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Plano de Disciplina
1. IDENTIFICAÇÃO
2. EMENTA
3. OBJETIVOS
Geral:
Compreender a Literatura Amazonense como um fenômeno social e histórico.
Específicos:
Estudar aspectos relevantes de textos literários dos períodos indicados;
Aulas expositivas;
Leitura de contos e poemas em sala de aula;
Discussão, em grupo, de textos teóricos;
Exibição de filme(s);
Resolução de exercícios.
5. AVALIAÇÃO
6. REFERÊNCIAS
Local/Data: Local/Data:
Outra tese admite que as índias avistadas por Carvajal seriam mulheres
rebeladas contra o patriarcado e que, por tal motivo, resolveram se separar dos
homens. O que vem a ser, no entanto, patriarcado? A partir do momento em que o
ser humano passa a dominar a agricultura e a pecuária, ele deixa de ser nômade,
não mais tendo necessidade de vagar atrás de alimentos. Então, tem origem a
família e o mando passa a ser do homem. Isso é o patriarcado, fenômeno que nos
mitos indígenas tem sempre uma narrativa a ilustrá-lo. Aliás, foi com base nessa
concepção, que Márcio Souza escreveu uma peça intitulada “Jurupari, a guerra dos
sexos”.
Uma última referência a respeito da origem do nome deve ser feita: o termo
“amazonas” significaria “as sem seios”. O vocábulo se formaria com o prefixo
negativo a (sem) e o termo grego mazon (seio). Trata-se aí de nítido transplante
cultural, pois Carvajal não faz referência à ausência de seios, coisa que ele teria
notado.
Seja qual for a tentativa de interpretação, o mito das amazonas ainda está
aí, a nos desafiar. Ele faz parte do imenso e complexo imaginário amazônico.
Observações complementares
Trechos selecionados
Do Canto 3o.
CANTO IV
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EPISÓDIO DO Mas um velho d'aspeito venerando,
VELHO DO RESTELO Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
95
—"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
[.........................]
102
Proposição Proposição
Invocação Invocação
Oferecimento [................] *
Narração Narração
Epílogo Epílogo
CONTEXTO HISTÓRICO
Décadas de 1720 e 1730: revolta dos índios do rio Negro, sob o
comando de Ajuricaba.
Portugal, ao contrário de Castela (Espanha), tinha apenas duas
colônias na América: o Brasil e o Grão-Pará.
A imprensa era proibida, daí por que o manuscrito da Muhuraida teve
de ser enviado a Portugal.
OUTRO TRECHO DA MUHURAIDA
Do Canto 6o.
(...)
Wilkens inspirou-se em Luís de Camões para compor seu texto. Tal como em
“Os Lusíadas”, as estrofes têm oito versos decassílabos e as rimas são dispostas da
mesma maneira: abababcc. É, porém, sensivelmente menor que a epopéia
camoniana, que tem 10 cantos, 1102 estrofes e 8816 versos. A “Muhuraida” tem
apenas 6 cantos, 134 estrofes e 1072 versos.
Essa situação foi adaptada por Wilkens ao enredo de seu poemeto épico.
Assim, quando os muras estão prestes a aceitar o cristianismo, um velho se levanta
e, tal como o do Restelo, recorda aos mais novos as tradições tribais. Está irado
como o seu correspondente luso. E recorda a todos que os brancos é que foram os
traidores:
Bem recebidos pelos muras, que jamais impediram que navegassem pelo
Madeira, os colonizadores lhes deram, em troca,
Apesar dos protestos do ancião mura, ninguém lhe dá ouvidos, tal como
ninguém prestara atenção ao velho do Restelo. O final, portanto, é “feliz”, pois
vinte jovens índios são levados à pia batismal, numa demonstração de que a luz
brotara no interior dos “bárbaros”.
IDÍLIO
1o.
Um dia, que apressado
O manso gado trouxe ao seu aprisco,
Por poder sossegado
Ir banhar-me no rio, sem o risco
Da Onça tragadora,
A cria vir roubar-me à mesma hora.
2o.
Quando já mergulhando
Nas ondas té ao centro m’entranhava,
Ou sobre a água olhando
O delfim nadador arremedava;
E entanto o claro dia
C’os esforços da noite mal podia.
3o.
À praia me recolho;
E, tomando o vestido, um murmurinho
Sinto da esquerda! olho:
É um bando de Ninfas, que o vizinho
Igarapé descendo,
Com pressa ao largo rio vem rompendo.
4o.
Queto me ponho a ouvi-las,
Por ver o que diziam, pois falando
Entre si vem: senti-las
Fácil me foi; mas eu vou duvidando,
Que acertar possa o fio
Das cousas que diziam pelo rio.
5o.
“Vamos, ó Ninfas, vamos
“Render ao Maioral nossa homenagem.
“Parece que tardamos!
“Eia pois, avistemos a paragem,
“Onde o Chefe Subido
“Há dias, por doença, está detido.
6o.
“Estamos aqui juntas
“As Ninfas tutelares destes rios,
“E vem-nos adjuntas
“Muitas que os lagos têm por senhorios:
“Todas Martinho honremos,
“Façamos, Ninfas, tudo o que devemos.
7o.
“As ágoas mais sadias
“Para qui n’alta enchente encaminhadas
“Sejam, e nestes dias
“As flores junto ao banho amontoadas:
“Os ventos chamaremos,
“E que brandos respirem, lhes rouguemos”.
8o.
Umas assim diziam;
Porém outras, parando concertavam
Os versos que traziam,
Em que o bom Maioral muito louvavam;
Aquelas afinando
Os retorcidos búzios, e cantando:
9o.
Já uma entoa, como
Havia o bom Martinho navegado
O Amazonas, e como
O Guamá, Tocantins há visitado,
E a mil rios distantes
Por ver, e dar auxílio aos Habitantes!
10o.
Cantam outras Deidades,
Como fora com festas recebido;
E quantas saudades
Os povos de seus rios têm sentido
Depois; como se sente
A nova da moléstia impertinente.
11o.
Prometem logo aquelas,
Qu’em melhorando, ao Deus da Medicina
Têm de levar Capelas
Da branca sumaumeira, muito fina,
C’os ramos enlaçados
D’umiri por cheirosos procurados.
12o.
“Oxalá que depressa
“As Tutelares Deusas destes rios
“Cumpram sua promessa...”
Clamei então; mas ah! meus votos pios
As Ninfas assustaram!
Todas ao seu destino se apressaram.
SONETO
A um passarinho, quando o Autor sofria vexações
SONETO
Ao Sr. José Eugênio de Aragão e Lima, professor de Filosofia,
amigo do Autor, quando ele foi perseguido, preso e desterrado
SONETO
O DESTERRADO
Na foz do rio Negro em 1842
De amores embriagada
A rola suspira aqui;
Com estes vivos perfumes
Tudo ama, folga, e ri!
Mas oh! que tem mais encantos
A terra aonde eu nasci!
(Cantos matutinos)
TORQUATO TAPAJÓS (1853-1897)
SAUDADES
à minha família
(Nuvens Medrosas)
O DESCRENTE
Que mais queres? De ti aborrecido
Procuro a solidão.
Lá mesmo vais levar a meus ouvidos
O rir da multidão!
(Nevoeiros)
Um artista não existe fora do tempo e do espaço. Seu talento também não é
um dom divino. A têmpera lírica se molda em condições históricas que podem lhe
ser favoráveis ou desfavoráveis. Nesse sentido, um exemplo clássico de poeta
bafejado pela sorte está em Luís de Camões. Nasceu no século 16, período da
decadência econômica de Portugal. Uma revolta surda havia nas consciências dos
indivíduos, em todo o país. O momento estava maduro para o surgimento de uma
epopeia, que revivesse e imortalizasse, no texto literário, a antiga glória
portuguesa. Para cumprir a decisão da História, ali estava Camões, que criou “Os
Lusíadas”.
RIO NEGRO
Na terra em que eu nasci, desliza um rio
ingente, caudaloso,
porém triste e sombrio;
como noite sem astros, tenebroso;
qual negra serpe, sonolento e frio.
Parece um mar de tinta, escuro e feio:
nunca um raio de sol, vitorioso
penetrou-lhe no seio;
no seio, em cuja profundeza enorme,
coberta de negror,
habitam monstros legendários, dorme
toda a legião fantástica do horror!
(Cantos Amazônicos)
Dados biográficos
Nasceu Quintino Cunha na vila de São Francisco de Uruburetama, atual Itapajé, no
dia 24 de julho de 1873. Veio para a Amazônia na condição de rábula, advogando sem
possuir o diploma. Em 1909 voltou à terra natal, completando, então, o curso de Direito.
Antes, quando ainda vivia no Amazonas, viajou à Europa, oportunidade em que publicou em
Paris, em 1907, o livro Pelo Solimões.
Consagrou-se como orador, repentista e boêmio. Foi também deputado estadual no
Ceará nos anos de 1913 e 1914. Casou-se várias vezes e, devido à vida desregulada que
levava, passou por muitas dificuldades financeiras. No dia 1 o. de junho de 1943, em
Fortaleza, veio a falecer.
Dados biográficos
Nasceu o poeta em Barra do Corda, Maranhão, no dia 25 de dezembro de 1879,
tendo-lhe sido dado um nome pomposo: José Américo Augusto Olímpio Cavalcanti dos
Albuquerques Maranhão Sobrinho.
Segundo Andrade Muricy, “pertenceu à mais brilhante geração literária maranhense,
que abrangeu Graça Aranha, Coelho Neto, Humberto de Campos, Viriato Correia e Catulo
Cearense, elementos cujo renome se irradiou pelo País”.
Demonstrando pendores literários desde a juventude, ajudou a fundar, em 1900, a
famosa Oficina dos Novos e, em 1908, a Academia Maranhense de Letras.
Atraído pelo ilusório fausto criado pela borracha, veio para Manaus. Aqui continuou a
boêmia que o caracterizava. Conta-se que era comum escrever seus poemas nas mesas dos
bares, em estado de completa embriaguez. Faleceu no bairro da Cachoeirinha, exatamente
no dia em que completava 36 anos, ou seja, no Natal de 1915.
Obras poéticas
Papéis Velhos... roídos pela traça do Símbolo. [São Luís] 1908.
Estatuetas. [São Luís] 1909.
Vitórias-Régias. [São Luís] 1911.
Poemas selecionados
A respeito de “Soror Teresa”, Affonso Romano de Sant’Anna, no livro O Canibalismo
Amoroso, de crítica psicanalítica, comenta, embora de forma sucinta, esse poema de
Maranhão Sobrinho. Refere-se à religiosa como uma recriação de Santa Teresa, obsessão
comum aos poetas da época. Diz-nos mais: a morte foi “descrita à luz de uma vela, que
derrama seu óleo, numa simbolização do último espasmo mítico da monja”.
“Cromo” e “Vencendo o Saara” são, respectivamente, parnasiano e simbolista. Em
“Cromo”, descreve-se o pôr-do-sol. Um bom exercício literário seria comparar esse texto
com o “Anoitecer”, de Raimundo Correia. “Vencendo o Saara” apresenta-nos, a partir da
técnica simbolista, a face religiosa do poeta.
SOROR TERESA
CROMO
(Ibidem)
VENCENDO O SAARA
(Ibidem)
JONAS DA SILVA (1880-1947)
Em 1900, último ano do século XIX, Jonas da Silva estreou nas letras com o livro
Ânforas, em que eram patentes as influências de um poeta muito famoso naquele tempo: o
fluminense B. Lopes, autor de Brasões. Dois anos depois, publicou Ulanos, quando então sua
poesia ganhou plenitude, com as marcas da subjetividade do poeta enfim livre de
influências. É considerado um grande simbolista, a propósito do qual Assis Brasil, que
indevidamente o incluiu em A Poesia Piauiense no Século XX, assim se expressou: “A poesia
de Jonas da Silva se sustenta por si só, num momento em que estava no auge o Simbolismo
no Brasil. Pelo vigor poético de sua obra, o parnaibano se coloca, histórica e esteticamente,
na linha de frente da escola que teve tantos poetas significativos no Brasil”.
Dados biográficos
Jonas Fontenelle da Silva é natural de Parnaíba, no Piauí, onde nasceu a 17 de
dezembro de 1880. Quando tinha onze anos de idade, a família, também atraída pelo
dinheiro “fácil” da belle époque, transferiu-se para Manaus.
Estudou no Rio de Janeiro, tendo-se formado em Odontologia em 1899. Ali também
publicou seus dois primeiros livros de poemas. Mais tarde, regressou a Manaus, cidade em
que exerceu sua profissão por aproximadamente cinquenta anos. Associou-se a um irmão e
fundou, em 1912, a Empresa Cinematográfica Fontenelle.
Pertenceu às Academias de Letras do Amazonas e do Piauí. Faleceu em Manaus no
dia 5 de junho de 1947.
Obras poéticas
Ânforas. Rio de Janeiro, 1900.
Ulanos. Rio de Janeiro, 1902.
Czardas. Manaus, 1923.
Poemas selecionados
“Coração” é o mais conhecido e elogiado texto do poeta. Segundo José dos Santos
Lins, na Seleta Literária do Amazonas, é um “conhecidíssimo e primoroso soneto, joia da
literatura brasileira, vertido para numerosos idiomas”. Nele se expressa a tônica da poesia
de Jonas da Silva: o pessimismo, aliado à total incapacidade de reação.
Em “Lago Maldito”, encontramos a postura romântica de comparação entre a
natureza e o íntimo do eu lírico. Se em “Coração” o poeta já não pode amar, neste é o
ceticismo, ou pior ainda, a descrença em Deus, que o aterroriza. Dirigindo-se a uma mulher,
é como se buscasse no amor um bálsamo para suas dores. Porém, não mais lhe é possível
amar...
O último texto – “Terra Natal” – recria, com concepções simbolistas e decadentistas,
o velho tópico romântico do exílio, o qual tantas vezes já ilustramos nesta antologia.
CORAÇÃO
(Ulanos, 1902)
LAGO MALDITO
(Czardas, 1923)
TERRA NATAL
(Czardas, 1923)
ALBERTO RANGEL (1871-1945)
MAIBI
Uma figura alentada e bruta, com a bocaça mascarada pela franja da bigodeira ruça,
dizia a outra personagem, chupada, esfanicada de sezões e mau passadio, com uns raros
pelos duros nos cantos dos lábios e no queixo prognato:
– Então, o negócio está feito... estamos entendidos. Você nada me deve e deixa a
Maibi com o Sérgio.
– Sim senhor, respondeu o escanzelado, retendo um suspiro.
Pronunciava-se este diálogo junto ao balcão, no armazém, entre o tenente Marciano,
dono do Soledade, e um seu freguês, o Sabino da Maibi. Quando a operação hedionda
finalizou assim, de uma assentada, entre os dois homens, o sol descambava mordendo o
friso verde-negro da mata, e a luz de fora filtrava-se por entre as brechas das paxiúbas mal
ajustadas, no barracão, como se coada fosse por entre as barras férreas de um calabouço,
guardando dois réprobos.
Mas, que negócio fora afinal firmado? O Sabino devia ao patrão sete contos e
duzentos, que a tanto montava a adição das parcelas de dívidas de quatro anos atrás, e
cedia a mulher a um outro freguês do seringal, o Sérgio, que por sua vez assumia a
responsabilidade de saldar essa dívida. O mais comum dos arranjos comerciais, essa
transferência de débito, com o assentimento do credor, por saldo de contas.
A troca interessava ao patrão, que ficava mais seguro com o Sérgio, rapaz afamado
como trabalhador insigne. E o Sabino iria labutar com ânimo, na esperança, agora bem
realizável, de tirar saldo no fim do ano. Com a mulher, a sua peia maior também tinha
desaparecido: os sete contos e tanto, que neles pensar era se lançar pela certa num
deplorável estado de desalento. Compreendia o Sabino que, em companhia da esposa, por
mais que trabalhasse, nunca pagaria a dívida crescente e escravo se tornava. O débito era
um par de machos...
“Tirar saldo” é a obsessão do trabalhador, no seringal. E como não ser assim, se o
saldo é a liberdade? O regime da indústria seringueira tem sido abominável. Instituiu-se o
trabalho com a escravidão branca! Incidente à parte na civilização nacional, determinaram-
no as circunstâncias de uma exploração sem lei. O código surgiu mesmo nas contingências
da luta. Não por intimações de uma autoridade, que não existia; mas por acordo tácito entre
todos. Demais, fora preciso organizar, em plena selva aquilo de que o pensamento social do
país, focado na Rua do Ouvidor, não a cogitara nunca. Dir-se-ia uma nação de malandrins,
um país de cocagne; jamais se sentiu a necessidade de dar ordem ao trabalho, como se este
a ninguém preocupasse. Incrível dizer-se – foram seringueiros que golpearam a lei
fundamental da nação livre! Porquanto aconteceu então, ante condições especialíssimas o
que se houvera seguido espontaneamente não bastava. Um seringal, em fim de contas, não
era a estância de gado, nem a fazenda de café, nem o engenho de cana. O que satisfazia na
campanha do Rio Grande, no oeste de São Paulo, no interior de Pernambuco, não era
suficiente no Madeira, no Purus, no Juruá. Desde logo o que a legislação não previu, a
indústria nascente fundou. Não era o exercício de simples crueldade; mas o resultado dos
interesses do capital que instituíra a sua própria defesa. Lógico, pelo menos fatal. Os
estatutos da nova sociedade, que quis viver, receberam esta base: não poder o seringueiro
abandonar o seringal, sem estar quite para com o patrão.
Por isso, em muitas ocasiões, dera ao Sabino o ímpeto de sacudir fora o balde de
leite, cruzar os braços na estrada, nela ficando hirto, até a morte sobrevir; outras vezes,
pensara em correr os riscos de roubar uma canoa e fugir para Manaus... Chegar de sua
terra, no insólito desejo de fortuna, para estabelecer-se um dia no Sitiá, com o campo de
panasco e uns novilhos e cabras; e, em troca, ali ficar no estranho deserto alagadiço de um
fundão do Amazonas, comido de “praga”, e a cair de sezões! Com a situação, que se lhe
oferecia, de solvado o seu pobre coração renascia. Haveria de voltar à sua terra, se Deus
quisesse!
