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livros

Para além do estilo de época

Cilaine Alves Cunha

O sino e o relógio – uma antologia do conto romântico brasileiro, de Hélio


de Seixas Guimarães e Vagner Camilo (orgs.), São Paulo, Carambaia, 2020, 416 p.

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O
sino e o re- atores sociais, e de regimes políticos e es-
lógio – uma téticos em disputa.
antologia do Os organizadores contemplaram autores
conto român- familiares do cânone tradicional, outros que
tico brasileiro dele se excluíram, dois deles sem assina-
adota inespe- tura de autor e outros dois de autoria não
rados critérios confirmada. Mesmo de escritores hoje mais
de seleção e conhecidos, o trabalho de seleção priorizou
organização dos 25 contos românticos reu- narrativas raramente publicadas, num traba-
nidos. Os organizadores deixaram de lado o lho de pesquisa que garimpou preciosida-
princípio de “evolução” que ordenasse auto- des. Em um critério de atualização dessa
res e obras de acordo com as datas sequen- antologia, o respeito à história cultural do
ciais de sua publicação. Mas num cuidado país abriu espaço para escritores que se ocu-
com a historicidade própria dos sistemas pam da escravidão, abalando, com isso, a
éticos e estéticos do tempo, Hélio de Sei- sentença de que o tempo romântico teria
xas Guimarães e Vagner Camilo recolheram calado o assunto. Em outro, O sino e o re-
narrativas originalmente publicadas entre a lógio reproduz contos de autoria feminina.
década de 1836 e 1879. A precisão desse Observa-se, enfim, nessa antologia a presença
último recorte temporal encontra lastro nas de minicontos que dificilmente ganhariam
polêmicas, quase um ano antes dessa úl- valor em outros tempos.
tima data, envolvendo a crítica de Machado
de Assis a Eça de Queirós. Lançados em
1881, O mulato e Memórias póstumas de
Brás Cubas figuram, cada um a seu modo,
CILAINE ALVES CUNHA é professora
uma reflexão sobre a ruína de pressupostos do Departamento de Letras Clássicas
românticos diante do surgimento de novos e Vernáculas da FFLCH/USP.

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Vagner Camilo e Hélio Guimarães dis- Mas seu racismo ufânico constitui o negro
tribuíram os contos por quatro seções de como uma alteridade demoníaca que deve
acordo com a temporalidade neles figurada: ser sacrificada em favor dos brancos.
o tempo mítico; algum episódio ou figura Sua história faz contraste com um conto
histórica do Brasil como motor da ação nar- da última seção do livro. Em “Um en-
rada; o tempo da experiência urbana con- forcado, um carrasco” (1837), Josino do
temporânea da história relatada; o tempo Nascimento e Silva aborda a preservação
subjetivo e metafórico dos efeitos da expe- e a restrição da pena de morte a escravos
riência social no destino das personagens. acusados de algum crime. Em cenas rá-
Numa profundidade que alcança a diversa pidas, apresenta grosserias cotidianas das
complexidade do período, algum conto de famílias no trato com eles. A insistência
uma das seções pode também se aproximar na humanidade do negro que será execu-
de um tema ou estilo formal de outra nar- tado e do carrasco submetido ao regime
rativa situada em outro bloco. de escravidão associa-se à compreensão de
Os seis contos reunidos no primeiro de- que a pena de morte é espetáculo bárbaro,
les, compostos sob a forma do fantástico, montado para o deleite da elite sádica,
tornam-se interessantes por diferentes razões. como se vê ainda hoje no Brasil.
Quatro seguem a convenção do gênero que, As histórias de Bernardo Guimarães e
desde seu advento em fins do século XVIII, José Ferreira de Menezes surpreendem por
prende suas histórias a uma afirmação do destinar finalidades satíricas ao estilo grave
nacionalismo. Em Franklin Távora, Fagun- do fantástico. Em “O pão de ouro” (1879),
des Varela e Apolinário Porto Alegre, ob- Bernardo Guimarães agrupa duas histórias
serva-se o recorrente procedimento em que e funde o mito do Eldorado com as lendas
o narrador nega que sua história tenha sido da Mãe-de-ouro e dos tatus brancos.
produto de invenção letrada, antes recolhida Na primeira, Bernardo situa, em um ponto
em algum membro da cultura popular, um incerto e isolado da América do Sul, jamais
velho, um pescador ou trabalhadores, de- pisado por pé humano, uma montanha cuja
tentores do saber local que supostamente as arquitetura natural forma um castelo que
fazem circular oralmente. Nesses dois últi- abriga todas as pedras preciosas da Terra.
mos autores, o conflito entre o narrador de O autor aproxima de Iracema a fada que
formação iluminista e o misticismo regional o habita, caracterizando-a como uma ves-
forja a contradição entre a valorização de tal indígena, mas encarregada por Tupã de
lendas locais e, no mesmo passo, a ressalva guardar aquele tesouro e reverberar a sua
de que elas resultam do “espírito atrasado luz pela aurora e pelo horizonte. Após se
do povo crendeiro” (Távora). entregar a um caso amoroso e negligenciar
A narrativa de Porto Alegre (“Mandinga”, suas tarefas divinas, ela e o amante são pu-
1867) evidencia acentuada capacidade do au- nidos com um dilúvio que espalha os me-
tor para armar o enredo e forjar, na me- tais preciosos pela Terra, o que acarreta a
tonímia do engenho com trabalhadores de disseminação da cobiça. No mito de Tupi-
diferentes etnias, uma figuração da comuni- nambá, aproveitado por José de Alencar em
dade nacional em sua diversidade regional. O guarani e em Ubirajara, o dilúvio favo-

