas meras,
Que só a credulidade justifica.
Mas temo, desprezada esta aparência,
Se realize a ruina co’evidência.

Ide pois precaver a contingência,


Não se perca da Presa a milhor parte;
As luzes lhe ofuscai da inteligência,
Empenhe-se Valor, destreza, e Arte.
Não se atribua nunca a Negligência
O desprezo do Aviso, pois reparte
O injusto Fado com desigualdade,
Poder, Ventura, e infelicidade.

Qual de Etna, ou de Vesúvio vasta entranha,


Fermentando indigesta Massa ardente,
Da repleção efeito, arroja estranha,
Temível, larga, ignífera Torrente;
No trânsito impetuoso quanto apanha
A cinzas reduzindo; indiferente,
A dura penha, a flor, Jardim vistoso,
Casal humilde, ou Povo numeroso.
Do Império assim das Trevas vai saindo,
Qual Torrente a Coorte, em Chama involta;
O denso fumo os Ares já cobrindo,
Pestífero vapor, intenso solta.
Nas vastas Regiões se difundindo
Vai do Amazonas, Infernal Escolta;
Dos Átomos parece a qualidade
Neles se identifica, e quantidade.

(...)

Já aflitos, pensativos, dispertando,


De idea tal enfim preocupados;
Só mortes, e vinganças respirando,
Já lhes tardava os ver executados.
Mas o Anjo Tutelar, que vigiando
Estava, e lamentando os enganados,
Armado do poder do Onipotente,
Tudo faz, que se mude de repente.

Inspira a todos novo ardor, desejo,


De discernir o engano, e a verdade;
Ao Tentador infame, e seu Cortejo,
Sepulta na infeliz eternidade.
Faz, que ao rancor, universal festejo,
Entre os Muhras se siga, a brevidade
Do Embarque se procure; realizados,
O fim proposto; os meios desejados.
MUHURAIDA
O primeiro poema do Amazonas

Publicado no jornal O Estado do Amazonas,


Caderno “História do Amazonas”, em 26/09/2004
Autor: Marcos Frederico Krüger

A literatura no Amazonas teve início em 1785, quando o militar português


Henrique João Wilkens escreveu, possivelmente em Ega (atual Tefé), o manuscrito
de um poema épico intitulado “Muhuraida ou o Triunfo da Fé”. O poema foi levado
para Lisboa, onde só foi publicado em 1819, trinta e quatro anos depois.

Wilkens inspirou-se em Luís de Camões para compor seu texto. Tal como em
“Os Lusíadas”, as estrofes têm oito versos decassílabos e as rimas são dispostas da
mesma maneira: abababcc. É, porém, sensivelmente menor que a epopéia
camoniana, que tem 10 cantos, 1102 estrofes e 8816 versos. A “Muhuraida” tem
apenas 6 cantos, 134 estrofes e 1072 versos.

Esse poema, que inaugura a literatura no Amazonas, trata do conflito entre


os brancos e os índios muras, que à época – século XVIII – habitavam o rio
Madeira. Posteriormente, em virtude da derrota sofrida contra armas mais
poderosas, contra as doenças levadas pelos brancos, contra todo o sistema
colonial, populações muras se deslocaram para outros rios, chegando a locais onde
hoje estão cidades como Autazes e Manacapuru.

É com a ótica do colonizador que Wilkens desenvolve o poema – nem


poderia ser de outro modo, considerando-se o seu posto e o momento histórico em
que vivia. O enredo não tem grandiosidade heróica e só com boa vontade
poderíamos enquadrá-lo na categoria de epopéia. Na verdade, o narrador desvia o
conflito que se estabelecera entre os colonizadores e os muras. Ele o transfere para
o plano divino.

Assim, desenvolve a idéia de que os muras eram bárbaros e atacavam os


brancos porque viviam sob a égide do demônio. Um dia, porém, Deus resolveu
trazê-los para o seu lado e enviou um anjo que daria início à evangelização. Com
isso não se conforma o “Príncipe das Trevas”. Raciocina que ele já pertencera às
altas esferas, das quais fora expulso por rebeldia. Como, pois, aceitar que aqueles
índios ocupassem o lugar que deveria ser dele? É o que argumenta a seus asseclas,
quase ao final do poema, quando se desenvolve o clímax:

“Os olhos levantai, vede essas Feras


(Pois serem racionais, só a forma indica)
Já quase a substituir-nos nas Esferas
Celestes destinadas”.

Lúcifer usa um argumento comum à época: os índios teriam alma? Seriam


humanos ou animais? Interessante notar que Wilkens coloca essa mentalidade
como própria do demônio, o que implica uma acusação velada aos que defendiam o
extermínio das populações nativas.

Um outro episódio é também bastante significativo e possui a mesma


ambigüidade, traindo, de certa maneira, a ideologia colonialista que perpassa os
versos. Esse momento foi recriado de “Os Lusíadas”, um referencial literário para
poetas épicos brasileiros e portugueses de séculos atrás. No poema de Camões, ele
é conhecido como o episódio do “Velho do Restelo”. No instante em que a frota
comandada por Vasco da Gama vai se fazendo ao mar, aparece um ancião que
impreca contra os lusos que conquistariam terras e povos para o trono português.
Esse velho representa o passado, a resistência à ousadia que tornaria Portugal a
primeira grande potência mundial.

Essa situação foi adaptada por Wilkens ao enredo de seu poemeto épico.
Assim, quando os muras estão prestes a aceitar o cristianismo, um velho se levanta
e, tal como o do Restelo, recorda aos mais novos as tradições tribais. Está irado
como o seu correspondente luso. E recorda a todos que os brancos é que foram os
traidores:

“Já não lembra o agravo, a falsidade,


Que contra nós os Brancos maquinaram?
Os Autores não foram da crueldade?”

Bem recebidos pelos muras, que jamais impediram que navegassem pelo
Madeira, os colonizadores lhes deram, em troca,

“Grilhões, Ferros, Algemas, Gargalheira,


Açoutes, Fomes, Desamparo e Morte”.

Apesar dos protestos do ancião mura, ninguém lhe dá ouvidos, tal como
ninguém prestara atenção ao velho do Restelo. O final, portanto, é “feliz”, pois
vinte jovens índios são levados à pia batismal, numa demonstração de que a luz
brotara no interior dos “bárbaros”.

É com base em tal ideologia que se construiu a primeira obra da literatura


em nosso Estado. No entanto, ela é importante historicamente, servindo como
registro do que foi o colonialismo na Amazônia. A “Muhuraida” mostra um flagrante
hediondo do rosto da civilização ocidental, que alguns momentos de boa literatura
não conseguem mascarar.
TENREIRO ARANHA (1769-1811)

Tenreiro Aranha nasceu em Barcelos, antiga capital do Amazonas, no dia 4 de


setembro de 1769. Ficou órfão aos sete anos, quando foi entregue a um tutor que, apesar de
lhe mandar ensinar as primeiras letras, não teve a perspicácia de perceber o seu talento
poético. Por iniciativa do padrinho, o arcipreste e vigário-geral José Monteiro de Noronha,
estudou no convento de Santo Antônio. Depois de completar os preparatórios, passou às
aulas maiores dos padres mercedários.

Em virtude de dificuldades financeiras, não pôde seguir para Coimbra, a fim de


continuar os estudos. Tinha 19 anos, por ocasião da época do casamento com D. Rosalina
Espinosa. Retirou-se, então, para uma vida calma e tranquila em uma fazenda próxima à
cidade de Belém.

Exerceu, posteriormente, por designação do governador Martinho de Souza


Albuquerque, o cargo de Diretor de Oeiras, vila de índios; mais tarde, foi escrivão da
Alfândega do Pará. Por intrigas políticas, foi afastado desse cargo, retornando à vida bucólica
do campo. Tempos depois, foi admitido à Mesa Grande do Pará, cargo no qual foi confirmado
como vitalício pelo Príncipe Regente D. João.

Faleceu com 42 anos, em 25 de novembro de 1811.

IDÍLIO

Ao Ilmo. e Exmo. Sr. Martinho de Souza e Albuquerque, Governador e


Capitão General do Estado do Pará, achando-se a banhos fora da Capital

1o.
Um dia, que apressado
O manso gado trouxe ao seu aprisco,
Por poder sossegado
Ir banhar-me no rio, sem o risco
Da Onça tragadora,
A cria vir roubar-me à mesma hora.

2o.
Quando já mergulhando
Nas ondas té ao centro m’entranhava,
Ou sobre a água olhando
O delfim nadador arremedava;
E entanto o claro dia
C’os esforços da noite mal podia.

3o.
À praia me recolho;
E, tomando o vestido, um murmurinho
Sinto da esquerda! olho:
É um bando de Ninfas, que o vizinho
Igarapé descendo,
Com pressa ao largo rio vem rompendo.

4o.
Queto me ponho a ouvi-las,
Por ver o que diziam, pois falando
Entre si vem: senti-las
Fácil me foi; mas eu vou duvidando,
Que acertar possa o fio
Das cousas que diziam pelo rio.
5o.
“Vamos, ó Ninfas, vamos
“Render ao Maioral nossa homenagem.
“Parece que tardamos!
“Eia pois, avistemos a paragem,
“Onde o Chefe Subido
“Há dias, por doença, está detido.

6o.
“Estamos aqui juntas
“As Ninfas tutelares destes rios,
“E vem-nos adjuntas
“Muitas que os lagos têm por senhorios:
“Todas Martinho honremos,
“Façamos, Ninfas, tudo o que devemos.

7o.
“As ágoas mais sadias
“Para qui n’alta enchente encaminhadas
“Sejam, e nestes dias
“As flores junto ao banho amontoadas:
“Os ventos chamaremos,
“E que brandos respirem, lhes rouguemos”.

8o.
Umas assim diziam;
Porém outras, parando concertavam
Os versos que traziam,
Em que o bom Maioral muito louvavam;
Aquelas afinando
Os retorcidos búzios, e cantando:

9o.
Já uma entoa, como
Havia o bom Martinho navegado
O Amazonas, e como
O Guamá, Tocantins há visitado,
E a mil rios distantes
Por ver, e dar auxílio aos Habitantes!

10o.
Cantam outras Deidades,
Como fora com festas recebido;
E quantas saudades
Os povos de seus rios têm sentido
Depois; como se sente
A nova da moléstia impertinente.

11o.
Prometem logo aquelas,
Qu’em melhorando, ao Deus da Medicina
Têm de levar Capelas
Da branca sumaumeira, muito fina,
C’os ramos enlaçados
D’umiri por cheirosos procurados.

12o.
“Oxalá que depressa
“As Tutelares Deusas destes rios
“Cumpram sua promessa...”
Clamei então; mas ah! meus votos pios
As Ninfas assustaram!
Todas ao seu destino se apressaram.
SONETO
A um passarinho, quando o Autor sofria vexações

Passarinho, que logras docemente


Os prazeres da amável inocência,
Livre de que a culpada consciência
Te aflija como aflige ao delinquente.

Fácil sustento, e sempre mui decente


Vestido te fornece a Providência;
Sem futuros prever, tua existência
É feliz, limitando-se ao presente.

Não assim, ai de mim! porque sofrendo


A fome, a sede, o frio, a enfermidade,
Sinto também do crime o peso horrendo.

Dos homens me rodea a iniquidade,


A calúnia me oprime; e, ao fim tremendo,
Me assusta uma espantosa eternidade.

SONETO
Ao Sr. José Eugênio de Aragão e Lima, professor de Filosofia,
amigo do Autor, quando ele foi perseguido, preso e desterrado

Enquanto o mole Siberita treme


Da desgraça co’o simples pensamento;
O Varão forte, sem perder o alento,
De arrostar-se com ela não, não teme:

Entre cadeas e grilhões, não geme;


Mas armado de heróico sofrimento,
Livre a alma, conserva o peito isento
Na fornalha, no potro, e na trirreme.

Tal Eugênio presado, tu, que unindo


Com a sã Filosofia a Cristandade,
Dos jogos da fortuna te estás rindo.

E das fezes da negra adversidade,


Qual provido Mineiro, coligindo
Ricas virtudes, sólida piedade.
SONETO

À mamaluca Maria Bárbara, mulher de um soldado, cruelmente assassinada


no caminho da ponto do Marco, perto desta cidade de Belém,
porque preferiu a morte à mancha de infiel ao esposo

Se acaso aqui topares, caminhante,


Meu frio corpo já cadáver feito,
Leva piedoso, com sentido aspeito,
Esta nova ao esposo aflito, errante,..

Diz-lhe como de ferro penetrante,


Me viste por fiel cravado o peito,
Lacerado, insepulto, e já sujeito
O tronco feo ao corvo altivolante;

Que dum monstro inumano lhe declara,


A mão cruel me trata desta sorte;
Porém que alívio busque à dor amara,

Lembrando-se que teve uma consorte


Que, por honra da fé que lhe jurara,
À mancha conjugal prefere a morte.

SONETO

Em louvor da nova Casa para depósito de pólvora, que o Governador e


Capitão-General do Estado do Pará mandou construir em uma das margens
Do rio Aurá, fora desta Capital, para a livrar dos perigos de incêndios

Do sacro Olimpo os deuses superiores


Vendo já terminada a empresa clara,
Que ao Aurá dá valor e a nós ampara,
Lhe dão justos, magníficos louvores.

Juno louva a grandeza e seus primores,


Minerva admira a estrutura rara,
E Marte ali depósito prepara
De instrumento fatal de seus furores.

A mesma branda Vênus e Cupido


Se alegram (quem tal crera!) e para vê-la
Lindos ranchos já sei que têm trazido.

Só Jove não aplaude obra tão bela,


Por que já do seu raio retorcido
O Pará se não teme, depois dela.
INCIDÊNCIAS ROMÂNTICAS

FRANCISCO GOMES DE AMORIM (1827-1891)

Obras relacionadas à Amazônia


Cantos Matutinos, poesia. Lisboa, 1858.
Os Selvagens, romance. Lisboa, 1875.
O Remorso Vivo (romance que é a continuação do anterior, publicado em data
desconhecida, com texto muito raro).
O Cedro Vermelho, teatro, 1856

O DESTERRADO
Na foz do rio Negro em 1842

Como são brancas as flores


Deste verde laranjal!
É doce a sua fragrância,
Como a deste roseiral;
Mas têm mais suave aroma
As rosas de Portugal.

O solo destas florestas


O brilhante e o oiro encerra;
São imensos estes rios,
Imensos o vale e a serra;
Porém não têm a beleza
Dos campos da minha terra.

Estes astros são mais belos?


É mais belo o seu fulgor?
Mas luzem no céu do exílio
Não lhes tenho egual amor.
Ai! astros da minha terra
Quem me dera o vosso alvor!

De amores embriagada
A rola suspira aqui;
Com estes vivos perfumes
Tudo ama, folga, e ri!
Mas oh! que tem mais encantos
A terra aonde eu nasci!

Lá era a lua mais linda,


Mais para os olhos as flores;
As noites da primavera
São ali mais para amores;
E nos bosques de salgueiros
Também há meigos cantores.

Oh! não; não é belo o sítio


Do meu desterro infeliz
Onde tudo – a toda a hora –
Que sou proscrito me diz
Não; não há terras formosas
Senão as do meu país!

(Cantos matutinos)
TORQUATO TAPAJÓS (1853-1897)

Torquato Xavier Monteiro Tapajós nasceu em Manaus, em 3 de dezembro de 1853.


Ainda jovem, seguiu para o Rio de Janeiro, onde se tornou engenheiro geógrafo de grande
prestígio. Foi o responsável por uma obra de grande vulto: o plano da rede de esgotos e
saneamento da então capital do Brasil.
Participou ainda de diversas entidades científicas, como o Instituto Civil de
Engenharia de Londres e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Deixou inúmeros livros
de caráter científico, dentre os quais um sobre A Climatologia da Amazônia.
Em memória do ilustre cientista, deu-se à estrada que liga Manaus a Itacoatiara o
nome de Torquato Tapajós. Faleceu no Rio de Janeiro, no dia 12 de novembro de 1897,
com 44 anos incompletos.
Obra poética: Nevoeiros (Manaus, 1872), Nuvens Medrosas (Rio de Janeiro, 1874) e
Cromos (Ceará, 1897).

SAUDADES
à minha família

Saudades tenho da terra


Dessa terra em que nasci;
Saudades – tenho da vida
Da vida que lá vivi.

Saudades – tenho dos bosques


Desses bosques e florestas,
Onde o gentio dorme as tardes
As horas mornas das sestas.

Saudades – tenho das tardes


– Saudades que trazem prantos
Em que ao longe o Amazonas
Gemia os seus tristes cantos.

Saudades – tenho das brisas


Que ao luar – pelo arvoredo –
Passam tristes soluçando...
E soluçando em segredo...

Saudades tenho das alvas


Das alvas praias d’areia,
Aonde em noite estrelada
Sorrindo brinca a sereia.

Saudades de meus amigos


Meus amigos verdadeiros;
Saudades de meus prazeres
Meus prazeres derradeiros.

Saudades de minhas manas


De minhas manas queridas;
De meus manos com quem tinha
Minhas dores repartidas.

Saudades tenho de tudo


De tudo – como ninguém –
Mas me ferem mais doridas
– De meu pai e minha mãe...

(Nuvens Medrosas)
O DESCRENTE
Que mais queres? De ti aborrecido
Procuro a solidão.
Lá mesmo vais levar a meus ouvidos
O rir da multidão!

Eu desprezo-te, mundo, e tu me buscas!


Mil vezes maldição!
Já não creio em teus risos mentirosos
Roubaste-me a ilusão.

Vai-te, vai-te me deixa – sinto o gelo


Crestar-me o coração.
Foste tu quem mo deste, pois outrora
Ardia qual volcão.

Nem futuro mais tenho, o atiraste


Em triste escuridão.
Meteoro brilhante que surgindo
Perdeu-se n’amplidão.

Vai-te mundo enganoso – sou descrente


Oh! me sorriste em vão.
Não quero teu sorriso que é mentido
É rir de perdição.

Fui cego em te seguir – compreendeu-te


Bem tarde o coração.
Mas forças inda tenho para dar-te
Desprezo e maldição.

(Nevoeiros)

UM POETA ROMÂNTICO: TORQUATO TAPAJÓS

Publicado no jornal O Estado do Amazonas,


Caderno História do Amazonas, em 17/10/2004
Autor: Marcos Frederico Krüger

No Amazonas, não houve, durante o século 19, atividade literária vigorosa.


Considere-se, como exceção, a última década, quando o ciclo da borracha atraiu
poetas de diversas partes do País.

O cenário artístico demonstra-se desolador nesse período, dada a escassez


de obras. Em tal quadro, avulta como personagem quase única a figura de
Torquato Tapajós. Vivendo em Manaus, publicou, em 1872, com 19 anos, o livro
que marcaria sua estreia na poesia: “Nevoeiros”. É uma obra cuja única
importância está no pioneirismo de ser a primeira impressa com textos poéticos no
Estado. Em condições culturais precárias, Torquato não poderia ser original. Para
ele, a grande novidade ainda era o Romantismo das duas primeiras gerações, que
assimilara através das maiores vozes do período: Gonçalves Dias, Álvares de
Azevedo e Casimiro de Abreu.
No ano de estreia do amazonense, Castro Alves – da terceira geração
romântica – já falecera e o Realismo estava preste a acontecer na cena literária
brasileira. Em “Nevoeiros”, portanto, o discurso poético é passadista.

Depois dessa experiência, o poeta seguiu para o Rio de Janeiro, a fim de


estudar Engenharia. A visão romântica não se dissipa na obra seguinte, publicada
na Capital Federal dois anos depois: “Nuvens medrosas”. O texto mais conhecido
de Torquato Tapajós está nesse livro. É uma ode chamada “Saudade”, cujo discurso
mistura o tom saudoso e o ritmo em redondilhas da “Canção do exílio”, de
Gonçalves Dias, e dos “Meus oito anos”, de Casimiro de Abreu:

Saudades tenho da terra


Dessa terra em que nasci;
Saudades – tenho da vida
Da vida que lá vivi.

Segue-se, então, um período de silêncio na lírica de Torquato. Sabemos, no


entanto, de sua consagração na esfera da Engenharia, responsável que foi por
grandes obras no Rio de Janeiro.

Apenas em 1897, no ano de sua morte, temos a informação de que


publicou, em Fortaleza, mais um livro: “Cromos”. Dessa obra, infelizmente, nada se
sabe. Parece ser mais uma das que estão definitivamente perdidas – pois a nossa
memória é curta e desinteressada dos acontecimentos históricos. O título, porém, é
bastante sugestivo e indica que o poeta “evoluiu” para o Parnasianismo. É que
“cromo” é uma estampa em cores de uma paisagem, que caracteriza a técnica
preferida dos parnasianos: o eu lírico se coloca “fora” do texto e “descreve” algo
que observa. A alma dos poetas desse período é insondável, posto que jamais
consta, pelo menos em teoria, do teor dos versos.

Um artista não existe fora do tempo e do espaço. Seu talento também não é
um dom divino. A têmpera lírica se molda em condições históricas que podem lhe
ser favoráveis ou desfavoráveis. Nesse sentido, um exemplo clássico de poeta
bafejado pela sorte está em Luís de Camões. Nasceu no século 16, período da
decadência econômica de Portugal. Uma revolta surda havia nas consciências dos
indivíduos, em todo o país. O momento estava maduro para o surgimento de uma
epopeia, que revivesse e imortalizasse, no texto literário, a antiga glória
portuguesa. Para cumprir a decisão da História, ali estava Camões, que criou “Os
Lusíadas”.

Torquato Tapajós, ao contrário, nasceu em condições adversas para o


destino poético: o Amazonas era – como ainda hoje – uma economia periférica,
sem tradição e sem importância na cultura brasileira. Nenhuma chance havia para
esse rapaz provinciano de chegar ao patamar lírico brasileiro. Em que pese isso,
deve ser ressaltada a importância histórica que possui, qual seja, a de ter sido o
nosso poeta romântico e de integrar, em consequência, a relação dos autores que
fizeram nossa Literatura.
CICLO DA BORRACHA
Parnasianismo, Simbolismo, Naturalismo

PAULINO DE BRITO (1858-1919)

Paulino de Almeida Brito nasceu em Manaus no dia 9 de abril de 1858 e faleceu em


Belém em 16 de setembro de 1919. Obra poética: Noites em Claro (Pará, 1888), Cantos
Amazônicos (Pará, 1900) e o opúsculo Portugal e Brasil, Salve! (Rio de Janeiro, 1908).

RIO NEGRO
Na terra em que eu nasci, desliza um rio
ingente, caudaloso,
porém triste e sombrio;
como noite sem astros, tenebroso;
qual negra serpe, sonolento e frio.
Parece um mar de tinta, escuro e feio:
nunca um raio de sol, vitorioso
penetrou-lhe no seio;
no seio, em cuja profundeza enorme,
coberta de negror,
habitam monstros legendários, dorme
toda a legião fantástica do horror!

Mas, dum e doutro lado,


nas margens, como o quadro é diferente!
Sob o dossel daquele céu ridente
dos climas do equador,
há tanta vida, tanta,
ó céus! e há tanto amor!
Desde que no horizonte o sol é nado
até que expira o dia,
é toda a voz da natureza um brado
imenso de alegria;
e voa aquele sussurrar de festas,
vibrante de ventura,
desde o seio profundo das florestas
até as praias que cegam de brancura!

Mas o rio letal,


como estagnado e morto,
arrasta entre o pomposo festival
lentamente, o seu manto perenal
de luto e desconforto!
Passa – e como que a morte tem no seio!
Passa – tão triste e escuro, que disséreis,
vendo-o, que ele das lágrimas estéreis
de Satanás proveio;
ou que ficou, do primitivo dia,
quando ao – “faça-se!” – a luz raiou no espaço,
esquecido, da terra no regaço,
um farrapo do caos que se extinguia!
Para acordá-lo, a onça dá rugidos
que os bosques ouvem de terror transidos!

Para alegrá-lo, o pássaro levanta


voz com que a própria penha se quebranta!

Das flores o turíbulo suspenso


manda-lhe eflúvios de perene incenso!

Mas debalde rugis, brutos ferozes!


Mas debalde cantais, formosas aves!
Mas debalde incensais, mimosas flores!
Nem cânticos suaves,
nem mágicos olores,
nem temerosas vozes
o alegrarão jamais!... Para a tristeza
atroz, profunda, imensa, que o devora,
nem todo o rir que alegra a natureza!
nem toda a luz com que se enfeita a aurora!

Ó meu rio natal!


Quanto, oh! quanto eu pareço-me contigo!
eu, que no fundo do meu ser abrigo
uma noite escuríssima e fatal!
Como tu, sob um céu puro e risonho,
entre o riso, o prazer, o gozo e a calma,
passo entregue aos fantasmas do meu sonho,
e às trevas de minha alma!

(Cantos Amazônicos)

QUINTINO CUNHA (1873-1943)


José Quintino Cunha se inclui entre os poetas que, atraídos pelo fausto do ciclo da
borracha, vieram para Manaus em busca, quase sempre, de riqueza fácil. O principal livro de
Quintino Cunha, Pelo Solimões, enfatiza o telurismo. Sua poesia é um misto de
Parnasianismo e Romantismo – este, um estilo já extemporâneo.
Produziu ainda inúmeros textos satíricos e picantes, sendo mais conhecido por sua
veia humorística. Por tal motivo, foi incluído por R. Magalhães Júnior na Antologia de
Humorismo e Sátira (de Gregório de Matos a Vão Gôgo).

Dados biográficos
Nasceu Quintino Cunha na vila de São Francisco de Uruburetama, atual Itapajé, no
dia 24 de julho de 1873. Veio para a Amazônia na condição de rábula, advogando sem
possuir o diploma. Em 1909 voltou à terra natal, completando, então, o curso de Direito.
Antes, quando ainda vivia no Amazonas, viajou à Europa, oportunidade em que publicou em
Paris, em 1907, o livro Pelo Solimões.
Consagrou-se como orador, repentista e boêmio. Foi também deputado estadual no
Ceará nos anos de 1913 e 1914. Casou-se várias vezes e, devido à vida desregulada que
levava, passou por muitas dificuldades financeiras. No dia 1 o. de junho de 1943, em
Fortaleza, veio a falecer.

Obras poéticas principais


Versos de cores. Fortaleza, 1897.
A Morte do Cabeleira. Baturité: Tipografia do Município, 1902.
Pelo Solimões (versos norte-brasileiros). Paris: Aillaud, 1907.
ENCONTRO DAS ÁGUAS
(Rios Negro e Solimões)

Vê bem, Maria, aqui se cruzam: este


É o rio Negro, aquele é o Solimões.
Vê bem como este contra aquele investe,
Como as saudades com as recordações.

Vê como se separam duas águas,


Que se querem reunir, mas visualmente;
É um coração que quer reunir as mágoas
De um passado, às venturas de um presente.

É um simulacro só, que as águas donas


Desta terra não seguem curso adverso,
Todas convergem para o Amazonas,
O real rei dos rios do Universo;

Para o velho Amazonas, Soberano


Que, no solo brasílio, tem o Paço;
Para o Amazonas, que nasceu humano,
Porque afinal é filho de um abraço!

Olha esta água, que é negra como tinta,


Posta nas mãos, é alva que faz gosto;
Dá por visto o nanquim com que se pinta,
Nos olhos, a paisagem de um desgosto.

Aquela outra parece amarelaça,


Muito, no entanto, é também limpa, engana;
É direito a virtude quando passa
Pela flexível porta da choupana.

Que profundeza extraordinária, imensa,


Que profundeza mais que desconforme!
Este navio é uma estrela, suspensa
Neste céu d’água, brutalmente enorme.

Se estes dois rios fôssemos, Maria,


Todas as vezes que nos encontramos,
Que Amazonas de amor não sairia
De mim, de ti, de nós que nos amamos!...

(Pelo Solimões, 1907)


NO AZUL

Mais ou menos no meio dessa varga,


Distingue Ary, numa árvore frondosa,
Umas mil colheireiras, cor-de-rosa,
Numa extensão bastantemente larga.

E expede um tiro! Inútil! Pela ilharga,


A arma prepara e segue, em cautelosa
Marcha. Súbito pára. Agora, pousa
O olhar no Céu e o coração na carga!

Foi que, surpreso, alou-se o róseo bando,


Serenamente pelo espaço voando,
Nas breves curvas de um pequeno giro!

Parecendo que o azul do Céu exangue,


Minando gotas aurorais de sangue,
Fosse, em verdade, a vítima do tiro!

(Pelo Solimões, 1907)


MARANHÃO SOBRINHO (1879-1915)

Sobre Maranhão Sobrinho, o mais brilhante poeta da geração que se desenvolveu


durante o ciclo da borracha no Amazonas, pesa a injustiça de não estar incluído entre os
grandes simbolistas brasileiros. Apesar de ter praticado também o Parnasianismo, atitude
que, conforme já frisamos, era comum no início deste século, é no Simbolismo que a crítica
o inclui.
No capítulo dedicado à difusão desse estilo, Alfredo Bosi, na História Concisa da
Literatura Brasileira, a ele se refere como um poeta do Norte. Não lhe comenta, infelizmente,
a obra.
Já Andrade Muricy, no Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, é um pouco
mais explícito e elogioso: “Maranhão Sobrinho é o mais considerável poeta do seu tempo, no
extremo Norte, e o simbolista ortodoxo, o satanista por excelência do movimento naquela
região. Alguns dos seus sonetos de tornaram grandemente populares em todo o Norte”.
Suas influências são notoriamente francesas: Verlaine e Baudelaire, principalmente
este último. Publicou três livros, mas, como os seus pares do período, deixou muita
colaboração esparsa em jornais e revistas.

Dados biográficos
Nasceu o poeta em Barra do Corda, Maranhão, no dia 25 de dezembro de 1879,
tendo-lhe sido dado um nome pomposo: José Américo Augusto Olímpio Cavalcanti dos
Albuquerques Maranhão Sobrinho.
Segundo Andrade Muricy, “pertenceu à mais brilhante geração literária maranhense,
que abrangeu Graça Aranha, Coelho Neto, Humberto de Campos, Viriato Correia e Catulo
Cearense, elementos cujo renome se irradiou pelo País”.
Demonstrando pendores literários desde a juventude, ajudou a fundar, em 1900, a
famosa Oficina dos Novos e, em 1908, a Academia Maranhense de Letras.
Atraído pelo ilusório fausto criado pela borracha, veio para Manaus. Aqui continuou a
boêmia que o caracterizava. Conta-se que era comum escrever seus poemas nas mesas dos
bares, em estado de completa embriaguez. Faleceu no bairro da Cachoeirinha, exatamente
no dia em que completava 36 anos, ou seja, no Natal de 1915.

Obras poéticas
Papéis Velhos... roídos pela traça do Símbolo. [São Luís] 1908.
Estatuetas. [São Luís] 1909.
Vitórias-Régias. [São Luís] 1911.

Poemas selecionados
A respeito de “Soror Teresa”, Affonso Romano de Sant’Anna, no livro O Canibalismo
Amoroso, de crítica psicanalítica, comenta, embora de forma sucinta, esse poema de
Maranhão Sobrinho. Refere-se à religiosa como uma recriação de Santa Teresa, obsessão
comum aos poetas da época. Diz-nos mais: a morte foi “descrita à luz de uma vela, que
derrama seu óleo, numa simbolização do último espasmo mítico da monja”.
“Cromo” e “Vencendo o Saara” são, respectivamente, parnasiano e simbolista. Em
“Cromo”, descreve-se o pôr-do-sol. Um bom exercício literário seria comparar esse texto
com o “Anoitecer”, de Raimundo Correia. “Vencendo o Saara” apresenta-nos, a partir da
técnica simbolista, a face religiosa do poeta.