Bem tempo fazia que deixara o baixo Amazonas, primeira etapa de seu êxodo de
condenado. Lá trabalhara três anos sem vantagem. Afora um pouco de “tapuru”, a seringa
era “fraca”, “itaúba”. No lago do Castanho, casara-se com aquela cabocla, linda cunhã,
enguiço núbil, tentação que lhe chegara para atrapalhar a vida, pois, se tivesse vindo
sozinho, nessa época, labutar no alto, na seringa, estaria certamente a essas horas, no seu
querido Ceará. Era verdade que, em companhia da Maibi, mais doce lhe correra a
existência... Contudo, tinha sido um atropelo. Conseguira desenvencilhar-se, mas ganhando;
tinha saudade, porém, da "danada" cabocla. Ah! os olhos dela, tingidos no sumo do pajurá;
o andar miúdo e ligeiro de um maçarico; ah! os seus cabelos do negror da poupa de mutum
“fava”; o vulto roliço... As carícias ardentes da moça iriam agora aplicar-se em outro... Nos
braços de outro ela se arrebataria em juras e suspiros... Fora-lhe bem duro apartar-se; mas
“era o jeito”. E o seringueiro procurava abafar pensamentos que o incomodavam...
O certo é que, ao sair do armazém, a sensação do Sabino foi a de desafrontado de
carregosa canga.
O dia, um domingo de março, era de movimento no barracão; os fregueses das
barracas do seringal vinham em visita e a negócios. Escasseavam a farinha-d’água, o
pirarucu e o jabá, mas o “vapor da casa” estava para chegar com o aviamento. E a gente
afluía, insofrida, a buscar mantimentos, e curiosa de uns “brabos” que o vapor traria; mas,
no fundo, convergida pelas exigências irrevogáveis da sociabilidade, cada vez mais intensas
no regime de isolamento que os devorava.
Ao anoitecer, grande número de fregueses enchia a sala maior do barracão, para a
“rocega”. A gaita começava a soar nos soluçosos bemóis de uma valsa ronceira. E então,
aqueles homens, no meio dos quais havia apenas duas mulheres, se agarraram aos pares,
desabalando-se a dançar sobre o soalho flácido e ondulado das paxiúbas. Um “farol de gás”
se prendia ao pendural das tesouras, no travejamento quase perdido no fumo envolvente do
tabaco. Cessada a música, era o rumor alto de conversa e risadas, até que a harmônica
incansável e fanhosa gemesse novos compassos.
Tarde da noite, a uma observação do tenente: “basta por hoje, rapaziada!” a sala se
esvaziara. Os seringueiros demandaram os pousos. O barracão ficara acaçapado e tétrico,
mais negro ainda na noite onde fuzilava, entreluzindo, o pequenino diamante azul de uma
única estrela abandonada.
A primeira cara que o Marciano viu, pela manhã seguinte, foi a do Sabino. O patrão
disparou logo:
– Está arrependido? Se quiser, pode ir para outro seringal; não me desgosta. Se
deseja ficar, também pode... Não proíbo... Faça o que entender.
O Sabino declarou que não se havia arrependido; não metia o pé atrás, e que queria
trabalhar, mas em “colocação, no centro”. Tencionava ficar na do Paulino, que morrera,
havia quatro dias passados, picado por uma tucanaboia. A estrada de dois “frascos” e meio
não era grande cousa, mas sempre influía. Demais, contava que “seu” tenente lhe aviasse
todo o pedido. Não era muito: uma tarrafa, um par de calças de zuarte, pílulas “carapanã” e
“taurinas”, caixas de bala, a farinha e o pirarucu; cousas que um homem degradado
naqueles mundos não podia prescindir. Deveria então começar a roçar a estrada? Na semana
que entrava, queria estar “sangrando as madeiras”...
O tenente assentia com desusada benevolência:
– Pois sim! Pois sim!... Há de se arranjar tudo... O “Rio Yaco” chegará por estes
dias...
Com efeito, uma semana depois, o vapor atracava ao Soledade, no alvoroço da gente
insofrida em aguardá-lo. Muitas horas levou a despejar carga. Algumas reses foram atiradas
do portaló para a água, onde caíram, nadando expeditas para a terra. Caixas, paneiros,
fardos e garrafões passavam pela prancha, atropeladamente, como se fossem baldeados por
contrabandistas em pânico. Numa agitada faina, tudo se amontoava em terra, a fim de ser
transportado ao armazém, a não ser o gado disperso, que aparava os brotos, espontando as
canaranas na beira.
Com o carregamento desembarcara o pessoal, que o guarda-livros fora buscar ao
Ceará. Umas vinte cabeças, gente do Crato e de Carateús. Os agenciados tinham sido, no
porto de Camocim, cinquenta ao todo. Mas uns haviam fugido no Pará, outros em Manaus e
cinco haviam “dado o prego” com as febres.
“Oh! canalha safada!” tal a frase que o empregado entremeava, a cada passo,
aludindo aos engajados, no relatar facundo, ao Marciano, os trâmites da missão de que fora
incumbido. Um subprefeito, em Manaus, a quem dera queixa, ninguém mandara ao encalço
dos homens foragidos no Mocó... Estava toda a campanha amaldiçoada em trinta contos. O
guarda-livros culpava também do desastre da expedição à “casa aviadora”, porque esta
demorara em Belém a partida do navio, e o gerente tinha “quebrado o corpo”, recusando-se
a adiantar os “borós” para acudir ao sustento do pessoal...
O momento chegou, em plena noite, que o “Rio Yaco”, estrepitoso do vapor vomitado
pelo tubo de descarga, recolhida a prancha, desamarrados os cabos, largou brandamente do
barranco. Um apito roncante de “sereia” ecoou sinistro, ululando no ermo.
Após o berro da despedida do “gaiola”, a vida no Soledade seguiu o curso normal. Da
célula central – o barracão, irradiavam outras células – as barracas, no sistema orgânico
dessa fraca e fundamental urdidura, que cobre léguas quadradas com o trabalho de alguns
homens apenas. Pelos varadouros e igarapés, os aviamentos parciais eram transportados
pelos “fregueses do toco”, em jamaxis ou canoas.
Marciano, antes da dispersão dos novos fregueses, os reunira na vasta sala do
Soledade e lhes dirigira uma fala. Exigia trabalho e freguês com saldo. Isto de gente
devendo, não era com ele. Não queria saber de histórias, queria borracha! E, desprezando
escrúpulos e cuidados na conservação da riqueza florestal, com que a boa Natureza lhe
presenteara, resumia brutalmente, na homilia, o programa absurdo da sua exploração:
“Quem for tatu que cave; quem for macaco que trepe”. Explicava esse lema bizarro. Não se
opunha que as seringueiras fossem lavradas das raízes aos galhos, num decreto de extinção
formal. Construíssem mutás: arapucas desengonçadas, grosseiros andaimes para atingir, em
faixa mais alta, os vasos captores da goma preciosa; ou empregassem o “arrocho”:
medonho apertão, dia a dia constringido, para que o tronco, esganado no garrote,
ressumasse até as fezes a seiva valiosíssima. Um máximo de produto, mesmo à custa do
aniquilamento das árvores, exigia o patrão, na formidável ignorância que, generalizada,
liquidaria a principal riqueza da bacia amazônica, estancando-a na sua fonte.
Ao fim dessas recomendações imperiosas de crime ou inconsciência, os “brabos”
foram se estabelecer, às pressas, nas estradas recém-abertas pelo “mateiro”, na última
invernia.
A lufa-lufa de “meter gente nas colocações” cessou por fim. Iniciara-se o ramerrão
do “fábrico”. Até o termo da safra, entrava mês, saía mês, o tenente, na ponte do Soledade,
ou sentado na varanda, tranquilizado de fortuna por um gordo saldo no Prusse, mas,
calculando a conta de lucros e de perdas provável, consumia charutos caros, passando os
olhos pelos jornais, ou pervagando-os pelas margens do rio em debruns uniformes de
oiranas insípidas.
O barracão do Soledade dominava em mangrulho a chateza da veiga circundante. E,
como se uma grandiosa relha de charrua tivesse tentado aradar a planície, a água refundava
o sulco fertilizante, num augusto lavrar para as searas de Pã... A mata pintava-se de um
mesmo verde-veroneso; o céu embebia-se de aguada azul da Prússia; as horas escorriam na
lentura de um óleo denso, dessangrando por fino sangradouro; o sol rojava-se diariamente
pelos seus paços imperiais, num servilismo de escravo...
Foi durante uma tarde vazia, fúlgida e vagarosa, que o Marciano divisou certa canoa
dobrando a curva do remanso, de rumo ao barracão. Da margem oposta ela atravessou,
dando ondulações em viés à túnica lisa e cinzenta do rio. Na proa, o remador amiudava,
sôfrego, as remadas. Mal encostando a embarcação, ele saltara em terra. Era o Sérgio, que
vinha pálido, visivelmente comovido. Acercando-se do patrão, contou-lhe que aproveitara
uns dias de chuva, nos quais não pudera “cortar”, para fazer a viagem ao “centro”; mas que
ao voltar, não encontrara mais em casa a Maibi. A cabocla desaparecera; só deixara uma
anágua no baú de marupá. Estava farto de procurar... iria até a extrema de baixo,
indagando... chegaria mesmo ao Umarizal. E o Sérgio, devastado de indignação e angústia,
desceu precipitadamente a escada da ponte.
O tenente, com o seu pretendido faro de antiga autoridade policial em São João de
Uruburetama, lembrou-se do Sabino. Quem saberia se o cearense, enciumado, não dera
sumiço à rapariga? Ocorreu-lhe mandar ao centro um homem de confiança ver se lá
encontrava o indiciado e, à sorrelfa, bispava alguma coisa...
Sentado num banco, na cozinha, o Zé Magro cortava e recortava o rolo de “Acará”,
cantarolando em surdina:
quando ouviu que o chamavam. Acudiu pronto, cessando o trauteio. Recebidas as ordens e
instruções do Tenente, tomou do rifle e partiu.
De um pulo atravessou o campo, transpôs a “estiva” e afundou na mata,
desaparecendo pelo “travessão”. Um pouco mais tarde, o “próprio” de sobre-rolda topava
com o Sabino, que saia da boca da estrada. Este vestia uma camisa sórdida, calças
trapejando nos pés metidos em sapatas de borracha; e tinha a cabeça rebuçada na chita do
mosquiteiro. Aparelhava-o o terçado enfiado na cinta, nas mãos o machadinho e o balde;
pendido ao flanco um pequeno saco e o rifle atravessado nas costas. O uniforme traduzia a
miséria e o arriscado do oficio.
Entabularam conversa.
– Bom-dia hoje?... Leite muito, hein?... indagou o Zé Magro.
Sabino respondeu-lhe, dominando a custo a comoção que o abatia:
– Nem por isto... E, esforçando-se por se acalmar: – botei “uma madeira em pique”,
pau monstro, “apaideguado”... E boa que admira... É para doze tigelas. Só ela dá um
“frasco”. Eu não via o diabo. Passava junto e não dava com a bruta... E no entanto estava
logo depois da boca da primeira “manga”.
O outro, surpreso da serenidade do Sabino, resmoneou desconcertado, referindo-se
ao capricho costumeiro da “mãe da seringueira”, que escondia as árvores. E, para disfarçar a
espionagem, revelou-se curioso:
– Bem queria ver esse pau... se é o que você diz!
– Pois vá, replicou o Sabino. Há de se admirar, e você, apesar de não ser nenhum
“brabo”, nunca viu coisa igual. Fica logo ao pé de um açacuzeiro, depois de um cerrado de
“unhas-de-gato” e jurarás...
– Está bom, deixe-me espiar. E o Zé Magro foi endireitando para o maciço da mata
onde, mesmo por detrás do “defumador”, desembocava a estrada.
Sabino, que ficou atentando no espião, mal este desaparecera, tomou a própria
cabeça entre as mãos e sacudia-se todo, oirado em paroxismos epilépticos. Andava para um
lado e para o outro, ia, voltava, levando as mãos ao peito como para arrancar uma víscera
de dentro, e puxava os cabelos, enlaçando soluços a rugidos. Parecia investir para a estrada
a chamar alguém; depois, como que arrependido, corria até o aceiro da floresta, atolava-se
no chavascal próximo... Produzia a impressão de que fosse ameaçado por um açoite de fogo,
e o perseguidor instrumento sinistro chegasse a alcançar a vítima, fazendo-a saltar e volver-
se, fugindo ao contato espicaçante dos látegos.
Enquanto isso, o Zé Magro seguia pensativo e suspicaz à cata da seringueira
fenomenal. A estrada frondejada é apenas um trilho, em busca das árvores a cortar. Mas,
quase sempre a linha poligonal mantém a orientação que a fecha sobre si mesma. Por vezes
dispartem dela outros polígonos menores: as “voltas”, ou simples linhas: as “mangas”; mas
sempre o seu traço total é o de um carreiro, enrodilhando a centena de “madeiras” a
explorar. O seringueiro no “fábrico” percorre-a às pressas. Vai muitas vezes mesmo antes
que amanheça, então à luz do “farol” ou lamparina, embutindo as tigelinhas sob o golpe
pequeno e em diagonal, na devida “arreação”; voltará imediatamente nas mesmas pegadas
a fim de recolher no balde o leite das tigelas. Manhã alta chega o seringueiro estropeado; e
tem ainda de defumar o látex d’olhos castigados ao fumo acre dos cocos, que ardem
embaixo do “boião”.
No hábito do serviço, o Zé Magro seguia a passos rápidos, mal notara o açacuzeiro
no cerrado de cipós, e já se quedava aterrado diante o espetáculo imprevisto e singular.
Uma mulher, completamente despida, estava amarrada a certa seringueira. Não se lhe via
bem a face na moldura lustrosa, em jorro negro e denso, dos cabelos fartos.
O Zé Magro acercou-se, tremendo, a examinar a realidade terrível; na crucificada
reconheceu, estupefacto, a mulher do Sabino e do Sérgio.
Atado com uns pedaços de ambécima à “madeira” da estrada, o corpo acanelado da
cabocla adornava bizarramente a planta que lhe servia de estranho pelourinho. Era como
uma extravagante orquídea, carnosa e trigueira, nascida ao pé da árvore fatídica. Sobre os
seios túrgidos, sobre o ventre arqueado, nas pernas rijas, tinha sido profundamente
embutida na carne, modelada em argila baça, uma dúzia de tigelas. Devia o sangue da
mulher enchê-las e por elas transbordar, regando as raízes do poste vivo que sustinha a
morta. Nos recipientes o leite estava coalhado – um sernambi vermelho...
Tinha esse espetáculo de flagício inédito a grandeza emocional e harmoniosa de
imenso símbolo pagão, com a aparência de holocausto cruento oferecido a uma divindade
babilônica, desconhecida e terrível. É que, imolada na árvore, essa mulher representava a
terra...
O martírio de Maibi, com a sua vida a escoar-se nas tigelinhas do seringueiro, seria
ainda assim bem menor que o do Amazonas, oferecendo-se em pasto de uma indústria que o
esgota. A vingança do seringueiro, com intenção diversa, esculpira a imagem imponente e
flagrante de sua sacrificadora exploração. Havia uma auréola de oblação nesse cadáver, que
se diria representar, em miniatura um crime maior, não cometido pelo Amor, em coração
desvairado, mas pela Ambição coletiva de milhares d’almas endoidecidas na cobiça universal.
Precipitado, o Zé Magro voltou, e, quando apareceu na boca da estrada, quem o
visse não o reconheceria. A comoção dera uma pátina ao bronze mate de seu rosto. Olhou
em torno. Tomando do rifle, aperrou-o, e em sinal de socorro fez fogo várias vezes
seguidamente. A mata dormente, ao meio-dia cálido, não despedia o menor murmúrio.
Parecia, de imóvel, marmorizada numa hipnose. O Zé Magro olhou mais detidamente em
volta. Ansiado, não se conteve, bramiu: “Sabino! Eh! Sabino...”
Só o grito áspero de um cauré acudiu ao chamado. “Sabino... Sabino!...”
E ao novo apelo mais fremente nem o malvado gavião respondeu mais.
(Inferno verde)
O PERÍODO DA DECADÊNCIA E
A ASCENSÃO DO MODERNISMO
Parnasianismo, Simbolismo, Modernismo
SUMAUMEIRA MORTA
Lá vai boiando, na Água Grande em turbilhão,
A sumaumeira morta, que tombou.
As invernias e os vendavais
Arrancaram-lhe as folhas desbotadas.
E aqueles flocos de alva pluma,
Desfeitos, doidejando, em torvelinho,
Pousando aqui, ali, no coração da mata,
Por sobre as franças verdolengas perfumadas,
Certo, haviam de ser as lágrimas de arminho
Da árvore-imperatriz, lentamente a morrer.
As tuas raízes
Estão bracejando aflita despedida,
Às árvores felizes
Que vão ficando,
Verdejando
Pelas margens dos rios, a cantar.
BARCAROLA
VELHO TRONCO
(Frontões)
EM BUSCA DA PERFEIÇÃO
(Frontões)
A POROROCA
(Ibidem)
AMÉRICO ANTONY (1895-1970)
A FLOR DO ENTARDECER
VITÓRIA-RÉGIA
NARCISO CEGO
(Narciso cego)
MADRUGADA CAMPONESA
Madrugada camponesa,
faz escuro ainda no chão,
mas é preciso plantar.
A noite já foi mais noite,
a manhã já vai chegar.
Madrugada camponesa.
Faz escuro (já nem tanto),
vale a pena trabalhar.
Faz escuro mas eu canto
porque a manhã vai chegar.