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rece o nascimento de uma nova raça. Mas perseguir e assediar o protagonista. Assim
no conto de Bernardo, o cataclismo separa o o autor realiza, como diz, um fiasco dessa
par amoroso e responsabiliza o amor român- espécie formal, desencanta e a interpreta
tico pela disseminação da busca pelo ouro e racionalmente. Nas palavras do narrador, o
pela ameaça de desaparecimento da beleza. conto fará palpitar um fato real que efeti-
A segunda história localiza-se após esse vamente se deu, cabendo ao leitor descor-
dilúvio, quando o histórico Gaspar Nunes tinar a alegoria.
parte para Goiás à procura de ouro. Ao in- Já no parágrafo inicial, a definição da
vadirem uma montanha, cravejada do cobi- história sobrenatural como imitação de um
çado metal precioso, seu bando é aprisio- fato que efetivamente ocorreu elucida-se na
nado por índios pigmeus, os canibais tatus descrição do caráter e das ações do protago-
brancos que dormem em cavernas durante nista. Alberto se configura como um poeta
o dia por não suportarem a luz do sol. O rico, dedicado exclusivamente a amores eró-
bandeirante sobrevive ao canibalismo gra- ticos plurais, a trocar ouro por vinho e ao
ças a uma paixão irresistível que um desses cultivo da vida intelectual. A constante busca
seres das trevas alimenta por ele, caracte- por uma vida esteticamente condicionada
rizado como a Marabá, de Gonçalves Dias, transforma-o em fantasma, em pura alma e
mas quase albina, “dona de cabelos finos de espírito. Mas sua obsessão por uma virgem
ouro branco”. Na história de união amorosa remonta ao receio de que, com a perda dos
entre uma índia com um português, Bernardo pais, poderia lhe faltar uma companheira
Guimarães reestiliza o tema de Iracema, na velhice. Essa tristeza cômica rebaixa os
mas destitui os colonizadores de qualquer ideais espirituais de Alberto e os confronta
heroísmo “civilizador”. Também reduz co- com necessidades práticas.
micamente a história de amor irresistível da No conto abundam citações da obra de
indígena a uma paixão sexual devoradora. Álvares de Azevedo, desde seu Prólogo, que
“O punhal de marfim” (1862), de Ferreira dialoga ironicamente com o prefácio da Lira
Menezes, ganha uma acentuada complexi- dos vinte anos. Como Alberto, os heróis de
dade por ligar procedimentos do fantástico Noite na taverna são ricos bon-vivants. Ana-
com técnicas da ironia. Entre os recursos logamente a Álvares de Azevedo em seus
próprios desse gênero, o autor vale-se do discursos, o protagonista de “O punhal de
castelo situado em um ambiente idílico, mas marfim” afirma a força revolucionária dos
sinistro, a perseguição de uma personagem estudantes. O anti-herói azevediano, do po-
por outra e a ruína da nobreza, de início já ema “O vagabundo”, e Alberto têm por há-
completa. Mas, paralelamente a esses aspec- bito fazer versos à Lua e namorar estrelas.
tos, Menezes conduz outra linha discursiva Como no quarto e sala do poema “Ideias
em que trava um embate crítico com o lei- íntimas” (Álvares de Azevedo), na casa do
tor que espera encontrar no conflito central herói de Menezes reina a desordem com
sua familiaridade com a convenção do fan- quadros sobrepostos, sujos pela poeira que
tástico. Entre tantas inversões, sua história cai de garrafas de vinho. Entre tantas outras
substitui o castelo gótico por um palácio citações, Macário, os sujeitos líricos de Lira
urbano do século XIX, cabendo à heroína dos vinte anos e Alberto fumam cachimbo,