SOROR TERESA

...E um dia as monjas foram dar com ela


morta, da cor de um sonho de noivado,
no silêncio cristão da estreita cela,
lábios nos lábios de um Crucificado...

Somente a luz de uma piedosa vela


ungia, como um óleo derramado,
o aposento tristíssimo de aquela
que morrera num sonho, sem pecado...
Todo o mosteiro encheu-se de tristeza,
e ninguém soube de que dor escrava
morrera a divinal soror Teresa...

Não creio que, do amor, a morte venha,


mas sei que a vida da soror boiava
dentro dos olhos do Senhor da Penha...

(Papéis Velhos..., 1908)

CROMO

Desce a tarde. Faísca o sol distante,


tingindo o céu de púrpura sagrada
e, dos montes, dourando, instante a instante,
a sinuosa e oblonga cumeada...

Do mar a face de ouro e azul plissada


faísca opalas vivas, coruscante
como um pedaço imenso da alvorada
entre as glórias e as pompas do levante!

De vez em quando, sobre a face imota


do mar, toda a fulgir de pedraria,
roça a asa de luz de uma gaivota...

E vão chegando, aos últimos fulgores


do sol que vai dourando as penedias,
longe, os barcos gentis dos pescadores...

(Ibidem)

VENCENDO O SAARA

Queima as nuvens o sol, ensanguentando os ermos;


ais de sede se vão da face dos desertos.
No braseiro cruel das areias sem-termos
vais guiando, do azul, os meus passos incertos!

Passam, verdes, em luz, nos meus olhos enfermos


as miragens do amor dos meus sonhos despertos...
Que alegria no além, sobre as nuvens, ao vermos
os espelhos de luz de cem lagos abertos!

Vou, sem água, transpondo as ingratas savanas!


Expira o meu olhar nos longes horizontes...
Caravanas atrás e, adiante, caravanas!

Benditas sejas, fé, que, pela mão, me trazes!


Não tardam rutilar no ouro das nossas frontes
as bênçãos de cristal dos vívidos oásis!

(Ibidem)
JONAS DA SILVA (1880-1947)

Em 1900, último ano do século XIX, Jonas da Silva estreou nas letras com o livro
Ânforas, em que eram patentes as influências de um poeta muito famoso naquele tempo: o
fluminense B. Lopes, autor de Brasões. Dois anos depois, publicou Ulanos, quando então sua
poesia ganhou plenitude, com as marcas da subjetividade do poeta enfim livre de
influências. É considerado um grande simbolista, a propósito do qual Assis Brasil, que
indevidamente o incluiu em A Poesia Piauiense no Século XX, assim se expressou: “A poesia
de Jonas da Silva se sustenta por si só, num momento em que estava no auge o Simbolismo
no Brasil. Pelo vigor poético de sua obra, o parnaibano se coloca, histórica e esteticamente,
na linha de frente da escola que teve tantos poetas significativos no Brasil”.

Dados biográficos
Jonas Fontenelle da Silva é natural de Parnaíba, no Piauí, onde nasceu a 17 de
dezembro de 1880. Quando tinha onze anos de idade, a família, também atraída pelo
dinheiro “fácil” da belle époque, transferiu-se para Manaus.
Estudou no Rio de Janeiro, tendo-se formado em Odontologia em 1899. Ali também
publicou seus dois primeiros livros de poemas. Mais tarde, regressou a Manaus, cidade em
que exerceu sua profissão por aproximadamente cinquenta anos. Associou-se a um irmão e
fundou, em 1912, a Empresa Cinematográfica Fontenelle.
Pertenceu às Academias de Letras do Amazonas e do Piauí. Faleceu em Manaus no
dia 5 de junho de 1947.

Obras poéticas
Ânforas. Rio de Janeiro, 1900.
Ulanos. Rio de Janeiro, 1902.
Czardas. Manaus, 1923.

Poemas selecionados
“Coração” é o mais conhecido e elogiado texto do poeta. Segundo José dos Santos
Lins, na Seleta Literária do Amazonas, é um “conhecidíssimo e primoroso soneto, joia da
literatura brasileira, vertido para numerosos idiomas”. Nele se expressa a tônica da poesia
de Jonas da Silva: o pessimismo, aliado à total incapacidade de reação.
Em “Lago Maldito”, encontramos a postura romântica de comparação entre a
natureza e o íntimo do eu lírico. Se em “Coração” o poeta já não pode amar, neste é o
ceticismo, ou pior ainda, a descrença em Deus, que o aterroriza. Dirigindo-se a uma mulher,
é como se buscasse no amor um bálsamo para suas dores. Porém, não mais lhe é possível
amar...
O último texto – “Terra Natal” – recria, com concepções simbolistas e decadentistas,
o velho tópico romântico do exílio, o qual tantas vezes já ilustramos nesta antologia.

CORAÇÃO

Meu coração é um velho alpendre em cuja


Sombra se escuta pela noite morta
O som de um passo e o gonzo de uma porta
Que a umidade dos tempos enferruja.

Quem vai passando pela estrada torta


Que leva ao alpendre, dessa estrada fuja!
Lá só se encontra a fúnebre coruja
E a Dor, que à prece o caminhante exorta.

Se um dia, abrindo o casarão sombrio,


Um abrigo buscasses contra o frio
E entrasses, doce criatura langue,
Fugirias tremente, vendo a um lado,
A Crença morta, o Sonho estrangulado
E o cadáver do Amor banhado em sangue!

(Ulanos, 1902)

LAGO MALDITO

Se hoje, em surdina, o teu pesar disfarças,


Ouvindo o canto às jaçanãs morenas,
Sentes, minh’alma, as aflições e as penas
De um lago azul sem jaçanãs nem garças.

Lago em que havia à superfície esparsas


Grandes vitórias-régias e falenas
E em que hoje existe a canarana apenas
E são as praias matagais e sarças...

Senhora, olhai, vede esta cena, em mágoa...


Um peixe enorme agita as barbatanas
Fazendo um grande redemoinho n’água...

Morre aos venenos do timbó medonho...


– Assim tombei nas lutas desumanas,
Tal a Descrença envenenou-me o Sonho!...

(Czardas, 1923)

TERRA NATAL

Terra natal, ainda hoje me confranges


A alma sem fé, de miserando escriba,
Se me vens à memória, ó Parnaíba,
Com teu rio de amor, lembrando o Ganges.

Em criança, formávamos falanges


A correr e a brincar de riba em riba...
Hoje, o meu pranto1 é como a copaíba
A golpes de machados e de alfanjes.

Da ampla Igreja relembra a majestade,


Das novenas de maio, a suavidade...
Tem trinta anos a dor que em mim se expande!

Nunca, uns dobres alegres ou magoados,


De sino, ouvi, de festas ou Finados,
Como os dobrados do teu Sino Grande!

(Czardas, 1923)
ALBERTO RANGEL (1871-1945)

Alberto do Rego Rangel nasceu no Recife em 29 de maio de 1871. Faleceu


em Nova Friburgo (RJ) em 14 de dezembro de 1945. Obras principais: Fora da
forma, opúsculo (Rio de Janeiro, 1900); Inferno verde: cenas e cenários do
Amazonas, com prefácio de Euclides da Cunha (Rio de Janeiro, 1908); Sombras
n’água (Leipzig, Alemanha, 1913); Quando o Brasil amanhecia (fantasia e passado)
(Lisboa, 1919); Livro de figuras (Tours, França, 1921); Lume e cinza (Rio de
Janeiro, 1924); Textos e pretextos (Tours, 1925); Papéis pintados (Tours, 1928);
Fura-mundo: contos (Tours, 1930).

MAIBI

Pays affreux et désolé. Une malédiction pèse-t-elle sur


le sol? Je crois voir du sang aux racines de cet arbre ra-
bougri et souffreteux.

H. Heine – Atta Troll.

Uma figura alentada e bruta, com a bocaça mascarada pela franja da bigodeira ruça,
dizia a outra personagem, chupada, esfanicada de sezões e mau passadio, com uns raros
pelos duros nos cantos dos lábios e no queixo prognato:
– Então, o negócio está feito... estamos entendidos. Você nada me deve e deixa a
Maibi com o Sérgio.
– Sim senhor, respondeu o escanzelado, retendo um suspiro.
Pronunciava-se este diálogo junto ao balcão, no armazém, entre o tenente Marciano,
dono do Soledade, e um seu freguês, o Sabino da Maibi. Quando a operação hedionda
finalizou assim, de uma assentada, entre os dois homens, o sol descambava mordendo o
friso verde-negro da mata, e a luz de fora filtrava-se por entre as brechas das paxiúbas mal
ajustadas, no barracão, como se coada fosse por entre as barras férreas de um calabouço,
guardando dois réprobos.
Mas, que negócio fora afinal firmado? O Sabino devia ao patrão sete contos e
duzentos, que a tanto montava a adição das parcelas de dívidas de quatro anos atrás, e
cedia a mulher a um outro freguês do seringal, o Sérgio, que por sua vez assumia a
responsabilidade de saldar essa dívida. O mais comum dos arranjos comerciais, essa
transferência de débito, com o assentimento do credor, por saldo de contas.
A troca interessava ao patrão, que ficava mais seguro com o Sérgio, rapaz afamado
como trabalhador insigne. E o Sabino iria labutar com ânimo, na esperança, agora bem
realizável, de tirar saldo no fim do ano. Com a mulher, a sua peia maior também tinha
desaparecido: os sete contos e tanto, que neles pensar era se lançar pela certa num
deplorável estado de desalento. Compreendia o Sabino que, em companhia da esposa, por
mais que trabalhasse, nunca pagaria a dívida crescente e escravo se tornava. O débito era
um par de machos...
“Tirar saldo” é a obsessão do trabalhador, no seringal. E como não ser assim, se o
saldo é a liberdade? O regime da indústria seringueira tem sido abominável. Instituiu-se o
trabalho com a escravidão branca! Incidente à parte na civilização nacional, determinaram-
no as circunstâncias de uma exploração sem lei. O código surgiu mesmo nas contingências
da luta. Não por intimações de uma autoridade, que não existia; mas por acordo tácito entre
todos. Demais, fora preciso organizar, em plena selva aquilo de que o pensamento social do
país, focado na Rua do Ouvidor, não a cogitara nunca. Dir-se-ia uma nação de malandrins,
um país de cocagne; jamais se sentiu a necessidade de dar ordem ao trabalho, como se este
a ninguém preocupasse. Incrível dizer-se – foram seringueiros que golpearam a lei
fundamental da nação livre! Porquanto aconteceu então, ante condições especialíssimas o
que se houvera seguido espontaneamente não bastava. Um seringal, em fim de contas, não
era a estância de gado, nem a fazenda de café, nem o engenho de cana. O que satisfazia na
campanha do Rio Grande, no oeste de São Paulo, no interior de Pernambuco, não era
suficiente no Madeira, no Purus, no Juruá. Desde logo o que a legislação não previu, a
indústria nascente fundou. Não era o exercício de simples crueldade; mas o resultado dos
interesses do capital que instituíra a sua própria defesa. Lógico, pelo menos fatal. Os
estatutos da nova sociedade, que quis viver, receberam esta base: não poder o seringueiro
abandonar o seringal, sem estar quite para com o patrão.
Por isso, em muitas ocasiões, dera ao Sabino o ímpeto de sacudir fora o balde de
leite, cruzar os braços na estrada, nela ficando hirto, até a morte sobrevir; outras vezes,
pensara em correr os riscos de roubar uma canoa e fugir para Manaus... Chegar de sua
terra, no insólito desejo de fortuna, para estabelecer-se um dia no Sitiá, com o campo de
panasco e uns novilhos e cabras; e, em troca, ali ficar no estranho deserto alagadiço de um
fundão do Amazonas, comido de “praga”, e a cair de sezões! Com a situação, que se lhe
oferecia, de solvado o seu pobre coração renascia. Haveria de voltar à sua terra, se Deus
quisesse!
Bem tempo fazia que deixara o baixo Amazonas, primeira etapa de seu êxodo de
condenado. Lá trabalhara três anos sem vantagem. Afora um pouco de “tapuru”, a seringa
era “fraca”, “itaúba”. No lago do Castanho, casara-se com aquela cabocla, linda cunhã,
enguiço núbil, tentação que lhe chegara para atrapalhar a vida, pois, se tivesse vindo
sozinho, nessa época, labutar no alto, na seringa, estaria certamente a essas horas, no seu
querido Ceará. Era verdade que, em companhia da Maibi, mais doce lhe correra a
existência... Contudo, tinha sido um atropelo. Conseguira desenvencilhar-se, mas ganhando;
tinha saudade, porém, da "danada" cabocla. Ah! os olhos dela, tingidos no sumo do pajurá;
o andar miúdo e ligeiro de um maçarico; ah! os seus cabelos do negror da poupa de mutum
“fava”; o vulto roliço... As carícias ardentes da moça iriam agora aplicar-se em outro... Nos
braços de outro ela se arrebataria em juras e suspiros... Fora-lhe bem duro apartar-se; mas
“era o jeito”. E o seringueiro procurava abafar pensamentos que o incomodavam...
O certo é que, ao sair do armazém, a sensação do Sabino foi a de desafrontado de
carregosa canga.
O dia, um domingo de março, era de movimento no barracão; os fregueses das
barracas do seringal vinham em visita e a negócios. Escasseavam a farinha-d’água, o
pirarucu e o jabá, mas o “vapor da casa” estava para chegar com o aviamento. E a gente
afluía, insofrida, a buscar mantimentos, e curiosa de uns “brabos” que o vapor traria; mas,
no fundo, convergida pelas exigências irrevogáveis da sociabilidade, cada vez mais intensas
no regime de isolamento que os devorava.
Ao anoitecer, grande número de fregueses enchia a sala maior do barracão, para a
“rocega”. A gaita começava a soar nos soluçosos bemóis de uma valsa ronceira. E então,
aqueles homens, no meio dos quais havia apenas duas mulheres, se agarraram aos pares,
desabalando-se a dançar sobre o soalho flácido e ondulado das paxiúbas. Um “farol de gás”
se prendia ao pendural das tesouras, no travejamento quase perdido no fumo envolvente do
tabaco. Cessada a música, era o rumor alto de conversa e risadas, até que a harmônica
incansável e fanhosa gemesse novos compassos.
Tarde da noite, a uma observação do tenente: “basta por hoje, rapaziada!” a sala se
esvaziara. Os seringueiros demandaram os pousos. O barracão ficara acaçapado e tétrico,
mais negro ainda na noite onde fuzilava, entreluzindo, o pequenino diamante azul de uma
única estrela abandonada.
A primeira cara que o Marciano viu, pela manhã seguinte, foi a do Sabino. O patrão
disparou logo:
– Está arrependido? Se quiser, pode ir para outro seringal; não me desgosta. Se
deseja ficar, também pode... Não proíbo... Faça o que entender.
O Sabino declarou que não se havia arrependido; não metia o pé atrás, e que queria
trabalhar, mas em “colocação, no centro”. Tencionava ficar na do Paulino, que morrera,
havia quatro dias passados, picado por uma tucanaboia. A estrada de dois “frascos” e meio
não era grande cousa, mas sempre influía. Demais, contava que “seu” tenente lhe aviasse
todo o pedido. Não era muito: uma tarrafa, um par de calças de zuarte, pílulas “carapanã” e
“taurinas”, caixas de bala, a farinha e o pirarucu; cousas que um homem degradado
naqueles mundos não podia prescindir. Deveria então começar a roçar a estrada? Na semana
que entrava, queria estar “sangrando as madeiras”...
O tenente assentia com desusada benevolência:
– Pois sim! Pois sim!... Há de se arranjar tudo... O “Rio Yaco” chegará por estes
dias...
Com efeito, uma semana depois, o vapor atracava ao Soledade, no alvoroço da gente
insofrida em aguardá-lo. Muitas horas levou a despejar carga. Algumas reses foram atiradas
do portaló para a água, onde caíram, nadando expeditas para a terra. Caixas, paneiros,
fardos e garrafões passavam pela prancha, atropeladamente, como se fossem baldeados por
contrabandistas em pânico. Numa agitada faina, tudo se amontoava em terra, a fim de ser
transportado ao armazém, a não ser o gado disperso, que aparava os brotos, espontando as
canaranas na beira.
Com o carregamento desembarcara o pessoal, que o guarda-livros fora buscar ao
Ceará. Umas vinte cabeças, gente do Crato e de Carateús. Os agenciados tinham sido, no
porto de Camocim, cinquenta ao todo. Mas uns haviam fugido no Pará, outros em Manaus e
cinco haviam “dado o prego” com as febres.
“Oh! canalha safada!” tal a frase que o empregado entremeava, a cada passo,
aludindo aos engajados, no relatar facundo, ao Marciano, os trâmites da missão de que fora
incumbido. Um subprefeito, em Manaus, a quem dera queixa, ninguém mandara ao encalço
dos homens foragidos no Mocó... Estava toda a campanha amaldiçoada em trinta contos. O
guarda-livros culpava também do desastre da expedição à “casa aviadora”, porque esta
demorara em Belém a partida do navio, e o gerente tinha “quebrado o corpo”, recusando-se
a adiantar os “borós” para acudir ao sustento do pessoal...
O momento chegou, em plena noite, que o “Rio Yaco”, estrepitoso do vapor vomitado
pelo tubo de descarga, recolhida a prancha, desamarrados os cabos, largou brandamente do
barranco. Um apito roncante de “sereia” ecoou sinistro, ululando no ermo.
Após o berro da despedida do “gaiola”, a vida no Soledade seguiu o curso normal. Da
célula central – o barracão, irradiavam outras células – as barracas, no sistema orgânico
dessa fraca e fundamental urdidura, que cobre léguas quadradas com o trabalho de alguns
homens apenas. Pelos varadouros e igarapés, os aviamentos parciais eram transportados
pelos “fregueses do toco”, em jamaxis ou canoas.
Marciano, antes da dispersão dos novos fregueses, os reunira na vasta sala do
Soledade e lhes dirigira uma fala. Exigia trabalho e freguês com saldo. Isto de gente
devendo, não era com ele. Não queria saber de histórias, queria borracha! E, desprezando
escrúpulos e cuidados na conservação da riqueza florestal, com que a boa Natureza lhe
presenteara, resumia brutalmente, na homilia, o programa absurdo da sua exploração:
“Quem for tatu que cave; quem for macaco que trepe”. Explicava esse lema bizarro. Não se
opunha que as seringueiras fossem lavradas das raízes aos galhos, num decreto de extinção
formal. Construíssem mutás: arapucas desengonçadas, grosseiros andaimes para atingir, em
faixa mais alta, os vasos captores da goma preciosa; ou empregassem o “arrocho”:
medonho apertão, dia a dia constringido, para que o tronco, esganado no garrote,
ressumasse até as fezes a seiva valiosíssima. Um máximo de produto, mesmo à custa do
aniquilamento das árvores, exigia o patrão, na formidável ignorância que, generalizada,
liquidaria a principal riqueza da bacia amazônica, estancando-a na sua fonte.
Ao fim dessas recomendações imperiosas de crime ou inconsciência, os “brabos”
foram se estabelecer, às pressas, nas estradas recém-abertas pelo “mateiro”, na última
invernia.
A lufa-lufa de “meter gente nas colocações” cessou por fim. Iniciara-se o ramerrão
do “fábrico”. Até o termo da safra, entrava mês, saía mês, o tenente, na ponte do Soledade,
ou sentado na varanda, tranquilizado de fortuna por um gordo saldo no Prusse, mas,
calculando a conta de lucros e de perdas provável, consumia charutos caros, passando os
olhos pelos jornais, ou pervagando-os pelas margens do rio em debruns uniformes de
oiranas insípidas.
O barracão do Soledade dominava em mangrulho a chateza da veiga circundante. E,
como se uma grandiosa relha de charrua tivesse tentado aradar a planície, a água refundava
o sulco fertilizante, num augusto lavrar para as searas de Pã... A mata pintava-se de um
mesmo verde-veroneso; o céu embebia-se de aguada azul da Prússia; as horas escorriam na
lentura de um óleo denso, dessangrando por fino sangradouro; o sol rojava-se diariamente
pelos seus paços imperiais, num servilismo de escravo...
Foi durante uma tarde vazia, fúlgida e vagarosa, que o Marciano divisou certa canoa
dobrando a curva do remanso, de rumo ao barracão. Da margem oposta ela atravessou,
dando ondulações em viés à túnica lisa e cinzenta do rio. Na proa, o remador amiudava,
sôfrego, as remadas. Mal encostando a embarcação, ele saltara em terra. Era o Sérgio, que
vinha pálido, visivelmente comovido. Acercando-se do patrão, contou-lhe que aproveitara
uns dias de chuva, nos quais não pudera “cortar”, para fazer a viagem ao “centro”; mas que
ao voltar, não encontrara mais em casa a Maibi. A cabocla desaparecera; só deixara uma
anágua no baú de marupá. Estava farto de procurar... iria até a extrema de baixo,
indagando... chegaria mesmo ao Umarizal. E o Sérgio, devastado de indignação e angústia,
desceu precipitadamente a escada da ponte.
O tenente, com o seu pretendido faro de antiga autoridade policial em São João de
Uruburetama, lembrou-se do Sabino. Quem saberia se o cearense, enciumado, não dera
sumiço à rapariga? Ocorreu-lhe mandar ao centro um homem de confiança ver se lá
encontrava o indiciado e, à sorrelfa, bispava alguma coisa...
Sentado num banco, na cozinha, o Zé Magro cortava e recortava o rolo de “Acará”,
cantarolando em surdina:

Migo, migo, migo, migo


Este molho de tabaco,
Que fumo de tico em tico
E masco de taco em taco,

quando ouviu que o chamavam. Acudiu pronto, cessando o trauteio. Recebidas as ordens e
instruções do Tenente, tomou do rifle e partiu.
De um pulo atravessou o campo, transpôs a “estiva” e afundou na mata,
desaparecendo pelo “travessão”. Um pouco mais tarde, o “próprio” de sobre-rolda topava
com o Sabino, que saia da boca da estrada. Este vestia uma camisa sórdida, calças
trapejando nos pés metidos em sapatas de borracha; e tinha a cabeça rebuçada na chita do
mosquiteiro. Aparelhava-o o terçado enfiado na cinta, nas mãos o machadinho e o balde;
pendido ao flanco um pequeno saco e o rifle atravessado nas costas. O uniforme traduzia a
miséria e o arriscado do oficio.
Entabularam conversa.
– Bom-dia hoje?... Leite muito, hein?... indagou o Zé Magro.
Sabino respondeu-lhe, dominando a custo a comoção que o abatia:
– Nem por isto... E, esforçando-se por se acalmar: – botei “uma madeira em pique”,
pau monstro, “apaideguado”... E boa que admira... É para doze tigelas. Só ela dá um
“frasco”. Eu não via o diabo. Passava junto e não dava com a bruta... E no entanto estava
logo depois da boca da primeira “manga”.
O outro, surpreso da serenidade do Sabino, resmoneou desconcertado, referindo-se
ao capricho costumeiro da “mãe da seringueira”, que escondia as árvores. E, para disfarçar a
espionagem, revelou-se curioso:
– Bem queria ver esse pau... se é o que você diz!
– Pois vá, replicou o Sabino. Há de se admirar, e você, apesar de não ser nenhum
“brabo”, nunca viu coisa igual. Fica logo ao pé de um açacuzeiro, depois de um cerrado de
“unhas-de-gato” e jurarás...
– Está bom, deixe-me espiar. E o Zé Magro foi endireitando para o maciço da mata
onde, mesmo por detrás do “defumador”, desembocava a estrada.
Sabino, que ficou atentando no espião, mal este desaparecera, tomou a própria
cabeça entre as mãos e sacudia-se todo, oirado em paroxismos epilépticos. Andava para um
lado e para o outro, ia, voltava, levando as mãos ao peito como para arrancar uma víscera
de dentro, e puxava os cabelos, enlaçando soluços a rugidos. Parecia investir para a estrada
a chamar alguém; depois, como que arrependido, corria até o aceiro da floresta, atolava-se
no chavascal próximo... Produzia a impressão de que fosse ameaçado por um açoite de fogo,
e o perseguidor instrumento sinistro chegasse a alcançar a vítima, fazendo-a saltar e volver-
se, fugindo ao contato espicaçante dos látegos.
Enquanto isso, o Zé Magro seguia pensativo e suspicaz à cata da seringueira
fenomenal. A estrada frondejada é apenas um trilho, em busca das árvores a cortar. Mas,
quase sempre a linha poligonal mantém a orientação que a fecha sobre si mesma. Por vezes
dispartem dela outros polígonos menores: as “voltas”, ou simples linhas: as “mangas”; mas
sempre o seu traço total é o de um carreiro, enrodilhando a centena de “madeiras” a
explorar. O seringueiro no “fábrico” percorre-a às pressas. Vai muitas vezes mesmo antes
que amanheça, então à luz do “farol” ou lamparina, embutindo as tigelinhas sob o golpe
pequeno e em diagonal, na devida “arreação”; voltará imediatamente nas mesmas pegadas
a fim de recolher no balde o leite das tigelas. Manhã alta chega o seringueiro estropeado; e
tem ainda de defumar o látex d’olhos castigados ao fumo acre dos cocos, que ardem
embaixo do “boião”.
No hábito do serviço, o Zé Magro seguia a passos rápidos, mal notara o açacuzeiro
no cerrado de cipós, e já se quedava aterrado diante o espetáculo imprevisto e singular.
Uma mulher, completamente despida, estava amarrada a certa seringueira. Não se lhe via
bem a face na moldura lustrosa, em jorro negro e denso, dos cabelos fartos.
O Zé Magro acercou-se, tremendo, a examinar a realidade terrível; na crucificada
reconheceu, estupefacto, a mulher do Sabino e do Sérgio.
Atado com uns pedaços de ambécima à “madeira” da estrada, o corpo acanelado da
cabocla adornava bizarramente a planta que lhe servia de estranho pelourinho. Era como
uma extravagante orquídea, carnosa e trigueira, nascida ao pé da árvore fatídica. Sobre os
seios túrgidos, sobre o ventre arqueado, nas pernas rijas, tinha sido profundamente
embutida na carne, modelada em argila baça, uma dúzia de tigelas. Devia o sangue da
mulher enchê-las e por elas transbordar, regando as raízes do poste vivo que sustinha a
morta. Nos recipientes o leite estava coalhado – um sernambi vermelho...
Tinha esse espetáculo de flagício inédito a grandeza emocional e harmoniosa de
imenso símbolo pagão, com a aparência de holocausto cruento oferecido a uma divindade
babilônica, desconhecida e terrível. É que, imolada na árvore, essa mulher representava a
terra...
O martírio de Maibi, com a sua vida a escoar-se nas tigelinhas do seringueiro, seria
ainda assim bem menor que o do Amazonas, oferecendo-se em pasto de uma indústria que o
esgota. A vingança do seringueiro, com intenção diversa, esculpira a imagem imponente e
flagrante de sua sacrificadora exploração. Havia uma auréola de oblação nesse cadáver, que
se diria representar, em miniatura um crime maior, não cometido pelo Amor, em coração
desvairado, mas pela Ambição coletiva de milhares d’almas endoidecidas na cobiça universal.
Precipitado, o Zé Magro voltou, e, quando apareceu na boca da estrada, quem o
visse não o reconheceria. A comoção dera uma pátina ao bronze mate de seu rosto. Olhou
em torno. Tomando do rifle, aperrou-o, e em sinal de socorro fez fogo várias vezes
seguidamente. A mata dormente, ao meio-dia cálido, não despedia o menor murmúrio.
Parecia, de imóvel, marmorizada numa hipnose. O Zé Magro olhou mais detidamente em
volta. Ansiado, não se conteve, bramiu: “Sabino! Eh! Sabino...”
Só o grito áspero de um cauré acudiu ao chamado. “Sabino... Sabino!...”
E ao novo apelo mais fremente nem o malvado gavião respondeu mais.

(Inferno verde)

O PERÍODO DA DECADÊNCIA E
A ASCENSÃO DO MODERNISMO
Parnasianismo, Simbolismo, Modernismo

PEREIRA DA SILVA (1890-1973)

Francisco Pereira da Silva (Pereirinha) nasceu em Guamaré, no Rio Grande do Norte,


no dia 7 de setembro de 1890. Em 1911 chegou ao Amazonas, integrando-se à vida cultural
do estado. Como deputado federal, foi o autor da lei que criou a Zona Franca de Manaus.
Pertenceu à Academia Amazonense de Letras. Faleceu em Manaus em 10 de setembro de
1973. Sob a influência das ideias modernistas, publicou, em 1927, o livro Poemas
amazônicos.

SUMAUMEIRA MORTA
Lá vai boiando, na Água Grande em turbilhão,
A sumaumeira morta, que tombou.

Ela era antiga e gloriosa


Como um deus que passou,
Que vai bem longe, um deus heróico, um deus pagão.

A sua fronde, outrora,


Era uma eterna festa,
Onde a alegria,
Toda vestida de verde, cantava
E bailava,
Pela garganta metálica, sonora,
Dos Japiins boêmios e joviais.

Coroada de arminho, a sumaumeira, sorria


Para o sol – imperatriz orgulhosa
Da floresta!

Na orgia de luz das tardes tropicais,


Plena de seiva, os galhos formidáveis
Fremiam, como braços vigorosos
Em ansiedade,
Tentando profanar as franjas impalpáveis
Do zainfe irisal dos altos céus escampos.

Depois, dentro da noite, a sumaumeira,


Tinha a grandeza de um altar druídico,
Erguido em meio da brutalidade
Das selvas e das águas tumultuárias,
Iluminado pelos pirilampos.

Mas, um dia, o apuizeiro, fascinado


Por tanta majestade e tanta formosura,
Como um capro, investiu,
Envolveu-lhe a cintura.

E a esse abraço fatídico,


Toda a sua beleza sucumbiu!

As invernias e os vendavais
Arrancaram-lhe as folhas desbotadas.
E aqueles flocos de alva pluma,
Desfeitos, doidejando, em torvelinho,
Pousando aqui, ali, no coração da mata,
Por sobre as franças verdolengas perfumadas,
Certo, haviam de ser as lágrimas de arminho
Da árvore-imperatriz, lentamente a morrer.

Quando os tentáculos cruéis do apuizeiro


Sugaram a última gota de sua vida,
De sua seiva, e ela – a nobre e altaneira
Sumaumeira, –
Morreu de todo, afinal,
A natureza, a chorar, foi vesti-la de branco.

... E a árvore-grande ficou, como um fantasma solitário,


À beira do barranco,
Crucificada na angústia do Não-ser!

A múmia branca da potência vegetal


Da Terra Verde, erguia os braços para os céus.
E ao lampadário
Do sol-poente,
Parecia enviar uma prece eloquente
Ao Sublime-Inexplicável – que é Deus!

Agora, a Água Grande, impiedosa,


Que tudo avassala e tudo desbarata,
Carcomendo o barranco, fez tombar
A velha sumaumeira morta há tanto ano!