(Toadas de cambaio)
ESTATUTOS DO HOMEM
Artigo 1º.
Artigo 2º.
Artigo 3º.
Parágrafo único
Artigo 5º.
Artigo 6º.
Artigo 7º.
Artigo 8º.
Artigo 9º.
Artigo 10
Artigo 12
Parágrafo único
Artigo 13
POESIA E COMPROMISSO
Tenório Telles
Ao longo de sua vida empreendeu fugas, amargou exílios, travou combates, fez-se
cantador da utopia, da esperança, do homem, mantendo-se fiel a seus princípios, suas
verdades, suas quimeras. Fez sua profissão de fé à poesia. O poeta encontrou sua
justificativa existencial na literatura, como deixa evidente nas estrofes selecionadas de seu
poema “Rumo”, do livro Silêncio e palavra:
O poeta é e fez-se através da poesia. É bastante expressivo o fato de ao ter que optar
entre a segurança de uma profissão estável e a incerteza material de quem vive do fazer
poético, tenha escolhido a poesia. Como esclarece, ao falar de sua formação literária, foi
capaz de um gesto de ousadia, decisivo em sua vida:
Eu fui capaz de uma coisa muito importante pra minha vida, antes de qualquer
influência literária. Passava para o quinto ano de medicina, quando decidi
enfrentar a sério a opção que se colocava dentro de mim, desde o segundo ano,
entre a literatura e a ciência. Eu optei pela literatura, o que entristeceu muito
meu pai.
Essa temática será recorrente em seu segundo livro, Narciso cego, publicado em 1952.
Os versos são prenhes de intensidade humana, questionamento sobre o sentido da
existência, sobre a dimensão ontológica do homem. Os textos são expressivos de uma
percepção fraturada do mundo, eivada de ceticismo, corroídos pela dúvida. Revelação da dor
e sofrimento do eu lírico diante de uma realidade absurda, destituída de ternura, seu próprio
desencontro existencial. A primeira estrofe do poema “Narciso cego” é evocativa desse
dilaceramento:
Thiago de Mello consegue, nas obras iniciais, combinar, de forma criativa e intensa,
profundidade poética e rigor no plano da elaboração da tessitura de seus versos. Há em
Silêncio e Palavra e Narciso cego ressonâncias da tendência espiritualista da poesia
brasileira, percebendo-se, em vários poemas, ecos de Jorge de Lima, Murilo Mendes, Cecília
Meireles. Thiago, sendo um poeta cronologicamente vinculado à Geração de 45, constrói
seus textos de forma ciosa e contida, deixando evidentes suas preocupações formais.
A vida muda e os poetas não estão imunes aos influxos das transformações sociais. O
poeta reflete o mundo e reflete-se nele. Esse aspecto terá profundas consequências na
produção de Thiago de Mello. O advento da ditadura militar no Brasil, em 1964, o sequestro
do sonho, a experiência dolorosa do exílio, os golpes de Estado na América Latina, nos anos
70, marcaram profundamente sua obra. As preocupações intimistas, a atitude céptica, são
substituídas por uma postura de combate. O poeta assume posições, paga seu tributo à
liberdade, modulando seu discurso poético a um conteúdo de forte conotação social, como
está evidente no Artigo I, dos “Estatutos do homem”, escrito em abril de 1964:
O poeta emerge de seus conflitos interiores. Sua poesia desabrocha para a vida, para
a esperança na construção de um destino mais luminoso para o ser humano. O marco dessa
mudança é a publicação, em 1966, de Faz escuro, mas eu canto. Contra a resignação, o
medo e a desesperança, o poeta ergue a voz, colocando seu canto a serviço do homem, do
sonho subtraído, da esperança aprisionada. A leitura de algumas estrofes do poema “A Vida
Verdadeira” é esclarecedora dos novos compromissos do escritor:
A poesia desse segundo momento da produção poética de Thiago de Mello deve ser
lida tendo como pano de fundo o contexto histórico que a ensejou, sob pena de se perder
muito do seu sentido, sua autenticidade, da verdade do seu conteúdo. Se do ponto de vista
da elaboração formal, os poemas desse período não apresentam o mesmo rigor que se
observa em Silêncio e palavra e Narciso cego, ganham no seu aspecto semântico, no
conteúdo humano, na vida e esperança que pulsam em seus versos.
CLUBE DA MADRUGADA
Fundação
* * *
Quem se debruça sobre a história literária local nota um intenso vazio após
o ciclo da borracha. Enquanto o Modernismo se firmava em São Paulo e fazia
adeptos em todo o País, varrendo o ranço parnasiano, em nosso Estado o
tradicionalismo criara raízes. Entre 1922, data da Semana de Arte Moderna, e
1954, ano em que raiou a “madrugada” em nossas letras, apenas dois livros de
relevância tinham sido publicados dentro da nova estética literária: os “Poemas
amazônicos”, de Pereira da Silva (1927), e os “Ritmos de inquieta alegria”, de
Violeta Branca (1935). De resto, o marasmo, o apego fanático ao Parnasianismo e,
mais raramente, ao Simbolismo, estilos de época já então sepultados pela História.
Visto a cinquenta anos de distância, podemos perceber que o Clube fez uma
grande renovação. Isso, certamente, jamais passou pela cabeça daqueles jovens
que, certa madrugada, junto ao lago da Praça da Polícia, criaram, quase por
divertimento, uma agremiação literária. A atitude é explicável: era uma forma de,
agrupados, se protegerem da indiferença do meio, hostil a tudo em que
vislumbrasse o verniz da cultura.
(Sombra e asfalto)
HOMEM
(Varanda de pássaros)
OFÍCIO
(Ibidem)
ALENCAR E SILVA (1930)
CANTAR DE ANDARILHO
(Lunamarga)
(Poemeu)
ESPELHO E FACE
Mata-nos o não vermos
no espelho de hoje
a nossa face de ontem.
(Ibidem)
CASCATA
Raio de lua
rolando cai
na pedra negra
unido ao frio
e se esvai
como um rio
sobre
outro rio.
(Ibidem)
DA NOITE DO RIO
(Trilha dágua)
ESTUDOS, VI
(Ibidem)
A MEDIDA DO AZUL
BALADA
De torrentes concentradas
vive meu verso bisonho,
sustido em fibras telúricas
do sítio, favas de sol.
(Barro verde)
O RIO AMAZONAS
(Ibidem)
ROMANCE DA NOITE-CHUVA
Um noturno canto-pranto
(Romanceiro)
LUIZ BACELLAR (1928-2012)
SOL DE FEIRA
EPÍGRAFE
ANÚNCIO
Nos tabuleiros do mercado
o sol da feira amadurece
este poema proclamado
por mil pregões quando amanhece
mal surge o dia sobre as bancas
eis o Menino que aparece
para trazer lá das barrancas
frutos só que o rio conhece.
PRÓLOGO
Senhora Dona Pomona
vossos préstimos invoco
para encher este paneiro.
Nosso céu tem mais estrelas,
nossa selva tem mais frutas...
Pra onde vai? Quem me escuta?
o petróleo brasileiro?
Relembrando Casimiro
talvez vá colher pitangas,
que não mais provarei mangas
furtadas de outros quintais.
Mas, se quiserdes, faceira,
percorrer comigo a feira
onde em graças abundais,
tereis a ditosa prova
que a Natura se renova
nestas matas tropicais,
aspirando outros olores,
provando de outros sabores
e conhecendo outras cores
que, sem saber, inventais
I — rondel da pitanga II — rondel da manga
SELO D’ÁGUA
(Visgo da terra)
GEOGRAFIA PROVINCIANA
a Itália na taberna
de seu Vicenzo Arenaro.
Também no livro de Dante
que o sapateiro traduzia
rodeado de crianças
a mostrar-lhes céus e infernos
toda a celeste geografia.
E passavam barbadianas
sob chapelões de palha
ao sol dos dias em brasa.
E um fugitivo das Guianas
testemunhava a Ilha do Diabo!
(Visgo da terra)
Narrativas da Geração Madrugada
Cresciam os crótons sob o sol cru, vermelhos como cristais. Maio era
vindouro, prometendo amenidades e um céu varrido. Por enquanto o mormaço
invadia os muros e desafiava as sombras, densas sob a copa das altas mangueiras,
mas não de arbustos como os crótons. Deliciavam-se, porém, com o calor e a luz,
tão rosados e brilhantes os tornava o sol, as folhas recortadas em cetim de fortes
tons.
Longe, na baixada, espalhava-se o povoado, onde poucas eram as árvores e
muitas as casas. Numerosos, difusos, os caminhos, as trilhas cobertas de mato que
conduziam até lá. Mas bem sabiam os crótons que não era dado palmilhá-los, e o
dom que tinham era o da contemplação íntima que se fluía morosamente à
distância. Assim quedavam-se frustrados e serenos por tardes intermináveis,
quando não tomados de súbita inquietude, debatiam-se em acenos langues. Para
que se agitassem, bastava que o vento lhes trouxesse recados da várzea, outros
cheiros e rumores. Sonhavam então romarias pela íngreme perambeira, seus
trechos entrançados de urtigas ferozes, claros de terra fofa e barrenta. A vertigem
da descida compensaria o cansaço inevitável, os agulhões das pedras e dos
gravetos. Imaginavam até gentilezas especialíssimas. As urtigas encolheriam as
nocivas mãos. Tampouco seriam molestados pelo gruda-gruda dos carrapichos.
Quem sabe a galharia abriria alas para a comitiva passar? Ou algum calango ocioso
os guiaria ao acaso sem suspeitar disso?
Talvez levassem os crótons meninos, os pequenos de dois palmos. Seria
impossível deixá-los sem a proteção de suas sombras adultas. E anteviam-se,
ladeira abaixo em visita à cidade, onde havia minúsculos jardins de crótons anãos.
Estes tinham à volta um cercado de tijolos, disfarçado sob o limo, e em canteiros
estreitos de terra escassa, pareciam prisioneiros. Ah humilhação, pensavam os
crótons altivos, de porte desempenado e vigorosos tendões, gerados e nutridos no
chão livre dos campos. Ali se expandiam desenfreados, sem a coleira dos canteiros
e o suplício das podas. Valeria descer àquela terra exígua onde os homens haviam
usurpado o chão que lhes pertencia por direito de herança e mora? Não seriam os
jardins pequenos cativeiros em que as plantas medravam a susto, contidas pelo
medo de encobrir uma janela, invadir a casa galgando o telhado, encarapitando-se
pelo corrimão de alguma escadaria? A audácia no caso era pouco eficaz, pois toda
luta importava em derrota. A tenacidade do jardineiro zelava pela dócil submissão
de todos: que a buganvília não se alçasse além da janela e tão somente lhe
beirasse o parapeito, que a trepadeira de maracujá ficasse onde estava, sem
incursões pelo terreno vizinho, que os crótons se contentassem com um metro de
altura e não se vergassem as samambaias sobre as lajes da passagem. Fora dessa
disciplina, era o que observavam a cavaleiro da baixada, apenas as casas
abandonadas. Nelas reconstruíam as plantas o império subjugado, o verde à brida
solta com salpicos e manchas de todas as cores. E adeus geometria torta que as
espartilhava, falsa ordem dos jardins traçados em prévios mapas. Se a terra fosse
inerte como um papel aberto, e a vegetação não passasse de riscos de lápis?
Projetavam os crótons, descendo à várzea, hospedar-se na casa vazia da
esquina fronteira, exatamente aquela que as heras haviam pintado de verde. Ali
ficariam à vontade, como na sem cerimônia em que viviam, a natureza tudo
provendo, o humo virgem, a chuva farta, o sol a descoberto. O quintal, vasto, os
receberia sem dizer: – “Lugar de plantas decorativas é no jardim”. Ou vamos lá: –
“Que fruta dão vocês”? Pois não tinham sido os homens a dividir a terra de modo
arbitrário, aplicando sua lógica a todos os seres?
A casa abandonada chamava por eles, assim entendiam as borboletas que
vinham de lá, bailando pelas distâncias intermédias. Tê-las sobre as folhas era a
alegria incompleta de não segui-las na viagem de regresso. A ânsia lhes sacudia a
alma, não os membros, raízes que se deitavam com o peso de âncoras.
Na ventania conversavam os crótons alvoroçados sua linguagem de mímicas
sutis. Ah se o vento os pusesse na garupa! Era tão perto e contudo tão longe! Ah,
ali mesmo se finariam, sem descer à várzea...
Tanto gemeram, tantos desabafos lançaram que a natureza provedora
escancarou os cântaros armazenados atrás de balcões de nuvens. A água,
cavoucando o chão dias seguidos, desenterrou-lhes as raízes mais fundas,
libertando-os para o deslize na correnteza da enxurrada. Escorregaram então
barranco abaixo, tocados por águas turvas, às cambalhotas e encalhos na lama
visguenta. Rasgavam-se nas pedras, enganchavam-se nas ramagens secas do
declive, mas desciam e o plano logo se espraiou a seus pés. Um pouco mais, a
correr com o impulso emprestado daquele rio efêmero, e ei-los à casa da esquina.
Oh quão imensa e diferente lhes aparecia agora, diverso o ângulo em que jaziam,
deitados a seu portão, a fadiga amarrotando-lhes o corpo castigado. O portão
erguia-se alto, firme, pesado. Era de ferro liso, sem requintes, sem rendados. E
bastava ele, imóvel em suas dobradiças de ferrugem, para proibir-lhes o acesso no
paraíso a que se endereçavam num arroubo de vida.
Ao amainar da chuva e ressurgir do sol, o amplo horizonte acenava-lhes em
despedida sobre o morro.
(Alameda)
Por engano foi cair ali. Salvo da panela prestes a levantar fervura. Xingou
seus vizinhos, os grãos brocados, de espécie degenerada, rebotalho de safra, até
que se calou de repente. Afinal, devia-lhes a vida. Por um triz não estava no
torvelinho da água quente, confundido entre mil grãos, passando de raspão pelos
tomates inteiros que eram boias escorregadias naquele marzinho em revolta.
A terra, porém, que delícia, estava recém-chovida. Posso mesmo ver umas
sobrinhas de chuva enganchadas nas folhas da chicória, reparou de coração
contente. Como está brilhante este capim, comentou sozinho, desde que os grãos
estragados estavam mortos. Para eles, tinha certeza, não fazia diferença estarem
ali no chão amigo do quintal, ancorados na terra molhada e fofa. O suplício da água
borbulhando, cantando de calor, não os atingiria.
Vou crescer sem a companhia de ninguém, queixava-se, e era o seu modo
de partilhar com os companheiros mortos. Em seguida num esforço em que se
empenhava todo pôs-se a olhar pelo quintal.
Estava quase à porta da cozinha, o que o deixou assustadiço e medroso.
Não, não havia perigo, para isso não fosse tão pequeno. Se ao menos tivesse a
alegria sarapintada dos mulungus. Mas sua cor não só era discreta como
confundível. A aparência séria, seu broquel.
Então pôde ver de ânimo repousado, a goiabeira coroada de florinhas e os
troncos de outras árvores muito altas de que não via a copa. Por que cresceriam
tanto? Confusamente percebia que tais caules monstruosos participavam da
grandeza dos trovões. Vá ver que a fronde dessas árvores mergulha no céu. Por
isso não as vejo.
Divertia-se descobrindo o quintal. Tanto tempo confinara-se a sacas escuras
que perdera a naturalidade de ver-se ao ar livre. Palavra que até me ia esquecendo
do dia. Tão morninho e limpo.
Enquanto se deleitava ao sol, recuperando um passado interrompido – a
colheita privara-o de luz, céu, chuva e chão – calmamente se dilatava, tufando ao
bem-estar de quem se reencontra após descaminhos. Na terra sim, estava a vida.
Agora, reintegrava-se. Restabelecia o elo temporariamente partido, devolvendo à
terra o embrião da estirpe. Cismava. A sua vida, se preservada, era toda uma
descendência pela frente. Zelava por esta como se fosse dado alcançá-la em
realidade, acometido de amor pelo futuro.
Embevecido quedava-se a olhar, a olhar. Enchia-se de ternura pelas flores
da goiabeira. Antes que as goiabas apontassem já seria pezinho crescido,
armazenando outros grãos.
Aos poucos vai botando a pequenina raiz de fora, a raiz que ganhando força
arrasta-o rumo à luz para que surja dividido, as bandas a despirem roupa marrom.
Nem bem se afundou no chão, com o próprio peso cavara seu leito na terra
maleável, e já flutua à flor da terra.
Estou só e a vida vai ser difícil. Nenhum feijão grandinho e experiente para
me aconselhar. “Assim é melhor. Ora, não se faça de tolo. Penda para a direita.
Preste atenção ao sol. Cuidado com as formigas”. Mas como já sabia o que lhe
diriam?
Havia sobretudo o gostinho bom de enfrentar o mundo sem um exemplo
sequer a atravancar-lhe a expansão. Crescer como quem respira. Retesar as folhas
com a vinda do sol, relaxá-las à noite. Docemente como a natureza lhe ditava.
Bem-aventurada ignorância do porquê. A tradição familiar, cumpriria sem cultuá-la,
pois, não se enganava, era o culto consciente que oprimia.
Não se via, mas sentia-se crescer. Os botões de folhas desembrulhavam-se
gêmeos pelo caule fino e sinuoso que girava mansamente desenhando círculos no
ar. Os gestos redondos desfaziam-se no espaço vazio. A translação da haste
tentava embalde alterar a amplidão indiferente. Quisera nela gravar-se mas
reconhecia-a indomável, de uma fluidez que não se apreendia. Chegava à
conclusão de que tinha o nada a rondá-lo – esse ar onde tudo deslizava e que
escapava dos corpos não se deixando nunca possuir.
No momento discutia o problema do apoio. Em quem se agarrar? Seria
forçado a deitar rama quando não mais se sustivesse de pé. Cascavilhava a
vizinhança atrás de um encosto e botava olho grande na “jiboia” que se enroscava
em uma mangueira.