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têm 20 anos e sonhos que enlouquecem. Na indígenas da região, envolvendo-as por uma
citação mais significativa, Geórgia, ao fim de elegia. O retrato do índio Pacalalá forja um
Noite na taverna – justamente no capítulo herói nem vítima dos brancos europeus, nem
denominado “Último beijo de amor” –, so- servo voluntário, antes herói épico dotado da
fre uma mudança de caráter e vinga-se por capacidade de resistência, de grandeza moral
ter sido violada sexualmente. Inversamente, e intelectual, mas verossímil às condições
no último beijo de “O punhal de marfim”, da região mato-grossense, sem idealismo.
a princesa Maria se transforma em uma se- A pintura vigorosa do ambiente natural e
dutora que implora ardentemente por sexo e do cenário bélico prende-se à narrativiza-
casamento. Nas páginas finais do conto de ção da história, à dramatização do luto e à
Menezes, a repetição exaustiva do mesmo evocação de seres ausentes. A concisão e o
conteúdo, mas de modo variado, acentua a vigor pictórico de sua linguagem afastam,
mesmice do diálogo amoroso. O fastio das previamente, qualquer margem para a ex-
interlocuções dos amantes sobre o sentimento pressão dos sentimentos ou para metáforas
contrariado degrada o assunto. subjetivas da paisagem natural.
Ao desqualificar os princípios poéticos O terceiro bloco de O sino e o relógio
de Álvares de Azevedo, Ferreira de Mene- privilegia algum hábito, tipo social, costume
zes julga-os como matéria própria de um ou código poético vigentes no tempo con-
membro da burguesia endinheirada e ociosa. temporâneo da história narrada. Inclui al-
Numa espécie de realpolitik, avalia que per- gumas histórias que se conformam como
deu lugar em seu tempo a possibilidade de anedotas, ora a respeito de algum vadio es-
um ritmo de vida marcado pelo cultivo do tudante brasileiro pelas ruas de Paris, pu-
espírito. Em contrapartida, decreta a ine- nido com o choque cultural e por meio de
xorabilidade das necessidades práticas e de uma sutil e grosseira alusão à homossexua-
uniões matrimoniais monogâmicas. Trata-se lidade; ora sobre algum Dom Juan caricato
de explicar a vida de Álvares de Azevedo que também merece punição. Esse discurso
por sua ficção, confundi-lo com seu sujeito anedótico realiza um elogio do ethos bur-
da enunciação e associá-los à consciência guês enquanto censura seus supostos vícios,
artística de um poeta que, sendo “riquinho”, lembrando, nesse primeiro aspecto, o mo-
somente poderia adotar uma rebeldia sem delo de romance de costumes fornecido por
causa, a despeito de seus posicionamentos Joaquim Manuel de Macedo, nomeado, por
contrários ao processo, então inicial, de mer- Antonio Candido, de “pitoresco”.
cantilização da vida e à ordem monárquica. Em outra linha de contos da seção, a mãe
Em meio à seção de contos de O sino e de “Conversações com minha filha” (1879),
o relógio, ambientados em algum aconteci- de Corina Coaracy, contesta a ideia da fi-
mento marcante da história do Brasil, “Ca- lha de que a independência feminina abri-
mirã, a quiniquinau” (1874), do Visconde de ria espaço para que a mulher conquistasse
Taunay, oferece um Indianismo de outra li- o direito de exercer seu talento literário. Os
nhagem. O autor articula a invasão do Mato conselhos maternos ressaltam o isolamento
Grosso pelas tropas paraguaias com um rá- da mulher burguesa da experiência mun-
pido levantamento antropológico das tribos dana e os métodos educacionais voltados