... E lá se vai, aos roldões, na avalanche furiosa,


O velho tronco brancacento,
Cumprindo o seu fadário, assaz tirano,
As raízes voltadas para o ar.

... E lá se vai, dobrando as curvas,


Vencendo os estirões,
No esquife abissal das águas turvas,
O cadáver da velha sumaumeira!

Ashaverus das selvas amazônicas !


Para onde te leva o mau destino,
Cheio de pragas e de maldições?
Que mal fizeste em ouvir as preces melodiosas
Do passaredo, à hora do amanhecer?

Bem cruel e violento


O teu castigo!
Dia e noite boiando, a descer, a descer ...
A Água Grande – esse verdugo, esse tigrino
Carrasco, a te levar
Assim,
Insensivelmente, friamente, para o fim!

Mas – Oh! Sumaumeira morta! – vai contente


Para o teu jazigo!

Em teu desfile lúgubre, em alas,


Todas as catedrais frondejantes da flora,
O tronco gigantesco a flutuar sem vida,
Cada vez mais o teu destino se alcandora!

As tuas raízes
Estão bracejando aflita despedida,
Às árvores felizes
Que vão ficando,
Verdejando
Pelas margens dos rios, a cantar.

Mas, embora arrastada pelas águas,


Os rebojos rezando em voz soturna,
As espumas coroando as tuas mágoas,
Cada vez mais soberbo e mais glorioso,
Fulge ao sol o teu tronco de gigante!

Bendita sejas, Árvore Grande de minha devoção


Emocional!
Teu último instante
Há de ser grandioso
Como o enterro de um Deus, na vastidão
Azul do espaço sideral!

Porque, afinal, soberba samaumeira,


Para cúmulo
De tua glória, imperatriz do mundo florestal,
Terás a apoteose derradeira
Na pompa altiloquente do teu túmulo:
– O Mar!

(Poemas amazônicos, 1927)


VIOLETA BRANCA (1915-2000)

Violeta Branca Menescal de Vasconcelos nasceu em Manaus no dia 14 de setembro


de 1915. Em 1937, foi eleita para a Academia Amazonense de Letras, sendo a primeira
mulher brasileira a ser admitida numa instituição desse tipo. Após o primeiro livro, Violeta
casou-se e “abandonou” a poesia, permanecendo muito tempo sem escrever. Faleceu no Rio
de Janeiro, onde passou a residir após o matrimônio, em 7 de outubro de 2000. Obra
poética: Ritmos de inquieta alegria (1935) e Reencontro: poemas de ontem e de hoje
(1982).

POEMA DAS TUAS MÃOS


As tuas mãos nervosas, quentes, largas,
harpejam nos meus sentidos
a música ideal da emoção.

Para os teus dedos criadores,


sou o piano mágico vibrando
ao influxo de tua ardente inquietação.

Tuas mãos frementes,


arrancam angústias sonorizadas
de meus nervos,
que se retesam como cordas harmoniosas.

Tuas mãos imperiosas,


tuas mãos rebeldes,
cantam silenciosas aleluias de gestos,
quando compõem poemas de volúpia,
gritos incontidos de alegria pagã,
correndo ligeiras,
leves,
torturantes,
no teclado branco de meu corpo ...

A VELA QUE PASSOU


Singrando o mar,
uma vela
passou na noite triste...
Alguém, dentro dela,
ia cantando sob o luar
a mesma canção que cantei
quando partiste.
Quem cantava, não sei...
A vela passou na noite quieta...
Serias tu, marinheiro-poeta,
que ias cantando assim,
acordando a tristeza dentro de mim?

Pelo mar agitado a vela passou...


Tenho os olhos molhados
de quem chorou...
NOSTALGIA DO MAR

Amanhã voltarás para o mar...


Teu destino é o mar...
Na deslumbrante exaltação das ondas verdes,
tua vida,
– luminoso poema de mocidade e de sol –
tornar-se-á linda como uma alvorada rosicler.

Amanhã voltarás para o mar...


E na inquieta convivência das vagas
depressa olvidarás meu vulto de mulher.
Serei vela perdida
na grandeza infinita do oceano.
Serei a emoção esquecida
de um porto, que ficou em névoas, na distância...

Amanhã voltarás para o mar ...


Enquanto eu ficarei numa tristeza longa, dolorosa,
tu, que trazes na alma altaneira
o orgulho e a boêmia do marinheiro,
partirás sorrindo.
E não terás para mim um pensamento de amor,
tua alegria será jovial e franca.
Mas sentirás que te acompanha sempre,
sempre
um perfume sutil de violeta branca...

BARCAROLA

Mal o teu pensamento


esqueceu as últimas emoções
que gritaram em teus nervos,
os teus dedos de remo
afundaram-se ligeiros
no meu corpo de mar...
No côncavo moreno de tuas mãos de barco,
trouxeste do país encantado do sentimento
os veludos transparentes de tuas carícias,
para envolver em volúpia
a forma imponderável de meus sentidos.

VIOLETA BRANCA E O MAR

Publicado no jornal O Estado do Amazonas,


Caderno História do Amazonas, em 19/12/2004
Autor: Marcos Frederico Krüger

A primeira manifestação feminina na literatura amazonense se deu através de Violeta


Branca, em 1935. Seu mais importante livro – “Ritmos de inquieta alegria” –, lido à distância
de quase setenta anos, numa época de vulgarização da sexualidade, ainda transmite
conteúdo erótico, revelador de um lirismo tenso e angustiante.
Antes de mais nada, convém esclarecer que esse livro de Violeta Branca e os
“Poemas Amazônicos”, de Pereira da Silva (1927), constituem as duas mais relevantes,
embora escassas, manifestações da poesia modernista no Amazonas. Entendamos
Modernismo, no caso, como a prática do lirismo vazado em versos livres, porque, enquanto a
obra de Pereira da Silva pode ser vinculada à Escola da Anta, que compõe o quadro geral
brasileiro, o de Violeta abre trilhas bastante originais.
Nos “Ritmos”, o eu lírico assume a condição feminina. Logo no primeiro poema
(“Minha lenda”), revela, metaforicamente, o despertar da sexualidade: no início, era uma
vitória-régia; depois, evoluiu para a condição de Iara; finalmente, Tupã concretizou o estágio
final “e transformou-me em mulher”.
A fêmea despertada tem um sonho: conhecer o mar. Como não pode realizar esse
desejo, devido à condição dada às mulheres de se destinarem apenas ao lar, faz um
processo de transferência. Assim, deseja amar um marujo, ou seja, um homem que saiba o
que é a aventura de navegar. Mais do que nunca, essa mulher aprisionada encarna o lema
dos argonautas, que Fernando Pessoa adotou para resumir sua obra: “Navegar é preciso,
viver não é preciso”. Tenhamos em mente que “viver” significa, nesse enunciado, resumir-se
ao cotidiano, às tarefas inúteis que nos consomem e amesquinham a existência; “navegar”
seria a adesão à liberdade.
O mar, na poesia de Violeta, tem significados outros. A sua conquista, tão
ardentemente ansiada, representa para o eu lírico, simultaneamente, o desejo de se realizar
sexualmente e de ter, em alto nível artístico, o domínio da poesia (e, por extensão, o da
música, já que, no início, poesia e música eram indissociáveis).
Na literatura portuguesa, mais precisamente durante o Trovadorismo, as cantigas de
amigo eram das formas poéticas mais praticadas. Nelas, o eu lírico feminino falava de um
amor que já acontecera e tivera de terminar porque o namorado fora para a guerra, lutar ao
lado do Rei. Pois é essa exatamente a situação dos “Ritmos”: todo o livro é uma longa
cantiga de amigo.
Assim, depois de uma intensa e angustiante espera, a mulher encontra o marujo tão
sonhado. Entre os trovadores, uma das despedidas possíveis entre o amigo e a amiga era à
beira-mar, caso em que o poema se chamava barcarola. No livro de Violeta, inversamente, é
num texto chamado “Barcarola” que se dá o encontro entre os amantes.
Como, porém, o destino do marinheiro é a navegação, ele a abandona e retorna ao
mar. Mais adiante, sucede o reencontro entre os namorados. Finalmente, no último poema
(“Nostalgia do mar”), ocorre a separação definitiva. Tal como nas cantigas portuguesas, o eu
lírico repete, no início de cada estrofe, o lamento que revela o sofrimento amoroso e que
indica seu choro incessante: “Amanhã voltarás para o mar...” Suas últimas palavras no livro
constituem-se em interessante achado poético: “Mas sentirás que te acompanha sempre,
sempre um perfume sutil de violeta branca”. É o momento em que a autora assina seu
trabalho.
Uma das características marcantes dessa obra é a falta de alinhamento dos versos
pela esquerda. Em muitos poemas, eles se encontram bastante desalinhados, alguns
puxados para a direita, como se estivessem em movimento. Com isso, expressa-se a
inquietação da mulher ansiosa de amor, inquietação que, aliás, consta do título. É que a
fêmea aprisionada que enuncia o discurso não é dócil. Ela é incapaz de se curvar a regras,
motivo pelo qual seus versos também não podem ser bem comportados, seguindo o trilho da
margem esquerda a tolhê-los em sua rebeldia.
Violeta Branca criou excepcionais momentos líricos, o que nos faz perdoar-lhe alguns
versos que tendem para a prosa. Assim, no já referido “Barcarola”, encontramos a seguinte
sinestesia: “veludos transparentes”. No “Poema do Sol”, lê-se uma metáfora expressiva,
dentre tantas dispersas pelos textos: “a inquietação vive dentro de meus nervos que são
feixes de sol”.
O grande verso, porém, é um oxímoro (ou paradoxo) fantástico: “Eu tenho uma
sensibilidade de punhal!” (“Eu”). A poesia, como gênero que deve fugir à linguagem
cotidiana, tem nos paradoxos uma de suas figuras mais significativamente profundas. Dessa
forma, no verso reproduzido, instala-se uma contradição entre os termos “sensibilidade”, que
dá ideia de carícia, ternura, simpatia, e “punhal”, que expressa exatamente o oposto:
sangue e violência. Decodificar o sentido do enunciado é trabalho para o leitor, posto diante
de uma esfinge a interrogá-lo. Uma pista para a decifração do enigma pode estar no fato de
que o punhal é uma representação simbólica do pênis, caso em que todo o verso expressaria
o desejo da fêmea enclausurada de conhecer o amor.
Em 1935, a sociedade amazonense era extremamente conservadora; por isso, o livro
era para ter sido um escândalo à época de sua publicação. Entretanto, não o foi.
Provavelmente, não foi entendido em suas implicações eróticas nem no significado político
decorrente dessa postura: a sexualidade como forma de libertação do indivíduo. De qualquer
maneira, Violeta anunciou a trilha que, só a partir da década de 60, seria descoberta por
teóricos diversos.
HEMETÉRIO CABRINHA (1892-1959)

Em 3 de março de 1892, Hemetério José dos Santos nasceu em Fortaleza. Registre-


se, de passagem, que o nome literário Cabrinha se deve a um apelido de infância. Em
Manaus, trabalhou como carpinteiro e desenvolveu grande cultura como autodidata. Faleceu
na capital do Amazonas, no dia 12 de fevereiro de 1959. Obra poética: O Meu sertão
(Manaus, 1920), Satã (Manaus, 1922), Vereda iluminada (Manaus, 1932), Caim: poemeto
(Manaus, 1934), O Cristo do Corcovado (Manaus, 1952) e Frontões (Manaus, 1958).
O estilo de sua poesia é o Parnasianismo, ao qual se misturam suas concepções
espíritas baseadas em Allan Kardec.

VELHO TRONCO

Olha esse tronco de árvore esgalhado,


Levado à toa pela correnteza.
Quem nos sabe contar o seu passado?
Quem nos diz sua história? Com certeza

Floriu, frutificou, teve seu fado,


foi luz, foi pão, foi ouro, foi grandeza,
teve um viver de inveja saturado,
foi um sorriso aberto à natureza.

Vê! como ele vai sereno, a esmo,


arrastando o cadáver de si mesmo
para um destino torturante, triste...

No entanto, quantas vezes não enchera


de frutos bons, a mão que o abatera!
...Como esse tronco muita gente existe!

(Frontões)

EM BUSCA DA PERFEIÇÃO

A alma que busca exílio nas clausuras


Emotivas da vida transitória,
Traz em sua odisseia, em sua história
As consequências das ações impuras.

Absorvida nas dores, nas torturas,


Nos desesperos de uma luta inglória,
Percorre amargurada trajetória
Em sucessivas existências duras.

Reparando a fraqueza de seus atos,


Como o cego levado pelos tatos,
Busca na treva a meta desejada.

Até que um dia, em vestes vaporosas,


Abre no espaço as asas luminosas
E conquista a Mansão Iluminada.

(Frontões)
A POROROCA

Calmo, sereno, plácido, espelhante,


Nas horas de luar, frias e brancas,
O Mearim, gargalhando nas barrancas,
Se estende, estica e perde-se distante.

O céu, como uma concha de safira


Emborcada por toda a Natureza,
Enche a paisagem de real grandeza
Enquanto o rio pelo chão se estica.

A floresta conserva-se parada;


Nenhuma folha quebra-lhe o silêncio.
E o intérmino trajeto, o rio vence-o
Calmo dentro da noite enluarada.

Mas, um rumor, ao longe, de repente,


Ecoando à distância, estruge, esturra...
Uma invisível força o rio empurra
De encontro às margens assombrosamente.

As águas fervem, tumultuam, crescem


Alagando, destruindo, aniquilando,
Num furor infernal arrebatando
Árvores altas que nas águas descem.

As raízes do solo se deslocam


Sob a fúria dos bruscos elementos.
Ondas revoltas, vagalhões violentos,
Na agonia das margens se rebolam.

Em derredor das ribeirinhas zonas


Nada fica que o rio não ameace;
Como se no seu dorso galopasse
Um tropel de raivosas amazonas.

Embarcações desgarram-se, afundando,


Quebrando amarras, rebentando mastros.
E a Pororoca, em seus sinistros rastros,
Rola por entre abismos esturrando.

Depois... Volta o silêncio. O rio desce;


Plácido e manso o curso continua.
Enquanto branca e só se esconde a lua
Como se nada acontecido houvesse...

Mesmo assim somos nós, nas nossas trocas


De amores e emoções. Tranquilamente,
Quando mal esperamos, de repente
Rebentam n’alma doidas pororocas.

(Ibidem)
AMÉRICO ANTONY (1895-1970)

Américo de Amorim Antony nasceu em Manaus no dia 23 de setembro de 1895. Tal


como Raimundo Monteiro, pôde estudar na Europa, tendo viajado para a Inglaterra, na
companhia dos pais, com apenas cinco anos de idade. Nesse país concluiu o curso médio;
depois, viajou pela América Central e se estabeleceu durante um certo tempo no Rio de
Janeiro, cidade onde estudou Medicina, curso que não concluiu.
Voltou a Manaus em 1917 e começou a publicar poemas nos jornais, fato que lhe
granjeou a fama de grande poeta. Formou-se em Direito e trabalhou como promotor em
diversas cidades do interior do Amazonas. Pertenceu a várias entidades culturais, tais como:
Academia Amazonense de Letras, Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e União
Brasileira de Escritores. Faleceu no dia 18 de agosto de 1970.
Seu estilo é simbolista e a filosofia predominante é o budismo.
Obra poética: Os Sonetos das Flores. Manaus: S. Cardoso, 1959.

A FLOR DO ENTARDECER

Um invisível pincel esbate o poente


Em tons perdidos de uma estranha flor,
Com a palidez das luzes de um doente
Imprime às solidões a alma da Cor...

Suspirando e sorrindo, em gozo e dor,


Pressentimento em pálpebra dormente,
Sonâmbulo no ocaso abre o langour
De um longínquo painel, serenamente...

Que lábios falam de um final sem luzes


Dos ramos altos em sequentes cruzes
Num fundo de ouro, da Floresta imensa? –

Há um segredo que geme nas raízes:


Da seiva, um suplicar de cicatrizes
Na atitude de quem desmaia e pensa!

VITÓRIA-RÉGIA

Nos campos destas lúcidas devesas,


No abismo em flor dos roseirais mais belos,
Eu vim soltar no adeus das correntezas
As almas dos meus rútilos castelos.

E ouvia a voz das líricas Princesas


Num delírio fatal... frios cutelos
Cerceando os cantos íntimos, realezas
Da Esperança irradiando em setestrelos!

E assim, uma por uma, em paroxismo


As emoções, no resplendente abismo
Lancei-as todas... Mas, somente a Dor

Não sucumbiu nos vórtices, e egrégia,


Circundada de espinhos, Grande Flor!
Flutuou, viveu...
– Era a Vitória-Régia.
PÓS-MODERNISMO

THIAGO DE MELLO (1926)

Amadeu Thiago de Mello, poeta, cronista e ensaísta, nasceu na cidade interiorana de


Barreirinha, no Amazonas, no dia 30 de março de 1926. Realizou seus estudos iniciais em
Manaus. Transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde cursou até o quarto ano da Faculdade de
Medicina. Dividido entre a arte poética e a ciência médica, optou pela poesia. Comprometido
com o seu tempo, com a vida, Thiago exalta em sua obra o homem, sua luta pela liberdade.
Resultado de seu engajamento político, o poeta foi perseguido pela ditadura militar que se
implantou no Brasil em 1964. Viveu um longo período no exílio, permanecendo no Chile até a
derrubada do governo socialista de Salvador Allende. Estreou em 1951, com o livro de
poemas Silêncio e Palavra. Thiago de Mello é o poeta amazonense de maior projeção
nacional, com a sua obra traduzida em vários idiomas.
Ele é o poeta de maior projeção da literatura amazonense. Seu discurso lírico é
dissonante e sofreu as determinações de dois momentos históricos distintos. A poesia de
Thiago nasce sob os influxos do mal-estar que se seguiu ao término da Segunda Guerra
Mundial. São textos plasmados por forte conteúdo subjetivo e intensa densidade existencial.
O que expressa a dor, a agonia do ser humano diante de um mundo em ruínas. A angústia
do poeta, sua busca de um sentido para a vida. Os textos que se seguem a Faz escuro, mas
eu canto, posteriores ao advento da ditadura militar (1964), possuem forte conotação
política e social. Diante da violência, do silêncio institucionalizado, os poetas também foram
chamados ao combate pela liberdade, transformaram seus versos em fogo, em lâmina".
Obras poéticas: Silêncio e palavra (1951), Narciso cego (1952), Tenebrosa acqua
(1954), O andarilho e a manhã (1955), A lenda da rosa (1956), Toadas de cambaio (1959),
Vento geral (1960), Faz escuro, mas eu canto (1965), A canção do amor armado (1966),
Horóscopo para os que estão vivos (1966), Poesia comprometida com a minha e a tua vida
(1975), Mormaço na floresta (1981), etc.
Crônica: Arte e ciência de empinar papagaio (1953), Notícia da visitação que fiz no
verão de 1953 ao rio Amazonas e seus barrancos (1957).
Memória: Manaus, amor e memória (1984).

NARCISO CEGO

Tudo o que de mim se perde


acrescenta-se ao que sou.
Contudo, me desconheço.
Pelas minha cercanias
passeio – não me frequento.

Por sobre fonte erma e esquiva


flutua-me, íntegra, a face.
Mas nunca me vejo: e sigo
com face mal disfarçada.
Oh que amargo é o não poder
rosto a rosto contemplar
aquilo que ignoto sou;
distinguir até que ponto
sou eu mesmo que me levo
ou se um nume irrevelável
que (para ser) vem morar
comigo, dentro de mim,
mas me abandona se rolo
pelos declives do mundo.
Desfaço-me do que sonho:
faço-me sonho de alguém
oculto. Talvez um Deus
sonhe comigo, cobice
o que eu guardo e nunca usei.

Cego assim, não me decifro.


E o imaginar-me sonhando
não me completa: a ganância
de ser-me inteiro prossegue.
E pairo – pânico mudo –
entre o sonho e o sonhador.

(Narciso cego)

MADRUGADA CAMPONESA

Madrugada camponesa,
faz escuro ainda no chão,
mas é preciso plantar.
A noite já foi mais noite,
a manhã já vai chegar.

Não vale mais a canção


feita de medo e arremedo
para enganar solidão.
Agora vale a verdade
cantada simples e sempre,
agora vale a alegria
que se constrói dia a dia
feita de canto e de pão.

Breve há de ser (sinto no ar)


tempo de trigo maduro.
Vai ser tempo de ceifar.
Já se levantam prodígios,
chuva azul no milharal,
estala em flor o feijão,
um leite novo minando
no meu longe seringal.

Já é quase tempo de amor.


Colho um sol que arde no chão,
lavro a luz dentro da cana,
minha alma no seu pendão.

Madrugada camponesa.
Faz escuro (já nem tanto),
vale a pena trabalhar.
Faz escuro mas eu canto
porque a manhã vai chegar.

(Faz escuro, mas eu canto)


O AÇUDE

Não sei nem jamais


saberei o nome
(se acaso tem nome)
do bicho que dorme
no escuro do açude
sem fundo que sou.
Nascido, senão
comigo, de mim,
é um bicho, ou como
se fosse; e que dorme.
Nem sempre ele dorme.
Talvez o agasalhem,
de sono enrolado,
as mais fundas águas
que em minha alma dormem:
— as águas e o bicho,
num sono só, feito
de grávidos nadas
espessos e imóveis.
Mas nem sempre imóveis.
Um dia estremecem:
sem causa, e de súbito,
um tremor percorre,
longínquo, levíssimo,
o nervo das águas,
— essas águas fundas
que enrolam, dormidas,
o sono do bicho,
que já não é sono:
mal findo o arrepio,
começa a lavrar
o incêndio no açude.

(Toadas de cambaio)

ESTATUTOS DO HOMEM

Artigo 1º.

Fica decretado que agora vale a verdade,


que agora vale a vida
e que de mãos dadas
trabalharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo 2º.

Fica decretado que todos os dias da semana,


inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de Domingo.

Artigo 3º.

Fica decretado que, a partir deste instante,


haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo 4º.

Fica decretado que o homem


não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único

O homem confiará no homem


como um menino confia em outro menino.

Artigo 5º.

Fica decretado que os homens


estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo 6º.

Fica estabelecida, durante dez séculos,


a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo 7º.

Por decreto irrevogável fica estabelecido


o reinado permanente da justiça e da claridade
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo 8º.

Fica decretado que a maior dor


sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
sabendo que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo 9º.

Fica permitido que o pão de cada dia


tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.

Artigo 10

Fica permitido a qualquer pessoa,


a qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.
Artigo 11

Fica decretado, por definição,


que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo 12

Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.


Tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único

Só uma coisa fica proibida:


amar sem amor.

Artigo 13

Fica decretado que o dinheiro


não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

(Faz escuro, mas eu canto)

POESIA E COMPROMISSO

Tenório Telles

A literatura não é um fenômeno alheio ao mundo, indiferente à vida, ao ser humano –


seus anseios, sofrimentos e esperanças. É, na verdade, a sua expressão. A criação literária é
uma evocação dessa relação tensiva, ávida e apaixonada do escritor com a realidade, com a
sua época.

A poesia de Thiago de Mello é uma evidência dos compromissos do escritor com os


dramas e os desafios de seu tempo. Thiago é um daqueles raros poetas em quem a vida e a
obra se expressam, entrelaçam-se, formando um todo orgânico. Seus livros são quadros
evocativos de seu itinerário poético existencial. A palavra que melhor define a sua produção
literária é coerência.

Ao longo de sua vida empreendeu fugas, amargou exílios, travou combates, fez-se
cantador da utopia, da esperança, do homem, mantendo-se fiel a seus princípios, suas
verdades, suas quimeras. Fez sua profissão de fé à poesia. O poeta encontrou sua
justificativa existencial na literatura, como deixa evidente nas estrofes selecionadas de seu
poema “Rumo”, do livro Silêncio e palavra:

Somente sou quando em verso.


Minhas faces mais diversas
são labirintos antigos
que me confundem e perdem.
(...)
Meu caminhar e meus gestos
mal e apenas anunciam
minha ainda permanência.
Para chegar até onde
não me presumo, mas sou,
sigo em forma de palavra.

O poeta é e fez-se através da poesia. É bastante expressivo o fato de ao ter que optar
entre a segurança de uma profissão estável e a incerteza material de quem vive do fazer
poético, tenha escolhido a poesia. Como esclarece, ao falar de sua formação literária, foi
capaz de um gesto de ousadia, decisivo em sua vida:

Eu fui capaz de uma coisa muito importante pra minha vida, antes de qualquer
influência literária. Passava para o quinto ano de medicina, quando decidi
enfrentar a sério a opção que se colocava dentro de mim, desde o segundo ano,
entre a literatura e a ciência. Eu optei pela literatura, o que entristeceu muito
meu pai.

A produção poética de Thiago nasce sob os influxos do mal-estar que se seguiu ao


término da Segunda Guerra Mundial. Estreou em 1951, com o livro de poemas Silêncio e
palavra, obra marcada por um profundo conteúdo subjetivo e intensa densidade existencial.
Expressão da dor, da agonia do ser humano diante de um mundo em ruínas. Subtraído da
esperança. A angústia do poeta, sua busca de um sentido para a vida. A leitura da primeira
parte do poema “Silêncio e Palavra”, que abre o livro, é uma evidência dessa atmosfera de
desconsolo, desse traço agônico e intimista que plasmam suas primeiras obras:

A couraça das palavras


protege nosso silêncio
e esconde aquilo que somos.

Que importa falarmos tanto?


Apenas repetiremos.
(...)
Muitos verões se sucedem:
o tempo madura os frutos,
branqueia nossos cabelos.
Mas o homem noturno espera
a aurora de nossa boca.

Essa temática será recorrente em seu segundo livro, Narciso cego, publicado em 1952.
Os versos são prenhes de intensidade humana, questionamento sobre o sentido da
existência, sobre a dimensão ontológica do homem. Os textos são expressivos de uma
percepção fraturada do mundo, eivada de ceticismo, corroídos pela dúvida. Revelação da dor
e sofrimento do eu lírico diante de uma realidade absurda, destituída de ternura, seu próprio
desencontro existencial. A primeira estrofe do poema “Narciso cego” é evocativa desse
dilaceramento:

Tudo o que de mim se perde


acrescenta-se ao que sou.
Contudo, me desconheço.
Pelas minhas cercanias
passeio – não me frequento.

Thiago de Mello consegue, nas obras iniciais, combinar, de forma criativa e intensa,
profundidade poética e rigor no plano da elaboração da tessitura de seus versos. Há em
Silêncio e Palavra e Narciso cego ressonâncias da tendência espiritualista da poesia
brasileira, percebendo-se, em vários poemas, ecos de Jorge de Lima, Murilo Mendes, Cecília
Meireles. Thiago, sendo um poeta cronologicamente vinculado à Geração de 45, constrói
seus textos de forma ciosa e contida, deixando evidentes suas preocupações formais.

A vida muda e os poetas não estão imunes aos influxos das transformações sociais. O
poeta reflete o mundo e reflete-se nele. Esse aspecto terá profundas consequências na
produção de Thiago de Mello. O advento da ditadura militar no Brasil, em 1964, o sequestro
do sonho, a experiência dolorosa do exílio, os golpes de Estado na América Latina, nos anos
70, marcaram profundamente sua obra. As preocupações intimistas, a atitude céptica, são
substituídas por uma postura de combate. O poeta assume posições, paga seu tributo à
liberdade, modulando seu discurso poético a um conteúdo de forte conotação social, como
está evidente no Artigo I, dos “Estatutos do homem”, escrito em abril de 1964:

Artigo I. Fica decretado que agora vale a verdade,


que agora vale a vida,
e que de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira.

O poeta emerge de seus conflitos interiores. Sua poesia desabrocha para a vida, para
a esperança na construção de um destino mais luminoso para o ser humano. O marco dessa
mudança é a publicação, em 1966, de Faz escuro, mas eu canto. Contra a resignação, o
medo e a desesperança, o poeta ergue a voz, colocando seu canto a serviço do homem, do
sonho subtraído, da esperança aprisionada. A leitura de algumas estrofes do poema “A Vida
Verdadeira” é esclarecedora dos novos compromissos do escritor:

Pois aqui está a minha vida.


Pronta para ser usada.
Vida que não se guarda
nem se esquiva, assustada.
Vida sempre a serviço da vida.
Para servir ao que vale
a pena e o preço do amor.

A poesia desse segundo momento da produção poética de Thiago de Mello deve ser
lida tendo como pano de fundo o contexto histórico que a ensejou, sob pena de se perder
muito do seu sentido, sua autenticidade, da verdade do seu conteúdo. Se do ponto de vista
da elaboração formal, os poemas desse período não apresentam o mesmo rigor que se
observa em Silêncio e palavra e Narciso cego, ganham no seu aspecto semântico, no
conteúdo humano, na vida e esperança que pulsam em seus versos.

As décadas de 60 e 70, na América Latina, foram marcadas pela violência política e


pelo silêncio institucionalizado. Foi uma época em que não havia espaço para a inocência.
Thiago de Mello é o poeta da utopia entressonhada, que não amanheceu para os homens.
Dentro da noite as facas decepavam o sonho, cortavam a pele da memória, e seu canto é o
testemunho da promessa não cumprida.
CLUBE DA MADRUGADA (1954)

CLUBE DA MADRUGADA
Fundação

Publicado no jornal O Estado do Amazonas,


Caderno História do Amazonas, em 31/10/2004
Autor: Marcos Frederico Krüger

Em novembro deste ano, mais precisamente no dia 22, comemoram-se os


cinquenta anos do Clube da Madrugada. Na atualidade, o nome talvez não diga
nada às novas gerações. Entretanto, esse grêmio de escritores e artistas realizou o
mais importante movimento cultural do Amazonas. A ele pertenceu a melhor
geração literária de nosso estado.

Para homenagear o Madrugada desenvolveremos, a partir deste domingo,


uma série de cinco artigos sobre sua vida. Hoje, trataremos do contexto político e
literário no momento de sua fundação. Nos próximos textos, escreveremos sobre as
tendências líricas e ficcionais, comentando alguns livros de grande importância.

* * *

Dos escombros da Segunda Guerra Mundial surgiu uma literatura


desencantada com o mundo. Tal fenômeno é compreensível, haja vista a insensatez
e a brutalidade do conflito.

Uma tendência intimista e espiritualista invade então a poesia. O reencontro


com o próprio eu e a busca de valores transcendentais equivaliam a uma
reorganização do mundo e a valores distantes da materialidade, da ganância, da
destruição.

No Brasil, os poetas que enveredaram por tal caminho constituíram um


grupo que ficou conhecido como Geração de 45. Em geral, os livros didáticos
apontam esse instante de nossa literatura como o 3º. momento do Modernismo.
Cremos que essa caracterização não corresponde à verdade, em virtude de os
artistas do período – salvo as inevitáveis exceções – terem novamente “fechado” a
poesia, ou seja, a métrica, a rima e as formas fixas, como o soneto, voltaram a ser
intensamente praticadas.

É nesse esquema que se pode inserir o Clube da Madrugada. Melhor


dizendo: o Madrugada é a Geração de 45 no Amazonas.