Oh, bem que sabia abraçar e no entanto sua laçada morria no espaço. Um
dia caminho até a cerca, abraço-a, e dou início a escalada. Com o tempo vou me
espichando, quem sabe não tomarei conta da cerca toda? Está nuinha e nova à
minha espera. Me chama com seu cheiro bom de resina.
Na cerca, relutava, ficarei mais exposto. Se não me quiserem lá, arrancam-
me como qualquer mato reles. Felizmente a essa altura já terei a dignidade da vida
madura e firme para me opor, impondo minha presença. Nada do franzino
projetinho de vida de que não passo por enquanto (nutria a autopiedade,
humilhado em meio ao quintal esplendente de viço, quintal cujas árvores frondosas
afrontavam com seus troncos roliços, sua sombra compacta, caindo em manto sem
rasgões).
Se o arrancassem apesar de tudo? “Ainda mais essa! Com tantos quilos de
feijão debulhado e enlatado na despensa. Que tolice a desse grão! Querer fazer
roça no quintal”.
E se o condenassem a adubo verde?
Às vezes analisava o poder que tinha de prever coisas e fatos. Era como se
sua vida fosse repetição e nunca morresse mas se encarnasse em tempos
sucessivos, carregando consigo a experiência da espécie. Dentro de si, sentia, havia
algo que varava o tempo atravessando intacto as contingências da morte – o que
lhe segredava o jeito de ser do mundo, suas emboscadas e gozos.
Assim não se surpreendeu no momento em que um jato d’água fervendo (a
empregada tinha o mau hábito de atirar as coisas pela janela) veio colhê-lo
enquanto com muito carinho tecia seu futuro.
(Ibidem)
BENJAMIN SANCHES (1915-1978)
o tartaruga
depois de entregar-se por muito tempo à água, voltou a terra onde com a
matemática dos olhos procurava descobrir os lugares onde os tracajás haviam enterrado os
seus ovos e, isto, os homens da ciência sabiam menos que ele. a prática fizera-o mestre no
buscar os ninhos camuflados no igual do branco da areia.
a praia, descendo da densa mata devoluta, serpenteava no rumo do rio onde um enorme
jacaré, num peso de montanha, dilatou o vazio para dar duas rabanadas, e, em voo
submerso atingiu o molhado da margem e ficou olhando-o com um olhar famélico. era um
inimigo que não ficara de vir, embora ter, ele, admitido, sempre, a possibilidade daquela
indesejável presença. via o espírito da fome rondando as suas carnes. sentiu-se quase
prisioneiro. na posição em que ficara, a fera, dominava, realmente, a única saída. o seu
casco, que havia deixado na beira, estava a dois passos do anfíbio, cujas patas velozes
arranhavam o chão num chi-chi manhoso, preparando-se para a furiosa investida.
as suas pernas que nunca dançaram de alegria, bailavam, agora, dentro da calça no
assombro de ser estraçalhado pelo chocalhar daquelas mandíbulas maiores que o seu corpo
descascado pelo quente da tarde. ele já havia vivido toda a idade do crescimento e não
conseguira ir além dos cinco palmos. parecia que os ventos sopraram, sempre, a sua vida de
cima para baixo. tinha isto, como uma pobreza envergonhada, da sua condição de homem. a
natureza havia-o prejudicado na distribuição dos tamanhos.
astro
rastro
vasto
o pio dos pássaros e o barulhar da chuva fundiam-se com os esturros das feras e
num só grito, cortava o vasto verde, que não se apagava da sua memória.
agora, estava suadinho de fé, e procurava com os dedos arrumar os cabelos, quando
de súbito, num estrondo metálico que varreu o ar, o apelido, impiedosamente abalroou o seu
ouvido: – tartarUUUUga! – todo o ódio do mundo apareceu na sua cara. naquele momento
odiou até as rosas. sentiu vontade de fazer mil coisas de uma vez. queria morder. queria
rasgar. queria matar. sim. sentiu desejo quase irresistível de matar. a sua alma ficou, por
muito tempo, galopando na mais brutal raiva do mundo. pensou que seria melhor
desmanchar com a vida, o único meio para se livrar daquela alcunha. não mais poderia
engolir aquele epíteto humorístico que o havia enchido até por fora da roupa. todos,
desapiedadamente, o chamavam de tartaruga. nunca presumira que o seu nome de cartório
desaparecesse tão completamente. nunca mais ouvira pronunciá-lo. todos o chamavam de
tartaruga. diziam-lhe até com os olhos: tartaruga, somente tartaruga.
agora, mais enfurecido que nunca, tomou posição para desaparecer de uma vez por
todas, quando sentiu o braço da moça doce e gentil cingir-lhe a barriga, não o deixando se
afastar e sussurrando o seu nome, com os lábios quentes roçando a sua orelha – jorgitinho.
foi assim que a ouviu chamar, amorosamente, o diminutivo do seu nome. estremeceu dentro
da cadeia do abraço e tudo se fez claro quando acordou preso à forquilha. mas, mesmo
assim, sentiu-se feliz por se encontrar entre feras e bem longe dos humanos. humanos? não!
jorgito nunca os considerou como tais.
O AJUDANTE DE CAMINHÃO
Ambos tinham seus sonhos na vida: negro Macário, chofer de caminhão da fábrica de
bebidas, suspirava pela vida de bordo, correr mundo, aventurar; Estêvão, seu ajudante, só
queria uma coisa: ser chofer. Para ele, nada melhor do que chegar um dia a ser chofer de
caminhão.
Trabalhava na firma há mais de seis anos, e embora conhecesse o manejo do volante,
nunca lhe fora dada uma oportunidade. Mas não lhe faltavam esperanças. A Fábrica estava
progredindo e os patrões, sem dúvida, seriam forçados, pela vontade de ganhar mais, a
adquirir novos carros. Por isso não perdia por esperar. Um dia chegaria a sua vez. Por
enquanto, porém, era apenas ajudante. Seu lugar, no carro, era em cima, misturado com as
caixas de garrafas, fizesse sol ou chovesse. Aqui e acolá uma gripe ameaçava derrubá-lo,
mas o caboclo não caía. Não podia adoecer. Um dia sentiu umas pontadas no peito e uma dor
nas costas. Teve medo. Seria o pulmão? Contou para o amigo o que vinha sentindo. Ora!
Para Macário aquilo era bobagem:
– Toma uma cana, mano. Isso passa!
Quantas vezes negro Macário não se sentira assim? E haveria melhor remédio do que
cana com limão? Quando a bicha era forte e vinha com febre, misturava a branca com
pimenta-do-reino e era uma vez negro mole...
– Paga uma dose?
– Vamos.
No boteco mais próximo Estêvão pediu duas doses. Pilou alguns caroços de pimenta,
balançou o copo e fez careta:
– Deve ser um purgante!...
Negro Macário sorriu. Quem lhe dera que todo purgante fosse como aquele...
Estêvão, que não era acostumado a beber, sentiu uma ligeira sensação de melhora.
Agora não mais sentia frio.
– Que remédio batata, nego!
– Quer repetir?
– Não! Chega.
O efeito do remédio passou em pouco tempo. A dor no peito continuava. O frio
também. Cansado, em casa, nem sequer para um banho tinha disposição. Doía-lhe o corpo e
sentia febre. Foi à cozinha, olhou as panelas vazias e mandou a mulher comprar pão fiado na
taberna da esquina. Mandou também que jantasse. Ele não queria. Deitou-se e ficou
pensando. Se caísse de verdade? Na certa que morreria de fome. Se trabalhando nada chega,
que não seria no fundo da rede? Lembrou-se de Epitácio, um colega de serviço. O desgraçado
já estava ficando velho na Fábrica. Que empregadão! Valia ouro. Mas um dia adoeceu e
Instituto com ele. Dois terços do ordenado. Ninharia. Não chegava nem para o remédio. Pra
nada, mesmo. Coitado do Epitácio. A mulher, lavando roupa... Os filhos...
A volta da mulher interrompeu-lhe o pensamento.
– Isso foi aquela chuva!
Estêvão não disse nada. Cobriu-se todo e tentou fechar os olhos. Estava inquieto. Não
conseguia dormir. A cabeça doía e as pálpebras pareciam feitas de chumbo.
– Chi, nego, a febre tá alta!...
– Vai jantar, vai! Deixa ver se sossego...
A mulher saiu e foi jantar café com pão. Pão sem manteiga. O filho mais velho, de
três anos, acompanhou-a. O outro, de colo, já dormia.
Estêvão acordou cedo. O corpo estava como se tivesse apanhado uma sova. Doía-lhe
tudo. A dor no peito, de minuto a minuto, tentava empatar-lhe a respiração. Se pudesse não
iria trabalhar. Longe, porém, de pensar em tal coisa. Faltasse e veria o resultado. Mesmo,
precisava de estar sempre nas graças do patrão. Um dia deixaria de ser ajudante e seria
chofer. Haveria de melhorar.
E quando ia saindo a mulher perguntou:
– Ei! Que se come hoje?
Estêvão coçou a cabeça e respondeu:
– Vai buscar uma lata de carne e faz com arroz!...
Saiu pensando na conta da taberna que lhe absorvia o ordenado. Nada lhe sobrava.
Nem para comprar um vestido para a mulher. E o pior é que estava barriguda novamente.
Outro filho: o terceiro. Mais uma boca...
Chegando à Fábrica já encontrou Macário sentado na boleia. A vida de chofer é mais
calma. Há quanto tempo carrega caixas? Está cansado daquele serviço. Mas como ainda não
é chofer, começa o dia com cinquenta quilos nos ombros. A dor no peito ameaça cercar-lhe o
tórax. Aqui e acolá uma pontada nas costas. Ele, porém, não pára. O patrão está perto
conversando com uma loira que se desmancha em requebros gostosos. À noite, por certo, ela
lhe tomará algum dinheiro. Mas Estêvão não sabe que o dinheiro que a loira vai levar deveria
ser dele e de seus companheiros. E por que o patrão está perto, esforça-se em mostrar que é
bom empregado. Que é ativo. Que mesmo doente, com dor nas costas, trabalha. Mas o
patrão não lhe olha. Nem sabe se ele existe. E Estêvão trabalha para a loira que vai voltar de
noite...
Negro Macário, mostrando os dentes num sorriso aberto, comenta:
– Esse nosso patrão é um galo!
– Elas querem é a verba dele!...
– E ele tem pra dar, e agora?!...
O caminhão corria veloz. O dia era desses escuros, com nuvens que ameaçam chuva.
Um vento frio soprava forte e crescia com a velocidade do carro. Estêvão sentou-se sobre
uma caixa e procurou abrigar-se por trás da capota. Seu pensamento passeava toda a
infância. Toda a turma jogando bola na baixa da dona Zefa. Carlos também está e nem
parece aquele que anda cheio de pose, só porque é bem empregado. O “Branco”, no goal,
defende bem. E a turma é a maior. “Hip, urra! Hip, urra!...”
Uma tossida forte e já não está no campo da pelada. Passeia com Mariazinha na
praça da Igreja. Mariazinha é bonita e é sua primeira namorada. Quando crescerem, e
quando ele ganhar muito dinheiro, irão casar-se. Mas de repente uma lágrima nos olhos de
Mariazinha. E ele, puxando o lenço do bolso, acenando-lhe um adeus. Não é o último adeus.
Não! Um dia voltará para casar com ela. Ninguém, além de Mariazinha, chora na sua partida.
Só ela. Ele também chora. É horrível deixá-la...
Macário freia o carro e Estêvão assusta-se. Levanta-se como que de um sonho.
– Quantas caixas, seu Lourenço?
– Que é isso, rapaz, tá chorando?
– Não!... É essa gripe...
E foi ali a primeira entrega. Estêvão tomou uma dose do remédio e Macário quebrou o
jejum com uma dose dupla, tirando o gosto com uma pitada de sal. O caminhão toma marcha
e segue. Outra parada e os dois amigos conversam. Macário dá-lhe a boa nova: outro
caminhão para a Fábrica. E mais: seria ele, Estêvão, o indicado para dirigi-lo. Era o mais
velho e, sobretudo, senhor do serviço. Estêvão fica radiante e, como na primeira vez que
tomara cachaça com pimenta, sente o sangue subir-lhe à cabeça, circular mais forte e passar
o frio. Era a emoção de pensar em ser chofer, seu grande anseio.
Passou aquele dia e muitos outros dias. Na casa de Estêvão o quadro é o mesmo. Os
dois filhos, e a mulher, cada vez mais buchuda. A febre agora o persegue diariamente. A dor
no peito não o deixou. Mas ele, como sempre, trabalha. O carro novo chegaria em breve e ele
seria seu chofer. Por isso chega à Fábrica antes da hora. As caixas de bebidas estão
separadas e prontas para serem levadas ao carro. Estêvão leva a primeira e a segunda. Na
terceira, um gosto de sangue lhe sobe à boca. Tem vontade de tossir e uma golfada vermelha
espirra longe. Ele, porém, não pára. Tenta reagir e quer correr com a caixa sobre os ombros.
O sangue, mais forte, sufoca-o. Estêvão não resiste e cai na calçada, molhado por um suor
frio. Os companheiros o cercam e Macário, tomando-o nos braços, leva-o para o carro,
rumando em direção ao bairro onde mora o amigo.
Quando o patrão chegou e lhe contaram o ocorrido, falou em Instituto e mandou que
jogassem criolina na calçada...
Uns dez meses passaram daquele dia. Mas tudo mudara. Estêvão, como previra, fora
entregue ao IAPI. Mas a ele não acontecera o mesmo que ao seu amigo Epitácio: conseguira
curar-se. Está bom, trabalhando, e agora é chofer. Sua vida nem parece aquela do tempo em
que carregava caixas de bebidas. A casa onde mora não é a mesma de outrora. É bonita e
grande. A mulher anda bem vestida. Os filhos, também. Ele reconhece que deve tudo a
Macário. Por isso vão ser compadres: negro Macário vai ser padrinho do caçula. É o primeiro
batizado alegre que vê em casa. Até parece com a festa de aniversário da filha do patrão. Há
champanha e muito doce. Mas nem Estêvão nem o compadre bebem champanha. Festejam
diferente: bebem cachaça com limão e tiram o gosto com pitadas de sal. E não é em casa, na
casa nova e bonita. É no boteco de seu Lourenço...
– Quantas caixas, seu Lourenço?
– Que é isso, rapaz, tá chorando?
Macário relembra o tempo em que trabalhavam juntos. “Cabra chorão!...” Estêvão ri.
Nunca foi tão feliz na vida. Para a festa do batizado do caçula convidara todos os amigos de
outros tempos. Até a turma das velhas peladas na baixa da dona Zefa está com ele. E
Estêvão pensa até que ainda é o menino de calças curtas que chutava bola e namorava
Mariazinha. Só ela, Mariazinha, não está ali. Por quê? Faz tempo que não a vê. Desde o dia
em que lhe acenou um adeus, prometendo voltar. Ele seria mais feliz se a visse... De
qualquer modo, aquele dia é o mais completo de sua vida. E tudo porque conseguiu ser
chofer. O caçula já foi batizado e quando crescer vai ser gente. Vai ser mais do que ele.
Estudará e será gente. Os outros também estudarão. O padre, em casa, fala uma língua
estranha que ninguém entende. Os olhos do padre crescem e parecem encher a casa.
Estêvão está tonto de tanto beber cachaça com limão. Mas se sente alegre porque tem a casa
cheia de gente. Toda a vizinhança está presente. Negro Macário está todo de branco. Até o
taberneiro da esquina está ali, olhando com olhos de pergunta. E parece querer perguntar
alguma coisa. A conta? Ora! Não é mais problema. Nunca mais atrasará o pagamento...
Nunca mais...
Um forte acesso de tosse arranca do peito de Estêvão uma golfada de sangue. Outra
golfada e ele desperta moribundo nos braços de Macário. Na verdade, muita gente está em
sua casa. E todos o cercam. O padre está mas não é dia de batizado. O filho caçula há muito
se batizara. O padre reza numa língua estranha que ninguém entende. E seus olhos crescem
e enchem toda a casa. A mulher, chora. Os filhos também choram. Até negro Macário sente
vontade de chorar. Estêvão está tonto... Sua cabeça pende e um fio de sangue mancha a
roupa branca do amigo, do melhor amigo.
Lá na Fábrica o trabalho não parou. Outro ajudante de caminhão está no lugar de
Estêvão...
(O Palhaço e a rosa)
CARLOS GOMES (1936)
ROSA DE CARNE
A rosa de carne doía na mão do menino. As pétalas apodrecidas efervesciam, se lhe
deitassem hipoclorina. O antissético a despojava de suas cores, ela ficava branca, branca,
como se fosse uma pobre rosa coberta da poeira dos caminhos, mas continuava a danada
doendo na mão do menino.
O cheiro das pétalas não sabia bem. Havia que removê-las, para nascerem outras
com odor de carne sadia. Rosa de carne, pétalas humanas, vermelho-vivo umas, amarelas
outras, apodrecendo a mão do menino.
Ele chorava quando iam tratá-la. A mãe gemia não chores, meu filho. Mas, como não
chorar se mexiam na rosa de carne? Éter primeiro, a rosa esfriava, esfriava, nem parecia de
carne. Depois, a hipoclorina a expungia de sua fetidez. E o estilete removia suas pétalas
amarelecidas, brotavam outras vermelho-vivo em lugar daquelas. Toda a corola, então,
lembrava a rosa primitiva, do tamanho de uma moeda de trezentos réis.
Coitadinho do meu filho, dizia a mãe, mas era preciso que a rosa voltasse ao botão
de onde desabrochara e deste ao nada, deixando embora na mão do menino o estigma de
sua passagem.
O menino se lastimava, a mãe prometia-lhe muitas balas de cupuaçu, era pior
porque ele estava enjoado daquela guloseima, que de resto não lhe trazia boas recordações.