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para torná-la delicada e passiva. Na rigorosa arte no interior da ficção evidencia o traço
análise materna dos costumes do tempo, a moderno da estética romântica.
inexorabilidade do monopólio da produção “A caixa e o tinteiro” (1836), de José
artística pelos homens faz contraste com a Justiniano da Rocha, encena os dilemas de
ação da escritora de dar forma ao tema. um escritor do tempo que, enfrentando a
Num diferente posicionamento sobre a falta de vontade e de inspiração, necessita
condição feminina, “Fany, ou o modelo das entregar daí a duas horas a um jornal seu
donzelas” (1847), da seção anterior, recorta texto literário ainda nem redigido. A teatra-
um instantâneo da Revolução Farroupilha lização dessa simulada angústia conforma
e traça uma hagiografia de certo modelo uma diatribe contra a subjetivização da lin-
exemplar de feminilidade. O conto segue guagem em curso, representada pela forma
o movimento marianista que, na Europa, do monólogo ou pelo discurso da confissão,
procurou conter o crescente desprestígio valorizados a partir da recepção letrada dos
da Igreja Católica após a queda do Antigo devaneios de Rousseau. No cômico conflito
Regime, repondo em circulação o culto à do escritor, o uso do rapé como estimulante
mãe de Cristo. Nísia Floresta empresta de da inspiração faz troça da prática de alguns
Maria o elogio da obediência da mulher românticos que, numa reação contrária ao
aos pais, sua tendência supostamente inata racionalismo, valem-se de narcóticos para
à maternidade e sua “natureza” propensa avivar a imaginação e registrar as suas visões
ao sacrifício por amor. em livre associação. No conto, a aproxima-
Ainda no terceiro bloco do livro, Mar- ção entre a produção desse tipo de discurso
tins Pena confirma-se como o mestre da artístico e a rapidez da composição de um
comédia dos costumes em “Minhas aven- texto de jornal, assim como a falsa homena-
turas numa viagem de ônibus” (1836). Em gem dirigida à caixa de rapé e ao tinteiro,
um transporte coletivo, o autor põe em distancia o autor da linguagem prosaica e
cena tipos comuns, de ações cômicas, e da valorização poética do mundo cotidiano.
aplica-lhes caracteres tradicionais, atuali- Também revela sua consciência artística que,
zados na cena urbana do século XIX. Em já se tornando passadista, prende-se ao culto
seu sketch, o namorador compulsivo, a ve- da racionalidade e da regularidade formal.
lha bruxa ou roliça, os compadres caipiras Nos nove contos da última seção de O
com suas variantes linguísticas e o próprio sino e o relógio predominam dramas da vida
narrador, desqualificado como um bufão familiar e histórias sentimentais, entreme-
pernóstico, atuam em uma única situação ados com outras narrativas que traçam um
que a todo instante faz o riso eclodir. balanço crítico de algum princípio român-
Além de Bernardo Guimarães e Ferreira tico ou de uma prática social. Entre eles,
de Menezes, ao longo do livro, há um con- “Carolina” (1856), de Casimiro de Abreu,
junto admirável de contos que ficcionalizam acentua hiperbolicamente o patético. A bela
a crítica dos autores a alguma tópica, proce- pastoril “Lembra-te de mim” (1872), de José
dimento ou tema romântico. A incorporação de Alencar, aproxima-se tematicamente do
da ironia como recurso estrutural e com conto anterior por edificarem a instituição
a função de realizar uma reflexão sobre a do casamento enquanto censuram respecti-

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vamente a inconstância amorosa feminina cos e românticos. A beleza morta ou plástica
e uniões conjugais realizadas por interesse. pode alegorizar a impossibilidade de a arte
“Revelação póstuma” (1839), de Fran- transmitir virtudes encarnadas pela musa, ou
cisco de Paula Brito, lembra as primeiras repor transistoricamente preceitos e autori-
incursões de Machado de Assis pela narra- dades antigas, cuja perfeição associa-se, às
tiva breve. Em comum entre o machadiano vezes, à simetria e à regularidade da arte
“Confissões de uma viúva moça” (1865) e dita “clássica”. Em diferentes autores, a an-
aquele conto há não apenas a forma epis- tiga beleza identifica-se com a arte italiana
tolar da heroína. Reitera-se ainda a fina- e torna-se mórbida, ou etérea e vaporosa.
lidade de alertar a família burguesa para Com esses atributos, o “antigo” eterno fe-
os perigos da educação de suas filhas que, minino desidealiza-se e perde a capacidade
isoladas da experiência prática, as torna de transmitir algum valor ético ou estético.
presa fácil de aventureiros. Em “O último concerto” (1872), de Luís
Se há algo de romântico em “O relógio Guimarães Júnior, a musa inacessível ao
de ouro” (1873), de Machado de Assis, pre- músico Salustiano é ardentemente alme-
sente no livro, refere-se apenas à escolha jada como a própria obra sublime que
do tema sobre os costumes conjugais e a ele espera compor. Sua inacessibilidade
punição da infidelidade. Estruturado como é associada a razões de ordem social e
um enigma que a história decifrará, a frus- ao conflito de classe entre um artista po-
tração da expectativa de traição feminina bre e uma filha da oligarquia. A história
desarma o melodrama. Os comentários irô- distende-se numa elegia que figura o fim
nicos da terceira pessoa mantêm distância da arte, tratada como religião, numa so-
das intromissões sentenciosas e judicativas ciedade altamente hierarquizada.
típicas das narrativas de primeira hora do “O grande vaso chinês” (1877), de Flávio
autor. Elas já foram substituídas pelo humor d’Aguiar, traça uma inesperada revisão da
que se delicia em desnudar o contraste entre recorrente musa feminina. O narrador de
o discurso das personagens, voltado para a primeira pessoa elege por ideal feminino a
jura do amor único e da fidelidade, com suas figura de uma chinesa, sugestivamente no-
ações que negam esses princípios. meada de “Tcha-tcha”, pintada no vaso do
Duas histórias dessa seção giram em título. Com bom humor, a primeira pessoa
torno da recorrente musa feminina inaces- transporta a frieza e a palidez do mármore
sível, mas por caminhos opostos. Até então, de Carrara para a afetividade de sua orien-
a típica situação ficcional em que um poeta tal. O conto articula a memória dos tempos
contempla a imagem de uma bela torna-se de infância do herói com a parábola do fi-
estratégia para afirmar algum ideal ético ou lho pródigo. Em boa parte, lê-se a recorda-
estético. Em outra variedade dessa situação, ção das fantasias infantis com essa amada
a atração de um artista por uma figura femi- plástica, eleita como amiga imaginária e
nina morta, ou esculpida, ou pintada, pode espaço de fuga dos dissabores familiares.
servir de pretexto para uma reflexão sobre a Mas gradativamente a imagem pictórica e
historicidade da beleza, num procedimento a boca do vaso ocupado por flores remetem
que tendeu a figurar a querela entre clássi- à descoberta e à curiosidade infantil com