Quem se debruça sobre a história literária local nota um intenso vazio após
o ciclo da borracha. Enquanto o Modernismo se firmava em São Paulo e fazia
adeptos em todo o País, varrendo o ranço parnasiano, em nosso Estado o
tradicionalismo criara raízes. Entre 1922, data da Semana de Arte Moderna, e
1954, ano em que raiou a “madrugada” em nossas letras, apenas dois livros de
relevância tinham sido publicados dentro da nova estética literária: os “Poemas
amazônicos”, de Pereira da Silva (1927), e os “Ritmos de inquieta alegria”, de
Violeta Branca (1935). De resto, o marasmo, o apego fanático ao Parnasianismo e,
mais raramente, ao Simbolismo, estilos de época já então sepultados pela História.

O Clube da Madrugada teve, portanto, esse indiscutível mérito: o de


atualizar nossa literatura, colocando-a para caminhar em simultaneidade com a do
restante do País. À parte isso, os livros editados revelaram poetas inspirados.
Considerando a produção “madrugadense” em sua totalidade, constatamos que ela
está bem acima da média, com alguns momentos especialíssimos, em que o lirismo
atinge píncaros nunca dantes alcançados no Amazonas.

Visto a cinquenta anos de distância, podemos perceber que o Clube fez uma
grande renovação. Isso, certamente, jamais passou pela cabeça daqueles jovens
que, certa madrugada, junto ao lago da Praça da Polícia, criaram, quase por
divertimento, uma agremiação literária. A atitude é explicável: era uma forma de,
agrupados, se protegerem da indiferença do meio, hostil a tudo em que
vislumbrasse o verniz da cultura.

Segundo o que se lê no livro “Clube da Madrugada: 30 anos”, de Jorge Tufic,


dentre os membros mais conhecidos ali estavam, no momento do “fiat lux”, Farias
de Carvalho e Luiz Bacellar, que foi, provavelmente, quem sugeriu o nome para a
entidade. Um nome por sinal felicíssimo, pois Madrugada expressava não só a hora
em que se decidiu fundar o Clube, como, metaforicamente, o novo tempo que
surgia. Madrugada é, na poesia, um signo positivo, pois designa a novidade. Ela é o
prenúncio de uma outra e renovada manhã que vai nascer, de uma nova era que se
inaugura.

Dez foram os fundadores, segundo ainda o registro de Tufic. Alguns


abandonaram a trajetória do grêmio literário: foram para outras atividades
culturais ou profissionais, apeando-se do bonde da história. Porém, a esse núcleo
inicial, à novidade que se instalava, agregaram-se, ao longo do tempo, outros
jovens interessados em arte: além do próprio Jorge Tufic, tivemos Alencar e Silva,
Antísthenes Pinto, L. Ruas, Elson Farias, Arthur Engrácio, Francisco Vasconcelos,
Carlos Gomes, Ernesto Penafort, Alcides Werk, Max Carphentier, Astrid Cabral (a
segunda voz feminina de nossa literatura) e tantos outros.

1954 foi realmente um ano especial em nossa história. Em outubro, o


trabalhista Plínio Ramos Coelho ganhara as eleições para o governo do Estado,
derrotando velhas oligarquias incrustadas no poder. Um mês depois, os ventos da
renovação se transferiram da política para a literatura. Começava o vendaval que
destruiria o passado.
ANTÍSTHENES PINTO (1929-2000)

Antísthenes de Oliveira Pinto nasceu em Manaus, no dia 28 de novembro de 1929.


Destacado membro do Clube da Madrugada, trabalhou em jornais de Manaus e do Rio de
Janeiro. Motivado por suas atividades jornalísticas, transferiu-se para a capital carioca.
Retornou definitivamente ao Amazonas em 1970. Foi também membro da Academia
Amazonense de Letras. Faleceu em Manaus em 3 de dezembro de 2000. Obra poética:
Sombra e asfalto (Manaus, 1957), Ossuário (Rio de Janeiro, 1963), Angústia numeral
(Manaus, 1976), A Rebelião dos bichos (Brasília, 1977) e Curvas do tempo (Manaus, 1984).

Antecipo minhas rugas no espelho.


A sombra hirta que foi vejo curvada.
Piso fundo no chão que silencia
E vou contar estrelas na vidraça.

A ave do desejo pousa em livro.


(Não há no vácuo acústica às palavras)
Liberto já do sonho que não tive
Fujo de mim e só de mim fugindo

Sem dar um passo além do que pensara


Quando fui velho sem chegar a ser.
O meu patético olhar engole o longe:

– Escuro limitando com escuro


E quanto ao perto: cinza no cinzeiro
E o negro cão do tempo me mordendo.

(Sombra e asfalto)

JORGE TUFIC (1930)


Jorge Tufic Alaúzo nasceu no município de Sena Madureira, Acre, no dia 13 de agosto
de 1930. Descendente de uma família de comerciantes árabes, transferiu-se, no início da
década de 40, para Manaus. Há cerca dez anos fixou-se em Fortaleza. É membro do Clube
da Madrugada e da Academia Amazonense de Letras. Principais obras poéticas: Varanda de
pássaros (Manaus, 1956); Chão sem mácula (Manaus, 1966); Faturação do ócio (Manaus,
1974); Os Códigos abertos (Manaus, 1978); Os mitos da criação e outros poemas (Rio de
Janeiro, 1980); Sagapanema (Manaus, 1981); Poesia reunida, contendo os livros anteriores,
além de outros (Manaus, 1987); Retrato de mãe (São Paulo, 1995), Boléka, a onça invisível
do universo (São Paulo, 1995) e Quando as noites voavam (Manaus, 1999).

HOMEM

Trajetória de sombra dispersada


Das mãos lhe escorre o tempo que sonhou.
Quantas almas possui na alma pisada?
Qual dentre todas a que mais amou?
Seus passos abrem sulcos de alvorada.
Por estrelas errantes se enredou.
Onde a sua face ausente procurada
E as ilhas de além-mares que fundou?

Máscara leve lhe recobre a fronte.


(O silêncio por trás constrói o mito)
Traz nos ombros a sombra do horizonte.

De fundas cicatrizes cava o mundo.


E, sendo humano, um pouco de infinito
Guarda no peito como em céu profundo.

(Varanda de pássaros)

FARIAS DE CARVALHO (1930-1997)

Carlos Farias Ouro de Carvalho nasceu em Manaus, no dia 8 de setembro de


1930. Foi professor de Português e Literatura Brasileira do Colégio Estadual Pedro
II. Foi presidente do Clube da Madrugada. Destacou-se como jornalista,
colaborando em vários jornais de Manaus. Faleceu em Niterói em 25 de junho de
1997. Obra poética: Pássaro de cinza (Manaus, 1957) e Cartilha do bem sofrer com
lições de bem amar, (Manaus, 1965).

OFÍCIO

Ruir-me e sem contudo haver ainda


sequer simples começo construído,
saber-me morto e nunca ter vivido
além do gesto que não foi. A infinda

flagelação do instante pressentido


(e só) é o postilhão dessa berlinda
onde o ir-se já sabe mais a vinda
e onde me instalo lúcido e perdido.

Ruir-me e sem poder cantar na queda


o pânico do abismo. Não poder
legar o sonho em ruína para os salvos.

Ruir-me. Como súbito o silêncio


estraçalhado por um grito. E ir-me
ruindo nesse afã de construir-me.

(Cartilha do bem sofrer com lições de bem amar )


O ENGRAXATE

Doze anos. Doze esquinas


nas doze horas do dia,
até que a noite vazia
o engula em suas neblinas.
Pelas ruas da cidade
de caixa verde na mão,
inaugura a mocidade
ajoelhado no chão;
engraxa sapatos finos
lustra botas militares,
olhando os outros meninos
que vão alegres aos pares
soltando risos nos ares.
Seu macacão remendado
parece um céu desbotado
sem sol, sem luz, sem calor;
seus olhos parecem luas
aguardando pelas ruas
uma colheita de amor.
É magro e triste o menino
que cumpre o triste destino
de luzir a bota alheia,
ele que anda recurvado
levando como calçado
os seus sapatos de areia.
Doze anos de amarguras
polindo as noites escuras
da sua desilusão;
menino sem esperança
que não pôde ser criança
garantia da Nação.
Menino filho da fome
sem lei, sem lar e sem nome
de vida amarga e vazia,
engraxa, menino engraxa
vai pagando a tua taxa
de abandono e solidão
até que aconteça o dia
em que hás de polir, menino
a Aurora da redenção.

(Ibidem)
ALENCAR E SILVA (1930)

Joaquim de Alencar e Silva nasceu em Fonte Boa, cidade do interior do Amazonas, no


dia 21 de setembro de 1930. Para dar prosseguimento aos seus estudos, mudou-se para
Manaus, transferindo-se posteriormente para o Rio de Janeiro, onde concluiu o curso de
Ciências Jurídicas e Sociais, na Faculdade Nacional de Direito – UFRJ. Obra poética: Painéis
(Manaus, 1952), Lunamarga (Manaus, 1965), Território noturno (Rio de Janeiro, 1982), Sob
Vésper (Manaus, 1986), Sob o sol de Deus (Manaus, 1992), Ouro, incenso e mirra (Manaus,
1994) e Solo do outono (Manaus, 2000).

CANTAR DE ANDARILHO

Não tenho pátria já visitaram


determinada minhas narinas.
nem tenho pressa
nesta jornada: Todas as águas
já circularam
só esta sede dentro de mim.
que têm meus olhos
de ver e ver Em minha fala
todas as falas
e este incontido se misturaram.
impulso de asas
sobre meus pés. E nos meus olhos
os céus mais vários
Minhas sandálias se despejaram.
cobrindo o mundo
que descobriram Não tenho pátria
pé ante pé, determinada
minhas sandálias nem tenho pressa
vão-se ficando nesta jornada:
pelos caminhos
de minha fé. só esta sede
que têm meus olhos
Arde em meu rosto de ver e ver
o sol de todos
os continentes. e este incontido
impulso de asas
Todos os ventos sobre meus pés.

(Lunamarga)

SONETO DE ESPERA OU O 1o. DA MORTE

De espera e espera sofro-te em meu canto,


em meu verso e nas coisas que te anseiam.
E mais sofrera se te não sonhara
nem crera em tua vinda, anjo noturno
que virás sobre o mar – pássaro, estrela
ou rosa a se elevar na noite pura –
sem outro anúncio a preceder-te, além
do teu hálito fresco sobre o vale
e esta certeza para além do sonho
de que teus olhos de mistério e flamas
descerão de repente em minha espera
e me destruirás para salvar-me:
que os noturnos jardins florescerão
e nos ventos da noite fugiremos.
(Ibidem)
L. RUAS (1931-2000)
Luiz Augusto de Lima Ruas nasceu em Manaus, no dia 28 de novembro de 1931.
Optando pela vida eclesiástica, fez o curso de Filosofia no Seminário Metropolitano de
Fortaleza e de Teologia no Rio de Janeiro, no Seminário São José. Jornalista dos mais
talentosos, exerceu o magistério em escolas de nível médio e na Universidade do Amazonas.
Um dos mais ativos membros do Clube da Madrugada, foi vítima de perseguições políticas
por causa de suas posições progressistas, após a implantação da ditadura militar, em 1964 .
Faleceu em Manaus no dia 1.º de abril de 2000. Obra poética: Aparição do clown (Manaus,
1958) e Poemeu (Manaus, 1985).

SONETOS AUTOBIOGRÁFICOS, VIII

O cais está deserto. A noite é vasta.


O vento sopra fino. As águas negras
Paradas se repousam das fadigas
De naves que partiram soluçantes.

As luzes tremeluzem cochilantes


Dos negros postes magros penduradas.
Do guarda, os passos lerdos, sonolentos,
Acordam surdos ecos nas distâncias.

E a sombra do seu corpo se projeta


No longo tombadilho do silêncio
Escura e densa como ponte armada

Do cais para o silêncio da água negra,


Do fim para o começo de outro dia
Do pranto de quem fica ao de quem parte.

(Poemeu)

GUIMARÃES DE PAULA (1932-1996)

Raimundo Gilberto Guimarães de Paula nasceu em Manacapuru (AM) no dia 30 de


novembro de 1932. Em 1976 venceu o 2.º Prêmio Prefeitura de Manaus com o livro Os
Rebanhos da fuga. Esse livro, o único de sua autoria, sempre reelaborado no transcurso do
tempo, só foi publicado postumamente, em 1996, alguns meses após a morte do poeta, a
qual aconteceu em Manaus em 27 de julho do mesmo ano.

ESPELHO E FACE
Mata-nos o não vermos
no espelho de hoje
a nossa face de ontem.

Flor de alegria ou de mágoa


que outrora nascia de nós
crestou-se (ignota) no tempo.
A cada dia
quanto mais nos conhecemos
deixamos de ser nós mesmos,
dispersados, divididos,
em não sei quantos milhares
de faces dessemelhantes.
(Os Rebanhos da fuga)
OS REBANHOS DA FUGA

Pelos campos da vida


meus sonhos sombras de mim mesmo
tais como rebanhos
sem água e sem pasto
fogem à procura de Deus.

(Ibidem)

CASCATA

Raio de lua
rolando cai
na pedra negra
unido ao frio
e se esvai
como um rio
sobre
outro rio.

(Ibidem)

ALCIDES WERK (1934-2003)

Alcides Werk Gomes de Matos nasceu em Aquidauana, Mato Grosso, no dia 20 de


dezembro de 1934, e faleceu em Manaus em dezembro de 2003. É poeta de identidade
amazônica, forjada no convívio com o modo de vida interiorano, resultado de suas aventuras
pelos altos rios, pelos paranás, pelos lagos distantes, abeberando-se da cultura aborígine.
Sua estreia aconteceu em 1974, com a publicação do livro de poemas Da Noite do Rio.
Outras obras poéticas: Trilha dágua (Manaus, 1985); Poemas da água e da terra, edição
bilíngue (Manaus, 1987); In natura: poemas para a juventude (Manaus, 1999).

DA NOITE DO RIO

Nesta noite sem medida


eu todo banhado em sombras
fugi de casa, fugi
para o branco desta praia,
como se a aurora que busco
neste rio se afogou.

Preciso acordar o rio


que está cansado de viagens
para ver se me alivio
da morte que trago em mim
com falas de cobras-grandes
e de mortos pescadores
que fazem parte do rio
e estão assim como estou.
No céu repleto de nuvens
há nuvens cheias de chuva:
por que não chove? Quisera
molhar-me dentro da noite,
tremer de fome e de frio
por remissão dos meus males
deixar meu corpo vazio
guardando o castelo inútil
e partir buscando a aurora
para que venha depressa
banhar as águas do rio
e minha face marcada
dos ventos com que lutei.

(Trilha dágua)

ESTUDOS, VI

O amargo deste sal que me alimenta


agora, eu mesmo o consegui catando
abismos nesse mar desconhecido
que o tempo me mostrou depois de mim.

Este sabor estranho de distância


que vivo a cada hora e que me envolve,
vem da vida que vi nessa voragem.
Sei, agora, que após a ronda inútil

por além dos limites do meu nada,


voltamos mais vazios, eu e o barco
que construí para guardar tesouros.

No regresso noturno, cumpro o gesto


de buscar o local, em cada porto
onde possa esconder um sonho morto.

(Ibidem)

ERNESTO PENAFORT (1936-1992)


Ernesto da Silva Penafort nasceu em Manaus, no dia 27 de março de 1936. Morreu
na mesma cidade em 3 de junho de 1992. Na década de 60, estudou Ciências Sociais na
Universidade do Brasil, abandonando o curso devido ao clima político vivido pelo país.
Formou-se em Direito pela Universidade do Amazonas. Foi membro do Clube da Madrugada
e um de seus presidentes. Obra poética: Azul geral, 1973; A medida do azul, 1982; Os
limites do azul, 1985; Do verbo azul, 1988.

A MEDIDA DO AZUL

A medida do azul é o estender-se


do olhar por sobre os seres. Esse arguto
perceber que se tem de não mover-se
o objeto – já por ser absoluto.
A medida do azul é ver um luto
contido em toda flor e o abster-se
cada qual de assumir seu tom enxuto
e noutro que o não seu absorver-se.
A medida do azul, pelo contrário,
não é ver no horizonte o fim do olhar,
mas o ter desta vida aonde chegar,
pois ali tem o mundo o seu ovário:
e o retorno acontece, sempre estável,
eis que o azul é o início do infindável.
(A medida do azul)

ELSON FARIAS (1936)

Elson Bentes Farias nasceu no interior do Amazonas, em Roseiral, município de


Itacoatiara, no dia 11 de junho de 1936. Participou ativamente da movimentação que se
seguiu à fundação do Clube da Madrugada, tornando-se um de seus principais membros.
Pertence também à Academia Amazonense de Letras. Obras poéticas principais: Barro verde
(Manaus, 1961) Estações da várzea (Manaus, 1963); Três episódios do rio (Manaus, 1965);
Ciclo das águas (Manaus, 1966); Um romanceiro da criação (Manaus, 1969); Romanceiro
(Rio de Janeiro, 1985); Balada de Mira-anhanga (Manaus, 1993).

BALADA

O sol retorce a paisagem


sobre pés de pedra dura.
Estalam verdes do rio.
Peixes redondos, prateados
como escamas esmaltadas
nas tarrafas de chumbadas.

Uruás partem seus cascos


no barro virgem das grotas.
Alguidares se restauram.
No mormaço das mangueiras
as mulheres temporãs
tecem tarrafas chumbadas.

De torrentes concentradas
vive meu verso bisonho,
sustido em fibras telúricas
do sítio, favas de sol.

(Barro verde)

O RIO AMAZONAS

Rio, lavras tua gula,


comedor de terra e espuma,
trazes os teus peixes todos,
sol ardente sobre lâmina.

Manhã clara consumada,


hereditária da chuva,
água tranquila na cuia
do verão que te saúda.
Noite nova sobre as árvores,
sombras nos ombros da lua,
os duendes antigos vivos,
mulher deitada na grama.

Não és um rio caduco,


mas uma fera atiçada.
Contra a fome te concentras
como o fixo olhar da garça.

(Ibidem)

ROMANCE DA NOITE-CHUVA

Tremia o trovão na terra.

Talhavam a face torva


gota a gota os seringais,
era o deus que era raivoso
e vinha nos temporais.

Bramia o rumor do rio


nas noites de escuro e chuvas,
caía a faixa da terra,
piavam surdo as corujas.

Um noturno canto-pranto

cortava o céu em dois meios,


nosso deus vinha vestido
de nós e os nossos receios.

– Minha mãe, onde é que eu acho


a lamparina da noite?
– Meu filho, ela deve estar
pendurada lá no alpendre.
– Minha mãe, por que a coruja
pia agora sem parar?
– Meu filho, certo que existe
um defunto a amortalhar.
– Quero dormir, minha mãe,
dentro das trevas desta hora,
mas não posso me embrulhar,
o meu lençol me apavora.
– Meu filho, dorme, não chora,
que o dia custa a vir,
reza as três ave-marias,
muda a roupa e vai dormir.

A terra tremia toda.

(Romanceiro)
LUIZ BACELLAR (1928-2012)

SOL DE FEIRA
EPÍGRAFE

E plantou o Senhor Deus um jardim no Éden, da banda do Oriente, e


pôs nele o homem que havia formado. Do solo fez o Senhor Deus brotar toda
sorte de árvores agradável à vista e boa para alimento. Tomou, pois, o Senhor
Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar. E
lhe deu esta ordem: de toda árvores do jardim comerás livremente.
Gênesis, 8, 9, 15 e 16

Feita de sol é a carne que nos vete.


Vamos cavar! A pena é irmã da enxada,
a página do livro é terra semeada.
Teixeira de Pascoaes

ANÚNCIO
Nos tabuleiros do mercado
o sol da feira amadurece
este poema proclamado
por mil pregões quando amanhece
mal surge o dia sobre as bancas
eis o Menino que aparece
para trazer lá das barrancas
frutos só que o rio conhece.

PRÓLOGO
Senhora Dona Pomona
vossos préstimos invoco
para encher este paneiro.
Nosso céu tem mais estrelas,
nossa selva tem mais frutas...
Pra onde vai? Quem me escuta?
o petróleo brasileiro?
Relembrando Casimiro
talvez vá colher pitangas,
que não mais provarei mangas
furtadas de outros quintais.
Mas, se quiserdes, faceira,
percorrer comigo a feira
onde em graças abundais,
tereis a ditosa prova
que a Natura se renova
nestas matas tropicais,
aspirando outros olores,
provando de outros sabores
e conhecendo outras cores
que, sem saber, inventais
I — rondel da pitanga II — rondel da manga

gracioso arbusto manga olorosa


de folhas breves e aurirrosada
todo adornado chamam-te rosa
de frutos leves chamam-te espada,
como as caboclas espada e rosa
do meu torrão tens com razão
e as notas loucas forma amorosa
do meu violão de coração:
rubras miçangas com a fronde esparzes
rubis talhados sombra e raízes
de viva cor pelas estradas
sois vós pitangas no tronco trazes
cristalizados mil cicatrizes
beijos de amor desesperadas

III — rondel da graviola IV — rondel da banana

graviola, posto onde a banana


que viola grave, doce crisálida
de aroma e gosto dorme? Na verde
de arpejo suave, rede da casca:
em vindo agosto no cacho oclusa
que a chuva lave tão mansa e inerme
teu verde rosto tão paquiderme
pra bicos de ave; musa reclusa;
pevides breves a forma branca
na polpa, neves todo momento
de arminhos reais, sonha na brisa
são semibreves sua doçura
desses teus leves de firmamento
sons palatais pura e concisa

V — rondel do abricó VI — rondel do buriti

para cantar-te e o buriti


neste rondó vermelho? peixe
infunde-me arte de miúda escama
nobre abricó: roliço feixe,
alto proclamas polpa amarela,
o teu sabor caroço branco
por teus aromas fina aquarela
e tua cor; põe no barranco;
cada bocado beira de rio
nos sabe à flama — um caule esguio
de um beijo alado, na tarde calma;
é de ouro e lhama que leva o vento
o real brocado à verde palma?
que te recama carícia e alma
VII — rondel do limão VIII — rondel da tangerina

chega o limão bólido agreste


ácido e raro rosa citrina
seivoso e claro és, tangerina,
como o verão bulbo celeste;
o Poeta di-lo grata é a resina
cúpido e ardente e a cor de cobre
túmido e olente com que se cobre
verde mamilo tua casca fina;
na toalha branca teu cheiro clama
de mesa parca denunciando
seu brando grumo tua seiva rica
empresta ao sal por isso o povo
fino o cristal no sul te chama
do fresco sumo de mexerica

IX — rondel do cacau X — rondel do abacaxi

última dádiva com teu cocar


do deus Tláloc de verdes plumas
ao rei asteca feroz te aprumas
Cuahuatémoc para lutar:
ânforas fulvas feres a mão
aurilavradas que corta as cruas
de amêndoas ruivas douradas puas
coaguladas; do teu gibão;
cacau, presente abacaxi,
de um deus chuvoso; topázio agreste
que se dilate cristal-farol:
e se acrescente: cada rodela
pai generoso da tua polpa
do chocolate revela o sol

XI — rondel do marimari XII — rondel do açaí

marimari ó soberana dos palmares


em longas trilhas da região das grandes águas
de tenro limo tuas leves palhas cobrem lares
doces pastilhas marcando o fim de muitas mágoas;
como obras-primas, teu vinho púnico derrama
encadernadas das cuias fartas da maloca
de veludilho, a cor que aos césares inflama
enfileiradas e aos deuses áticos evoca;
nos seus alvéolos, teu fuste olímpico, que oscila
iguais freirinhas aos ventos calmos, já cintila
verdes, deitadas qual uma verde chama além
nas suas celas por sobre os lagos da saudade
arrumadinhas — passam murmúrios de orfandade
e separadas mas teu perfil só evoca o bem
XIII — rondel do taperebá XIV — rondel da cuia

taperebá prato e vasilha


em gotas de oiro: de munição,
dos altos ramos cuia, eis a taça
no dia loiro que guarda e encerra,
Zeus, a hora amena, garrafa e bilha
no colo mana e do meu torrão;
flui da serena, verde cabaça
silente Dánae: da minha terra;
e ela, provando eis a baixela
da chuva as bagas que a natureza
de acre sabor, quis, de repente,
se vai deixando depor numa árvore
violar por vagas dando ao caboclo
chispas de amor seus recipientes

XV — rondel da carambola XVI — rondel do maracujá

fúlgidos raios ao te chamarmos


de brilho extático flor da paixão
tens, carambola, teus frágeis ramos
fruto acrobático; deitas ao chão
e nesse aspecto por te vergarem
teu, de astro errático, pesos sagrados:
arestas leves Cruz, Lança, Espinhos,
do oiro prismático; Cravos e Dados
lâmpada vítrea e porque a Hora
lembras na forma da Remissão
claro crisol não passará
guardas nos grumos és passiflora,
de ácidos sumos flor da paixão,
cristais de sol maracujá

XVII — rondel da pitomba XVIII — rondel da mandioca

dentro da crosta manimani


da casca — pálida teu corpo branco
igual a pérola esfarelado
dentro da ostra — no caititu
com fosco brilho chora espremido
difunde cálida no tipiti
o ácido âmbar lágrimas vivas
de opala flácida de tucupi
do pardo escrínio depois no tacho
desliza trêmula dança lundus
trêmula e oca cateretês
qual uma estrela todo doirado
para o crepúsculo dança emboladas
do céu da boca de amido e luz
XIX — rondel do jambo XX — rondel da sorva

jambo tu és sorva redonda


tão rubicundo uva caboca
qual se corasses por mais que esconda
por todo mundo doçura oca
tanta vergonha pra quem prova-lo
tu tens na cara: macio espouca
talvez por isso teu oco estalo
és fruta rara no céu da boca
há no contraste o mesmo quando
da palidez leitosos, brandos
da tua polpa dás a qualquer
com a tua tez teus beijos verdes
sabor de espuma nunca te perdes
gélida bruma fruta-mulher

XXI — rondel da jaca XXII — rondel da melancia

jaca: entre as frutas a aurora surge


eis a matrona, rosada e fria
esparramada do cerne fresco
gorda sultana; da melancia
com frouxos bagos seu bojo verde
flácido aroma retém do dia
dá visgo aos lábios a sumarenta
de quem a coma melancolia;
seu jeito lembra cada semente
as contorções dela é uma nota
moles, lascivas da passarada
dos ventres nus que se condensa
das odaliscas na pauta rósea
no harém cativas da madrugada

XXIII — rondel do milho XXIV — rondel do tucumã

o barbirruivo do teu minúsculo coquinho


milho sagrado relatam lendas milenárias
nascendo ao vento brotaram sono, amor, carinho,
nasce encapado a lua e as outras luminárias;
por entre a verde onças e pássaros noturnos,
palha sorri quanto em seu bojo se escondia
com brilhos de ouro dele fugiu com ares soturnos
de ouro e rubi; enquanto o breu se derretia;
o sol seu pai tu fostes a caixa de Pandora
que o orvalho inflama das tribos bárbaras de outrora
lhe serve a cor e a cor das asas da graúna
e a terra-mãe saiu de ti como um trovão
que amor derrama para que a filha da boiúna
lhe dá sabor pudesse amar na escuridão
XXV — rondel do mamão XXVI — rondel do cupuaçu

qual Briaréu cupuaçu


no ar levantais és soberano
os hirtos braços do pomulário
pelos quintais americano
os amarelos num cofre pardo
frutos mostrais guardas com ciúmes
entre flabelos raros sabores
horizontais vivos perfumes
topo coroado urna selvagem,
(as folhos perde ubre silvestre,
o caule nu) moreno seio,
no gesto alado tanta delícia
de dança verde tua curva crosta
de deus hindu retém no meio

XXVII — rondel do figo XXVIII — rondel da cajarana

a que mistérios tens cajarana


tu, figo, aludes? gosto de fosso
teus hemisférios hirsuta estrela
dois alaúdes — tens por caroço
música e formas tua pele alterna
plástica e cor tons verde e cobre
em que transformas sabe a cisterna
o teu sabor: teu cerne pobre
teu mel que abelhas teu tronco em mágoa
vão coletar no desengano
(ruivas centelhas do mês pluvial
bailando no ar) tem veios d’água
é grato acorde em seu tutano
a quem te morde manancial

XIX — rondel do uixi-coroa XXX — rondel do murici

uixi-coroa chegado é o tempo


de áspero oval de murici
que o vento arranca que cada qual
no temporal, cuide de si,
velho uixizeiro contas douradas
que da barranca no ar trescalando
alto levantas vão pintalgando
verde carranca verdes ramadas
na ventania: que o vento clame,
tuas guedelhas que a chuva espalhe
atormentadas por tudo aí:
que no verão chega a fartura
são galharias junto à procura
esturricadas do murici
XXXI — rondel do ingá XXXII — rondel do caju

os brandos bagos como o acrobata


do ingá, no escrínio num salto alado
verde, se vestem no seu trapézio
de doce arminho, dependurado,
todos fardados preso no ramo
de alva pelúcia pelos artelhos
como os soldados vestindo trajes
do rei da Prússia aurivermelhos;
acomodados tal é o caju
como cartuchos de adstringente
de munição, flava semente
os passageiros que abre estival
do trem noturno travor e reúne:
no seu vagão sol, praia, sal

XXXIII — rondel da baunilha XXXIV — rondel do bacuri

da bruta mata gemas da mata


na aérea trilha de galas flácidas
vens em perfume pérolas ácidas
grata vanilha bagas de prata
de parda fava tens bacuri
olente filha áspero e louro
em verde berço pômulo de ouro
de alada quilha dentro de ti
pólen de prata tuas polpas belas
fúlgida poalha abrem-se e escorrem
de brilhos magos seivas sutis
que o luar refrata como as estrelas
sobre a toalha sorrindo morrem
fria dos lagos chorando ris

XXXV — rondel do fruta-pão XXXVI — rondel da pupunha

és fruta-pão prima augusta das palmeiras


pão cotidiano és tu pupunha saborosa,
que nunca faltas e a tua glande de ouro e rosa
durante o ano, é o pão das tribos sobranceiras;
para o caboclo o teu perfil, palma chorosa,
sempre és fiel desenha a tarde brasileira;
sejas comido sob tua copa, ó companheira,
com sal ou mel; te canto em verso e conto prosa;
nunca esta terra mais um crepúsculo fulgura
sofra escassez sobre teu corpo que perdura
nem há razão enquanto a tarde vai morrendo;
pois certas árvores surges na brisa da paisagem
dão sempre, em vez e perlongando esta mensagem
de fruta, pão a tua sombra vai crescendo
XXXVII — rondel do marajá XXXVIII — rondel do guaraná

diz marajá quem te descubra


teu nome, ilustre brilhar no orvalho
palma lacustre, num verde galho
donde virá? pálpebra rubra
título exótico que te abres lenta
purpúrea e ática e onde cintila
tâmara aquática negra pupila
de florão gótico que a luz aumenta
donde provém descobre a baga
a sumarenta que o sonho afaga
seiva que tem e a lenda faz
cada grainha mágica planta
dessa espinhenta do olhar que canta
áspera pinha? nos maracás

XXXIX — rondel do araticum XL — rondel da goiaba

araticum teu verde fruto


não sei por que entre a folhagem
teu nome lembra se denuncia
cateretê, pelo perfume,
teu nome é o doce sumo
de baticum de tua polpa
como lundum lembra a saliva
de batepé? de uma cabocla;
teu fruto sabe se o vento passa
a buliçosos pela folhagem
corpos suando que é da tua cor
tem vigorosos se perfumando
sons de atabaque vai murmurando
vivos, sambando canções de amor

XLI — rondel do sapoti XLII — rondel do jatobá

pardo mamilo flocos que envolvem


de cunhantã tuas sementes
que aromatizas guardam-te a polpa
o ar da manhã contra meus dentes
tua rósea polpa poeira viva
destila mel que se sustenta
poma leitosa da luz do sol
doce farnel; que te alimenta;
tuas duras folhas teu gosto é pó
verdes espelhos de corda nova
bisando o sol que desencanta
a passarada descendo em nó
te faz varanda pela garganta
para o arrebol de quem te prova
XLIII — rondel da cana XLIV — rondel do jenipapo

cana — colete qual mama fria


rolete — cana de bugra avó
danças na rua da galharia
tua pavana, tu pendes só,
dança que a tua se não tens leite
dança é geral tens o vigor
dançada ao vento do rio velho
do canavial feito licor
fincas na terra dás a cor nobre
flâmulas verdes à pele cobre
de festival do índio baré
e eu te celebro: só no sopapo
hoje é teu dia tu jenipapo
de carnaval deixas o pé

XLV — rondel da mangarataia XLVI — rondel do tamarindo

qual pé de bugre na fava parda


que nunca viu em que te escondes
botina alguma teu mel se apura
e nem calçou nas verdes frondes,
meia de seda, tua baga flava
nunca valsou retém ao sol
nem passeou gosto selvagem
pela alameda; nesse crisol
raiz de fogo a ácida polpa
ruiva mandrágora só ganharia
da lua nova se posta em verso
té diacho espirra pois seu sabor
se um trago prova se espalharia
de gengibirra pelo universo

XLVII — rondel do araçá XLVIII — rondel da castanha

redonda fruta na muda mata um som reboa


que no perfume no estralejar da galharia,
lembras o cântico rompendo a verde rede atroa
de Salomão, num ribombar de artilharia;
o rei-poeta o ouriço-obus, granada agreste,
comparar-te-ia bólido opaco, estrela morta,
à boca fresca uiva ao tombar no chão silvestre
de Sulamita e bate bruto nesta porta;
tua polpa tem a selva abafa a rude guerra
a cor dos lábios que sob a densa copa encerra
da celebrada, na dura terra firme, e enfim
tuas sementes o homem encontrando a bala fria
são como os dentes de suas cápsulas um dia
da bem-amada liberta presas de marfim
XLIX — rondel do abiu L — rondel da bacaba

teta amorosa nos alagados


de adolescente: dos igapós
poma doirada, abres as palmas
negra semente; de roxos nós,
brando é teu leite de cujo vinho
que, adstringente, da cor do rio
refresca as tardes nos alguidares
da nossa gente; corre macio;
tua polpa cola pela alvorada
ao lábio urgente teus grãos trescalam
que oscula o bico doce bacaba,
duro e pungente nobre palmeira
do airoso fruto onde se acaba
suaveardente o Sol de Feira
ASTRID CABRAL (1936)

Astrid Cabral Félix de Sousa nasceu em Manaus, no dia 25 de setembro de 1936.