Paciência, meu filho, que paciência que nada, não mexessem na rosa, é o jeito meu filho,
deixe mamãe, eu quero é morrer, aquele teu pai é malvado, não estava vendo que tu és
uma criança sem grande compreensão das coisas, também que arte a tua, pra que foste
fazer aquilo, não sabias que somos uma família pobre, com a graça de Deus, mas honrada?
Família pobre com a graça de Deus, mas honrada. Eram-no, realmente. Tinham
vindo de um interior distante, os trastes alienaram lá mesmo, para custearem os primeiros
meses na cidade. O chefe esperava conseguir emprego, não conseguiu. Viviam de vender
balas de cupuaçu, o marido às vezes pegava biscates, a mulher também lavava roupa pra
fora. O menino ajudava na pequena indústria doméstica, ele já sabia muito bem quando a
pasta estava em ponto de bala, mas enquanto não, reparava o tacho que queimava sobre o
fogão de barro comedor de lenha verde. Depois vestia as balas, quase sempre mil, de papel
vegetal. E tudo pronto, ainda era ele que saía para distribuí-las pela freguesia de subúrbio, a
cesta pesando nos ombros magrinhos, pesando, pesando, o menino arriava onde quer que
encontrasse pareceiros para jogar bolinha com caroço de tucumã, ele era temido na
pontaria. Pelada antigamente ele também jogava em serviço, mas teve de deixar, desde
uma surra que lhe aplicou a mãe, por ter voltado a casa rasgado, sujo e suado, fedendo a
moleque. Então ele não tinha pena do sacrifício da mãe? Era pouca a roupa que ela molhava,
batia, esfregava, ensaboava e punha a corar todo santo dia, era pouca, ele achava, pra
voltar naquelas condições? Vida desgraçada aquela, viver lavando os fundos dos outros! E
ainda por cima sem meio cento de balas, ele voltava. Não via que eram pobres, embora com
a graça de Deus, não vês, diabo? não vês, diabo? Arre, assim não tem cristão que aguente!
Agora, a rosa de carne doendo em sua mão, o menino havia sido dispensado de
certos serviços. Não de reparar o tacho, que ninguém como ele tinha a intuição do ponto de
bala da pasta, nem mesmo a mãe, que lhe transmitira aquela simplória ciência. O pai achava
ruim o menino não poder vestir as balas nem distribuí-las, achava, mas não se arrependia,
isso não. Fizera seu dever, queria lá esperança de ladrão em casa, ele homem pobre, com a
graça de Deus, mas honrado? E olhe que havia tolerado muito, ponderando certas coisas,
pois já fazia então bastante tempo que andava desconfiado de trapaças daquele moleque! Os
fregueses vinham reclamando, faltaram dez balas em cem; pra mim, quinze, outro dizia. Ele
se desculpava, atendia prontamente às reclamações, só queria o seu, era pobre, com a graça
de Deus, mas honrado. Depois, porém, ficava matutando, que diabo, eu conto as balas tudo
direitinho, que é que está acontecendo? Será que os fregueses estão me enganando? Não,
não podia ser. Seus fregueses eram homens de bem, negociantes! Tinham nada precisão de
andar questionando sem motivo por dez ou quinze balas? Aquilo era coisa de menino,
ninguém lhe tirava da cabeça, menino é bicho arteiro! Ah! mas se fosse seu garoto, ele lhe
pagaria, dava-lhe um ensino. Eram pobres, com a graça de Deus, mas honrados. Ponderava.
Verdade que nem sempre se come bem, nunca se janta, é só café com pão, e olhe lá que
ainda se ganha de muita gente! Antigamente, tinha-se manteiga e leite, à noite. Mas, de uns
tempos pra cá, tornou-se impossível esse luxo de leite e manteiga, você não vê que tá tudo
pela hora da morte? O açúcar e a fruta custam os olhos da cara. Um cupuaçuzinho assim, do
tamanho de um ovo, está por duzentos cruzeiros! Já se foi o tempo que caboclo era besta e
vendia tudo por pouco mais ou nada. Mas, fosse como Deus é servido, não carecia andar
com trapaças para viver. E logo quem, com safadezas, seu filho, envergonhando-o por aí, a
ele, homem pobre, com a graça de Deus, mas honrado. Humilhação muita sentiu,
naturalmente, quando o freguês bateu à sua porta, furibundo, acusando o menino de ter-lhe
surrupiado uma nota de conto, a única que no momento estava na gaveta, e não fazia
muito, porquanto a recebera de um devedor que mal dera as costas. “Pois seu baleiro, foi
tudo tão rápido, enquanto fui lá dentro buscar a lata pras balas. Seu menino é sagaz, ligeiro,
um verdadeiro rato, me desculpe a expressão”. “Estou ciente, o senhor não vai se queixar do
pequeno duas vezes, vou confessá-lo. Se foi ele, lhe restituo o dinheiro e já sei o que faço”.
Chamou o menino, vem cá, bonito pra tua cara, o freguês te chamou de rato, onde está o
dinheiro, não fui eu não papaizinho, não me bata, papaizinho, não me bata. Mas peia, sem
ser santo, obra milagres. E o menino acabou confessando que só gastara quinhentos
cruzeiros, em sanduíches e refresco, o outro meio conto estava escondido no porão. Traga o
meio conto, seu condenado, sem vergonha, ordenou. Mulher, eu quero aquela moeda de
trezentos réis antiga, que vais fazer homem com o menino? Vá buscar a moeda, deixe
comigo o resto, esse desgraçado vai ser exemplado, não estou para mais tarde sofrer
humilhação pior que a de hoje. O menino não tem compreensão, marido, não quero ladrão
em casa, mulher, você me conheceu pobre, com a graça de Deus, mas honrado.
Pôs a moeda no fogão de barro comedor de lenha verde. E quando obteve um
pequenino disco incandescente, a mulher não faça isso homem, que é judiação. Mas ele não
quero saber de nada e cunhou a mão do menino, marido nosso filho tinha fome, tu sabes
que o comer aqui é magro, mulher, eu também como pouco e não ando furtando ninguém,
ai, eu morro papai, isso é pra tu aprenderes, patife, que no alheio não se mexe.
Meu filho, tá doendo? Tá doendo, mamãe, vamos botar remédio, meu filho, que
remédio, que nada mulher, deixa de adulação, menino mimado perde a vergonha, marido
pode empolar e virar ferida, eu quero mesmo que fique a marca mulher, pr’ele se lembrar
sempre de que somos pobres, com a graça de Deus, mas honrados.
E assim a carne se fez rosa que agora doía, apodrecendo a mão do menino. Ai,
mamãe, paciência, meu filho, o enfermeiro a senhora deveria ter cuidado há mais tempo,
por que deixou isso ficar assim?
E o estilete continuava retocando a rosa, em lugar das pétalas amarelecidas,
brotavam outras vermelho-vivo. O menino se lastimava ai, está doendo, mas o enfermeiro
seguia no seu ofício de sarar a rosa. Era preciso que ela voltasse a botão e daí a nada,
deixando embora o estigma de sua passagem pela mão do menino pobre, com a graça de
Deus.
BUMBÁ
O boi se fizera nas mãos de Severino, preto velho maranhense, corpo esbelto,
espáduas largas, altura de monumento. O boi, de madeira o esqueleto; carne de algodão e
pano velho. O couro era de um veludo tão negro que azulava, a luz refletindo nele. Na testa
uns chifres de verdade, entre eles, a mancha lembrando uma estrela branca. Não uma
estrela certinha, recortada com cuidado, geometricamente concebida e inscrita num
pentágono. Um borrão em forma de estrela. Como se o fabricante preto velho Severino a
houvesse desenhado e, ao pintá-la, tivessem as tintas extravasado as linhas do desenho. Por
isso se chamou Estrela, bumbá meu boi Estrela, alegria do povo nas noites de junho.
Preto velho Severino era também o amo do boi, o ensaiador. Ele sabia como raros
improvisar toadas e tinha voz para puxá-las. Boi Estrela, orgulho seu e também do bairro,
não era como os outros bumbás da cidade. Tinha voz, mugia como seus símiles de verdade
por obra e graça de um aparelho fonador construído de cuícas e manejado pelo miolo – um
molecote de pernas secas, mas rijas, apelidado Socó, que aliás sabia fazê-lo dançar como
ninguém. Socó se tornara porque dançando se punha às vezes numa perna só.
Boi Estrela mugia, já se disse. Verdade que o mugido estava para o de um boi de
veras, como o choro de uma boneca-que-chora está para o de uma criança. Mas mugia. E –
admirável novidade – mexia os olhos, duas grandes petecas de vidro escuro e esverdinhado
* * *
Boi Estrela, em junho, tinha curral. O tempo restante ficava guardado na casa do
amo, protegido inteirinho de pano de saco. Preto velho Severino tinha por ele desvelos
paternais:
– Meu boizinho!
carência de luz elétrica. Lâmpadas fantasiadas de lanterna e balão faziam de conta que
eletricidade – visita bissexta – apareceu por aquelas bandas. A estrela vermelha – viu-se –
tinha em seu ventre uma lâmpada que acendia e apagava igual a um vaga-lume. E passou a
noite inteira jogando piscadelas para o povo. O povo compreendia. A estrela vermelha
fascinava-o.
Preto velho Severino, imponente, o manto tarjado de arminho todo cheio de espelhos
Preto velho Severino instruía, ralhava, ensinava novos passos, toadas novas.
Oi levanta poeira...
Tanta alegria, tanta, quando estava o bumbá em seu curral, quanta alegria! Gente
em volta, o encantamento possuindo-os. A preta Bárbara, no vulgar D. Barba, faturava:
pingues faturas de tacacá e mungunzá, bolo podre e de macaxeira, tapiocas em retalhos de
folha de bananeira, poeira de coco por cima. Até aluá e café havia em sua banca, que era a
mais gostosa do arraial. No curral, a batucada fazia hora, ensaiando refrões, dançados em
passos nervosos pelos brincantes. E cantados:
Oi levanta poeira...
As meninas indo e vindo, corpos cheios de amor para dar, levantavam poeira,
batendo as sandálias gastas no barro do arraial. Várias eram levadas para muito além,
aonde não chegava a claridade das porongas e fogueiras. Conduziam-nas moleques já
homens, os braços rijos do trabalho agasalhando-as. Iam aprender anatomia, o método
Braille, simples e humano, presidiria aos ensinamentos.
Depois tudo ficava mais triste porque o bumbá partia para cumprir seus
compromissos na cidade. Dançar na casa de doutores, autoridades, gente de haver, de bens
mais que de bem.
Hastes compridas encimadas por lamparinas cilíndricas de três pavios iluminavam os
caminhos. Os moleques iam até às vias de fato para segurá-las.
Formava-se o grupo. A batucada, os vaqueiros, os rapazes-do-amo, o padre. As
burrinhas eram duas. Os índios na frente compunham a barreira, os tacapes servindo de
cimento. Pai Francisco e Catirina, figuras picarescas. Comandando todos, o amo preto velho
Severino. Na retaguarda, o séquito de simpatizantes, mães de brincantes e outras com os
filhos-de-peito escanchados nos quadris, moleques a granel, povo.
Por onde o boi passava, corria gente pra vê-lo.
O povo mexia com Pai Francisco, ele perseguia mocinhas e crianças, dispersava-as.
Um dia, um homem avisou-o:
– Chico, tua mulher Catirina tá namorando...
Pai Francisco, mais que de repente, retrucou:
– Macaco só olha pro rabo dos outros...
O homem desconsertou-se. Do povo veio violenta vaia, avassaladora. Pega! Toma!
Vai mexer com Chico! Vai!
Boi Estrela tinha rivais, um maior que os outros: Malhado. Compreensível que os
tivesse. Os demais não mugiam, nem mexiam os olhos, qual deles tinha entre os cornos
aquela mancha em forma de estrela? Bois chambas os outros, sem dúvida, invejosos. Miolo
como o Socó, as pernas assim tão sensíveis ao ritmo da batucada, qual poderia apresentar?
E qual nascera de preto velho Severino, de seu engenho, qual? Compreensível tivesse Estrela
rivais. Não era ele acaso o mais amado do povo?
Malhado quisera imitá-lo, tentaram fazê-lo mexer os olhos. E mugir. O povo deu pelo
plágio, verdadeira caricatura, aliás. Zombou do Malhado. Mugir e mexer os olhos eram
atributos do Estrela.
Porque rivais tivesse, boi Estrela os desafiava:
Ê ferro, ê aço!
Estou procurando
E não acho...
O bumbá de Severino – assim também se chamava – logo possuía as ruas por onde
passava. Campeava soberano:
Ê ferro, ê aço!
Estou procurando
E não acho...
Agora os simpatizantes também cantavam. Era preciso suplantar o vozerio do grupo
contrário, lançando o mesmo desafio:
Ê ferro, ê aço!
Estou procurando
E não acho...
Socó olhou pela goela do boi, que era aberta exatamente para que o miolo pudesse
descortinar os caminhos.
– Vou jogar meu boizinho Estrela em cima desse boi chamba...
Ninguém soube nunca como nem por onde começou. Quem começou ninguém
soube. As mulheres correram, os filhos-de-peito escanchados nos quadris. As mais valentes
insultavam-se, aplicando-se puxavantes de cabelos:
– Vaca Malhada!
– Vaca Estrela!
Os índios trocavam-se cacetadas, vaqueiros e rapazes-do-amo eram boxers. O padre
fugiu logo com Catirina, os dois covardes. Socó investia furiosamente, dando marradas no
boi adversário. Preto velho Severino ajudava os seus que fraquejavam, mas pedia paz. Em
dado momento, gritou:
– Meu boizinho você não acutila, seu...
Soltou um palavrão e logo libertava do peito o último gemido, fundo e pungente tão
como as toadas que inda agorinha puxava. Fundo e pungente e eloquente tanto que a todos
parou. Do coração rompido, brotava o sangue vivo que lhe empapava a vestimenta de lamê
tão caprichada, debruns de arminho, cheia toda de espelhos e lantejoulas.
(Ibidem)
ARTHUR ENGRÁCIO (1927-1997)
RESTINGA
II
Frederico encontrava-se na cidade, com sêo Ronaldo, comprando mercadoria.
Quando chegaram, o gerente chamou-os reservadamente e lhes participou o acontecido.
— Isaurinha fugiu?! -- explodiu o marido. E logo com um postema daquele?
Hem? Está falando sério, Geminiano? Vou matar já os dois!
Sêo Ronaldo pediu ao filho que tivesse calma, que ele já sabia o que ia fazer com
os fujões.
— E quando foi isso, Geminiano?
— Foi coisa de 24 horas, sêo Frederico.
— Então, eles não devem estar muito longe. Vira o motor aí, depressa, Chiquinho!
– gritou sêo Ronaldo para o motorista. Vamos agarrar aquele filho de uma égua.
Cada um com um rifle e mais quatros capangas, pularam na embarcação e
seguiram rio abaixo à caça dos fugitivos.
O ronco do motor próximo despertara a atenção dos dois. Haviam improvisado
um tapiri, não muito distante da margem do rio, onde se tinham alojado para passar a
noite.
— Tamos perdidos, D. Isaurinha! — dissera a ela. Sêo Ronaldo com o sêo Frederico
vêm aí para pegar a gente.
Não fizera caso do aviso. Continuou deitada, mordendo displicentemente uma folha
de mato. O motor aproximava-se cada vez mais. Ele começava a ficar nervoso e insistia:
“Vamos, D. Isaurinha, por favor! Olhe que vão pegar a gente, D. Isaurinha!” Os cabelos
desmanchados, o vestido erguido até o empenujado das coxas, apenas lhe sorria, a
luxúria nos olhos, indiferentes ao risco da morte. Queria mais amor e o chamava com os
braços abertos: “Não tenha receio, meu filho, eles não vão nos achar. Vem te deitar,
cuida. Vamos aproveitar...”
Nesse instante o ronco do motor parara e ele pôde ouvir perfeitamente vozes de
pessoas que se aproximavam. Mais uma vez pediu, quase implorando, que ela o
acompanhasse. Teve ímpeto de colocá-la nos braços e levá-la dali. Mas, já era tarde. Os pas-
sos estavam perto demais. Só teve tempo de pegar o remo e o terçado e embrenhar-se na
mata. Não tinha andado quase nada, quando escutou a descarga de uma arma. “Ah, que
desgraça, mataram D. Isaurinha”, pensou. Logo pôs-se a correr, em desespero, aos
tropeções, procurando atingir a margem do rio, mais adiante, por um atalho que só ele
conhecia. Sem quase poder colocar-se de pé, as vestes rasgadas, as mãos crivadas de
espinhos, os lábios sangrando, chegara. Agora só restava esperar que a noite caísse de
todo, para fugir na canoa que se encontrava amarrada ali no porto. Foi-se esgueirando
devagar por trás das árvores até alcançar a montaria. Dai foi fácil desamarrá-la e largar-se
correnteza abaixo.
III
IV
(Restinga)
O pagode entrava pela madrugada, a mesma animação das tabocas, o mesmo fem-
fem da sanfona e a rabeca do Batista gemendo um samba que os festeiros bisavam e
rebisavam, as pernas já perras, zanzanando, os gritos de entusiasmo mais fortes: “Castiga
firme, Batista, que a noite é nossa — só macaco velho não se coça!” O rabequista
embioca mais a cabeça em cima do instrumento, que é tocado como rabecão, solta uma
gargalhada e puxa o arco com sustância. Velho Trindade, que não queria que a bagunça
esfriasse, ficava ali ao lado dele só esperando um intervalo. Aí lhe metia a braba na mão.