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a sexualidade feminina. Na vida adulta do tal de Inocêncio revela-se pretexto para o


narrador, essa irresistível atração por be- autor fisgar a atenção do leitor e montar a
lezas malditas desencadeou o abandono da comédia humana na hora histórica das elei-
família, a entrega a uma vida errática e a ções para o Parlamento, durante a ascensão
miséria. Num embate entre o mundo prá- do gabinete do Duque de Caxias (1861). Se
tico e a modelo de larga historicidade – o narrador machadiano de primeira pessoa
desde Beatriz, Laura, a Helena goethiana, encontra-se fundido a uma terceira pessoa
entre tantas –, Flávio d’Aguiar dota-a de implícita que contradiz o seu ponto de vista
sexualidade e a enterra de vez, num gesto sobre o narrado, Macedo, a seu modo pró-
realizado em nome da integridade familiar. prio, estrutura o conto também como uma
Numa introdução a Memórias do so- polêmica, mas entre uma consciência cética
brinho do meu tio (Companhia das Letras, e outra cândida a respeito do exercício da
1995), de Joaquim Manuel de Macedo, Flora virtude em política, do mérito profissional
Sussekind aborda o diálogo de Machado de como critério de nomeação na burocracia do
Assis com este autor e o legado de um ao Estado e da concretização das uniões con-
outro. A recuperação, por O sino e o relógio, jugais desinteressadas. Em discretas frases,
de um conto pouco conhecido de Macedo o narrador macediano, à maneira de Sterne,
guarda interesse não apenas por confirmar o dialoga com o leitor, quebra a ilusão artística
pressuposto da estudiosa. Em seu admirável e afirma a ficcionalidade de seu relato. Mas
“Inocêncio” (1861), a destreza de Macedo cede a interpretação da história ao clown
para armar um enredo satírico e mostrar os Geraldo-Risota, um alter ego do autor. As
efeitos do tempo contemporâneo no conflito gargalhadas dessa personagem, livre de jul-
aí narrado evidencia que seu talento melhor gamentos morais, desmascaram as ilusões
se exerce em suas narrativas irônicas. que as personagens se contam para afirmar
Na trama bem urdida, uma falsa heroína valores que suas ações desmentem.
de alma pura se deixa cortejar por Inocên- Diante da diversidade temática, estilística
cio, o afilhado de Geraldo-Risota. As ra- e formal dessas narrativas, da ficcionalização,
zões que impedem o casamento entre eles em algumas delas, da consciência artística
quase não diferem das frustrações de Brás a respeito de seu artefato, da crítica a mo-
Cubas com a expectativa de se casar com tivos, procedimentos e formas recorrentes
Virgília. Analogamente às memórias do he- no século XIX, O sino e o relógio abala
rói machadiano, e em que pesem as suas a unidade inscrita na noção positivista de
profundas diferenças, a história sentimen- “estilo de época romântico”.

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