Participou da movimentação cultural que se seguiu à fundação do Clube da Madrugada.
Professora da Universidade de Brasília, foi oficial da chancelaria do Ministério das Relações
Exteriores. Sua estreia literária aconteceu em 1963, com a publicação de seu único livro de
contos: Alameda. Obra poética: Ponto de cruz (Rio de Janeiro, 1979); Torna-viagem
(Recife,1981); Lição de Alice (Rio de Janeiro, 1986); Visgo da terra (Manaus, 1986); Rês
desgarrada (Brasília, 1994); De déu em déu, reunião dos livros anteriores (Rio de Janeiro,
1998); Intramuros (Curitiba, 1998), Rasos d´água (Manaus, 2003) Jaula, antologia (Rio de
Janeiro, 2006), Ante-sala (Rio de Janeiro, 2007).

SELO D’ÁGUA

Como a retornar de um reino


de sombras, saí do rio
peixe interino enrolada
de limo e escamas d’água.
Mais que a pele, mais que os pelos
a alma de medo molhada!
O mergulho na corrente
foi-me foice, faca, fio
líquida navalha rente
ao pescoço, pulso fugidio.

Sobrou-me o sombrio segredo


selo da morte na carne.
Oh garra gume de gelo!

(Visgo da terra)
GEOGRAFIA PROVINCIANA

Manaus um ponto perdido


no mapa. Ali, desgarrada
entre paredes de verde.
Mas iam e vinham navios
trazendo franjas do mundo.
Europa e Península Ibérica
surgiam das próprias pedras
das avenidas e esquinas:

a Itália na taberna
de seu Vicenzo Arenaro.
Também no livro de Dante
que o sapateiro traduzia
rodeado de crianças
a mostrar-lhes céus e infernos
toda a celeste geografia.

Seu Genaro, já grisalho


fundava o reino de Espanha
atrás de barris de vinho
tinas mantas de banha
vinagres azeites doces
réstias de alho e cebola.

Seu Carvalho, o português


vendia bolos e broas
à vontade do freguês
mais rala-rala e refrescos
de guaraná e groselha.

Síria China e Argentina


vinham na gorda maleta
do turco mais seus bigodes:
damascos crepes Chambleys.

A França era ali na “Madame


Marie” e no “Aux Cent Mille Paletots”
a moda do dernier cri.

E passavam barbadianas
sob chapelões de palha
ao sol dos dias em brasa.
E um fugitivo das Guianas
testemunhava a Ilha do Diabo!

O mundo estava em Manaus


Manaus estava no mundo.

(Visgo da terra)
Narrativas da Geração Madrugada

DOIS CONTOS DE ASTRID CABRAL

A AVENTURA DOS CRÓTONS

Cresciam os crótons sob o sol cru, vermelhos como cristais. Maio era
vindouro, prometendo amenidades e um céu varrido. Por enquanto o mormaço
invadia os muros e desafiava as sombras, densas sob a copa das altas mangueiras,
mas não de arbustos como os crótons. Deliciavam-se, porém, com o calor e a luz,
tão rosados e brilhantes os tornava o sol, as folhas recortadas em cetim de fortes
tons.
Longe, na baixada, espalhava-se o povoado, onde poucas eram as árvores e
muitas as casas. Numerosos, difusos, os caminhos, as trilhas cobertas de mato que
conduziam até lá. Mas bem sabiam os crótons que não era dado palmilhá-los, e o
dom que tinham era o da contemplação íntima que se fluía morosamente à
distância. Assim quedavam-se frustrados e serenos por tardes intermináveis,
quando não tomados de súbita inquietude, debatiam-se em acenos langues. Para
que se agitassem, bastava que o vento lhes trouxesse recados da várzea, outros
cheiros e rumores. Sonhavam então romarias pela íngreme perambeira, seus
trechos entrançados de urtigas ferozes, claros de terra fofa e barrenta. A vertigem
da descida compensaria o cansaço inevitável, os agulhões das pedras e dos
gravetos. Imaginavam até gentilezas especialíssimas. As urtigas encolheriam as
nocivas mãos. Tampouco seriam molestados pelo gruda-gruda dos carrapichos.
Quem sabe a galharia abriria alas para a comitiva passar? Ou algum calango ocioso
os guiaria ao acaso sem suspeitar disso?
Talvez levassem os crótons meninos, os pequenos de dois palmos. Seria
impossível deixá-los sem a proteção de suas sombras adultas. E anteviam-se,
ladeira abaixo em visita à cidade, onde havia minúsculos jardins de crótons anãos.
Estes tinham à volta um cercado de tijolos, disfarçado sob o limo, e em canteiros
estreitos de terra escassa, pareciam prisioneiros. Ah humilhação, pensavam os
crótons altivos, de porte desempenado e vigorosos tendões, gerados e nutridos no
chão livre dos campos. Ali se expandiam desenfreados, sem a coleira dos canteiros
e o suplício das podas. Valeria descer àquela terra exígua onde os homens haviam
usurpado o chão que lhes pertencia por direito de herança e mora? Não seriam os
jardins pequenos cativeiros em que as plantas medravam a susto, contidas pelo
medo de encobrir uma janela, invadir a casa galgando o telhado, encarapitando-se
pelo corrimão de alguma escadaria? A audácia no caso era pouco eficaz, pois toda
luta importava em derrota. A tenacidade do jardineiro zelava pela dócil submissão
de todos: que a buganvília não se alçasse além da janela e tão somente lhe
beirasse o parapeito, que a trepadeira de maracujá ficasse onde estava, sem
incursões pelo terreno vizinho, que os crótons se contentassem com um metro de
altura e não se vergassem as samambaias sobre as lajes da passagem. Fora dessa
disciplina, era o que observavam a cavaleiro da baixada, apenas as casas
abandonadas. Nelas reconstruíam as plantas o império subjugado, o verde à brida
solta com salpicos e manchas de todas as cores. E adeus geometria torta que as
espartilhava, falsa ordem dos jardins traçados em prévios mapas. Se a terra fosse
inerte como um papel aberto, e a vegetação não passasse de riscos de lápis?
Projetavam os crótons, descendo à várzea, hospedar-se na casa vazia da
esquina fronteira, exatamente aquela que as heras haviam pintado de verde. Ali
ficariam à vontade, como na sem cerimônia em que viviam, a natureza tudo
provendo, o humo virgem, a chuva farta, o sol a descoberto. O quintal, vasto, os
receberia sem dizer: – “Lugar de plantas decorativas é no jardim”. Ou vamos lá: –
“Que fruta dão vocês”? Pois não tinham sido os homens a dividir a terra de modo
arbitrário, aplicando sua lógica a todos os seres?
A casa abandonada chamava por eles, assim entendiam as borboletas que
vinham de lá, bailando pelas distâncias intermédias. Tê-las sobre as folhas era a
alegria incompleta de não segui-las na viagem de regresso. A ânsia lhes sacudia a
alma, não os membros, raízes que se deitavam com o peso de âncoras.
Na ventania conversavam os crótons alvoroçados sua linguagem de mímicas
sutis. Ah se o vento os pusesse na garupa! Era tão perto e contudo tão longe! Ah,
ali mesmo se finariam, sem descer à várzea...
Tanto gemeram, tantos desabafos lançaram que a natureza provedora
escancarou os cântaros armazenados atrás de balcões de nuvens. A água,
cavoucando o chão dias seguidos, desenterrou-lhes as raízes mais fundas,
libertando-os para o deslize na correnteza da enxurrada. Escorregaram então
barranco abaixo, tocados por águas turvas, às cambalhotas e encalhos na lama
visguenta. Rasgavam-se nas pedras, enganchavam-se nas ramagens secas do
declive, mas desciam e o plano logo se espraiou a seus pés. Um pouco mais, a
correr com o impulso emprestado daquele rio efêmero, e ei-los à casa da esquina.
Oh quão imensa e diferente lhes aparecia agora, diverso o ângulo em que jaziam,
deitados a seu portão, a fadiga amarrotando-lhes o corpo castigado. O portão
erguia-se alto, firme, pesado. Era de ferro liso, sem requintes, sem rendados. E
bastava ele, imóvel em suas dobradiças de ferrugem, para proibir-lhes o acesso no
paraíso a que se endereçavam num arroubo de vida.
Ao amainar da chuva e ressurgir do sol, o amplo horizonte acenava-lhes em
despedida sobre o morro.

(Alameda)

UM GRÃO DE FEIJÃO E SUA HISTÓRIA

Por engano foi cair ali. Salvo da panela prestes a levantar fervura. Xingou
seus vizinhos, os grãos brocados, de espécie degenerada, rebotalho de safra, até
que se calou de repente. Afinal, devia-lhes a vida. Por um triz não estava no
torvelinho da água quente, confundido entre mil grãos, passando de raspão pelos
tomates inteiros que eram boias escorregadias naquele marzinho em revolta.
A terra, porém, que delícia, estava recém-chovida. Posso mesmo ver umas
sobrinhas de chuva enganchadas nas folhas da chicória, reparou de coração
contente. Como está brilhante este capim, comentou sozinho, desde que os grãos
estragados estavam mortos. Para eles, tinha certeza, não fazia diferença estarem
ali no chão amigo do quintal, ancorados na terra molhada e fofa. O suplício da água
borbulhando, cantando de calor, não os atingiria.
Vou crescer sem a companhia de ninguém, queixava-se, e era o seu modo
de partilhar com os companheiros mortos. Em seguida num esforço em que se
empenhava todo pôs-se a olhar pelo quintal.
Estava quase à porta da cozinha, o que o deixou assustadiço e medroso.
Não, não havia perigo, para isso não fosse tão pequeno. Se ao menos tivesse a
alegria sarapintada dos mulungus. Mas sua cor não só era discreta como
confundível. A aparência séria, seu broquel.
Então pôde ver de ânimo repousado, a goiabeira coroada de florinhas e os
troncos de outras árvores muito altas de que não via a copa. Por que cresceriam
tanto? Confusamente percebia que tais caules monstruosos participavam da
grandeza dos trovões. Vá ver que a fronde dessas árvores mergulha no céu. Por
isso não as vejo.
Divertia-se descobrindo o quintal. Tanto tempo confinara-se a sacas escuras
que perdera a naturalidade de ver-se ao ar livre. Palavra que até me ia esquecendo
do dia. Tão morninho e limpo.
Enquanto se deleitava ao sol, recuperando um passado interrompido – a
colheita privara-o de luz, céu, chuva e chão – calmamente se dilatava, tufando ao
bem-estar de quem se reencontra após descaminhos. Na terra sim, estava a vida.
Agora, reintegrava-se. Restabelecia o elo temporariamente partido, devolvendo à
terra o embrião da estirpe. Cismava. A sua vida, se preservada, era toda uma
descendência pela frente. Zelava por esta como se fosse dado alcançá-la em
realidade, acometido de amor pelo futuro.
Embevecido quedava-se a olhar, a olhar. Enchia-se de ternura pelas flores
da goiabeira. Antes que as goiabas apontassem já seria pezinho crescido,
armazenando outros grãos.
Aos poucos vai botando a pequenina raiz de fora, a raiz que ganhando força
arrasta-o rumo à luz para que surja dividido, as bandas a despirem roupa marrom.
Nem bem se afundou no chão, com o próprio peso cavara seu leito na terra
maleável, e já flutua à flor da terra.
Estou só e a vida vai ser difícil. Nenhum feijão grandinho e experiente para
me aconselhar. “Assim é melhor. Ora, não se faça de tolo. Penda para a direita.
Preste atenção ao sol. Cuidado com as formigas”. Mas como já sabia o que lhe
diriam?
Havia sobretudo o gostinho bom de enfrentar o mundo sem um exemplo
sequer a atravancar-lhe a expansão. Crescer como quem respira. Retesar as folhas
com a vinda do sol, relaxá-las à noite. Docemente como a natureza lhe ditava.
Bem-aventurada ignorância do porquê. A tradição familiar, cumpriria sem cultuá-la,
pois, não se enganava, era o culto consciente que oprimia.
Não se via, mas sentia-se crescer. Os botões de folhas desembrulhavam-se
gêmeos pelo caule fino e sinuoso que girava mansamente desenhando círculos no
ar. Os gestos redondos desfaziam-se no espaço vazio. A translação da haste
tentava embalde alterar a amplidão indiferente. Quisera nela gravar-se mas
reconhecia-a indomável, de uma fluidez que não se apreendia. Chegava à
conclusão de que tinha o nada a rondá-lo – esse ar onde tudo deslizava e que
escapava dos corpos não se deixando nunca possuir.
No momento discutia o problema do apoio. Em quem se agarrar? Seria
forçado a deitar rama quando não mais se sustivesse de pé. Cascavilhava a
vizinhança atrás de um encosto e botava olho grande na “jiboia” que se enroscava
em uma mangueira.
Oh, bem que sabia abraçar e no entanto sua laçada morria no espaço. Um
dia caminho até a cerca, abraço-a, e dou início a escalada. Com o tempo vou me
espichando, quem sabe não tomarei conta da cerca toda? Está nuinha e nova à
minha espera. Me chama com seu cheiro bom de resina.
Na cerca, relutava, ficarei mais exposto. Se não me quiserem lá, arrancam-
me como qualquer mato reles. Felizmente a essa altura já terei a dignidade da vida
madura e firme para me opor, impondo minha presença. Nada do franzino
projetinho de vida de que não passo por enquanto (nutria a autopiedade,
humilhado em meio ao quintal esplendente de viço, quintal cujas árvores frondosas
afrontavam com seus troncos roliços, sua sombra compacta, caindo em manto sem
rasgões).
Se o arrancassem apesar de tudo? “Ainda mais essa! Com tantos quilos de
feijão debulhado e enlatado na despensa. Que tolice a desse grão! Querer fazer
roça no quintal”.
E se o condenassem a adubo verde?
Às vezes analisava o poder que tinha de prever coisas e fatos. Era como se
sua vida fosse repetição e nunca morresse mas se encarnasse em tempos
sucessivos, carregando consigo a experiência da espécie. Dentro de si, sentia, havia
algo que varava o tempo atravessando intacto as contingências da morte – o que
lhe segredava o jeito de ser do mundo, suas emboscadas e gozos.
Assim não se surpreendeu no momento em que um jato d’água fervendo (a
empregada tinha o mau hábito de atirar as coisas pela janela) veio colhê-lo
enquanto com muito carinho tecia seu futuro.

(Ibidem)
BENJAMIN SANCHES (1915-1978)

Nasceu em Manaus, no dia 21 de abril de 1915, o poeta e contista Benjamin Sanches


de Oliveira. Faleceu na mesma cidade no ano de 1978. Obra de ficção: o outro e outros
contos, 1963. É de se registrar que, na última obra, o autor escreveu exclusivamente com
minúsculas (inclusive o título) e alinhou os parágrafos pela direita. Respeitamos sua vontade,
procedendo da mesma forma.

o tartaruga
depois de entregar-se por muito tempo à água, voltou a terra onde com a
matemática dos olhos procurava descobrir os lugares onde os tracajás haviam enterrado os
seus ovos e, isto, os homens da ciência sabiam menos que ele. a prática fizera-o mestre no
buscar os ninhos camuflados no igual do branco da areia.

a praia, descendo da densa mata devoluta, serpenteava no rumo do rio onde um enorme
jacaré, num peso de montanha, dilatou o vazio para dar duas rabanadas, e, em voo
submerso atingiu o molhado da margem e ficou olhando-o com um olhar famélico. era um
inimigo que não ficara de vir, embora ter, ele, admitido, sempre, a possibilidade daquela
indesejável presença. via o espírito da fome rondando as suas carnes. sentiu-se quase
prisioneiro. na posição em que ficara, a fera, dominava, realmente, a única saída. o seu
casco, que havia deixado na beira, estava a dois passos do anfíbio, cujas patas velozes
arranhavam o chão num chi-chi manhoso, preparando-se para a furiosa investida.

as suas pernas que nunca dançaram de alegria, bailavam, agora, dentro da calça no
assombro de ser estraçalhado pelo chocalhar daquelas mandíbulas maiores que o seu corpo
descascado pelo quente da tarde. ele já havia vivido toda a idade do crescimento e não
conseguira ir além dos cinco palmos. parecia que os ventos sopraram, sempre, a sua vida de
cima para baixo. tinha isto, como uma pobreza envergonhada, da sua condição de homem. a
natureza havia-o prejudicado na distribuição dos tamanhos.

quando conseguiu sair daquelas circunvoluções do susto e voltar ao estado de medo


consciente, não quis dar tudo como perdido, embora tivesse que passar por um fininho tubo
da vida. segurou-se a ele como quem agarrasse um objeto que ia perder para sempre, e, no
esforço de renascer daquela quase morte intempestiva, enfiou a cabeça em desabalada
carreira, internando-se no grosso da mata. uma chuva, cujo turbilhão de água mais parecia
ser de cimento e ferro, desabava retorcida com a noite, tornando-a intensamente escura. os
filtros da sua carne começaram, lentamente, a dar passagem ao frio a caminho dos seus
ossos. numa noite clara, poderia varar o longe e alcançar a vila em três horas de regular
caminhada, mas, o escuro tomara altura e não deixava à amostra, nem um astro que o
orientasse. para caminhar seria imprescindível algum rastro de luz desembocando das
trevas.

astro
rastro
vasto

o pio dos pássaros e o barulhar da chuva fundiam-se com os esturros das feras e
num só grito, cortava o vasto verde, que não se apagava da sua memória.

verde vasto verde


dia verde
noite verde
grito verde
pio verde
verdeverdeverde
sentiu necessidade de resguardar-se e tateando com os pés na terra encharcada
caminhou alguns passos entre a tiririca que lhe cortava a pele, até conseguir abraçar-se à
perna de uma árvore e subiu até a primeira forquilha. ali, poderia passar a noite,
incomodamente, é verdade, mas suspenso do perigo que rastejava no escuro. as suas carnes
mergulhadas no grosso da chuva, viviam minutos de horror, em meio àquela combinação de
sons perversos e imprevistos, que iam despojando-o, aos poucos, de sua coragem. de
quando em quando abandonava a cabeça num cochilo e acordava descendo no espanto.
precavendo-se de uma queda desastrada, desafivelou o cinturão e com ele, procurou
envolver barriga e forquilha. não conseguiu nesta, subiu para outra mais fina e amarrou-se.

aforquilhado dentro do molhado da noite, ouvindo, medrosamente, os berros dos


afiados dentes e o cochichar das raízes, não obstante, acontecia de longe em longe, lembrar-
se do seu casco, na preocupação que a água da chuva empurrasse praia afora, levando a
farinha e a rapadura que na manhã próxima, roeriam a fome que já roía o seu estômago.

o tempo espichando-se demorava a soltar a sua condição de noite e, ele, esperando


resignadamente que a manhã viesse libertá-lo, rosnou um sono de chumbo e sonhou que
passeava elegantemente pela praça da igreja, onde aos domingos à tarde, as mocinhas mais
gostosas da vila desfilavam exibindo apuro e beleza. embalando-se na miragem, via que
todas o olhavam com olhos gulosos, e uma delas, não suportando refrear a gulodice,
aproximou-se e beija-lhe os lábios com seriedade e paixão. ele não sabia o porquê e preferiu
não fazer perguntas. era um novo amanhecer no seu mundo. a sua alegria refletia-se nas
paredes e até no chão enxuto. de mãos dadas, saíram caminhando sob as vistas de centenas
de pupilas espantadas. espantadas porque todos sabiam que jurara nunca amar, quando na
seresta para a primeira conquista, deram-lhe um banho de bacio.

agora, estava suadinho de fé, e procurava com os dedos arrumar os cabelos, quando
de súbito, num estrondo metálico que varreu o ar, o apelido, impiedosamente abalroou o seu
ouvido: – tartarUUUUga! – todo o ódio do mundo apareceu na sua cara. naquele momento
odiou até as rosas. sentiu vontade de fazer mil coisas de uma vez. queria morder. queria
rasgar. queria matar. sim. sentiu desejo quase irresistível de matar. a sua alma ficou, por
muito tempo, galopando na mais brutal raiva do mundo. pensou que seria melhor
desmanchar com a vida, o único meio para se livrar daquela alcunha. não mais poderia
engolir aquele epíteto humorístico que o havia enchido até por fora da roupa. todos,
desapiedadamente, o chamavam de tartaruga. nunca presumira que o seu nome de cartório
desaparecesse tão completamente. nunca mais ouvira pronunciá-lo. todos o chamavam de
tartaruga. diziam-lhe até com os olhos: tartaruga, somente tartaruga.

era o ridículo do apelido, que o obrigava a embarcar naquele pequeno casco de


itaúba preta e isolar-se o dia todo, depois de remar para as praias distantes e desertas, cuja
beleza mansa e perigosa ainda não aprendera a dominar.

agora, mais enfurecido que nunca, tomou posição para desaparecer de uma vez por
todas, quando sentiu o braço da moça doce e gentil cingir-lhe a barriga, não o deixando se
afastar e sussurrando o seu nome, com os lábios quentes roçando a sua orelha – jorgitinho.
foi assim que a ouviu chamar, amorosamente, o diminutivo do seu nome. estremeceu dentro
da cadeia do abraço e tudo se fez claro quando acordou preso à forquilha. mas, mesmo
assim, sentiu-se feliz por se encontrar entre feras e bem longe dos humanos. humanos? não!
jorgito nunca os considerou como tais.

(o outro e outros contos)


FRANCISCO VASCONCELOS (1933)
Francisco Marques de Vasconcelos Filho nasceu em Coari, Amazonas, no dia 14 de
abril de 1933. Em Manaus, formou-se em Direito. Pertence à União Brasileira de Escritores
(AM) e ao Clube da Madrugada, do qual foi presidente. Atualmente, como funcionário
aposentado do Banco do Brasil, reside em Brasília. Obras de ficção: O Palhaço e a rosa,
contos (Manaus, 1963); Regime das águas, novela (Manaus, 1985).

O AJUDANTE DE CAMINHÃO
Ambos tinham seus sonhos na vida: negro Macário, chofer de caminhão da fábrica de
bebidas, suspirava pela vida de bordo, correr mundo, aventurar; Estêvão, seu ajudante, só
queria uma coisa: ser chofer. Para ele, nada melhor do que chegar um dia a ser chofer de
caminhão.
Trabalhava na firma há mais de seis anos, e embora conhecesse o manejo do volante,
nunca lhe fora dada uma oportunidade. Mas não lhe faltavam esperanças. A Fábrica estava
progredindo e os patrões, sem dúvida, seriam forçados, pela vontade de ganhar mais, a
adquirir novos carros. Por isso não perdia por esperar. Um dia chegaria a sua vez. Por
enquanto, porém, era apenas ajudante. Seu lugar, no carro, era em cima, misturado com as
caixas de garrafas, fizesse sol ou chovesse. Aqui e acolá uma gripe ameaçava derrubá-lo,
mas o caboclo não caía. Não podia adoecer. Um dia sentiu umas pontadas no peito e uma dor
nas costas. Teve medo. Seria o pulmão? Contou para o amigo o que vinha sentindo. Ora!
Para Macário aquilo era bobagem:
– Toma uma cana, mano. Isso passa!
Quantas vezes negro Macário não se sentira assim? E haveria melhor remédio do que
cana com limão? Quando a bicha era forte e vinha com febre, misturava a branca com
pimenta-do-reino e era uma vez negro mole...
– Paga uma dose?
– Vamos.
No boteco mais próximo Estêvão pediu duas doses. Pilou alguns caroços de pimenta,
balançou o copo e fez careta:
– Deve ser um purgante!...
Negro Macário sorriu. Quem lhe dera que todo purgante fosse como aquele...
Estêvão, que não era acostumado a beber, sentiu uma ligeira sensação de melhora.
Agora não mais sentia frio.
– Que remédio batata, nego!
– Quer repetir?
– Não! Chega.
O efeito do remédio passou em pouco tempo. A dor no peito continuava. O frio
também. Cansado, em casa, nem sequer para um banho tinha disposição. Doía-lhe o corpo e
sentia febre. Foi à cozinha, olhou as panelas vazias e mandou a mulher comprar pão fiado na
taberna da esquina. Mandou também que jantasse. Ele não queria. Deitou-se e ficou
pensando. Se caísse de verdade? Na certa que morreria de fome. Se trabalhando nada chega,
que não seria no fundo da rede? Lembrou-se de Epitácio, um colega de serviço. O desgraçado
já estava ficando velho na Fábrica. Que empregadão! Valia ouro. Mas um dia adoeceu e
Instituto com ele. Dois terços do ordenado. Ninharia. Não chegava nem para o remédio. Pra
nada, mesmo. Coitado do Epitácio. A mulher, lavando roupa... Os filhos...
A volta da mulher interrompeu-lhe o pensamento.
– Isso foi aquela chuva!
Estêvão não disse nada. Cobriu-se todo e tentou fechar os olhos. Estava inquieto. Não
conseguia dormir. A cabeça doía e as pálpebras pareciam feitas de chumbo.
– Chi, nego, a febre tá alta!...
– Vai jantar, vai! Deixa ver se sossego...
A mulher saiu e foi jantar café com pão. Pão sem manteiga. O filho mais velho, de
três anos, acompanhou-a. O outro, de colo, já dormia.
Estêvão acordou cedo. O corpo estava como se tivesse apanhado uma sova. Doía-lhe
tudo. A dor no peito, de minuto a minuto, tentava empatar-lhe a respiração. Se pudesse não
iria trabalhar. Longe, porém, de pensar em tal coisa. Faltasse e veria o resultado. Mesmo,
precisava de estar sempre nas graças do patrão. Um dia deixaria de ser ajudante e seria
chofer. Haveria de melhorar.
E quando ia saindo a mulher perguntou:
– Ei! Que se come hoje?
Estêvão coçou a cabeça e respondeu:
– Vai buscar uma lata de carne e faz com arroz!...
Saiu pensando na conta da taberna que lhe absorvia o ordenado. Nada lhe sobrava.
Nem para comprar um vestido para a mulher. E o pior é que estava barriguda novamente.
Outro filho: o terceiro. Mais uma boca...
Chegando à Fábrica já encontrou Macário sentado na boleia. A vida de chofer é mais
calma. Há quanto tempo carrega caixas? Está cansado daquele serviço. Mas como ainda não
é chofer, começa o dia com cinquenta quilos nos ombros. A dor no peito ameaça cercar-lhe o
tórax. Aqui e acolá uma pontada nas costas. Ele, porém, não pára. O patrão está perto
conversando com uma loira que se desmancha em requebros gostosos. À noite, por certo, ela
lhe tomará algum dinheiro. Mas Estêvão não sabe que o dinheiro que a loira vai levar deveria
ser dele e de seus companheiros. E por que o patrão está perto, esforça-se em mostrar que é
bom empregado. Que é ativo. Que mesmo doente, com dor nas costas, trabalha. Mas o
patrão não lhe olha. Nem sabe se ele existe. E Estêvão trabalha para a loira que vai voltar de
noite...
Negro Macário, mostrando os dentes num sorriso aberto, comenta:
– Esse nosso patrão é um galo!
– Elas querem é a verba dele!...
– E ele tem pra dar, e agora?!...