“Mais um golezinho. sêo Batista?” Atirava a rabeca para um lado, ria um risinho velhaco e
já com a vasilha no rumo da boca è que respondia: “Como não, sêo compadre? Me deixe
ver cá esta porqueira gostosa”. Bebia a metade, estendia a cuia para a frente e arrematava,
os lábios estalando repetidamente como pipoca no braseiro:
A noite vai avançando. Os pares se cruzam ofegantes, a poeira levanta mais forte do
chão confundindo-se com a fumaça das lamparinas. Se velho Trindade não estivesse tão
preocupado com o aparecimento de João Brabo no pagode, perceberia casais
amorosos esgueirando-se rumo da capoeira pró xima e logo em seguida,
acompanhado do estalido de gravetos secos, aquele gemido fundo que o Amor provoca na
sua hora extrema.
Velho Trindade não tem relógio, mas o canto da inambu in dica-lhe que o dia não
tardará. Carece de advertir os festeiros e animar mais o rabequista. Sem entusiasmo,
corre até o salão e, agarrando a velha Sara pela cintura, sai rodopiando por entre os
brincantes, prevenindo que o dia já vem vindo. “Não desani mem, não, pessoal. Toca
pra frente. É dançar até o dia amanhecer!” O aviso não precisa ser repetido. Os pares se
enlaçam com mais afoiteza, os gritos de entusiasmo recrudescem e Batista, que já
engoliu outra brasa, castiga um velho baião. Sua rabeca, como dama obediente, sob o
ritmo frenético, não pára, não tem sossego: cambaleia para um lado e outro, tremelica
vertiginosamente, bamboleia ao som da própria música que o dono lhe arranca das cordas
retesadas.
Do meio do salão vem uma voz pedindo a Batista que faça uma pausa. É Maria
Rita lembrando que está na hora de tocar a Desfeiteira. A música silencia enquanto os pares
se preparam, para a nova dança. Os namorados são os primeiros a avançarem para o meio da
sala, à espera dos acordes que marcarão o início da nova sarabanda. Maria Rita ri satisfeita,
adora ouvir os versos ditos pelos brincantes. Ela mesma sabe quantidades de toadas, que
aprendeu com os festeiros nos pagodes por onde tem andado. Quando era menor, que não
podia ir às festas, reunia os irmãos mais novos em casa e recitava cantigas, muitas im -
provisadas na hora.
Batista puxa o arco da rabeca e é a Maria Rita que cabe dizer o primeiro verso:
II
João Brabo parou de dançar, bebeu a última talagada, pegou a garrafa e espatifou-a
contra o esteio. Depois, sem que ninguém esperasse, gritou que ia matar Batista.
— Mas bom, mas bom, este caboclo não tá tocando que preste, por isso vou entupir
de chumbo o chifre dele.
O rabequista, sem nada pressentir, de costas, continuava a tocar. Ia morrer sem
mais aquela. O assassino mirava o alvo demoradamente. “Mas bom, mas bom, quando eu
digo que faço, eu faço mesmo! Este cabra vai morrer”. Apontava a arma pela segunda vez.
Na terceira, todos sabiam, dispararia. Necessário fazer alguma coisa, tentar pelo menos
convencê-lo a não praticar o seu intento. Hermínio e Vitorino, os mais fortes, foram-se
acercando dele, pedindo-lhe de boa forma que não fizesse aquilo.
— Não faça isso, não sêo João. Por que matar o homem?
— Mas bom, mas bom, quando eu digo que faço, eu faço mesmo! Já cismei com esse
curupira, não me agrada a cara dele e por via disso, vai morrer.
Ditas estas palavras, foi levando o trabuco para a frente. Os dois festeiros, olhos
pregados na arma ameaçadora, continuavam a avançar para ele. Sem lhe dar tempo de
apertar o gatilho, Hermínio passou-lhe a perna numa rasteira firme, atirando-o ao chão,
enquanto gritava para Vitorino:
— Depressa, camarada, vamos tirar a arma dele.
Tudo passou-se muito rápido, quase não houve luta.
Sujigado fortemente pelos dois homens, a mão de Vitorino na garganta,
escancarando-lhe a boca, João Brabo, a língua para fora, estrebuchava como um porco
peado. Nesse instante, velho Trindade correu com a espingarda e, quase metendo-lhe o cano
na boca, disparou.
Os miolos do morto saltaram à distância, formando com a poeira e o sangue uma
massa nauseante.
(Ibidem)
ERASMO LINHARES (1934-1999)
ZECA-DAMA
Não, senhor, desarme essa cara de malícia. Não é nada do que o senhor está
pensando. Sou macho e muito macho. Até hoje o cabra que duvidou disso, levou o troco
certo na hora. Mas lhe digo que já fui dama afamada. Melhor do que muita mulher de hoje.
Quando cheguei nas brenhas do Ipixuna, mulher que é bom não havia. Tudo era homem, só
homem. A maioria cearense como eu e como eu vieram na ilusão de enricar com a borracha
– aquela enganação toda que andaram espalhando lá pelo Nordeste. Vinham como boi,
amontoados no porão e no convés dos navios, largando pra trás a terra, lavoura, casa,
mulher e filhos. Comigo foi um pouco diferente. Não escondo que tinha lá meus desejos de
encher os bolsos de muitos contos de réis e um dia voltar pro meu sertão e fartar de comida
a mulher e a filharada. Desculpe se estes olhos depois de velhos deram pra chorar, mas aqui
no fundo do peito ainda dói uma querença. Eu conto continuado. De veras eu vim mesmo foi
fugido. Lá no sertão onde eu morava, por causa de umas terrinhas mixes, destripei um cabra
safado na ponta da peixeira e quando a polícia deu vau, embarquei no Baependi junto com
um magote de outros homens, a maior parte, como eu, com alguma morte nas costas. Um
horror, meu senhor, uma coisa muito triste de ser lembrada. Em Manaus jogaram a gente
numa tal de Hospedaria de Flores. Todo mundo espremido nuns quartinhos. Tinha dez onde
só podia caber cinco. De tanta gente, nunca faltava uma fila enorme às portas das privadas,
principalmente porque a gente desacostumada do pirarucu e da farinha d'água que se comia
todo santo dia, andava quase sempre com desmancho. Um desespero, pode crer. Tinha
gente que não aguentava na espera e fazia a coisa ali pelas redondezas, atrás das cercas,
nuns matinhos que cresciam ao redor, e, por isso, o ar vivia empestado. Depois de uns dois
meses separaram a gente em lotes e mandaram uns pra cá, outros pr’ali. A mim me man-
daram pro Ipixuna, nas brenhas onde não morava quase ninguém. Não reclamei nem
pechinchei. Quanto mais longe melhor. De perto, um perto muito longe, só Eirunepé de um
lado e Cruzeiro do outro. Cheguei num dia e no outro me mandaram pro centro, com o Dorca
– um cabra nascido por aqui mesmo, meio gente, meio índio, mas um camaradão. Duro,
meu senhor, duro foi acostumar naquele mundão de mato vazio de gente e com a doideira
daquele trabalho de escravo. Acordar antes do sol e sair pelo mato raspando casca de se-
ringueira, pendurando tigelinha, comer só por comer, enganando estômago com ipadu, e
depois voltar pelo mesmo caminho, recolhendo o leite, correr para a barraca e começar a
defumação. Os seringueiros antigos se riam da gente, da nossa falta de jeito. Conto sem ter
vergonha – muitas vezes chorei, escondido do Dorca, e amaldiçoei o dia que deixei a minha
terra. Mas tudo no começo é assim mesmo. Não há nada de tão ruim que a gente não se
acostume. E eu e os outros – os brabos, como a gente era chamado –, acabamos nos acos -
tumando. A vida no seringai não é sopa, mas também tem os seus momentos. Tinha o
sábado. O sábado, meu senhor, era o nosso dia. Quando a gente voltava do barracão do
gerente, tratava logo de descarregar o rancho, tomar banho e num instante estava na
canoa, vestido de limpo, chapéu, todo emperiquitado, e toca a remar para casa de Mestre
Felisberto. Era a festa, a festa que a gente esperava toda a semana, num desassossego.
Tinha música, sim: a rabeca de Mestre Felisberto, o banjo do Curica e mais o Zé Preto
batendo o compasso com duas colheres enganchadas nos dedos. Mas, como eu já lhe falei,
mulher que é bom não havia. Por isso dançava homem com homem e foi aí que eu ganhei
fama. Experimentei a primeira vez só pra dar gosto ao Dorca, companheirão que me ensinou
a cortar seringa, com paciência de santo. E quando começamos a dançar, os outros foram
parando abestados, olhando nós dois saracoteando pela sala. Desde aquela noite fiz nome e
renome. Não me lembro mais quem inventou a moda, mas os homens que dançavam como
dama amarravam um pano na cabeça, para diferençar dos outros. Um dia, um sujeito
quizilento chamado Procópio, entendeu que a gente tinha de pintar os beiços com urucu e de
vestir maria mijona. Pra dar mais sensação, como ele disse. Só não matei o filho duma égua
na horinha, porque os outros não deixaram. Mas nunca mais dancei com aquele corno.
Depois eu mesmo inventei de calçar sapatos tênis para dar mais leveza nos pés. Sim, lhe
digo, havia outros homens que também dançavam como dama, mas nenhum como eu.
Tanto que uma vez houve uma briga de dois cabras por causa de mim. Foi preciso eu arriar
as calças e mostrar os possuídos e gritar que eu era homem e muito do seu macho e não ia
permitir que dois safados brigassem com ciúme de mim, como se eu fosse mulher ou foboca,
que Deus me livre e guarde. Mesmo assim eu não chegava pra quem queria. Tinha noite de
gastar quase toda a sola do meu tênis de tanto arrastar os pés no chão de terra. Uma coisa
de doido. Só parava pra tomar uns goles de cachaça e assim mesmo aqueles cabras ficavam
todos me cercando e de olho vivo pra me pegar primeiro. Não, não ria, homem fazer vez de
dama não é coisa pra qualquer um. Desculpe que eu lhe diga, mas é preciso muita arte. Tem
que ter o corpo leve e os pés ligeiros, molejo na cintura, balanço de perna e sentido
calculado. Tem de ser uma pluma e adivinhar de véspera o movimento do cavalheiro. Ainda
hoje, por todas estas bandas, ainda me conhecem como Zeca-Dama. Já lhe pedi, não faça
cara de malícia. Agora eu sou um velho, mas ainda sei tirar desforra. Ninguém nunca
duvidou da minha macheza, porque todo mundo sabe que eu, com uma faca na mão, sou o
próprio capeta. Hoje mora muita gente por essas beiras e tem muita mulher. Nas festas, às
vezes, tem mesmo mais mulher do que homem. Mas nenhuma dança como eu, naqueles
tempos. Se não fosse o diabo do reumatismo que me amolenga as pernas e me endureceu
as cadeiras, eu era capaz de lhe mostrar. Dou-lhe minha palavra. Pergunte ao Dorca, ele
mora ali no primeiro sitio à esquerda, descendo o rio. O Dorca não me deixa mentir. Boa
noite, passe bem.
(O Tocador de charamela)
PÓS-MADRUGADA
A CALIGRAFIA DE DEUS
Quarenta e oito horas depois, havia dois cadáveres atravessados por balas de fuzil.
Uma casa de tábuas cinzentas e retorcidas pela chuva e pelo sol. Na loucura da Zona Franca,
o povo era tão afável na sua ironia que chamava aquilo de casa. Tinha muito capim-serra,
urtiga, um pé de mamoeiro e uma velha mangueira quase sem folhas. A casa, coberta de
palha, devia ter goteira como o diabo. Um rego de água fedida atravessava os calombos da
rua e fazia um mapa escuro no barro seco. As viaturas da Polícia e os carros dos jornais
tinham estacionado quatro quadras atrás, isto é, a uns trinta metros de um labirinto de
becos, terrenos baldios e lençóis secando em taquaras. Daquela rua, que o povo chamava de
rua São João, entre as vinte ruas São João que há em Manaus, era possível ver a gloriosa
cúpula do Teatro Amazonas e dois ou três espigões da moderna capital dos barés. Tinham
sido quarenta e oito horas de trabalho para todo mundo. Menos para os moradores do bairro
do Japiim. Na loucura da Zona Franca o povo era tão afável na sua ironia que chamava
aquilo de bairro. Em dez anos, aquelas colinas suaves cortadas por um igarapé viram
desaparecer os buritizais e a mata quase cerrada, as chácaras e os banhos, para dar lugar a
um conjunto habitacional do BNH e às adesões provocadas pela iniciativa particular dos
ribeirinhos que chegavam com a anual subida das águas. O conjunto habitacional nunca
ficaria pronto, e era um inferno de calor e poeira ao meio-dia, uma geladeira tropical de
umidade e bruma durante a noite. Nada mais restava da antiga mata e o deserto es tendia-se
pelo lado das casas dos ribeirinhos. Nos meses de chuva, formava-se um atoleiro que era um
verdadeiro nirvana para os porcos; nos meses sem chuva, uma paisagem marciana com todo
o charme de um barro avermelhado que empoava as crianças e as galinhas. Só a loucura da
Zona Franca para fazer o pessoal do Japiim chamar aquelas quarenta e oito horas de muito
divertidas, e isto estava visível na cara de irritação do Comissário Frota, expressão de quem
tinha o saco estourado e já estava cutucando o povo curioso com a coronha do revólver,
finalmente dando porradas com a arma e tentando dispersar centenas de mulheres e
crianças que tagarelavam sem a mínima disposição de compreender o significado de uma
operação policial e, muito menos, a aflição do bravo Comissário Frota. Uns oitenta praças da
PM seguiam o Comissário com a mesma disposição de espírito. Vão trabalhar, bando de
vagabundos, vamos circular, vamos circular, gritavam com voz rouca, adicionando alguns
palavrões carinhosos, enquanto mentalmente davam graças a Deus pelo término da
operação.
O PRIMEIRO CADÁVER
Devia ter uns vinte anos, estava vestida só com uma calcinha rendada cor de limão.
O corpo estava em decúbito dorsal, como sairia nas matérias dos jornais. Uma mulher baixa,
bem cheinha nas ancas, a cabeça com três furos de bala e o cabelo escuro marcado por
placas de sangue coagulado. O corpo tinha caído embaixo de uma rede do Ceará, os braços
encostados ao tronco, atravessado no quarto. Na parede, pendurados numa fileira de
pregos, um vestido, um sutiã cor de limão, um retrato de Dom Bosco, outro vestido de
tecido japonês que imitava brocado. A janela estava aberta e um soldado da PM tentava
derrubar do mamoeiro, com uma vara muito flexível, um mamão todo picado por sanhaçus.
Izabel Pimentel, que já estava morta há cinco horas, tinha morrido sem saber por que
tinha sido batizada com o nome de Izabel Pimentel. Morrera com uma única certeza, a de
que Deus escrevia certo por linhas tortas. Todos em Iauareté-Cachoeira acabavam com o
sobrenome de Pimentel. Izabel nascera em Iauareté-Cachoeira e não tinha escapado disso.
Seu pai se chamava Pedro Pimentel e sua mãe, ao casar com ele, já trazia o nome de Maria
Pimentel. Em Iauareté-Cachoeira isso até que podia provocar alguma confusão, pois não se
podia levantar um mexerico de que a filha do Pimentel não era mais moça ou que o Pimentel
colocava areia na pele de ucuquirana, sem que com isso toda a pequena cidade e inclusive a
pessoa de onde tivesse partido o mexerico se comprometesse. Por isso não havia mexericos
em Iauareté-Cachoeira, aliás, não havia nada de especial, nem mesmo uma cidade aquilo
podia ser chamado, a não ser pela loucura dos habitantes de Iauareté-Cachoeira que
enchiam a boca e diziam que eram da cidade de Iauareté-Cachoeira. O pai de Izabel era um
índio baniwa que passava o dia bebendo uma mistura de álcool com água e coçando os
edemas que os bichos-de-pé provocavam em seus dedos sujos de terra. Mas nem isso podia
ser considerado uma marca registrada do pai de Izabel, invariavelmente todos os homens de
Iauareté-Cachoeira, assim como se chamavam Pimentel, passavam o dia bebendo álcool
misturado com água e coçando os pés inchados de bichos. Uma outra diversão do velho
Pedro era espancar a mãe de Izabel duas vezes por ano. Uma no Natal e outra no dia de
Nossa Senhora Auxiliadora. A mãe de Izabel, uma índia tukano, tinha alguns dedos
inutilizados devido a essa prática anual do marido. O velho Pedro ficava animado durante as
comemorações do Natal e de Nossa Senhora Auxiliadora, pois eram as únicas datas em que
ele podia beber cachaça paraense ou um conhaque de alcatrão nefando que vinha da
Colômbia. Alguns anos atrás, ele tinha até conseguido uma garrafa de pisco peruano que
ficara na memória.
É claro que os dedos inutilizados da mãe de Izabel não serviam para identificá-la:
todas as mulheres casadas apanhavam dos maridos nas mesmas datas e tinham igualmente
os dedos inutilizados que mostravam para as filhas, como uma advertência, todas as vezes
que elas vinham falar de casamento. Izabel Pimentel morreu com todos os seus dedos
funcionando perfeitamente e até estavam bem-cuidados, as unhas pintadas com um esmalte
da moda, um anel de fantasia no dedo miudinho da mão esquerda. Izabel Pimentel tinha
conseguido escapar de um marido natural de Iauareté-Cachoeira e que certamente teria o
sobrenome Pimentel.
Um policial do Patrimônio viu o anel e puxou do dedo de Izabel com um movimento
brusco. Examinou o anel contra a luz e colocou num saquinho plástico onde estavam outras
bijuterias. Izabel tinha morrido proprietária de um par de brincos redondos e imitando
marfim, fabricado em Taiwan, uma pulseira de ouro 18 quilates, um relógio Seiko com
mostrador luminoso, uma medalhinha de latão com a figura de São Domingos Sávio, uma
corrente de prata suspeita, além do anel de fantasia arrebatado pelo policial. Izabel Pimentel
morrera muito mais rica que todas as moças de Iauareté-Cachoeira juntas. O que era uma
forma de provar que Deus escrevia realmente certo por linhas tortas.
A primeira vez que Izabel ouviu alguém dizer algo sobre a caligrafia de Deus, foi numa
conversa com sua mãe, enquanto lavavam roupa num trapiche. Izabel completara dezessete
anos, estava estudando na Escola Salesiana da Missão de São Miguel e passava as férias
com a família. Izabel queria dinheiro para comprar revistas em São Gabriel da Cachoeira e
sua mãe lhe disse que deixasse de ser lesa e que eles não tinham dinheiro para gastar em
leseira. De fato, eles não tinham dinheiro para gastar em coisa alguma, e só não morriam de
fome porque ela nunca tinha deixado de criar galinhas e fazia um ativo comércio de ovos
frescos com os vizinhos, sem que o marido soubesse. Izabel queria comprar aquelas revistas
coloridas que chegavam do Rio de Janeiro e traziam histórias de amor fotografadas em belas
casas e com belas criaturas. Na escola, as meninas faziam vaquinha para adquirir aquelas
revistas e quando conseguiam manuseavam-nas até esfarelarem. As histórias eram um tanto
complicadas e acabavam sempre bem, com a heroína conseguindo um casamento. Izabel
não sabia se aqueles cavalheiros em roupas caras, depois, começavam a beber álcool
misturado com água e se batiam nas mocinhas louras duas vezes por ano. Em todo caso,
isso não era muito importante, as meninas gostavam de ficar admirando as fotografias dos
beijos espetaculares e cismavam muitas horas sobre esse esquisito costume dos pares
românticos das grandes cidades, que externavam sua paixão encostando lábios contra
lábios. O beijo não era uma instituição comum no Rio Negro e por isso mesmo as meninas
ficavam muito assanhadas, loucas para uma experiência prática.
Até aquela manhã, quando lavava roupa com a mãe, Izabel nunca tinha beijado
ninguém e pedia apenas uma mixaria de dinheiro para comprar a revista. A mãe
resmungava que aquilo era leseira, que não era fácil conseguir dinheiro e por isso não podia
desperdiçar. Izabel começou a dizer que se o pai não andasse bebendo álcool com água, ela
bem que poderia comprar a revista. A mãe passou a bater com força a roupa que estava
lavando e disse que as coisas estavam bem como estavam. Se o velho Pedro não bebesse
tanto e fosse um homem trabalhador, ele certamente estaria ganhando dinheiro e teriam
posses para comprar o que quisessem, até as revistas que Izabel tanto desejava. Mas ela
sabia que não seria assim; o velho Pedro com dinheiro no bolso poderia comprar a cachaça
ou o conhaque de alcatrão que quisesse e ela, então, sofreria espancamentos todos os dias.
Por isso, era melhor que não tivessem dinheiro para nada, que duas surras anuais já eram
suficientes. Deus escrevia certo por linhas tortas, disse a mãe de Izabel e isso a deixou
muito intrigada. Realmente era uma caligrafia tortuosa que começava na preguiça do pai,
passava pela turbulência cíclica dele, oferecia dias de penúria para todos e impedia que ela
comprasse uma revista e contemplasse os beijos dos amantes das grandes cidades. Uma
caligrafia divina cuja sinuosidade lhe escapava, como o fato de se chamar Izabel Pimentel,
mas que, por isso mesmo, era marcante, cristalina e tão forte que ela nunca mais
esqueceria. Que Deus cometesse aquela garatuja de vida que levavam em Iauareté-
Cachoeira, pelo simples fato de impedir que o pai batesse na mãe todos os dias, era uma
loucura muito grande e Izabel Pimentel descobriu que todos estavam loucos em sua casa, na
cidade, talvez em todo o Amazonas. Descobriu inclusive que ela devia ser uma letra malfeita
no destino divino.
O rio Uaupés descia na sua correnteza em suaves banzeiros e o sol estava insano e
queimava. A água insinuava-se tépida e Izabel viu umas meninas de sua idade descerem
para a beira do rio, fazendo algazarra e levantando a barra malfeita dos vestidos. Eram
moças sem nenhuma elegância, cabelos escorridos pelos rostos redondos, os seios quase em
cone perfeito, iguais aos dela, despreocupadas e sentindo a água molhando as coxas. Izabel,
nessa época, não sabia o quanto era deselegante e não tinha ainda reparado no corte
grosseiro dos vestidos que usava. Depois é que foi descobrir o quanto eram loucas as suas
colegas, que nem ao menos se preocupavam em escolher os vestidos, ou sabiam o que era
um batom ou um xampu para os cabelos. A mãe estava sempre com uma grande blusa
branca, encardida, os seios decrépitos em completa liberdade, e uma saia azul-marinho que
descia indefinidamente até o meio das pernas cheias de cicatrizes. E o louco de seu pai
passava o dia com um calção escuro balançando nas coxas magras e que nada escondia
quando sentava ou ficava de cócoras. Era um bando de loucos, pensaria Izabel, muito tempo
depois, aqueles homens acocorados em tomo de uma cuia de álcool misturado com água, e
que não mais falavam, nem mais se olhavam e que depois iam para suas redes porcas,
ressonar pela noite adentro, uma fogueira largando fumaça para espantar os carapanãs. Por
isso, na escola da Missão, Madre Lúcia, os olhos verdes como casca de tucumã, estaria
sempre a dar-lhe cascudos com uma sineta e a chamá-la de menina louca. Izabel Pimentel
subia nas goiabeiras e comungava com o estômago cheio todas as manhãs, o que era uma
prova de loucura. Madre Lúcia se impacientava com ela, que nunca aprendia a soletrar, nem
decorava as palavras em italiano do hino de Nossa Senhora Auxiliadora. Na sala de aula,
Madre Lúcia chamava Izabel para o quadro-negro e se aborrecia quando notava que ela
estava lambendo os dedos sujos de giz. Mas se Izabel era louca, Madre Lúcia devia ser muito
mais, por enfrentar o calor do Uaupés com aquele hábito branco sempre muito limpo e
engomado, por nunca tomar banho no rio nos fins de tarde, como fazia o Padre Andreotti, e
por nunca ter beijado ninguém, mesmo tendo aqueles olhos verdes como casca de tucumã.
Uma mulher nova como Madre Lúcia se consumindo em perseguir a loucura de Izabel,
batendo-lhe com a sineta na cabeça só por ter ela perguntado se era bom beijar e se eram
só os lábios que se tocavam num beijo. E foram três anos na Missão, com aquelas revistas
esfareladas que já não permitiam a contemplação do mistério do beijo e onde ela não podia
ler as palavras de amor dos amantes, tudo como a escritura de Deus que marcava a sua
vida.
Izabel Pimentel estava para tirar o curso primário quando duas coisas aconteceram.
A primeira deixou Izabel indiferente, já que ela não tinha mais nada a ver com aquele
defunto encarquilhado, rodeado de angélicas e quatro velas, deitado numa rede sempre suja
e que recebia com um esgar vítreo nos olhos a oração e a fumaça do cigarro que o velho
pajé baniwa expelia ao mesmo tempo. O velho Pedro estava morto, depois de uma série
inútil de operações que lhe foram amputando, pedaço por pedaço, a perna direita. Um
edema de bicho-de-pé inflamou e logo o Padre Andreotti, que tinha sido médico do exército
italiano na Segunda Guerra Mundial, viu que se tratava de gangrena. Levou o velho Pedro
Pimentel para o hospital de São Gabriel da Cachoeira e cortou, com a perícia de um médico
combatente, aquela protuberância tumescente e pútrida; dava tapinhas animadores no
ombro do paciente e recebia de volta uma voz envolvida num hálito de álcool com água que
lhe dizia que de nada adiantaria o tratamento, que ele logo estaria morto e expulsando
alguém da maloca dos mortos, doando assim ao rio Uaupés mais uma piraíba. O velho
Pedro, apesar de católico, ainda acreditava que depois da morte ele seria obrigado a disputar
um lugar na sempre apinhada maloca dos mortos, e que disso resultaria a expulsão de
alguém que seria lançado ao rio Uaupés e transformado em piraíba. O velho Pedro não
queria ir nem para o céu, nem para o inferno, nem mesmo para o purgatório, queria ir
disputar uma vaga na maloca dos mortos, onde poderia continuar a beber quantas cuias de
álcool com água quisesse. Uma semana foi suficiente para o velho Pedro conseguir o que
queria, Izabel Pimentel foi levada até o Hospital de São Gabriel da Cachoeira e rezou, a
contragosto, um rosário inteiro perante o defunto, acompanhada por Madre Lúcia. Sua mãe
estava lá também, tagarelando com outras mulheres, fazendo contatos para ampliar sua
venda de ovos frescos. A morte do velho Pedro, que tinha trinta e sete anos, em nada
modificaria a vida de Izabel Pimentel, muito menos a vida de Maria Pimentel. A mãe de
Izabel, que tinha também trinta e sete anos, não queria mais saber de casamento, pois
acreditava que já tinha sido espancada o suficiente para ser considerada uma boa mulher
tukano.
Izabel Pimentel também não estava pensando em se casar; seu maior interesse,
naquele momento, era decidir sobre uma proposta recebida na escola, vinda da parte de
Madre Lúcia. A proposta era uma loucura e isso a tornava ainda mais atraente. Madre Lúcia,
que cuidava dos serviços de odontologia na Missão de São Miguel, havia dito para ela que
seus dentes amarelados, em bom estado, mas desalinhados e pontudos, poderiam ser
eliminados e no lugar colocado um par de próteses, com dentes brancos, brilhantes,
perfeitos e esmaltados. Madre Lúcia havia dito que com isso ela podia ficar uma perfeita
moça da cidade, com um sorriso parecido com os das moças das revistas de fotonovelas.
Izabel Pimentel queria saber qual a sensação de um beijo com aqueles dentes maravilhosos
e que ela poderia tirar e pôr a hora que bem entendesse. Ela poderia beijar com dentes,
beijar sem dentes, e por isso estava achando aquilo uma loucura. Uma noite, Izabel decidiu
ficar acordada ouvindo a saparia e folheando, na penumbra do luar que se filtrava para o
dormitório das meninas, uma revista de fotonovelas. E todos os dentes lhe atraíam a
atenção. Chegou à conclusão que só por loucura alguém podia chamar de dentes aquelas
presas que ela tinha na boca. Na outra manhã, para alegria de Madre Lúcia, ela deu início ao
processo de transformar sua boca de bugre em boca de gente. Cada dente extraído, daí para
frente, era como se deixar levar mais uma vez pela exótica maneira de Deus riscar no
mundo a sua sina. Mas o processo não era barato, não seria feito de graça. Madre Lúcia
agora dava as tarefas mais duras na roça para Izabel Pimentel fazer. Todas as louças e
panelas tinham de estar sempre imaculadas pela mão de Izabel Pimentel. O piso de cimento
da Igreja lavado, a poeira dos livros dispersada e as roupas engomadas pela mão de Izabel,
para que ela tivesse lindos dentes na caverna flácida em que sua boca se transformava.
Izabel era uma menina dura quando perseguia algum desejo e agora, enquanto se ocupava
dos muitos afazeres da Missão, divertia-se em cuspir no chão aquelas marcas de sangue que
lhe deixavam um gosto salgado descendo pela garganta. Um dia, Izabel ouviu o Padre
Andreotti discutir de maneira violenta com Madre Lúcia e chamar a freira de louca, de
demente, de insana, por andar extraindo dentes sãos de suas alunas. Padre Andreotti
chamava Madre Lúcia de todas aquelas palavras, com a voz machucando, e Izabel não
conseguia compreender onde estava o mal em ser louca e em querer dar um sorriso de moça
da cidade para uma menina de Iauareté-Cachoeira que tinha o sobrenome Pimentel. Isso
não fazia nenhuma diferença para o Padre Andreotti, e Izabel, preparada, ficou de boca
fechada e olhar de peixe morto quando Padre Andreotti a chamou, certa tarde, e a colocou
sentada em seu colo, acariciou-lhe os cabelos e pediu-lhe que não fosse mais ao consultório
de Madre Lúcia. Izabel ficou só sentindo o cheiro da batina e observando os dentes brancos
do Padre Andreotti, sem se mexer ou ter qualquer outra reação, fingindo submissão. Izabel
sabia que o Padre Andreotti também era um louco, não só pelo que lhe dizia naquele
momento, como também pelas suas atitudes na Missão, carregando um gravador de pilha
para todo lado e gravando os velhos cantos e as velhas histórias que os mesmos
missionários haviam condenado como coisas do diabo e que não prestavam. Ela só
lamentava que ele não fosse louco o suficiente para que ela lhe pedisse para dar-lhe um
beijo. Padre Andreotti, como padre, não beijava como os mocinhos das fotonovelas, o que
era uma loucura em se tratando de um homem tão bonito e que tinha vindo da Itália. Por
isso, Izabel saiu do colo do Padre Andreotti como um xerimbabo ajeitando as penas
amarrotadas pelos carinhos e prosseguiu o tratamento com Madre Lúcia.
Finalmente, no primeiro Natal em que a mãe de Izabel Pimentel passaria sem
espancamentos, Madre Lúcia cometeu a suprema loucura de obrigar um C-47 inteiro da FAB
a transportar de Manaus para Iauareté-Cachoeira um par de próteses dentárias para ela. As
próteses chegaram embrulhadas em papel de chumbo e acondicionadas numa caixa de
despertadores digitais, muito colorida, que Izabel Pimentel iria guardar por muito tempo,
porque trazia uma bela ilustração colorida de uma moça japonesa deitada num campo de
relva e que parecia estar despertando ao som de um relógio digital e mostrando belos dentes
brancos. Na Missa do Galo, a boca de Izabel mostrou todo o seu potencial de encantamento,
quando ela entrou na Igreja e os olhares das meninas convergiram invejosamente para seu
sorriso. O Padre Andreotti, inconformado, pensaria em Izabel como um retrato falado
malfeito, pois os dentes saltavam quase impudicamente do sorriso pré-colombiano da moça.
Ele sabia que era uma loucura achar que duas próteses dentárias poderiam ser indecentes,
mas a opinião, sem que ninguém ao menos comentasse, generalizou-se pela Missão,
sobretudo no meio dos rapazes. Se as meninas de certo modo sonhavam com os dentes
novos de Izabel Pimentel, os rapazes passavam a demonstrar uma evidente repulsa. E claro
que nenhum moço de Iauareté-Cachoeira que honrasse o sobrenome Pimentel iria beijar
dentes tão brancos e muito menos casar com uma boca que podia ficar vazia como a de uma
velha a qualquer momento. Beijar aqueles dentes, pensavam os rapazes, seria como beijar
Madre Lúcia, o que lhes parecia muito bom se a sensação de pecado não fosse tão terrível.
Imediatamente Izabel Pimentel foi alijada do convívio de todas as famílias Pimentel, o que
era uma inominável loucura. Por isso, Izabel Pimentel aceitou sem discutir o convite de
Madre Lúcia para vir trabalhar no Colégio Salesiano de Manaus, onde um par de próteses
não fazia nenhuma diferença. Quinze dias depois Izabel Pimentel embarcaria no C-47 da
FAB, carregando um embrulho de roupas e um velho número de Capricho. Padre Andreotti
foi especialmente a bordo do aparelho recomendar Izabel Pimentel ao comandante e, antes
de desembarcar, já com os motores da aeronave em funcionamento, acariciaria os cabelos
dela e diria com uma expressão contrariada que ela tomasse cuidado, que não se deixasse
maltratar, que ela lembrasse que era uma moça e uma cidadã que tinha direitos, mesmo
sendo filha do desaparecido Pedro Pimentel, um índio baniwa.
O OUTRO CADÁVER
Alfredo Silva, vinte e cinco anos, corpo bem proporcionado para a pouca estatura,
medroso e astuto, corajoso quando estava sozinho e infeliz por lhe terem arranjado o apelido
de Catarro, estava morto e chegou a essa situação depois de compreender que tinham todos
enlouquecido em Manaus. Catarro havia sido o último a ser localizado pelo cerco da Polícia,
quando enchia a cara de cerveja num bilharito do Japiim. Ele tinha se levantado para dar
uma mijada e estava andando, descendo o zíper da braguilha, na direção do terreno baldio
que ficava aos fundos do bilharito, quando viu duas viaturas cinzas da PM estacionarem na
esquina e de uma delas descer o Comissário Frota, o sacana que já o tinha pendurado tantas
vezes no pau-de-arara e que gostava de colocar gelo em seu saco, mesmo quando ele já
tinha dado o serviço. O Comissário Frota era um louco, pensava Catarro, um homem
franzino mas muito aborrecido, impetuoso e cruel quando cercado de outros tiras e procedia
a algum interrogatório, complacente quando aparecia algum advogado ou quando era
obrigado a se envolver em problemas com filhos de família. Mas nos encontros do Comissário
Frota e Catarro, o desgraçado do tira sempre tinha sido inflexível ao absoluto. O Comissário
Frota chegara à conclusão, tirada do fundo de sua experiência policial, que poderia
solucionar todos os problemas de latrocínio em Manaus pela prisão e muita porrada no lombo
de Catarro. E essa certeza já estava ficando incômoda para Catarro, porque não havia crime
ou assalto que acontecesse na cidade que ele não fosse imediatamente capturado, seviciado
e, sem mais outras explicações, libertado, porque o Comissário Frota era incapaz de resolver
o menor problema de roubo de galinhas. Até o apelido de Catarro, que tanto o irritava, tinha
sido consagrado pelo Comissário Frota nas diversas entrevistas que ele dava diariamente à
imprensa. E na loucura da Zona Franca, a única editoria de jornal que realmente fun cionava
era a editoria de polícia. Catarro tinha se transformado numa celebridade – embora não
merecesse a fama – ao exercer o direito de roubar, como batedor de carteiras no Estádio
Vivaldo Lima, o porta-cédulas de um Núncio Apostólico todo paramentado, durante uma
cerimônia do Congresso Eucarístico de Manaus. Flagrado por um nervoso diácono, teve a sua
intenção frustrada e acabou preso. Disse aos jornalistas que fizera aquilo pensando que o
Núncio fosse o Papa, homem poderoso e que sabia ser muito rico, pois era proprietário de
todas as igrejas e faturava com tudo quanto era batizado, casamento e novena. Tinha sido a
maior loucura de Catarro, já que o Papa não costumava andar pelo Estádio Vivaldo Lima,
muito menos com um porta-cédula de plástico recheado por vinte notas de um cruzeiro.