O caminhão corria veloz. O dia era desses escuros, com nuvens que ameaçam chuva.
Um vento frio soprava forte e crescia com a velocidade do carro. Estêvão sentou-se sobre
uma caixa e procurou abrigar-se por trás da capota. Seu pensamento passeava toda a
infância. Toda a turma jogando bola na baixa da dona Zefa. Carlos também está e nem
parece aquele que anda cheio de pose, só porque é bem empregado. O “Branco”, no goal,
defende bem. E a turma é a maior. “Hip, urra! Hip, urra!...”
Uma tossida forte e já não está no campo da pelada. Passeia com Mariazinha na
praça da Igreja. Mariazinha é bonita e é sua primeira namorada. Quando crescerem, e
quando ele ganhar muito dinheiro, irão casar-se. Mas de repente uma lágrima nos olhos de
Mariazinha. E ele, puxando o lenço do bolso, acenando-lhe um adeus. Não é o último adeus.
Não! Um dia voltará para casar com ela. Ninguém, além de Mariazinha, chora na sua partida.
Só ela. Ele também chora. É horrível deixá-la...
Macário freia o carro e Estêvão assusta-se. Levanta-se como que de um sonho.
– Quantas caixas, seu Lourenço?
– Que é isso, rapaz, tá chorando?
– Não!... É essa gripe...
E foi ali a primeira entrega. Estêvão tomou uma dose do remédio e Macário quebrou o
jejum com uma dose dupla, tirando o gosto com uma pitada de sal. O caminhão toma marcha
e segue. Outra parada e os dois amigos conversam. Macário dá-lhe a boa nova: outro
caminhão para a Fábrica. E mais: seria ele, Estêvão, o indicado para dirigi-lo. Era o mais
velho e, sobretudo, senhor do serviço. Estêvão fica radiante e, como na primeira vez que
tomara cachaça com pimenta, sente o sangue subir-lhe à cabeça, circular mais forte e passar
o frio. Era a emoção de pensar em ser chofer, seu grande anseio.
Passou aquele dia e muitos outros dias. Na casa de Estêvão o quadro é o mesmo. Os
dois filhos, e a mulher, cada vez mais buchuda. A febre agora o persegue diariamente. A dor
no peito não o deixou. Mas ele, como sempre, trabalha. O carro novo chegaria em breve e ele
seria seu chofer. Por isso chega à Fábrica antes da hora. As caixas de bebidas estão
separadas e prontas para serem levadas ao carro. Estêvão leva a primeira e a segunda. Na
terceira, um gosto de sangue lhe sobe à boca. Tem vontade de tossir e uma golfada vermelha
espirra longe. Ele, porém, não pára. Tenta reagir e quer correr com a caixa sobre os ombros.
O sangue, mais forte, sufoca-o. Estêvão não resiste e cai na calçada, molhado por um suor
frio. Os companheiros o cercam e Macário, tomando-o nos braços, leva-o para o carro,
rumando em direção ao bairro onde mora o amigo.
Quando o patrão chegou e lhe contaram o ocorrido, falou em Instituto e mandou que
jogassem criolina na calçada...

Uns dez meses passaram daquele dia. Mas tudo mudara. Estêvão, como previra, fora
entregue ao IAPI. Mas a ele não acontecera o mesmo que ao seu amigo Epitácio: conseguira
curar-se. Está bom, trabalhando, e agora é chofer. Sua vida nem parece aquela do tempo em
que carregava caixas de bebidas. A casa onde mora não é a mesma de outrora. É bonita e
grande. A mulher anda bem vestida. Os filhos, também. Ele reconhece que deve tudo a
Macário. Por isso vão ser compadres: negro Macário vai ser padrinho do caçula. É o primeiro
batizado alegre que vê em casa. Até parece com a festa de aniversário da filha do patrão. Há
champanha e muito doce. Mas nem Estêvão nem o compadre bebem champanha. Festejam
diferente: bebem cachaça com limão e tiram o gosto com pitadas de sal. E não é em casa, na
casa nova e bonita. É no boteco de seu Lourenço...
– Quantas caixas, seu Lourenço?
– Que é isso, rapaz, tá chorando?
Macário relembra o tempo em que trabalhavam juntos. “Cabra chorão!...” Estêvão ri.
Nunca foi tão feliz na vida. Para a festa do batizado do caçula convidara todos os amigos de
outros tempos. Até a turma das velhas peladas na baixa da dona Zefa está com ele. E
Estêvão pensa até que ainda é o menino de calças curtas que chutava bola e namorava
Mariazinha. Só ela, Mariazinha, não está ali. Por quê? Faz tempo que não a vê. Desde o dia
em que lhe acenou um adeus, prometendo voltar. Ele seria mais feliz se a visse... De
qualquer modo, aquele dia é o mais completo de sua vida. E tudo porque conseguiu ser
chofer. O caçula já foi batizado e quando crescer vai ser gente. Vai ser mais do que ele.
Estudará e será gente. Os outros também estudarão. O padre, em casa, fala uma língua
estranha que ninguém entende. Os olhos do padre crescem e parecem encher a casa.
Estêvão está tonto de tanto beber cachaça com limão. Mas se sente alegre porque tem a casa
cheia de gente. Toda a vizinhança está presente. Negro Macário está todo de branco. Até o
taberneiro da esquina está ali, olhando com olhos de pergunta. E parece querer perguntar
alguma coisa. A conta? Ora! Não é mais problema. Nunca mais atrasará o pagamento...
Nunca mais...
Um forte acesso de tosse arranca do peito de Estêvão uma golfada de sangue. Outra
golfada e ele desperta moribundo nos braços de Macário. Na verdade, muita gente está em
sua casa. E todos o cercam. O padre está mas não é dia de batizado. O filho caçula há muito
se batizara. O padre reza numa língua estranha que ninguém entende. E seus olhos crescem
e enchem toda a casa. A mulher, chora. Os filhos também choram. Até negro Macário sente
vontade de chorar. Estêvão está tonto... Sua cabeça pende e um fio de sangue mancha a
roupa branca do amigo, do melhor amigo.
Lá na Fábrica o trabalho não parou. Outro ajudante de caminhão está no lugar de
Estêvão...

(O Palhaço e a rosa)
CARLOS GOMES (1936)

Carlos Gomes, funcionário aposentado do Banco do Brasil, nasceu em Manaus em 15


de julho de 1936. Formado em Direito, foi, entretanto, durante certo período, professor de
Língua Portuguesa na Universidade do Amazonas. Pertence ao Clube da Madrugada e à União
Brasileira de Escritores do Amazonas. Publicou um único livro de contos: Mundo mundo vasto
mundo (Manaus, 1966). Em 1996, pela Editora da Universidade do Amazonas, saiu uma
segunda edição, a qual foi acrescida de duas novas histórias.

ROSA DE CARNE
A rosa de carne doía na mão do menino. As pétalas apodrecidas efervesciam, se lhe
deitassem hipoclorina. O antissético a despojava de suas cores, ela ficava branca, branca,
como se fosse uma pobre rosa coberta da poeira dos caminhos, mas continuava a danada
doendo na mão do menino.
O cheiro das pétalas não sabia bem. Havia que removê-las, para nascerem outras
com odor de carne sadia. Rosa de carne, pétalas humanas, vermelho-vivo umas, amarelas
outras, apodrecendo a mão do menino.
Ele chorava quando iam tratá-la. A mãe gemia não chores, meu filho. Mas, como não
chorar se mexiam na rosa de carne? Éter primeiro, a rosa esfriava, esfriava, nem parecia de
carne. Depois, a hipoclorina a expungia de sua fetidez. E o estilete removia suas pétalas
amarelecidas, brotavam outras vermelho-vivo em lugar daquelas. Toda a corola, então,
lembrava a rosa primitiva, do tamanho de uma moeda de trezentos réis.
Coitadinho do meu filho, dizia a mãe, mas era preciso que a rosa voltasse ao botão
de onde desabrochara e deste ao nada, deixando embora na mão do menino o estigma de
sua passagem.
O menino se lastimava, a mãe prometia-lhe muitas balas de cupuaçu, era pior
porque ele estava enjoado daquela guloseima, que de resto não lhe trazia boas recordações.
Paciência, meu filho, que paciência que nada, não mexessem na rosa, é o jeito meu filho,
deixe mamãe, eu quero é morrer, aquele teu pai é malvado, não estava vendo que tu és
uma criança sem grande compreensão das coisas, também que arte a tua, pra que foste
fazer aquilo, não sabias que somos uma família pobre, com a graça de Deus, mas honrada?
Família pobre com a graça de Deus, mas honrada. Eram-no, realmente. Tinham
vindo de um interior distante, os trastes alienaram lá mesmo, para custearem os primeiros
meses na cidade. O chefe esperava conseguir emprego, não conseguiu. Viviam de vender
balas de cupuaçu, o marido às vezes pegava biscates, a mulher também lavava roupa pra
fora. O menino ajudava na pequena indústria doméstica, ele já sabia muito bem quando a
pasta estava em ponto de bala, mas enquanto não, reparava o tacho que queimava sobre o
fogão de barro comedor de lenha verde. Depois vestia as balas, quase sempre mil, de papel
vegetal. E tudo pronto, ainda era ele que saía para distribuí-las pela freguesia de subúrbio, a
cesta pesando nos ombros magrinhos, pesando, pesando, o menino arriava onde quer que
encontrasse pareceiros para jogar bolinha com caroço de tucumã, ele era temido na
pontaria. Pelada antigamente ele também jogava em serviço, mas teve de deixar, desde
uma surra que lhe aplicou a mãe, por ter voltado a casa rasgado, sujo e suado, fedendo a
moleque. Então ele não tinha pena do sacrifício da mãe? Era pouca a roupa que ela molhava,
batia, esfregava, ensaboava e punha a corar todo santo dia, era pouca, ele achava, pra
voltar naquelas condições? Vida desgraçada aquela, viver lavando os fundos dos outros! E
ainda por cima sem meio cento de balas, ele voltava. Não via que eram pobres, embora com
a graça de Deus, não vês, diabo? não vês, diabo? Arre, assim não tem cristão que aguente!
Agora, a rosa de carne doendo em sua mão, o menino havia sido dispensado de
certos serviços. Não de reparar o tacho, que ninguém como ele tinha a intuição do ponto de
bala da pasta, nem mesmo a mãe, que lhe transmitira aquela simplória ciência. O pai achava
ruim o menino não poder vestir as balas nem distribuí-las, achava, mas não se arrependia,
isso não. Fizera seu dever, queria lá esperança de ladrão em casa, ele homem pobre, com a
graça de Deus, mas honrado? E olhe que havia tolerado muito, ponderando certas coisas,
pois já fazia então bastante tempo que andava desconfiado de trapaças daquele moleque! Os
fregueses vinham reclamando, faltaram dez balas em cem; pra mim, quinze, outro dizia. Ele
se desculpava, atendia prontamente às reclamações, só queria o seu, era pobre, com a graça
de Deus, mas honrado. Depois, porém, ficava matutando, que diabo, eu conto as balas tudo
direitinho, que é que está acontecendo? Será que os fregueses estão me enganando? Não,
não podia ser. Seus fregueses eram homens de bem, negociantes! Tinham nada precisão de
andar questionando sem motivo por dez ou quinze balas? Aquilo era coisa de menino,
ninguém lhe tirava da cabeça, menino é bicho arteiro! Ah! mas se fosse seu garoto, ele lhe
pagaria, dava-lhe um ensino. Eram pobres, com a graça de Deus, mas honrados. Ponderava.
Verdade que nem sempre se come bem, nunca se janta, é só café com pão, e olhe lá que
ainda se ganha de muita gente! Antigamente, tinha-se manteiga e leite, à noite. Mas, de uns
tempos pra cá, tornou-se impossível esse luxo de leite e manteiga, você não vê que tá tudo
pela hora da morte? O açúcar e a fruta custam os olhos da cara. Um cupuaçuzinho assim, do
tamanho de um ovo, está por duzentos cruzeiros! Já se foi o tempo que caboclo era besta e
vendia tudo por pouco mais ou nada. Mas, fosse como Deus é servido, não carecia andar
com trapaças para viver. E logo quem, com safadezas, seu filho, envergonhando-o por aí, a
ele, homem pobre, com a graça de Deus, mas honrado. Humilhação muita sentiu,
naturalmente, quando o freguês bateu à sua porta, furibundo, acusando o menino de ter-lhe
surrupiado uma nota de conto, a única que no momento estava na gaveta, e não fazia
muito, porquanto a recebera de um devedor que mal dera as costas. “Pois seu baleiro, foi
tudo tão rápido, enquanto fui lá dentro buscar a lata pras balas. Seu menino é sagaz, ligeiro,
um verdadeiro rato, me desculpe a expressão”. “Estou ciente, o senhor não vai se queixar do
pequeno duas vezes, vou confessá-lo. Se foi ele, lhe restituo o dinheiro e já sei o que faço”.
Chamou o menino, vem cá, bonito pra tua cara, o freguês te chamou de rato, onde está o
dinheiro, não fui eu não papaizinho, não me bata, papaizinho, não me bata. Mas peia, sem
ser santo, obra milagres. E o menino acabou confessando que só gastara quinhentos
cruzeiros, em sanduíches e refresco, o outro meio conto estava escondido no porão. Traga o
meio conto, seu condenado, sem vergonha, ordenou. Mulher, eu quero aquela moeda de
trezentos réis antiga, que vais fazer homem com o menino? Vá buscar a moeda, deixe
comigo o resto, esse desgraçado vai ser exemplado, não estou para mais tarde sofrer
humilhação pior que a de hoje. O menino não tem compreensão, marido, não quero ladrão
em casa, mulher, você me conheceu pobre, com a graça de Deus, mas honrado.
Pôs a moeda no fogão de barro comedor de lenha verde. E quando obteve um
pequenino disco incandescente, a mulher não faça isso homem, que é judiação. Mas ele não
quero saber de nada e cunhou a mão do menino, marido nosso filho tinha fome, tu sabes
que o comer aqui é magro, mulher, eu também como pouco e não ando furtando ninguém,
ai, eu morro papai, isso é pra tu aprenderes, patife, que no alheio não se mexe.
Meu filho, tá doendo? Tá doendo, mamãe, vamos botar remédio, meu filho, que
remédio, que nada mulher, deixa de adulação, menino mimado perde a vergonha, marido
pode empolar e virar ferida, eu quero mesmo que fique a marca mulher, pr’ele se lembrar
sempre de que somos pobres, com a graça de Deus, mas honrados.
E assim a carne se fez rosa que agora doía, apodrecendo a mão do menino. Ai,
mamãe, paciência, meu filho, o enfermeiro a senhora deveria ter cuidado há mais tempo,
por que deixou isso ficar assim?
E o estilete continuava retocando a rosa, em lugar das pétalas amarelecidas,
brotavam outras vermelho-vivo. O menino se lastimava ai, está doendo, mas o enfermeiro
seguia no seu ofício de sarar a rosa. Era preciso que ela voltasse a botão e daí a nada,
deixando embora o estigma de sua passagem pela mão do menino pobre, com a graça de
Deus.

(Mundo mundo vasto mundo)

BUMBÁ

O boi se fizera nas mãos de Severino, preto velho maranhense, corpo esbelto,
espáduas largas, altura de monumento. O boi, de madeira o esqueleto; carne de algodão e
pano velho. O couro era de um veludo tão negro que azulava, a luz refletindo nele. Na testa
uns chifres de verdade, entre eles, a mancha lembrando uma estrela branca. Não uma
estrela certinha, recortada com cuidado, geometricamente concebida e inscrita num
pentágono. Um borrão em forma de estrela. Como se o fabricante preto velho Severino a
houvesse desenhado e, ao pintá-la, tivessem as tintas extravasado as linhas do desenho. Por
isso se chamou Estrela, bumbá meu boi Estrela, alegria do povo nas noites de junho.
Preto velho Severino era também o amo do boi, o ensaiador. Ele sabia como raros

improvisar toadas e tinha voz para puxá-las. Boi Estrela, orgulho seu e também do bairro,

não era como os outros bumbás da cidade. Tinha voz, mugia como seus símiles de verdade

por obra e graça de um aparelho fonador construído de cuícas e manejado pelo miolo – um

molecote de pernas secas, mas rijas, apelidado Socó, que aliás sabia fazê-lo dançar como

ninguém. Socó se tornara porque dançando se punha às vezes numa perna só.

Boi Estrela mugia, já se disse. Verdade que o mugido estava para o de um boi de

veras, como o choro de uma boneca-que-chora está para o de uma criança. Mas mugia. E –

admirável novidade – mexia os olhos, duas grandes petecas de vidro escuro e esverdinhado

nas órbitas de pano.

* * *

Boi Estrela, em junho, tinha curral. O tempo restante ficava guardado na casa do

amo, protegido inteirinho de pano de saco. Preto velho Severino tinha por ele desvelos

paternais:

– Meu boizinho!

Longos cílios de palmeiras, duplos, enfeitavam o curral. Varais de bandeirinhas,

bífidas na extremidade, entrecruzavam-se sobre ele. Naquele tempo, a cidade padecia

carência de luz elétrica. Lâmpadas fantasiadas de lanterna e balão faziam de conta que

iluminavam. A iluminação mesmo, porém, vinha de fogueiras ardendo e vinha de grandes

porongas, luz baça de fogo e fumaça.

Na porteira do curral, uma armação de estrela vestida de papel vermelho. Um dia, a

eletricidade – visita bissexta – apareceu por aquelas bandas. A estrela vermelha – viu-se –

tinha em seu ventre uma lâmpada que acendia e apagava igual a um vaga-lume. E passou a

noite inteira jogando piscadelas para o povo. O povo compreendia. A estrela vermelha

fascinava-o.

Preto velho Severino, imponente, o manto tarjado de arminho todo cheio de espelhos

e lantejoulas, puxando as toadas, quantas ele improvisava!


Rola boi bumbá
Rola que eu mandei rolar...

Preto velho Severino instruía, ralhava, ensinava novos passos, toadas novas.

Oi levanta poeira...

Tanta alegria, tanta, quando estava o bumbá em seu curral, quanta alegria! Gente
em volta, o encantamento possuindo-os. A preta Bárbara, no vulgar D. Barba, faturava:
pingues faturas de tacacá e mungunzá, bolo podre e de macaxeira, tapiocas em retalhos de
folha de bananeira, poeira de coco por cima. Até aluá e café havia em sua banca, que era a
mais gostosa do arraial. No curral, a batucada fazia hora, ensaiando refrões, dançados em
passos nervosos pelos brincantes. E cantados:

Oi levanta poeira...

As meninas indo e vindo, corpos cheios de amor para dar, levantavam poeira,
batendo as sandálias gastas no barro do arraial. Várias eram levadas para muito além,
aonde não chegava a claridade das porongas e fogueiras. Conduziam-nas moleques já
homens, os braços rijos do trabalho agasalhando-as. Iam aprender anatomia, o método
Braille, simples e humano, presidiria aos ensinamentos.
Depois tudo ficava mais triste porque o bumbá partia para cumprir seus
compromissos na cidade. Dançar na casa de doutores, autoridades, gente de haver, de bens
mais que de bem.
Hastes compridas encimadas por lamparinas cilíndricas de três pavios iluminavam os
caminhos. Os moleques iam até às vias de fato para segurá-las.
Formava-se o grupo. A batucada, os vaqueiros, os rapazes-do-amo, o padre. As
burrinhas eram duas. Os índios na frente compunham a barreira, os tacapes servindo de
cimento. Pai Francisco e Catirina, figuras picarescas. Comandando todos, o amo preto velho
Severino. Na retaguarda, o séquito de simpatizantes, mães de brincantes e outras com os
filhos-de-peito escanchados nos quadris, moleques a granel, povo.
Por onde o boi passava, corria gente pra vê-lo.
O povo mexia com Pai Francisco, ele perseguia mocinhas e crianças, dispersava-as.
Um dia, um homem avisou-o:
– Chico, tua mulher Catirina tá namorando...
Pai Francisco, mais que de repente, retrucou:
– Macaco só olha pro rabo dos outros...
O homem desconsertou-se. Do povo veio violenta vaia, avassaladora. Pega! Toma!
Vai mexer com Chico! Vai!
Boi Estrela tinha rivais, um maior que os outros: Malhado. Compreensível que os
tivesse. Os demais não mugiam, nem mexiam os olhos, qual deles tinha entre os cornos
aquela mancha em forma de estrela? Bois chambas os outros, sem dúvida, invejosos. Miolo
como o Socó, as pernas assim tão sensíveis ao ritmo da batucada, qual poderia apresentar?
E qual nascera de preto velho Severino, de seu engenho, qual? Compreensível tivesse Estrela
rivais. Não era ele acaso o mais amado do povo?
Malhado quisera imitá-lo, tentaram fazê-lo mexer os olhos. E mugir. O povo deu pelo
plágio, verdadeira caricatura, aliás. Zombou do Malhado. Mugir e mexer os olhos eram
atributos do Estrela.
Porque rivais tivesse, boi Estrela os desafiava:

Ê ferro, ê aço!
Estou procurando
E não acho...

O bumbá de Severino – assim também se chamava – logo possuía as ruas por onde
passava. Campeava soberano:

Lá vai, lá vai meu boi


Arreda povo contrário...
Os outros bois temiam confronto com ele, medo de se apoucarem. Brincantes e
acompanhantes nenhum grupo reunia mais que Estrela.
Certa vez – nem é bom lembrar – ia o bumbá feliz, o povo não lhe queria? Ia feliz
quando preto velho Severino advertiu:
– Aí vem Malhado. Ninguém ataca, ninguém recua também. Voltar fica feio.
A batucada, que havia silenciado para ouvir o amo, voltou a atacar com mais força:

Ê ferro, ê aço!
Estou procurando
E não acho...
Agora os simpatizantes também cantavam. Era preciso suplantar o vozerio do grupo
contrário, lançando o mesmo desafio:

Ê ferro, ê aço!
Estou procurando
E não acho...
Socó olhou pela goela do boi, que era aberta exatamente para que o miolo pudesse
descortinar os caminhos.
– Vou jogar meu boizinho Estrela em cima desse boi chamba...
Ninguém soube nunca como nem por onde começou. Quem começou ninguém
soube. As mulheres correram, os filhos-de-peito escanchados nos quadris. As mais valentes
insultavam-se, aplicando-se puxavantes de cabelos:
– Vaca Malhada!
– Vaca Estrela!
Os índios trocavam-se cacetadas, vaqueiros e rapazes-do-amo eram boxers. O padre
fugiu logo com Catirina, os dois covardes. Socó investia furiosamente, dando marradas no
boi adversário. Preto velho Severino ajudava os seus que fraquejavam, mas pedia paz. Em
dado momento, gritou:
– Meu boizinho você não acutila, seu...
Soltou um palavrão e logo libertava do peito o último gemido, fundo e pungente tão
como as toadas que inda agorinha puxava. Fundo e pungente e eloquente tanto que a todos
parou. Do coração rompido, brotava o sangue vivo que lhe empapava a vestimenta de lamê
tão caprichada, debruns de arminho, cheia toda de espelhos e lantejoulas.

(Ibidem)
ARTHUR ENGRÁCIO (1927-1997)

Arthur Engrácio da Silva, contista, crítico e romancista, nasceu em Manicoré, cidade


do rio Madeira, no Amazonas, no dia 16 de abril de 1927. Fixou-se em Manaus, onde realizou
seus estudos, dedicando-se ao jornalismo. Participou da movimentação cultural que
culminou na criação do Clube da Madrugada, tornando-se um de seus membros mais
destacados. Consolidou-se como ficcionista identificado com os elementos da realidade
regional: a vida interiorana, a luta e o sofrimento dos caboclos, esquecidos e explorados
pelos donos de seringais, comerciantes e regatões. Encontrou no conto a forma mais
expressiva para elaborar a sua ficção. Sua estreia aconteceu em 1960, com a publicação do
livro de contos Histórias de Submundo. Outros livros do mesmo gênero: Restinga, 1976;
Ajuste de contos, 1978; Contos do mato, 1981; Estórias do rio, 1984; 20 contos amazônicos
(coletânea), 1986; Outras estórias de submundo, 1988; A Vingança do boto (coletânea),
1995. Romance: Áspero chão de Santa Rita, 1986. Organizou ainda a Antologia do novo
conto amazonense, em 1971. Faleceu em Manaus no dia 2 de abril de 1997.

RESTINGA

Benício encostou de mansinho a canoa na restinga, abriu a lata com o resto de


jabá assado e farinha que trouxera, mas não pode comer. Sacou a camisa, enrolou-a e,
como se fosse travesseiro, colocou-a sobre o estrado da montaria, deitando-se em
seguida, o corpo moído de cansaço, os braços amorte cidos pelo manejo do remo.
Dormir também não poderia — os carapanãs não iam deixar.
— Ah, meu Deus, agora sim! — gemeu desolado.
Tentou fumar, o cigarro provocou-lhe náuseas. Um homem sem salvação
estava ali. Faltavam-lhe forças para continuar a fuga, o cerco cada vez mais se
apertava. Impossível escapar. Virava-se de um lado pata o outro no pequeno espaço da
montaria e sentia vontade de chorar. Porque foi na conversa da mulher? Aqueles olhos
de cabra morta, as ancas carnudas, o ar cheio de sonsice — aquilo era o próprio
Demônio a tentá-lo. Quase um mês passou a catequizá-lo e ele resistindo. Quando
adoecera, não saía da sua barraca, levando-lhe chás e remédios que tirava da loja do sêo
Ronaldo. Uma ocasião chegou a chamar-lhe a atenção: “D. Isaurinha, não carece ter
tanto cuidado assim comigo, não. Deixe estar. Olhe que o sêo Frederico pode até
cismar com a gente!” Não fez caso da advertência. Continuou a ir à barraca. Um dia, já
quase bom, ela chegou só de vestido em cima do corpo. Entrou e se sentou encostada à
sua rede, um cheiro forte e excitante de perfume espalhando-lhe pelo ar, tudo
convidando ao pecado. Por um instante dissera para si mesmo: “Como uma mulher dessa,
branca dos olhos azuis, bonita pra danar, não se dá preço?” Ela, o ar meio cínico, sempre
sorrindo, as pernas cruzadas deixando ver até o pretume do ventre; foi-se aproximando
mais da sua rede. Pegou-lhe uma das mãos e colocou-a em cima do seio, ele morrendo
de vexame.
— D. Isaurinha, deixe disso, D. Isaurinha — pediu.
— Eu sei, Benício, que tu gostas de mim. Não gosta mesmo, hem? Diz, anda! –
falou, fazendo-lhe mais pressão sobre a mão.
Jiboia a enroscá-lo em seus tentáculos, fora impossível resistir à tentação da
mulher. Rosto, olhos e boca quase roçando os seus, o fez perder a tramontana, sentindo
correr nas entranhas o mesmo fogo que sentia quando jogava na garganta quase a
metade de uma garrafa de cachaça.
— Então, Benício, responde — insistiu ela, os olhos inundados de sensualidade.
Sacudira a cabeça que sim. Quis em seguida puxá-la para dentro da rede, sua
coisa já toda assanhada. Ela apertou-lhe as mãos e disse: “Não, Benício, agora não. Te
sossega, tem mais um pouquinho de calma. Escuta o que vou te dizer: esta noite nós
vamos fugir. Já está tudo preparado, ouviste? Eu não suporto mais o Frederico, meu
filho, prefiro viver contigo. Aquele fresco só merece mesmo é um chifre!”
— Será que vai dar certo, D. Isaurinha? — perguntara-lhe ainda por perguntar, pois
já estava de cabeça virada pela patroa.

II
Frederico encontrava-se na cidade, com sêo Ronaldo, comprando mercadoria.
Quando chegaram, o gerente chamou-os reservadamente e lhes participou o acontecido.
— Isaurinha fugiu?! -- explodiu o marido. E logo com um postema daquele?
Hem? Está falando sério, Geminiano? Vou matar já os dois!
Sêo Ronaldo pediu ao filho que tivesse calma, que ele já sabia o que ia fazer com
os fujões.
— E quando foi isso, Geminiano?
— Foi coisa de 24 horas, sêo Frederico.
— Então, eles não devem estar muito longe. Vira o motor aí, depressa, Chiquinho!
– gritou sêo Ronaldo para o motorista. Vamos agarrar aquele filho de uma égua.
Cada um com um rifle e mais quatros capangas, pularam na embarcação e
seguiram rio abaixo à caça dos fugitivos.
O ronco do motor próximo despertara a atenção dos dois. Haviam improvisado
um tapiri, não muito distante da margem do rio, onde se tinham alojado para passar a
noite.
— Tamos perdidos, D. Isaurinha! — dissera a ela. Sêo Ronaldo com o sêo Frederico
vêm aí para pegar a gente.
Não fizera caso do aviso. Continuou deitada, mordendo displicentemente uma folha
de mato. O motor aproximava-se cada vez mais. Ele começava a ficar nervoso e insistia:
“Vamos, D. Isaurinha, por favor! Olhe que vão pegar a gente, D. Isaurinha!” Os cabelos
desmanchados, o vestido erguido até o empenujado das coxas, apenas lhe sorria, a
luxúria nos olhos, indiferentes ao risco da morte. Queria mais amor e o chamava com os
braços abertos: “Não tenha receio, meu filho, eles não vão nos achar. Vem te deitar,
cuida. Vamos aproveitar...”
Nesse instante o ronco do motor parara e ele pôde ouvir perfeitamente vozes de
pessoas que se aproximavam. Mais uma vez pediu, quase implorando, que ela o
acompanhasse. Teve ímpeto de colocá-la nos braços e levá-la dali. Mas, já era tarde. Os pas-
sos estavam perto demais. Só teve tempo de pegar o remo e o terçado e embrenhar-se na
mata. Não tinha andado quase nada, quando escutou a descarga de uma arma. “Ah, que
desgraça, mataram D. Isaurinha”, pensou. Logo pôs-se a correr, em desespero, aos
tropeções, procurando atingir a margem do rio, mais adiante, por um atalho que só ele
conhecia. Sem quase poder colocar-se de pé, as vestes rasgadas, as mãos crivadas de
espinhos, os lábios sangrando, chegara. Agora só restava esperar que a noite caísse de
todo, para fugir na canoa que se encontrava amarrada ali no porto. Foi-se esgueirando
devagar por trás das árvores até alcançar a montaria. Dai foi fácil desamarrá-la e largar-se
correnteza abaixo.

III

Benício levanta-se, tenta de novo um cigarro — consegue dessa vez suportá-lo.


Sai da canoa, caminha alguns passos e vai escorar-se numa árvore. O ronco do motor,
nesse momento, começa a chegar-lhe aos ouvidos. Não tem mais ilusões — é a alma que o
Diabo já carregou para o inferno. Baforadas lentas, seu pensamento, aos poucos, volta-se
para Isaurinha: a fuga do barracão, a voz macia da mulher, as horas de prazer que pas sara
ao lado dela. Nunca pegara mulher assim, com aquele corpo, aquelas coxas muito grossas
e lisas, aquele sexo muito negro e volumoso — sempre cheirando a sabonete. Fêmea
gozadeira não tinha que ver. Lembra-se de quando saltaram da canoa e entraram na mata.
Mal dera tempo de ele cortar algumas folhas de palmeira para improvisar uma cama:
agarrara-se a ele como uma lontra no cio e começara a desabotoar-lhe a braguilha.
Perdida a vergonha, ele pôs-se, também, a despi-la, cheirando cada peça que lhe ia
arrancando desajeitadamente do corpo, as mãos trêmulas, procurando ao mesmo tempo
acariciar-lhe os fartos cabelos da entrecoxa.
Pelados os dois, ela — uma sucuriju descamada — apertou-o de encontro aos seios
e beijou-o, provocando-lhe uma espécie de choque igual ao que lhe provocara, dias
antes, numa pescaria, um poraquê. “Amor de minha alma, me mata!...” — dizia, gemendo
e revirando os grandes olhos azuis.