Catarro foi perdoado pelo Núncio, um homem muito bom, que foi pessoalmente na delegacia
confirmar o roubo e perdoá-lo, dizendo que um moço sadio como Catarro não devia andar
furtando porta-cédulas de um Núncio Apostólico pensando que fosse o Papa. O Núncio
deixou Catarro na cadeia por vinte e quatro horas e ofereceu o dinheiro de presente, para
que ele começasse uma nova vida quando saísse. Catarro ficou ofendido com aquilo e jurou
nunca mais roubar outro Núncio Apostólico pensando que fosse o Papa. Afinal, ele não era
nenhum mendigo para sair da cadeia feito um louco com um bolo de vinte cruzeiros em
notas de um. O certo é que Catarro virou celebridade e saiu até numa coluna da revista Veja
com um texto humorístico, embora ele jamais tenha tomado conhecimento do fato.
Catarro viu o Comissário Frota descer da viatura e gritar para que ele ficasse de
mãos para cima e não fizesse nenhum movimento. Catarro não era louco para obedecer a
uma ordem dessas e baixou as mãos para fechar o zíper que estava aberto e sentiu que,
apesar da urgência, ia ter que dar a sua mijada depois, em algum lugar mais seguro. Os
homens que estavam bebendo cerveja com ele no bilharito se jogaram no chão e Catarro
ouviu tiros espoucarem em sua direção, exatamente quando ele desembestava rumo a uma
cacimba, onde duas velhas estavam lavando roupas e começaram a gritar apavoradas.
Catarro saiu se atolando numa vala e notou que a sua calça Levi's, cor de vinho, estava toda
emporcalhada. Catarro não gostava de andar emporcalhado e ficou ainda com mais raiva do
Comissário Frota.
Duas horas depois, Catarro estaria morto sem ter conseguido ao menos aliviar a
bexiga em paz. Por isso, seu corpo foi encontrado sentado quase de lado contra um canto da
cozinha, no meio de uma poça de sangue e urina. Antes de varar os quintais e chegar na
casa onde vivia com sua amante, que a imprensa chamava de Índia Potira, Diacuí ou Izabel
Pirada, e mais dois sócios, o Bacurau, que era um hábil rato d’água na rampa dos Remédios,
e Buraco ou Miss Zona, uma bicha que fazia assaltos a motoristas de táxi, Catarro receberia
uma primeira bala de fuzil, que lhe arrebentaria parcialmente a coxa esquerda. Ele não sabia
que Bacurau e Miss Zona já estavam presos e que a Índia Potira tivera o corpo furado de
balas e estava atravessada, morta, no meio do quarto, vestindo apenas a calcinha cor de
limão que ele tinha dado e que ficava tão bem nela.
Catarro também não tinha tomado conhecimento de que a PM e a Polícia, com quase
cem homens, desenvolviam a gigantesca Operação Grande Zona, mantendo o bairro do
Japiim completamente cercado e vasculhado. Os meganhas e os tiras estavam há quarenta e
oito horas enlouquecendo de curiosidade os moradores do bairro, que não deixavam
ninguém trabalhar em paz, atravessando no meio das manobras, no meio das escaramuças,
como se a Operação Grande Zona fosse uma festa folclórica ou lá o que diabo fosse. A
Operação Grande Zona era o mais recente trunfo do Comissário Frota. Tinha convencido o
Secretário de Segurança a autorizar um batalhão da PM a cercar o bairro do Japiim, pois
tinha tido um sonho onde ele via, lá no meio dos barracos de madeira e palha, os facínoras
que tinham cometido o assalto ao carro pagador da Indústria de Rádios Isagawa do
Amazonas e assassinado à queima-roupa o humilde chofer do carro, um rapaz de Três
Corações, da mesma terra de Pelé, e que tinha, num acesso de loucura, vindo para Manaus
ajudar com seu trabalho o progresso da Zona Franca. Tinha sido um crime bárbaro e o
vigésimo assalto com vítima fatal em menos de uma semana, o que deixava a população
sobressaltada e a polícia em apuros. E claro que nem Catarro, nem a Índia Potira, nem
Bacurau e Miss Zona estavam implicados no assalto ao carro pagador da Isagawa. Disso
ninguém tinha a menor dúvida, nem mesmo o Comissário Frota. Mas numa cidade onde,
proporcionalmente, se cometiam mais assaltos que em Nova Iorque e só pela loucura da
Zona Franca seus habitantes ainda teimavam em chamá-la de cidade pacata, uma boa
demonstração de força e muitos homens em ação ajudariam a tranquilizar a população e até
poderiam lhe trazer alguma boa promoção por parte do governo. A Operação Grande Zona
era, portanto, um acontecimento simbólico. O Comissário Frota elevava o trabalho policial
quase à metafísica com variações de dramaturgia trágica. O Comissário Frota tinha sido um
louco em não ter pensado em algo assim antes, sobretudo quando alguns ladrões tinham
cometido a suprema ousadia de arrombar a própria casa do Secretário de Segurança, de
onde levaram joias, dinheiro, uma televisão colorida e um aparelho de som de 120 watts de
saída.
Antes de ter o nome incolor de Alfredo Silva trocado pelo sonoro apelido de Catarro,
até que ele era um bom rapaz, que usava um par de botas negras, uma calça Levi's cor de
vinho, camisa colorida de Hong Kong e óculos escuros. Em todo o bairro do Japiim, onde
sempre viveu desde que chegou a Manaus, era o único rapaz que usava botas e óculos
escuros. Que soubesse, era realmente o único e para ele isso era ao mesmo tempo o
máximo de integração aos costumes da capital e uma expressão de virilidade. Achava que
para seu patrão, um major reformado do exército que gerenciava uma Empresa de
Segurança ao Patrimônio e oferecia guardas para bancos e mansões, as botas e os óculos
escuros estavam perfeitamente aprovados pelo ar vaidoso e petulante que ele adquiria.
Embora o major sempre tivesse a cara amarrotada de ressaca, era como descobrir, no fundo
daquela expressão de dor de cabeça crônica, a aptidão que ele tinha para usar botas e
óculos escuros. Mesmo assim, foi um dia posto na rua, com botas e óculos escuros, porque
dormira no serviço e tinha deixado que arrombassem o Opala Caravan do chinês proprietário
da loja importadora, onde estava dando guarda todas as noites. Ele ficou muito aborrecido
pela injustiça, não tanto pelos caraminguás que ganhava de salário para não pregar os olhos
a noite toda, com o ouvido colado num radinho de pilha ouvindo um programa de músicas do
tipo arranca-lágrimas-de-puta e muita baboseira do locutor, mas por ter perdido o direito de
portar o revólver Taurus calibre 38 que costumava girar nos dedos para os amigos que
bebiam cerveja na mesa do bilharito. Sentiu também que sem a farda azul-claro, com divisas
nos ombros, o quepe de napa mole, perdia o status de homem da lei que tanto fascinava as
meninas da sessão da meia-noite no Cine Guarani, com os filmes de caratê e chineses
franzinos que faziam o diabo. Fardado, também podia fazer o diabo com as meninas, e foi no
meio de um filme de caratê que ele conheceu uma mulherzinha de cabelos corridos e com
um par de dentaduras magníficas.
Era uma dona completamente louca e sempre andava repetindo que Deus escrevia
certo por linhas tortas, mesmo quando se metia numa encrenca na boate O Selvagem, o
mais animado e turbulento dos prostíbulos e santuário máximo da vida noturna da Zona
Franca das Cem Mil Putas. Ela parecia louca mesmo e acabou fazendo dele o seu xodó. Era
meio desmiolada e gostava de beijos, se bem que nunca tivesse sido beijada na vida.
Ninguém queria beijar uma marafona, ainda mais uma marafona que usava dentaduras. A
primeira vez que ele se irritou a sério, foi justamente pelos pedidos de beijos que ela fazia e
que ele recusava dizendo que não era nenhum louco para andar beijando vagabundas
desdentadas. A coisa tinha sido muito séria, ele tinha descido verdadeiramente a lenha nela,
e só não tinha desancado a mulher de uma vez porque os vizinhos da estância vieram em
socorro e desapartaram. Na verdade, essa história de encher a cara dela de porrada tinha
virado uma mania, e ela parecia gostar muito. No puteiro O Selvagem todo mundo a
conhecia pelo apelido de Índia Potira e diziam que era realmente uma índia. Seus amigos de
cerveja no bilharito começavam a sacanear, dizendo que ele tinha virado funcionário da
Funai, mas ele não deu muita importância, pois não tinha a menor ideia do que fosse ser
funcionário da Funai.
A Índia Potira tinha fugido do Colégio Salesiano e conseguira um emprego de
operária num dos turnos da fábrica de fitas cassete Sayonara Eletrônica. Um emprego que
lhe arrasava totalmente a disposição. Era uma loucura para a Índia Potira, com sua
dentadura, passar oito horas num cubículo iluminado a neon, com dois ventiladores que
soltavam ar quente, entre divisões de grades de arame, soldando intermináveis transístores
em circuitos impressos, ou adicionando pinos de plástico em envoltórios para fita cassete. No
fim do turno, todas as funcionárias passavam pelo setor de segurança, onde eram
vistoriadas pelos guardas para ver se não estavam roubando nada. A Índia Potira não
gostava nada de ter as mãos nojentas de um guarda qualquer apalpando o seu traseiro
todos os dias, só para saber se ela não teria enfiado algum transístor no rabo. Acabou
comprando um vestido de brocado japonês, bem curtinho, e frequentando a boate O
Selvagem, seguindo o convite de um chofer de táxi, seu primeiro cliente e que lhe deixou
uma boa grana. A Índia Potira achou que seria uma loucura se voltasse a trabalhar na
fábrica Sayonara Eletrônica, onde ganhava uma mixaria por mês e uma dedada por dia,
quando numa só noite e em cada dedada ela podia faturar dez vezes o maldito salário que
aqueles filhos da puta pagavam. Foi quando encontrou o Catarro, que já conquistara
celebridade por ter roubado a carteira do Núncio Apostólico e estava trabalhando na
fiscalização dos pivetes que ficavam na rua Guilherme Moreira oferecendo fitas de vídeo de
sacanagem, canetas Cross falsificadas e pomadinha para passar no cacete, aos turistas que
perambulavam pelas lojas de importados.
Catarro estava prosperando no negócio da Zona Franca, lucrando muito com a venda
de canetas, de pomada afrodisíaca que era Vick Vaporub e muito mais nos vídeos, que não
passavam de um pedaço de madeira coberto por uma embalagem de papelão onde estavam
coladas fotos de revistas pornográficas. Catarro comprava a pomadinha a dez merrecas nos
navios e revendia a oitenta. Um vídeo pornográfico de mentira custava até trezentos
cruzeiros e não era raro um turista cair na arapuca e esconder apreensivo a embalagem
comprometedora na bolsa Sansonite que acabara de comprar. A Índia Potira achava Catarro
um cara muito vivo e não entendia por que ele cultivava a loucura de não querer beijá-la.
Catarro não tinha tido a mesma sorte dela quando veio para Manaus. Era até um cara legal,
que havia lhe dado uma calcinha cor de limão e deixava que ela ficasse em casa bem à
vontade, mesmo quando Bacurau e Miss Zona estavam lá e olhavam para a sua calcinha cor
de limão e para os peitinhos em forma de cone.
Catarro veio para Manaus porque não tinha mais saco de passar as noites acordado,
com um terçado numa das mãos e um candeeiro de querosene na outra, vigiando a
maromba das galinhas para que nenhuma sucuriju, malditas cobras que nadavam com
incrível agilidade não viessem durante a noite, em silêncio, provocar baixas na criação de
seu pai. Todos os anos era isso, na palafita de seu pai bem na margem do furo do Cambixe,
a algumas horas de motor de recreio de Manaus. Todos os anos o rio começava a encher e
invadia tudo e eles eram obrigados a ir suspendendo o piso da casa e pondo os bichos em
marombas para que não morressem afogados, nem as piranhas, poraquês e sucurijus
viessem matá-los. Seu pai achava tudo muito natural e não perdia nunca a paciência, achava
mesmo uma loucura que aqueles assistentes sociais viessem todos os anos com a mão na
cabeça, querendo dar injeção, querendo dar dinheiro que ele não recusava e tentando
convencê-lo de que deveria colocar a sua casa em terra firme, onde seria um absurdo morar.
Catarro tinha dado duro na rampa do Mercado carregando banana e depois, no Ceasa,
empilhando caixas de laranjas, até comprar um par de botas negras, óculos escuros e uma
calça Levi's cor de vinho. Mas nada se comparava com a delícia de se sentar numa mesa de
bilharito do bairro do Japiim, beber cerveja e ouvir uma música de zona. E se Deus
realmente escrevia alguma coisa, como vivia repetindo a Índia Potira, era na mesa daquele
bilharito que Ele fazia as suas mais inspiradas linhas, ainda que tortas.
O Comissário Frota estava com o paletó aberto e a gravata italiana convenientemente
frouxa e arriada sobre a camisa desabotoada que deixava um tufo de pelos à vista, tudo
para mostrar aos repórteres o quanto ele estava exausto depois de quarenta e oito horas de
vitoriosa operação. Os repórteres não davam a mínima importância para o tufo de cabelos do
peito dele, nem para seu cansaço, o que era uma ingratidão da parte deles, pensava o
Comissário. Mas ele tinha certeza de que os repórteres saberiam cumprir a parte que lhes
tocava e que os jornais contariam, com os seus estilos parecidos, o sucesso da Polícia. Um
repórter amigo se aproximou e tocou em seu ombro, mas logo retirou a mão ao sentir com
um certo nojo mal disfarçado que a camisa do policial estava encharcada de suor. O repórter
tinha um bloco de notas em branco na mão e ficou comentando que era uma loucura a
maneira de Catarro morrer, numa poça de urina e sangue. E lembrou que a Índia Potira
tinha um par de seios em forma de cone, e que também era outra loucura ela estar ali só de
calcinha cor de limão, furada de balas. O Comissário Frota estava certo de que operações
como aquela poderiam bem ser repetidas uma vez por ano, para dar um pouco de
movimento à rotina da Polícia. O repórter parecia um índio desenhado a crayon, a boca
sarcástica e os olhos amarelos sem nenhuma esperança de inteligência. Era o repórter
policial mais brilhante de Manaus e escrevia verdadeiros editoriais na página de polícia,
lamentando a falta de meios com que os policiais trabalhavam e a benevolência com que a
Justiça parecia aquinhoar os meliantes, liberando ladrões e assassinos por meio de
abomináveis habeas-corpus. Quem lia aqueles artigos ficava pensando que o autor era um
cara que gostava de brigar e que por isso mesmo era um rematado idiota. O Comissário
Frota se esforçava para ganhar uma expressão horrível de cansaço, mas ficava cada vez
melhor e mais saudável, o suor secando com a brisa que sacudia o mamoeiro onde um praça
da PM estava tentando derrubar um mamão maduro todo picado pelos sanhaçus. O repórter
queria saber se os bandidos não teriam alguma ligação com o narcotráfico e ouviu o
Comissário Frota resmungar, contrariado, que eram dois cretinos que nunca seriam aceitos
nem mesmo como mulas pelo mais idiota dos colombianos.
O Comissário Frota passou o lenço pelo pescoço, que já estava totalmente enxuto,
sentiu naquele momento que era o homem mais virtuoso que existia. Sentia uma virtude tão
grande que era uma abominação alguém se sentir assim. Era como uma vontade de querer
arrotar e não poder, por isso foi saindo enquanto os flashes dos fotógrafos piscavam lá no
quarto. O Comissário Frota pensou o quanto era louco o fato da Índia Potira possuir um par
de seios em forma de cone e usar dentaduras, para não falar da calcinha cor de limão toda
rendada.
Catarro nem sentiu a bala do fuzil arrancar a carne de sua coxa esquerda, pensou que
fosse algum capim-serra que tivesse arranhado a sua calça cor de vinho e nem olhou para
não ver a bainha larga emporcalhada de lama. Ele queria chegar até em casa e pegar a Índia
Potira, sem saber bem por que fazia isso. Tentou subir num único salto a pequena escada
dos fundos e sentiu pontadas nas costas que aumentaram a vontade de mijar. Sentiu sede e
entrou na cozinha procurando o pote e pensou que era uma loucura a Índia Potira andar
dizendo que Deus escrevia certo por linhas tortas. Ela dizia umas coisas engraçadas, típicas
de uma louca, como naquela vez em que ele saiu todo esborrachado da Central de Polícia e
ela cuidou dele, colocando arnica nas pancadas e dizendo que ele não devia deixar que os
tiras o maltratassem, que ele era um cara que tinha direitos, um cidadão, mesmo sendo filho
de um ribeirinho que via a sua casa alagada todos os anos. Ele não tinha conseguido sacar
absolutamente nada do que a Índia Potira queria dizer com aquilo e achou que ela falara por
falar.
Catarro sentou-se no canto da cozinha, o corpo pendeu para o lado e ele pensou que
estava muito cansado. Sentiu que não mais conseguia prender a urina e deixou que ela
escorresse pela calça com volúpia, sentiu a perna ardendo, as costas ardendo e estava
suando muito. Deixou que um pensamento entrasse em sua cabeça: pensou que a Índia
Potira era uma dona muito louca, e que se Deus escrevia tudo aquilo, não era só o caso de
escrever por linhas tortas, é que Ele tinha certamente uma péssima caligrafia.
(A Caligrafia de Deus)