IV

As divagações do fugitivo desfizeram-se com o ronco forte do motor, que


dobrava velozmente uma curva da restinga. Trôpego, os passos vacilantes, entrou numa
picada e subiu muito a custo numa árvore, procurando esconder-se entre os galhos. Sêo
Ronaldo, Ricardo e os capangas não demoraram a descobrir-lhe os rastros. Ricardo foi o
primeiro a avistá-lo.
— Tu estás aí, hem filho da puta! gritou....
Benício encolheu-se, tentou encobrir-se mais com as folhas, os olhos apavorados,
súplices — um caitetu acuado. Não disse palavra. Instintivamente, agarrou-me mais na
árvore
— Te prepara para morrer, caboclo sujo! — tornou a gritar.
As bocas de quatro rifles ergueram-se sinistras para ele. Ricardo, o mais
afoito, queria logo disparar. Sêo Ronaldo bateu-lhe na arma, desviando-a do alvo.
— Te aguenta aí, meu filho, não te afoba não! Vamos pri meiro brincar com ele,
assim.
Então, começaram a atirar, ora por cima, ora por baixo ora pelos lados do
fugitivo, que se encolhia mais, colocava as mãos nos olhos, choramingava e apoiava-se
com mais força na árvore. Os disparos continuavam.
Nos intervalos do tiroteio, levantava a cabeça, implorava.
— Piedade, patrão, não me mate!
— Ah, ah, ah, “não me mate”, hem? E pra que tu pensa que a gente está aqui? É para
ficar brincando contigo, por acaso? É bom fazer um branco de corno, hem fi l ho de uma
égua lascada?!
Sua voz, agora um grunhido, mal articulava os doidos rogos de clemência.
Se lembre da minha mãe, sêo Ronaldo. Eu não tenho culpa de nada, por Deus... D.
Isaurinha é que me convidou pra fugir com ela. Eu não queria, ela me obrigou... Abrande
sua zanga, patrãozinho, não carece me matar!
— Não tem culpa de nada, hem curupira? Pois, então te prepara pra receber
chumbo quente. Agora, pessoal, todos juntos — gritou.
Os disparos trovejaram nos longes da floresta. O corpo de Benício, varado de
balas, despencou-se do alto, numa queda intermitente, com paradas bruscas nos galhos,
até cair de uma vez ao chão, ainda com vida. Nesse instante, Frederico tirou o facão da
bainha e, antes que alguém o impedisse, puxou o mangalho do caboclo para fora e decepou-
o rente à virilha.

(Restinga)

PAGODE, SANFONA E A MORTE NA MADRUGADA

O pagode entrava pela madrugada, a mesma animação das tabocas, o mesmo fem-
fem da sanfona e a rabeca do Batista gemendo um samba que os festeiros bisavam e
rebisavam, as pernas já perras, zanzanando, os gritos de entusiasmo mais fortes: “Castiga
firme, Batista, que a noite é nossa — só macaco velho não se coça!” O rabequista
embioca mais a cabeça em cima do instrumento, que é tocado como rabecão, solta uma
gargalhada e puxa o arco com sustância. Velho Trindade, que não queria que a bagunça
esfriasse, ficava ali ao lado dele só esperando um intervalo. Aí lhe metia a braba na mão.
“Mais um golezinho. sêo Batista?” Atirava a rabeca para um lado, ria um risinho velhaco e
já com a vasilha no rumo da boca è que respondia: “Como não, sêo compadre? Me deixe
ver cá esta porqueira gostosa”. Bebia a metade, estendia a cuia para a frente e arrematava,
os lábios estalando repetidamente como pipoca no braseiro:

Cachaça, puta matreira,


Invenção do Satanás,
Quanto mais te bebo e quero,
Mais te quero e bebo mais.

A noite vai avançando. Os pares se cruzam ofegantes, a poeira levanta mais forte do
chão confundindo-se com a fumaça das lamparinas. Se velho Trindade não estivesse tão
preocupado com o aparecimento de João Brabo no pagode, perceberia casais
amorosos esgueirando-se rumo da capoeira pró xima e logo em seguida,
acompanhado do estalido de gravetos secos, aquele gemido fundo que o Amor provoca na
sua hora extrema.
Velho Trindade não tem relógio, mas o canto da inambu in dica-lhe que o dia não
tardará. Carece de advertir os festeiros e animar mais o rabequista. Sem entusiasmo,
corre até o salão e, agarrando a velha Sara pela cintura, sai rodopiando por entre os
brincantes, prevenindo que o dia já vem vindo. “Não desani mem, não, pessoal. Toca
pra frente. É dançar até o dia amanhecer!” O aviso não precisa ser repetido. Os pares se
enlaçam com mais afoiteza, os gritos de entusiasmo recrudescem e Batista, que já
engoliu outra brasa, castiga um velho baião. Sua rabeca, como dama obediente, sob o
ritmo frenético, não pára, não tem sossego: cambaleia para um lado e outro, tremelica
vertiginosamente, bamboleia ao som da própria música que o dono lhe arranca das cordas
retesadas.
Do meio do salão vem uma voz pedindo a Batista que faça uma pausa. É Maria
Rita lembrando que está na hora de tocar a Desfeiteira. A música silencia enquanto os pares
se preparam, para a nova dança. Os namorados são os primeiros a avançarem para o meio da
sala, à espera dos acordes que marcarão o início da nova sarabanda. Maria Rita ri satisfeita,
adora ouvir os versos ditos pelos brincantes. Ela mesma sabe quantidades de toadas, que
aprendeu com os festeiros nos pagodes por onde tem andado. Quando era menor, que não
podia ir às festas, reunia os irmãos mais novos em casa e recitava cantigas, muitas im -
provisadas na hora.
Batista puxa o arco da rabeca e é a Maria Rita que cabe dizer o primeiro verso:

Fui falar com Santo António,


Meu bom santo padroeiro,
E soube que o teu amor
Era falso e traiçoeiro.
Há uma pequena pausa e o cavalheiro mais próximo da dama que disse o primeiro
verso é o escolhido para, em seguida, recitar outra trova. O nome indicado é o de
Severino, um dos admiradores de Maria Rita, que diz ser dono do seu coração e amá-la com
desespero. Mulato gabola, pernóstico, metido a sebo e que já lhe dedicou muitas
serenatas. A música ataca e ele recita:

Santo António desta vez


Não teve sinceridade,
Pois se tivesse, diria
Que eu te amo de verdade.
As palmas estalam no salão acompanhadas de gargalhadas. A dança não pode parar.
Outros números vêm:

Lá vem a lua saindo


Por cima do barracão,
— Queria achar a cunha
Que feriu meu coração.
Todos batem os pés, pedindo novos versos. Agora que o dia vem vindo, cada um
pode dizer uma cantiga. “Mais um! Mais um ! Mais um!”, gritam e gritam, a rabeca
gemendo debaixo do queixo de Batista, a poeira cada vez mais forte, os ânimos cada vez
mais excitados. Vêm outros versos:

Em riba daquela serra


Canta alegre um bem-te-vi;
Se dizes que me desprezas,
Mais amor eu tenho em ti.
O som do último verso é cortado inesperadamente pela voz de João Brabo. Em pé,
no meio da porta, o revólver na cintura, o punhal atravessado no cós da calça, o semblante
de pedra, ali estava o celerado.
— Não se assustem não, pessoal. Eu só vim me adivertir um pouquinho — falou e
logo tomou assento e pediu bebida.
No entusiasmo afervorado dos brincantes, sua aparição foi como água na fervura.
Batista parou de tocar e começou a enfiar a rabeca no en cerado de caucho, mas
João Brabo se levantou e gritou bem alto:
— Nada de parar a viola, ti ti o . É tocar pra frente e tocar gostoso, hem! Mas
bom, mas bom, quando eu digo que faço eu faço mesmo! Hoje eu tirei pra me adivertir
e quem se arretirar — pum! — pega chumbo na cacunda.
Os olhos fuzilantes, após a ordem, repousam na garrafa que velho Trindade
mandou colocar na sua mesa. Recusa copo; na boca mesmo do recipiente bebe a metade
da cachaça. Em seguida, arranca uma lasca de tabaco do bolso, joga na boca e fica
mastigando, mastigando como um bode, o revólver de palmo e meio rodando no dedão,
o olhar perverso dirigido aos festeiros, que reiniciam a dança, esbaforidos, o terror no
rosto de cada um. De momento a momento levanta-se, detona a arma para o ar e grita
freneticamente, batendo palmas.
— Mais animação, macacada, mais animação! Hoje eu quero me adivertir, ora essa!
Velho Trindade, por trás de um esteio, tem na mão a fogo central. “Se esse
desgraçado botar a mão em Maria Rita ele vai ver o cu da cotia assobiar!” Estende os
olhos por todos os ângulos da sala. Sabe que haverá morte. Sabe também que nada recuará
João Brabo e que ele não se irá sem mandar um para os quin tos. E quem será o visado
dessa noite? Vontade de gritar pros festeiros, prevenindo-os de que um deles naquela
madrugada entrará no chumbo do facínora; que fujam, que deixem a festa o quanto antes.
O cinismo do assassino enche-o de revolta. Tem ímpeto de mandar-lhe dali mesmo no
peito uma descarga da sua 16. Louca ideia. Sabe que João Brabo o tem debaixo da mira do
seu trabuco. O ferrabrás nunca perdeu um tiro. Pontaria espantosa, extraordinária. Pois
não dizem que ele fez pauta com o Diabo para ser bom atirador?!
Agora sai para o meio da sala e agarra uma dama. “Guente firme, minha filha,
que comigo è no remeleixo!... Não sou homem de muitas danças, mas porém
agaranto que nós vamos se dá bem!” O revólver na mão direita, com a esquerda segura a
mulher e inicia o sacudido, ora apalpando a bunda da cabocla, ora querendo levantar-lhe
as vestes, o rosto esfregando o rosto dela. Muita revolta nos dançantes, mas ninguém
protesta. Protestar contra um gesto de João Brabo é como protestar contra a fúria das
tempestades ou o estrugir dos redemoinhos. Nunca se desrespeitou João Brabo, jamais se
lhe desobedeceu uma ordem. Quantos ele já mandou para o infer no? Os mais antigos é
que podiam contar. Manoel das Cobras dizia: “Não se metam com esse acelerado, não,
meus irmãos! Aquilo não é gente, aquilo é o próprio Capeta! Este criado de vocês é
testemunha das malvadezas que esse diango tem feito nestes pedaços de terra por aqui.
Apareceu não se sabe dadonde, e desde então, é só matar, matar! E ninguém enfrenta ele, e
armado mesmo é que não! Enfrentar um danado que escreve o nome dele nos troncos de
pau, com as balas? Tira fundo de garrafa, derriba macaco correndo pelos galho com um
tiro só?!...”

II

João Brabo parou de dançar, bebeu a última talagada, pegou a garrafa e espatifou-a
contra o esteio. Depois, sem que ninguém esperasse, gritou que ia matar Batista.
— Mas bom, mas bom, este caboclo não tá tocando que preste, por isso vou entupir
de chumbo o chifre dele.
O rabequista, sem nada pressentir, de costas, continuava a tocar. Ia morrer sem
mais aquela. O assassino mirava o alvo demoradamente. “Mas bom, mas bom, quando eu
digo que faço, eu faço mesmo! Este cabra vai morrer”. Apontava a arma pela segunda vez.
Na terceira, todos sabiam, dispararia. Necessário fazer alguma coisa, tentar pelo menos
convencê-lo a não praticar o seu intento. Hermínio e Vitorino, os mais fortes, foram-se
acercando dele, pedindo-lhe de boa forma que não fizesse aquilo.
— Não faça isso, não sêo João. Por que matar o homem?
— Mas bom, mas bom, quando eu digo que faço, eu faço mesmo! Já cismei com esse
curupira, não me agrada a cara dele e por via disso, vai morrer.
Ditas estas palavras, foi levando o trabuco para a frente. Os dois festeiros, olhos
pregados na arma ameaçadora, continuavam a avançar para ele. Sem lhe dar tempo de
apertar o gatilho, Hermínio passou-lhe a perna numa rasteira firme, atirando-o ao chão,
enquanto gritava para Vitorino:
— Depressa, camarada, vamos tirar a arma dele.
Tudo passou-se muito rápido, quase não houve luta.
Sujigado fortemente pelos dois homens, a mão de Vitorino na garganta,
escancarando-lhe a boca, João Brabo, a língua para fora, estrebuchava como um porco
peado. Nesse instante, velho Trindade correu com a espingarda e, quase metendo-lhe o cano
na boca, disparou.
Os miolos do morto saltaram à distância, formando com a poeira e o sangue uma
massa nauseante.

(Ibidem)
ERASMO LINHARES (1934-1999)

No dia 2 de junho de 1934, em Coari (AM), nasceu Erasmo do Amaral Linhares.


Em Manaus, onde se radicou, formou-se em Comunicação, tendo por muitos anos
exercido as funções de jornalista e radialista, com atuação na rádio Rio Mar. Foi também
professor da Universidade do Amazonas, instituição pela qual se aposentou. No campo
literário, pertenceu ao Clube da Madrugada e à União Brasileira de Escritores – AM.
Publicou dois livros de contos: O Tocador de charamela (Manaus, 1979) e O Navio e
outras estórias (Manaus, 1999). Faleceu na capital do Amazonas, no dia 16 de outubro de
1999.

ZECA-DAMA

Não, senhor, desarme essa cara de malícia. Não é nada do que o senhor está
pensando. Sou macho e muito macho. Até hoje o cabra que duvidou disso, levou o troco
certo na hora. Mas lhe digo que já fui dama afamada. Melhor do que muita mulher de hoje.
Quando cheguei nas brenhas do Ipixuna, mulher que é bom não havia. Tudo era homem, só
homem. A maioria cearense como eu e como eu vieram na ilusão de enricar com a borracha
– aquela enganação toda que andaram espalhando lá pelo Nordeste. Vinham como boi,
amontoados no porão e no convés dos navios, largando pra trás a terra, lavoura, casa,
mulher e filhos. Comigo foi um pouco diferente. Não escondo que tinha lá meus desejos de
encher os bolsos de muitos contos de réis e um dia voltar pro meu sertão e fartar de comida
a mulher e a filharada. Desculpe se estes olhos depois de velhos deram pra chorar, mas aqui
no fundo do peito ainda dói uma querença. Eu conto continuado. De veras eu vim mesmo foi
fugido. Lá no sertão onde eu morava, por causa de umas terrinhas mixes, destripei um cabra
safado na ponta da peixeira e quando a polícia deu vau, embarquei no Baependi junto com
um magote de outros homens, a maior parte, como eu, com alguma morte nas costas. Um
horror, meu senhor, uma coisa muito triste de ser lembrada. Em Manaus jogaram a gente
numa tal de Hospedaria de Flores. Todo mundo espremido nuns quartinhos. Tinha dez onde
só podia caber cinco. De tanta gente, nunca faltava uma fila enorme às portas das privadas,
principalmente porque a gente desacostumada do pirarucu e da farinha d'água que se comia
todo santo dia, andava quase sempre com desmancho. Um desespero, pode crer. Tinha
gente que não aguentava na espera e fazia a coisa ali pelas redondezas, atrás das cercas,
nuns matinhos que cresciam ao redor, e, por isso, o ar vivia empestado. Depois de uns dois
meses separaram a gente em lotes e mandaram uns pra cá, outros pr’ali. A mim me man-
daram pro Ipixuna, nas brenhas onde não morava quase ninguém. Não reclamei nem
pechinchei. Quanto mais longe melhor. De perto, um perto muito longe, só Eirunepé de um
lado e Cruzeiro do outro. Cheguei num dia e no outro me mandaram pro centro, com o Dorca
– um cabra nascido por aqui mesmo, meio gente, meio índio, mas um camaradão. Duro,
meu senhor, duro foi acostumar naquele mundão de mato vazio de gente e com a doideira
daquele trabalho de escravo. Acordar antes do sol e sair pelo mato raspando casca de se-
ringueira, pendurando tigelinha, comer só por comer, enganando estômago com ipadu, e
depois voltar pelo mesmo caminho, recolhendo o leite, correr para a barraca e começar a
defumação. Os seringueiros antigos se riam da gente, da nossa falta de jeito. Conto sem ter
vergonha – muitas vezes chorei, escondido do Dorca, e amaldiçoei o dia que deixei a minha
terra. Mas tudo no começo é assim mesmo. Não há nada de tão ruim que a gente não se
acostume. E eu e os outros – os brabos, como a gente era chamado –, acabamos nos acos -
tumando. A vida no seringai não é sopa, mas também tem os seus momentos. Tinha o
sábado. O sábado, meu senhor, era o nosso dia. Quando a gente voltava do barracão do
gerente, tratava logo de descarregar o rancho, tomar banho e num instante estava na
canoa, vestido de limpo, chapéu, todo emperiquitado, e toca a remar para casa de Mestre
Felisberto. Era a festa, a festa que a gente esperava toda a semana, num desassossego.
Tinha música, sim: a rabeca de Mestre Felisberto, o banjo do Curica e mais o Zé Preto
batendo o compasso com duas colheres enganchadas nos dedos. Mas, como eu já lhe falei,
mulher que é bom não havia. Por isso dançava homem com homem e foi aí que eu ganhei
fama. Experimentei a primeira vez só pra dar gosto ao Dorca, companheirão que me ensinou
a cortar seringa, com paciência de santo. E quando começamos a dançar, os outros foram
parando abestados, olhando nós dois saracoteando pela sala. Desde aquela noite fiz nome e
renome. Não me lembro mais quem inventou a moda, mas os homens que dançavam como
dama amarravam um pano na cabeça, para diferençar dos outros. Um dia, um sujeito
quizilento chamado Procópio, entendeu que a gente tinha de pintar os beiços com urucu e de
vestir maria mijona. Pra dar mais sensação, como ele disse. Só não matei o filho duma égua
na horinha, porque os outros não deixaram. Mas nunca mais dancei com aquele corno.
Depois eu mesmo inventei de calçar sapatos tênis para dar mais leveza nos pés. Sim, lhe
digo, havia outros homens que também dançavam como dama, mas nenhum como eu.
Tanto que uma vez houve uma briga de dois cabras por causa de mim. Foi preciso eu arriar
as calças e mostrar os possuídos e gritar que eu era homem e muito do seu macho e não ia
permitir que dois safados brigassem com ciúme de mim, como se eu fosse mulher ou foboca,
que Deus me livre e guarde. Mesmo assim eu não chegava pra quem queria. Tinha noite de
gastar quase toda a sola do meu tênis de tanto arrastar os pés no chão de terra. Uma coisa
de doido. Só parava pra tomar uns goles de cachaça e assim mesmo aqueles cabras ficavam
todos me cercando e de olho vivo pra me pegar primeiro. Não, não ria, homem fazer vez de
dama não é coisa pra qualquer um. Desculpe que eu lhe diga, mas é preciso muita arte. Tem
que ter o corpo leve e os pés ligeiros, molejo na cintura, balanço de perna e sentido
calculado. Tem de ser uma pluma e adivinhar de véspera o movimento do cavalheiro. Ainda
hoje, por todas estas bandas, ainda me conhecem como Zeca-Dama. Já lhe pedi, não faça
cara de malícia. Agora eu sou um velho, mas ainda sei tirar desforra. Ninguém nunca
duvidou da minha macheza, porque todo mundo sabe que eu, com uma faca na mão, sou o
próprio capeta. Hoje mora muita gente por essas beiras e tem muita mulher. Nas festas, às
vezes, tem mesmo mais mulher do que homem. Mas nenhuma dança como eu, naqueles
tempos. Se não fosse o diabo do reumatismo que me amolenga as pernas e me endureceu
as cadeiras, eu era capaz de lhe mostrar. Dou-lhe minha palavra. Pergunte ao Dorca, ele
mora ali no primeiro sitio à esquerda, descendo o rio. O Dorca não me deixa mentir. Boa
noite, passe bem.

(O Tocador de charamela)

PÓS-MADRUGADA

MÁRCIO SOUZA (1946)

Márcio Gonçalves Bentes de Souza é natural de Manaus, onde nasceu no dia 4 de


março de 1946. A par de sua atividade literária, foi cineasta, tendo filmado A Selva, romance
do português Ferreira de Castro, além de documentários como: “O Começo antes do
começo”, “O Porto de Manaus” e “A Adolescente desaparecida”. Também foi diretor do
Teatro Experimental do SESC (TESC), em Manaus, grupo que encenou várias peças de sua
autoria. Escreveu os seguintes romances: Galvez, Imperador do Acre (1976), Operação
Silêncio (1979), Mad Maria (1980), A Resistível Ascensão do Boto Tucuxi (1982), A Ordem
do dia (1983), A Condolência (1984), O Brasileiro Voador (1986), O Fim do Terceiro Mundo
(1990), Lealdade (1997), Desordem (2001). Lançou apenas um livro de contos: A Caligrafia
de Deus (1994).

A CALIGRAFIA DE DEUS

Quarenta e oito horas depois, havia dois cadáveres atravessados por balas de fuzil.
Uma casa de tábuas cinzentas e retorcidas pela chuva e pelo sol. Na loucura da Zona Franca,
o povo era tão afável na sua ironia que chamava aquilo de casa. Tinha muito capim-serra,
urtiga, um pé de mamoeiro e uma velha mangueira quase sem folhas. A casa, coberta de
palha, devia ter goteira como o diabo. Um rego de água fedida atravessava os calombos da
rua e fazia um mapa escuro no barro seco. As viaturas da Polícia e os carros dos jornais
tinham estacionado quatro quadras atrás, isto é, a uns trinta metros de um labirinto de
becos, terrenos baldios e lençóis secando em taquaras. Daquela rua, que o povo chamava de
rua São João, entre as vinte ruas São João que há em Manaus, era possível ver a gloriosa
cúpula do Teatro Amazonas e dois ou três espigões da moderna capital dos barés. Tinham
sido quarenta e oito horas de trabalho para todo mundo. Menos para os moradores do bairro
do Japiim. Na loucura da Zona Franca o povo era tão afável na sua ironia que chamava
aquilo de bairro. Em dez anos, aquelas colinas suaves cortadas por um igarapé viram
desaparecer os buritizais e a mata quase cerrada, as chácaras e os banhos, para dar lugar a
um conjunto habitacional do BNH e às adesões provocadas pela iniciativa particular dos
ribeirinhos que chegavam com a anual subida das águas. O conjunto habitacional nunca
ficaria pronto, e era um inferno de calor e poeira ao meio-dia, uma geladeira tropical de
umidade e bruma durante a noite. Nada mais restava da antiga mata e o deserto es tendia-se
pelo lado das casas dos ribeirinhos. Nos meses de chuva, formava-se um atoleiro que era um
verdadeiro nirvana para os porcos; nos meses sem chuva, uma paisagem marciana com todo
o charme de um barro avermelhado que empoava as crianças e as galinhas. Só a loucura da
Zona Franca para fazer o pessoal do Japiim chamar aquelas quarenta e oito horas de muito
divertidas, e isto estava visível na cara de irritação do Comissário Frota, expressão de quem
tinha o saco estourado e já estava cutucando o povo curioso com a coronha do revólver,
finalmente dando porradas com a arma e tentando dispersar centenas de mulheres e
crianças que tagarelavam sem a mínima disposição de compreender o significado de uma
operação policial e, muito menos, a aflição do bravo Comissário Frota. Uns oitenta praças da
PM seguiam o Comissário com a mesma disposição de espírito. Vão trabalhar, bando de
vagabundos, vamos circular, vamos circular, gritavam com voz rouca, adicionando alguns
palavrões carinhosos, enquanto mentalmente davam graças a Deus pelo término da
operação.

O PRIMEIRO CADÁVER

Devia ter uns vinte anos, estava vestida só com uma calcinha rendada cor de limão.
O corpo estava em decúbito dorsal, como sairia nas matérias dos jornais. Uma mulher baixa,
bem cheinha nas ancas, a cabeça com três furos de bala e o cabelo escuro marcado por
placas de sangue coagulado. O corpo tinha caído embaixo de uma rede do Ceará, os braços
encostados ao tronco, atravessado no quarto. Na parede, pendurados numa fileira de
pregos, um vestido, um sutiã cor de limão, um retrato de Dom Bosco, outro vestido de
tecido japonês que imitava brocado. A janela estava aberta e um soldado da PM tentava
derrubar do mamoeiro, com uma vara muito flexível, um mamão todo picado por sanhaçus.
Izabel Pimentel, que já estava morta há cinco horas, tinha morrido sem saber por que
tinha sido batizada com o nome de Izabel Pimentel. Morrera com uma única certeza, a de
que Deus escrevia certo por linhas tortas. Todos em Iauareté-Cachoeira acabavam com o
sobrenome de Pimentel. Izabel nascera em Iauareté-Cachoeira e não tinha escapado disso.
Seu pai se chamava Pedro Pimentel e sua mãe, ao casar com ele, já trazia o nome de Maria
Pimentel. Em Iauareté-Cachoeira isso até que podia provocar alguma confusão, pois não se
podia levantar um mexerico de que a filha do Pimentel não era mais moça ou que o Pimentel
colocava areia na pele de ucuquirana, sem que com isso toda a pequena cidade e inclusive a
pessoa de onde tivesse partido o mexerico se comprometesse. Por isso não havia mexericos
em Iauareté-Cachoeira, aliás, não havia nada de especial, nem mesmo uma cidade aquilo
podia ser chamado, a não ser pela loucura dos habitantes de Iauareté-Cachoeira que
enchiam a boca e diziam que eram da cidade de Iauareté-Cachoeira. O pai de Izabel era um
índio baniwa que passava o dia bebendo uma mistura de álcool com água e coçando os
edemas que os bichos-de-pé provocavam em seus dedos sujos de terra. Mas nem isso podia
ser considerado uma marca registrada do pai de Izabel, invariavelmente todos os homens de
Iauareté-Cachoeira, assim como se chamavam Pimentel, passavam o dia bebendo álcool
misturado com água e coçando os pés inchados de bichos. Uma outra diversão do velho
Pedro era espancar a mãe de Izabel duas vezes por ano. Uma no Natal e outra no dia de
Nossa Senhora Auxiliadora. A mãe de Izabel, uma índia tukano, tinha alguns dedos
inutilizados devido a essa prática anual do marido. O velho Pedro ficava animado durante as
comemorações do Natal e de Nossa Senhora Auxiliadora, pois eram as únicas datas em que
ele podia beber cachaça paraense ou um conhaque de alcatrão nefando que vinha da
Colômbia. Alguns anos atrás, ele tinha até conseguido uma garrafa de pisco peruano que
ficara na memória.
É claro que os dedos inutilizados da mãe de Izabel não serviam para identificá-la:
todas as mulheres casadas apanhavam dos maridos nas mesmas datas e tinham igualmente
os dedos inutilizados que mostravam para as filhas, como uma advertência, todas as vezes
que elas vinham falar de casamento. Izabel Pimentel morreu com todos os seus dedos
funcionando perfeitamente e até estavam bem-cuidados, as unhas pintadas com um esmalte
da moda, um anel de fantasia no dedo miudinho da mão esquerda. Izabel Pimentel tinha
conseguido escapar de um marido natural de Iauareté-Cachoeira e que certamente teria o
sobrenome Pimentel.
Um policial do Patrimônio viu o anel e puxou do dedo de Izabel com um movimento
brusco. Examinou o anel contra a luz e colocou num saquinho plástico onde estavam outras
bijuterias. Izabel tinha morrido proprietária de um par de brincos redondos e imitando
marfim, fabricado em Taiwan, uma pulseira de ouro 18 quilates, um relógio Seiko com
mostrador luminoso, uma medalhinha de latão com a figura de São Domingos Sávio, uma
corrente de prata suspeita, além do anel de fantasia arrebatado pelo policial. Izabel Pimentel
morrera muito mais rica que todas as moças de Iauareté-Cachoeira juntas. O que era uma
forma de provar que Deus escrevia realmente certo por linhas tortas.
A primeira vez que Izabel ouviu alguém dizer algo sobre a caligrafia de Deus, foi numa
conversa com sua mãe, enquanto lavavam roupa num trapiche. Izabel completara dezessete
anos, estava estudando na Escola Salesiana da Missão de São Miguel e passava as férias
com a família. Izabel queria dinheiro para comprar revistas em São Gabriel da Cachoeira e
sua mãe lhe disse que deixasse de ser lesa e que eles não tinham dinheiro para gastar em
leseira. De fato, eles não tinham dinheiro para gastar em coisa alguma, e só não morriam de
fome porque ela nunca tinha deixado de criar galinhas e fazia um ativo comércio de ovos
frescos com os vizinhos, sem que o marido soubesse. Izabel queria comprar aquelas revistas
coloridas que chegavam do Rio de Janeiro e traziam histórias de amor fotografadas em belas
casas e com belas criaturas. Na escola, as meninas faziam vaquinha para adquirir aquelas
revistas e quando conseguiam manuseavam-nas até esfarelarem. As histórias eram um tanto
complicadas e acabavam sempre bem, com a heroína conseguindo um casamento. Izabel
não sabia se aqueles cavalheiros em roupas caras, depois, começavam a beber álcool
misturado com água e se batiam nas mocinhas louras duas vezes por ano. Em todo caso,
isso não era muito importante, as meninas gostavam de ficar admirando as fotografias dos
beijos espetaculares e cismavam muitas horas sobre esse esquisito costume dos pares
românticos das grandes cidades, que externavam sua paixão encostando lábios contra
lábios. O beijo não era uma instituição comum no Rio Negro e por isso mesmo as meninas
ficavam muito assanhadas, loucas para uma experiência prática.
Até aquela manhã, quando lavava roupa com a mãe, Izabel nunca tinha beijado
ninguém e pedia apenas uma mixaria de dinheiro para comprar a revista. A mãe
resmungava que aquilo era leseira, que não era fácil conseguir dinheiro e por isso não podia
desperdiçar. Izabel começou a dizer que se o pai não andasse bebendo álcool com água, ela
bem que poderia comprar a revista. A mãe passou a bater com força a roupa que estava
lavando e disse que as coisas estavam bem como estavam. Se o velho Pedro não bebesse
tanto e fosse um homem trabalhador, ele certamente estaria ganhando dinheiro e teriam
posses para comprar o que quisessem, até as revistas que Izabel tanto desejava. Mas ela
sabia que não seria assim; o velho Pedro com dinheiro no bolso poderia comprar a cachaça
ou o conhaque de alcatrão que quisesse e ela, então, sofreria espancamentos todos os dias.
Por isso, era melhor que não tivessem dinheiro para nada, que duas surras anuais já eram
suficientes. Deus escrevia certo por linhas tortas, disse a mãe de Izabel e isso a deixou
muito intrigada. Realmente era uma caligrafia tortuosa que começava na preguiça do pai,
passava pela turbulência cíclica dele, oferecia dias de penúria para todos e impedia que ela
comprasse uma revista e contemplasse os beijos dos amantes das grandes cidades. Uma
caligrafia divina cuja sinuosidade lhe escapava, como o fato de se chamar Izabel Pimentel,
mas que, por isso mesmo, era marcante, cristalina e tão forte que ela nunca mais
esqueceria. Que Deus cometesse aquela garatuja de vida que levavam em Iauareté-
Cachoeira, pelo simples fato de impedir que o pai batesse na mãe todos os dias, era uma
loucura muito grande e Izabel Pimentel descobriu que todos estavam loucos em sua casa, na
cidade, talvez em todo o Amazonas. Descobriu inclusive que ela devia ser uma letra malfeita
no destino divino.
O rio Uaupés descia na sua correnteza em suaves banzeiros e o sol estava insano e
queimava. A água insinuava-se tépida e Izabel viu umas meninas de sua idade descerem
para a beira do rio, fazendo algazarra e levantando a barra malfeita dos vestidos. Eram
moças sem nenhuma elegância, cabelos escorridos pelos rostos redondos, os seios quase em
cone perfeito, iguais aos dela, despreocupadas e sentindo a água molhando as coxas. Izabel,
nessa época, não sabia o quanto era deselegante e não tinha ainda reparado no corte
grosseiro dos vestidos que usava. Depois é que foi descobrir o quanto eram loucas as suas
colegas, que nem ao menos se preocupavam em escolher os vestidos, ou sabiam o que era
um batom ou um xampu para os cabelos. A mãe estava sempre com uma grande blusa
branca, encardida, os seios decrépitos em completa liberdade, e uma saia azul-marinho que
descia indefinidamente até o meio das pernas cheias de cicatrizes. E o louco de seu pai
passava o dia com um calção escuro balançando nas coxas magras e que nada escondia
quando sentava ou ficava de cócoras. Era um bando de loucos, pensaria Izabel, muito tempo
depois, aqueles homens acocorados em tomo de uma cuia de álcool misturado com água, e
que não mais falavam, nem mais se olhavam e que depois iam para suas redes porcas,
ressonar pela noite adentro, uma fogueira largando fumaça para espantar os carapanãs. Por
isso, na escola da Missão, Madre Lúcia, os olhos verdes como casca de tucumã, estaria
sempre a dar-lhe cascudos com uma sineta e a chamá-la de menina louca. Izabel Pimentel
subia nas goiabeiras e comungava com o estômago cheio todas as manhãs, o que era uma
prova de loucura. Madre Lúcia se impacientava com ela, que nunca aprendia a soletrar, nem
decorava as palavras em italiano do hino de Nossa Senhora Auxiliadora. Na sala de aula,
Madre Lúcia chamava Izabel para o quadro-negro e se aborrecia quando notava que ela
estava lambendo os dedos sujos de giz. Mas se Izabel era louca, Madre Lúcia devia ser muito
mais, por enfrentar o calor do Uaupés com aquele hábito branco sempre muito limpo e
engomado, por nunca tomar banho no rio nos fins de tarde, como fazia o Padre Andreotti, e
por nunca ter beijado ninguém, mesmo tendo aqueles olhos verdes como casca de tucumã.
Uma mulher nova como Madre Lúcia se consumindo em perseguir a loucura de Izabel,
batendo-lhe com a sineta na cabeça só por ter ela perguntado se era bom beijar e se eram
só os lábios que se tocavam num beijo. E foram três anos na Missão, com aquelas revistas
esfareladas que já não permitiam a contemplação do mistério do beijo e onde ela não podia
ler as palavras de amor dos amantes, tudo como a escritura de Deus que marcava a sua
vida.
Izabel Pimentel estava para tirar o curso primário quando duas coisas aconteceram.
A primeira deixou Izabel indiferente, já que ela não tinha mais nada a ver com aquele
defunto encarquilhado, rodeado de angélicas e quatro velas, deitado numa rede sempre suja
e que recebia com um esgar vítreo nos olhos a oração e a fumaça do cigarro que o velho
pajé baniwa expelia ao mesmo tempo. O velho Pedro estava morto, depois de uma série
inútil de operações que lhe foram amputando, pedaço por pedaço, a perna direita. Um
edema de bicho-de-pé inflamou e logo o Padre Andreotti, que tinha sido médico do exército
italiano na Segunda Guerra Mundial, viu que se tratava de gangrena. Levou o velho Pedro
Pimentel para o hospital de São Gabriel da Cachoeira e cortou, com a perícia de um médico
combatente, aquela protuberância tumescente e pútrida; dava tapinhas animadores no
ombro do paciente e recebia de volta uma voz envolvida num hálito de álcool com água que
lhe dizia que de nada adiantaria o tratamento, que ele logo estaria morto e expulsando
alguém da maloca dos mortos, doando assim ao rio Uaupés mais uma piraíba. O velho
Pedro, apesar de católico, ainda acreditava que depois da morte ele seria obrigado a disputar
um lugar na sempre apinhada maloca dos mortos, e que disso resultaria a expulsão de
alguém que seria lançado ao rio Uaupés e transformado em piraíba. O velho Pedro não
queria ir nem para o céu, nem para o inferno, nem mesmo para o purgatório, queria ir
disputar uma vaga na maloca dos mortos, onde poderia continuar a beber quantas cuias de
álcool com água quisesse. Uma semana foi suficiente para o velho Pedro conseguir o que
queria, Izabel Pimentel foi levada até o Hospital de São Gabriel da Cachoeira e rezou, a
contragosto, um rosário inteiro perante o defunto, acompanhada por Madre Lúcia. Sua mãe
estava lá também, tagarelando com outras mulheres, fazendo contatos para ampliar sua
venda de ovos frescos. A morte do velho Pedro, que tinha trinta e sete anos, em nada
modificaria a vida de Izabel Pimentel, muito menos a vida de Maria Pimentel. A mãe de
Izabel, que tinha também trinta e sete anos, não queria mais saber de casamento, pois
acreditava que já tinha sido espancada o suficiente para ser considerada uma boa mulher
tukano.
Izabel Pimentel também não estava pensando em se casar; seu maior interesse,
naquele momento, era decidir sobre uma proposta recebida na escola, vinda da parte de
Madre Lúcia. A proposta era uma loucura e isso a tornava ainda mais atraente. Madre Lúcia,
que cuidava dos serviços de odontologia na Missão de São Miguel, havia dito para ela que
seus dentes amarelados, em bom estado, mas desalinhados e pontudos, poderiam ser
eliminados e no lugar colocado um par de próteses, com dentes brancos, brilhantes,
perfeitos e esmaltados. Madre Lúcia havia dito que com isso ela podia ficar uma perfeita
moça da cidade, com um sorriso parecido com os das moças das revistas de fotonovelas.
Izabel Pimentel queria saber qual a sensação de um beijo com aqueles dentes maravilhosos
e que ela poderia tirar e pôr a hora que bem entendesse. Ela poderia beijar com dentes,
beijar sem dentes, e por isso estava achando aquilo uma loucura. Uma noite, Izabel decidiu
ficar acordada ouvindo a saparia e folheando, na penumbra do luar que se filtrava para o
dormitório das meninas, uma revista de fotonovelas. E todos os dentes lhe atraíam a
atenção. Chegou à conclusão que só por loucura alguém podia chamar de dentes aquelas
presas que ela tinha na boca. Na outra manhã, para alegria de Madre Lúcia, ela deu início ao
processo de transformar sua boca de bugre em boca de gente. Cada dente extraído, daí para
frente, era como se deixar levar mais uma vez pela exótica maneira de Deus riscar no
mundo a sua sina. Mas o processo não era barato, não seria feito de graça. Madre Lúcia
agora dava as tarefas mais duras na roça para Izabel Pimentel fazer. Todas as louças e
panelas tinham de estar sempre imaculadas pela mão de Izabel Pimentel. O piso de cimento
da Igreja lavado, a poeira dos livros dispersada e as roupas engomadas pela mão de Izabel,
para que ela tivesse lindos dentes na caverna flácida em que sua boca se transformava.
Izabel era uma menina dura quando perseguia algum desejo e agora, enquanto se ocupava
dos muitos afazeres da Missão, divertia-se em cuspir no chão aquelas marcas de sangue que
lhe deixavam um gosto salgado descendo pela garganta. Um dia, Izabel ouviu o Padre
Andreotti discutir de maneira violenta com Madre Lúcia e chamar a freira de louca, de
demente, de insana, por andar extraindo dentes sãos de suas alunas. Padre Andreotti
chamava Madre Lúcia de todas aquelas palavras, com a voz machucando, e Izabel não
conseguia compreender onde estava o mal em ser louca e em querer dar um sorriso de moça
da cidade para uma menina de Iauareté-Cachoeira que tinha o sobrenome Pimentel. Isso
não fazia nenhuma diferença para o Padre Andreotti, e Izabel, preparada, ficou de boca
fechada e olhar de peixe morto quando Padre Andreotti a chamou, certa tarde, e a colocou
sentada em seu colo, acariciou-lhe os cabelos e pediu-lhe que não fosse mais ao consultório
de Madre Lúcia. Izabel ficou só sentindo o cheiro da batina e observando os dentes brancos
do Padre Andreotti, sem se mexer ou ter qualquer outra reação, fingindo submissão. Izabel
sabia que o Padre Andreotti também era um louco, não só pelo que lhe dizia naquele
momento, como também pelas suas atitudes na Missão, carregando um gravador de pilha
para todo lado e gravando os velhos cantos e as velhas histórias que os mesmos
missionários haviam condenado como coisas do diabo e que não prestavam. Ela só
lamentava que ele não fosse louco o suficiente para que ela lhe pedisse para dar-lhe um
beijo. Padre Andreotti, como padre, não beijava como os mocinhos das fotonovelas, o que
era uma loucura em se tratando de um homem tão bonito e que tinha vindo da Itália. Por
isso, Izabel saiu do colo do Padre Andreotti como um xerimbabo ajeitando as penas
amarrotadas pelos carinhos e prosseguiu o tratamento com Madre Lúcia.
Finalmente, no primeiro Natal em que a mãe de Izabel Pimentel passaria sem
espancamentos, Madre Lúcia cometeu a suprema loucura de obrigar um C-47 inteiro da FAB
a transportar de Manaus para Iauareté-Cachoeira um par de próteses dentárias para ela. As
próteses chegaram embrulhadas em papel de chumbo e acondicionadas numa caixa de
despertadores digitais, muito colorida, que Izabel Pimentel iria guardar por muito tempo,
porque trazia uma bela ilustração colorida de uma moça japonesa deitada num campo de
relva e que parecia estar despertando ao som de um relógio digital e mostrando belos dentes
brancos. Na Missa do Galo, a boca de Izabel mostrou todo o seu potencial de encantamento,
quando ela entrou na Igreja e os olhares das meninas convergiram invejosamente para seu
sorriso. O Padre Andreotti, inconformado, pensaria em Izabel como um retrato falado
malfeito, pois os dentes saltavam quase impudicamente do sorriso pré-colombiano da moça.
Ele sabia que era uma loucura achar que duas próteses dentárias poderiam ser indecentes,
mas a opinião, sem que ninguém ao menos comentasse, generalizou-se pela Missão,
sobretudo no meio dos rapazes. Se as meninas de certo modo sonhavam com os dentes
novos de Izabel Pimentel, os rapazes passavam a demonstrar uma evidente repulsa. E claro
que nenhum moço de Iauareté-Cachoeira que honrasse o sobrenome Pimentel iria beijar
dentes tão brancos e muito menos casar com uma boca que podia ficar vazia como a de uma
velha a qualquer momento. Beijar aqueles dentes, pensavam os rapazes, seria como beijar
Madre Lúcia, o que lhes parecia muito bom se a sensação de pecado não fosse tão terrível.
Imediatamente Izabel Pimentel foi alijada do convívio de todas as famílias Pimentel, o que
era uma inominável loucura. Por isso, Izabel Pimentel aceitou sem discutir o convite de
Madre Lúcia para vir trabalhar no Colégio Salesiano de Manaus, onde um par de próteses
não fazia nenhuma diferença. Quinze dias depois Izabel Pimentel embarcaria no C-47 da
FAB, carregando um embrulho de roupas e um velho número de Capricho. Padre Andreotti
foi especialmente a bordo do aparelho recomendar Izabel Pimentel ao comandante e, antes
de desembarcar, já com os motores da aeronave em funcionamento, acariciaria os cabelos
dela e diria com uma expressão contrariada que ela tomasse cuidado, que não se deixasse
maltratar, que ela lembrasse que era uma moça e uma cidadã que tinha direitos, mesmo
sendo filha do desaparecido Pedro Pimentel, um índio baniwa.
O OUTRO CADÁVER

Alfredo Silva, vinte e cinco anos, corpo bem proporcionado para a pouca estatura,
medroso e astuto, corajoso quando estava sozinho e infeliz por lhe terem arranjado o apelido
de Catarro, estava morto e chegou a essa situação depois de compreender que tinham todos
enlouquecido em Manaus. Catarro havia sido o último a ser localizado pelo cerco da Polícia,
quando enchia a cara de cerveja num bilharito do Japiim. Ele tinha se levantado para dar
uma mijada e estava andando, descendo o zíper da braguilha, na direção do terreno baldio
que ficava aos fundos do bilharito, quando viu duas viaturas cinzas da PM estacionarem na
esquina e de uma delas descer o Comissário Frota, o sacana que já o tinha pendurado tantas
vezes no pau-de-arara e que gostava de colocar gelo em seu saco, mesmo quando ele já
tinha dado o serviço. O Comissário Frota era um louco, pensava Catarro, um homem
franzino mas muito aborrecido, impetuoso e cruel quando cercado de outros tiras e procedia
a algum interrogatório, complacente quando aparecia algum advogado ou quando era
obrigado a se envolver em problemas com filhos de família. Mas nos encontros do Comissário
Frota e Catarro, o desgraçado do tira sempre tinha sido inflexível ao absoluto. O Comissário
Frota chegara à conclusão, tirada do fundo de sua experiência policial, que poderia
solucionar todos os problemas de latrocínio em Manaus pela prisão e muita porrada no lombo
de Catarro. E essa certeza já estava ficando incômoda para Catarro, porque não havia crime
ou assalto que acontecesse na cidade que ele não fosse imediatamente capturado, seviciado
e, sem mais outras explicações, libertado, porque o Comissário Frota era incapaz de resolver
o menor problema de roubo de galinhas. Até o apelido de Catarro, que tanto o irritava, tinha
sido consagrado pelo Comissário Frota nas diversas entrevistas que ele dava diariamente à
imprensa. E na loucura da Zona Franca, a única editoria de jornal que realmente fun cionava
era a editoria de polícia. Catarro tinha se transformado numa celebridade – embora não
merecesse a fama – ao exercer o direito de roubar, como batedor de carteiras no Estádio
Vivaldo Lima, o porta-cédulas de um Núncio Apostólico todo paramentado, durante uma
cerimônia do Congresso Eucarístico de Manaus. Flagrado por um nervoso diácono, teve a sua
intenção frustrada e acabou preso. Disse aos jornalistas que fizera aquilo pensando que o
Núncio fosse o Papa, homem poderoso e que sabia ser muito rico, pois era proprietário de
todas as igrejas e faturava com tudo quanto era batizado, casamento e novena. Tinha sido a
maior loucura de Catarro, já que o Papa não costumava andar pelo Estádio Vivaldo Lima,
muito menos com um porta-cédula de plástico recheado por vinte notas de um cruzeiro.
Catarro foi perdoado pelo Núncio, um homem muito bom, que foi pessoalmente na delegacia
confirmar o roubo e perdoá-lo, dizendo que um moço sadio como Catarro não devia andar
furtando porta-cédulas de um Núncio Apostólico pensando que fosse o Papa. O Núncio
deixou Catarro na cadeia por vinte e quatro horas e ofereceu o dinheiro de presente, para
que ele começasse uma nova vida quando saísse. Catarro ficou ofendido com aquilo e jurou
nunca mais roubar outro Núncio Apostólico pensando que fosse o Papa. Afinal, ele não era
nenhum mendigo para sair da cadeia feito um louco com um bolo de vinte cruzeiros em
notas de um. O certo é que Catarro virou celebridade e saiu até numa coluna da revista Veja
com um texto humorístico, embora ele jamais tenha tomado conhecimento do fato.
Catarro viu o Comissário Frota descer da viatura e gritar para que ele ficasse de
mãos para cima e não fizesse nenhum movimento. Catarro não era louco para obedecer a
uma ordem dessas e baixou as mãos para fechar o zíper que estava aberto e sentiu que,
apesar da urgência, ia ter que dar a sua mijada depois, em algum lugar mais seguro. Os
homens que estavam bebendo cerveja com ele no bilharito se jogaram no chão e Catarro
ouviu tiros espoucarem em sua direção, exatamente quando ele desembestava rumo a uma
cacimba, onde duas velhas estavam lavando roupas e começaram a gritar apavoradas.
Catarro saiu se atolando numa vala e notou que a sua calça Levi's, cor de vinho, estava toda
emporcalhada. Catarro não gostava de andar emporcalhado e ficou ainda com mais raiva do
Comissário Frota.
Duas horas depois, Catarro estaria morto sem ter conseguido ao menos aliviar a
bexiga em paz. Por isso, seu corpo foi encontrado sentado quase de lado contra um canto da
cozinha, no meio de uma poça de sangue e urina. Antes de varar os quintais e chegar na
casa onde vivia com sua amante, que a imprensa chamava de Índia Potira, Diacuí ou Izabel
Pirada, e mais dois sócios, o Bacurau, que era um hábil rato d’água na rampa dos Remédios,
e Buraco ou Miss Zona, uma bicha que fazia assaltos a motoristas de táxi, Catarro receberia
uma primeira bala de fuzil, que lhe arrebentaria parcialmente a coxa esquerda. Ele não sabia
que Bacurau e Miss Zona já estavam presos e que a Índia Potira tivera o corpo furado de
balas e estava atravessada, morta, no meio do quarto, vestindo apenas a calcinha cor de
limão que ele tinha dado e que ficava tão bem nela.
Catarro também não tinha tomado conhecimento de que a PM e a Polícia, com quase
cem homens, desenvolviam a gigantesca Operação Grande Zona, mantendo o bairro do
Japiim completamente cercado e vasculhado. Os meganhas e os tiras estavam há quarenta e
oito horas enlouquecendo de curiosidade os moradores do bairro, que não deixavam
ninguém trabalhar em paz, atravessando no meio das manobras, no meio das escaramuças,
como se a Operação Grande Zona fosse uma festa folclórica ou lá o que diabo fosse. A
Operação Grande Zona era o mais recente trunfo do Comissário Frota. Tinha convencido o
Secretário de Segurança a autorizar um batalhão da PM a cercar o bairro do Japiim, pois
tinha tido um sonho onde ele via, lá no meio dos barracos de madeira e palha, os facínoras
que tinham cometido o assalto ao carro pagador da Indústria de Rádios Isagawa do
Amazonas e assassinado à queima-roupa o humilde chofer do carro, um rapaz de Três
Corações, da mesma terra de Pelé, e que tinha, num acesso de loucura, vindo para Manaus
ajudar com seu trabalho o progresso da Zona Franca. Tinha sido um crime bárbaro e o
vigésimo assalto com vítima fatal em menos de uma semana, o que deixava a população
sobressaltada e a polícia em apuros. E claro que nem Catarro, nem a Índia Potira, nem
Bacurau e Miss Zona estavam implicados no assalto ao carro pagador da Isagawa. Disso
ninguém tinha a menor dúvida, nem mesmo o Comissário Frota. Mas numa cidade onde,
proporcionalmente, se cometiam mais assaltos que em Nova Iorque e só pela loucura da
Zona Franca seus habitantes ainda teimavam em chamá-la de cidade pacata, uma boa
demonstração de força e muitos homens em ação ajudariam a tranquilizar a população e até
poderiam lhe trazer alguma boa promoção por parte do governo. A Operação Grande Zona
era, portanto, um acontecimento simbólico. O Comissário Frota elevava o trabalho policial
quase à metafísica com variações de dramaturgia trágica. O Comissário Frota tinha sido um
louco em não ter pensado em algo assim antes, sobretudo quando alguns ladrões tinham
cometido a suprema ousadia de arrombar a própria casa do Secretário de Segurança, de
onde levaram joias, dinheiro, uma televisão colorida e um aparelho de som de 120 watts de
saída.
Antes de ter o nome incolor de Alfredo Silva trocado pelo sonoro apelido de Catarro,
até que ele era um bom rapaz, que usava um par de botas negras, uma calça Levi's cor de
vinho, camisa colorida de Hong Kong e óculos escuros. Em todo o bairro do Japiim, onde
sempre viveu desde que chegou a Manaus, era o único rapaz que usava botas e óculos
escuros. Que soubesse, era realmente o único e para ele isso era ao mesmo tempo o
máximo de integração aos costumes da capital e uma expressão de virilidade. Achava que
para seu patrão, um major reformado do exército que gerenciava uma Empresa de
Segurança ao Patrimônio e oferecia guardas para bancos e mansões, as botas e os óculos
escuros estavam perfeitamente aprovados pelo ar vaidoso e petulante que ele adquiria.
Embora o major sempre tivesse a cara amarrotada de ressaca, era como descobrir, no fundo
daquela expressão de dor de cabeça crônica, a aptidão que ele tinha para usar botas e
óculos escuros. Mesmo assim, foi um dia posto na rua, com botas e óculos escuros, porque
dormira no serviço e tinha deixado que arrombassem o Opala Caravan do chinês proprietário
da loja importadora, onde estava dando guarda todas as noites. Ele ficou muito aborrecido
pela injustiça, não tanto pelos caraminguás que ganhava de salário para não pregar os olhos
a noite toda, com o ouvido colado num radinho de pilha ouvindo um programa de músicas do
tipo arranca-lágrimas-de-puta e muita baboseira do locutor, mas por ter perdido o direito de
portar o revólver Taurus calibre 38 que costumava girar nos dedos para os amigos que
bebiam cerveja na mesa do bilharito. Sentiu também que sem a farda azul-claro, com divisas
nos ombros, o quepe de napa mole, perdia o status de homem da lei que tanto fascinava as
meninas da sessão da meia-noite no Cine Guarani, com os filmes de caratê e chineses
franzinos que faziam o diabo. Fardado, também podia fazer o diabo com as meninas, e foi no
meio de um filme de caratê que ele conheceu uma mulherzinha de cabelos corridos e com
um par de dentaduras magníficas.
Era uma dona completamente louca e sempre andava repetindo que Deus escrevia
certo por linhas tortas, mesmo quando se metia numa encrenca na boate O Selvagem, o
mais animado e turbulento dos prostíbulos e santuário máximo da vida noturna da Zona
Franca das Cem Mil Putas. Ela parecia louca mesmo e acabou fazendo dele o seu xodó. Era
meio desmiolada e gostava de beijos, se bem que nunca tivesse sido beijada na vida.
Ninguém queria beijar uma marafona, ainda mais uma marafona que usava dentaduras. A
primeira vez que ele se irritou a sério, foi justamente pelos pedidos de beijos que ela fazia e
que ele recusava dizendo que não era nenhum louco para andar beijando vagabundas
desdentadas. A coisa tinha sido muito séria, ele tinha descido verdadeiramente a lenha nela,
e só não tinha desancado a mulher de uma vez porque os vizinhos da estância vieram em
socorro e desapartaram. Na verdade, essa história de encher a cara dela de porrada tinha
virado uma mania, e ela parecia gostar muito. No puteiro O Selvagem todo mundo a
conhecia pelo apelido de Índia Potira e diziam que era realmente uma índia. Seus amigos de
cerveja no bilharito começavam a sacanear, dizendo que ele tinha virado funcionário da
Funai, mas ele não deu muita importância, pois não tinha a menor ideia do que fosse ser
funcionário da Funai.
A Índia Potira tinha fugido do Colégio Salesiano e conseguira um emprego de
operária num dos turnos da fábrica de fitas cassete Sayonara Eletrônica. Um emprego que
lhe arrasava totalmente a disposição. Era uma loucura para a Índia Potira, com sua
dentadura, passar oito horas num cubículo iluminado a neon, com dois ventiladores que
soltavam ar quente, entre divisões de grades de arame, soldando intermináveis transístores
em circuitos impressos, ou adicionando pinos de plástico em envoltórios para fita cassete. No
fim do turno, todas as funcionárias passavam pelo setor de segurança, onde eram
vistoriadas pelos guardas para ver se não estavam roubando nada. A Índia Potira não
gostava nada de ter as mãos nojentas de um guarda qualquer apalpando o seu traseiro
todos os dias, só para saber se ela não teria enfiado algum transístor no rabo. Acabou
comprando um vestido de brocado japonês, bem curtinho, e frequentando a boate O
Selvagem, seguindo o convite de um chofer de táxi, seu primeiro cliente e que lhe deixou
uma boa grana. A Índia Potira achou que seria uma loucura se voltasse a trabalhar na
fábrica Sayonara Eletrônica, onde ganhava uma mixaria por mês e uma dedada por dia,
quando numa só noite e em cada dedada ela podia faturar dez vezes o maldito salário que
aqueles filhos da puta pagavam. Foi quando encontrou o Catarro, que já conquistara
celebridade por ter roubado a carteira do Núncio Apostólico e estava trabalhando na
fiscalização dos pivetes que ficavam na rua Guilherme Moreira oferecendo fitas de vídeo de
sacanagem, canetas Cross falsificadas e pomadinha para passar no cacete, aos turistas que
perambulavam pelas lojas de importados.
Catarro estava prosperando no negócio da Zona Franca, lucrando muito com a venda
de canetas, de pomada afrodisíaca que era Vick Vaporub e muito mais nos vídeos, que não
passavam de um pedaço de madeira coberto por uma embalagem de papelão onde estavam
coladas fotos de revistas pornográficas. Catarro comprava a pomadinha a dez merrecas nos
navios e revendia a oitenta. Um vídeo pornográfico de mentira custava até trezentos
cruzeiros e não era raro um turista cair na arapuca e esconder apreensivo a embalagem
comprometedora na bolsa Sansonite que acabara de comprar. A Índia Potira achava Catarro
um cara muito vivo e não entendia por que ele cultivava a loucura de não querer beijá-la.
Catarro não tinha tido a mesma sorte dela quando veio para Manaus. Era até um cara legal,
que havia lhe dado uma calcinha cor de limão e deixava que ela ficasse em casa bem à
vontade, mesmo quando Bacurau e Miss Zona estavam lá e olhavam para a sua calcinha cor
de limão e para os peitinhos em forma de cone.
Catarro veio para Manaus porque não tinha mais saco de passar as noites acordado,
com um terçado numa das mãos e um candeeiro de querosene na outra, vigiando a
maromba das galinhas para que nenhuma sucuriju, malditas cobras que nadavam com
incrível agilidade não viessem durante a noite, em silêncio, provocar baixas na criação de
seu pai. Todos os anos era isso, na palafita de seu pai bem na margem do furo do Cambixe,
a algumas horas de motor de recreio de Manaus. Todos os anos o rio começava a encher e
invadia tudo e eles eram obrigados a ir suspendendo o piso da casa e pondo os bichos em
marombas para que não morressem afogados, nem as piranhas, poraquês e sucurijus
viessem matá-los. Seu pai achava tudo muito natural e não perdia nunca a paciência, achava
mesmo uma loucura que aqueles assistentes sociais viessem todos os anos com a mão na
cabeça, querendo dar injeção, querendo dar dinheiro que ele não recusava e tentando
convencê-lo de que deveria colocar a sua casa em terra firme, onde seria um absurdo morar.
Catarro tinha dado duro na rampa do Mercado carregando banana e depois, no Ceasa,
empilhando caixas de laranjas, até comprar um par de botas negras, óculos escuros e uma
calça Levi's cor de vinho. Mas nada se comparava com a delícia de se sentar numa mesa de
bilharito do bairro do Japiim, beber cerveja e ouvir uma música de zona. E se Deus
realmente escrevia alguma coisa, como vivia repetindo a Índia Potira, era na mesa daquele
bilharito que Ele fazia as suas mais inspiradas linhas, ainda que tortas.
O Comissário Frota estava com o paletó aberto e a gravata italiana convenientemente
frouxa e arriada sobre a camisa desabotoada que deixava um tufo de pelos à vista, tudo
para mostrar aos repórteres o quanto ele estava exausto depois de quarenta e oito horas de
vitoriosa operação. Os repórteres não davam a mínima importância para o tufo de cabelos do
peito dele, nem para seu cansaço, o que era uma ingratidão da parte deles, pensava o
Comissário. Mas ele tinha certeza de que os repórteres saberiam cumprir a parte que lhes
tocava e que os jornais contariam, com os seus estilos parecidos, o sucesso da Polícia. Um
repórter amigo se aproximou e tocou em seu ombro, mas logo retirou a mão ao sentir com
um certo nojo mal disfarçado que a camisa do policial estava encharcada de suor. O repórter
tinha um bloco de notas em branco na mão e ficou comentando que era uma loucura a
maneira de Catarro morrer, numa poça de urina e sangue. E lembrou que a Índia Potira
tinha um par de seios em forma de cone, e que também era outra loucura ela estar ali só de
calcinha cor de limão, furada de balas. O Comissário Frota estava certo de que operações
como aquela poderiam bem ser repetidas uma vez por ano, para dar um pouco de
movimento à rotina da Polícia. O repórter parecia um índio desenhado a crayon, a boca
sarcástica e os olhos amarelos sem nenhuma esperança de inteligência. Era o repórter
policial mais brilhante de Manaus e escrevia verdadeiros editoriais na página de polícia,
lamentando a falta de meios com que os policiais trabalhavam e a benevolência com que a
Justiça parecia aquinhoar os meliantes, liberando ladrões e assassinos por meio de
abomináveis habeas-corpus. Quem lia aqueles artigos ficava pensando que o autor era um
cara que gostava de brigar e que por isso mesmo era um rematado idiota. O Comissário
Frota se esforçava para ganhar uma expressão horrível de cansaço, mas ficava cada vez
melhor e mais saudável, o suor secando com a brisa que sacudia o mamoeiro onde um praça
da PM estava tentando derrubar um mamão maduro todo picado pelos sanhaçus. O repórter
queria saber se os bandidos não teriam alguma ligação com o narcotráfico e ouviu o
Comissário Frota resmungar, contrariado, que eram dois cretinos que nunca seriam aceitos
nem mesmo como mulas pelo mais idiota dos colombianos.
O Comissário Frota passou o lenço pelo pescoço, que já estava totalmente enxuto,
sentiu naquele momento que era o homem mais virtuoso que existia. Sentia uma virtude tão
grande que era uma abominação alguém se sentir assim. Era como uma vontade de querer
arrotar e não poder, por isso foi saindo enquanto os flashes dos fotógrafos piscavam lá no
quarto. O Comissário Frota pensou o quanto era louco o fato da Índia Potira possuir um par
de seios em forma de cone e usar dentaduras, para não falar da calcinha cor de limão toda
rendada.
Catarro nem sentiu a bala do fuzil arrancar a carne de sua coxa esquerda, pensou que
fosse algum capim-serra que tivesse arranhado a sua calça cor de vinho e nem olhou para
não ver a bainha larga emporcalhada de lama. Ele queria chegar até em casa e pegar a Índia
Potira, sem saber bem por que fazia isso. Tentou subir num único salto a pequena escada
dos fundos e sentiu pontadas nas costas que aumentaram a vontade de mijar. Sentiu sede e
entrou na cozinha procurando o pote e pensou que era uma loucura a Índia Potira andar
dizendo que Deus escrevia certo por linhas tortas. Ela dizia umas coisas engraçadas, típicas
de uma louca, como naquela vez em que ele saiu todo esborrachado da Central de Polícia e
ela cuidou dele, colocando arnica nas pancadas e dizendo que ele não devia deixar que os
tiras o maltratassem, que ele era um cara que tinha direitos, um cidadão, mesmo sendo filho
de um ribeirinho que via a sua casa alagada todos os anos. Ele não tinha conseguido sacar
absolutamente nada do que a Índia Potira queria dizer com aquilo e achou que ela falara por
falar.
Catarro sentou-se no canto da cozinha, o corpo pendeu para o lado e ele pensou que
estava muito cansado. Sentiu que não mais conseguia prender a urina e deixou que ela
escorresse pela calça com volúpia, sentiu a perna ardendo, as costas ardendo e estava
suando muito. Deixou que um pensamento entrasse em sua cabeça: pensou que a Índia
Potira era uma dona muito louca, e que se Deus escrevia tudo aquilo, não era só o caso de
escrever por linhas tortas, é que Ele tinha certamente uma péssima caligrafia.

(A Caligrafia de Deus)

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