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PINA BAUSCH E TANZTHEATER WUPPERTAL:

processos de criação e dispositivos de composição (1973 a 2009)

Pina Bausch and Tanztheater Wuppertal: creation processes and dispositives of


composition (1973 a 2009)

Juliana Carvalho Franco da Silveira 93


Universidade Federal de Viçosa – UFV
Mariana Lima Muniz
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

Resumo: Este artigo busca evidenciar os dispositivos de composição utilizados por Pina
Bausch nos processos de criação do Tanztheater Wuppertal entre 1973 e 2009. Para tanto,
apresentamos uma panorâmica desta produção identificando duas fases: antes e depois do
Método das Perguntas. Os dispositivos de composição observados revelam uma
dramaturgia que se constrói durante os processos de criação como um espelho
fragmentado da experiência humana.
Palavras-chave: Pina Bausch, processos de criação, dispositivos de composição.

Abstract: This article attempts to find the dispositives of composition used by Pina Bausch for
the creation processesof the Tanztheater Wuppertal, from 1973 to 2009. For that, we present
one panoramic view of this production, identifying two phases: before and after the Question’s
Method.The dispositives of composition observed reveal a dramaturgy that is built during the
creation processes, like a fragmented mirror of the human experience.
Keywords: Pina Bausch, creation process, dispositives of composition.

Na contemporaneidade, novas (coreógrafo, bailarino, dramaturgo,


possibilidades dramatúrgicas vêm músico, cenógrafo, figurinista, entre
sendo experimentadas na dança, no outros), bem como a disposição desses
teatro e na performance. Neste elementos no convívio com o público,
contexto, a dramaturgia deixa de ser conformam uma tessitura de vozes
entendida como texto prévio à que não tem como finalidade a sua
representação e passa a ser percebida soma, e sim um outro todo, uma
como o conjunto de escolhas, composição diferente que varia a cada
conscientes e inconscientes, que experiência de convívio com o público.
delimitam os contornos da obra e seus O trabalho da bailarina,
dispositivos de composição. Os coreógrafa e diretora alemã Pina
elementos trabalhados pelo conjunto Bausch (1940-2009) expandiu o
de criadores de uma obra artística conceito de dança no século XX e na

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primeira década do século XXI. Sua arquivos de vídeos, hemeroteca, além


dança-teatro pode ser vista como uma de entrevistas com artistas da
forma de arte única,que tem especial companhia1.
capacidade de absorver e refletir a Ao longo do processo de
vida contemporânea. Neste sentido, pesquisa, que durou
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concordamos com Servos (1984), que aproximadamente três anos,
afirma que o trabalho da diretora iniciando-se em 2007, pudemos
alemã desenvolveu-se como um identificar duas fases que se
“teatro da experiência”, pois seu ponto diferenciam nos processos de criação
de partida para a criação das peças é a de Pina com o Tanztheater, como será
experiência subjetiva dos bailarinos, apresentado a seguir.
como veremos ao longo deste texto.
Como metodologia para a Processos de criação: antes e
análise do que chamamos dispositivos depois do Método das Perguntas

de composição, ou seja, as diversas


escolhas que a equipe artística realiza Em relação aos dispositivos de
de forma mais ou menos consciente e composição utilizados por Pina
que cria uma trama de tecidos e vozes Bausch para a criação das peças do
a ser finalizada no contato com o Tanztheater Wuppertal,é possível
público e modificada a cada nova identificar uma primeira fase, que vai
experiência de convívio, realizamos de 1973 a 1978, em que a diretora
três procedimentos básicos de experimentou diferentes maneiras de
pesquisa. Revisão bibliográfica sobre o construir suas peças, e uma segunda
tema em diversas línguas, assistência fase, de 1978 a 2009, em que passou a
a espetáculos da companhia, seja utilizar o Método das Perguntas2.
presencialmente ou em vídeo, e
trabalho de campo em fevereiro de
1
O trabalho de campo em 2008 e 2009 foi
2008 e em abril e maio de 2009, realizado por Juliana Silveira, que participou
como bailarina das aulas de dança com a
ocasiões nas quais foi acompanhado o companhia. A orientação no Brasil foi feita por
dia a dia de trabalho doTanztheater Mariana Lima Muniz.
2Termo empregado por Leonetta Bentivoglio

Wuppertal - aulas de dança e ensaios - (1994) para se referir ao processo das


perguntas e respostas utilizado por Pina
e foram realizadas pesquisas nos Bausch nos processos de criação.

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Ainda que afirmasse ser contra público, para dirigir a companhia de


sistemas fechados, pois queria ter a dança desse teatro, que, até então, era
liberdade para mudar sua forma de um corpo de baile com repertório
trabalhar quando quisesse, a clássico, como afirma Cypriano
coreógrafa alemã reconheceu o (2005). Ela aceitou o convite, mas o
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processo de perguntas e respostas começo não foi fácil, pois teve que
como um método de trabalho que, a desenvolver seu campo de ação em
partir da montagem de Ele a levou pela uma cultura que cultuava a dança
mão ao castelo, os outros os seguiram clássica e que se satisfazia em
(1978), passou a ser utilizado para a preservar e atualizar a herança da
criação das peças do Tanztheater dança clássica ou da dança moderna.
Wuppertal (BAUSCH, 2000). Por Wustenhofer fala desse começo de
representar uma diferenciação Bausch com oTanztheater Wuppertal:
bastante significativa no processo de
criação de suas obras, como veremos a Pina em Wuppertal – Oh, Deus!
Naquela época, quando a chamei para
seguir, elegemos o Método das o teatro, que é até hoje seu primeiro e
único engajamento, foi como uma
Perguntas e Respostas como um revolução no palácio. Pina não era
aceita na casa e era criticada por
divisor de águas que contribui para a todos os lados. Eu realmente
compreensão da produção do precisava estar sempre ao lado dela.
Vários bailarinos queriam abandonar
Tanztheater e o amadurecimento de a montagem logo nos primeiros
meses de trabalho. O público deixava
seus dispositivos de composição. em massa o teatro, enquanto hoje
acontece o contrário.[...] Os
espectadores que iam a balés em
geral queriam ver apenas Giselle ou O
Primeira fase: experimentação de Lago dos Cisnes, e não as imagens de
diferentes maneiras de construir as pesadelo de Pina Bausch.
(Wustenhofer apud CYPRIANO, 2005,
peças p. 26)

Pina Bausch fundou o De acordo com Cypriano

Tanztheater Wuppertal em 1973, (2005), nos primeiros anos Bausch

quando convidada por Arno criou peças como Fritz (1974), em que

Wustenhofer, então diretor do experimentava um novo tipo de

OpernhausWuppertal,um teatro montagem que tinha a collage como

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estrutura e que incluía movimentos desenvolvidas a partir de textos já


gestuais. Durante esse mesmo existentes, Pina Bausch já tinha ido
período, Pina coreografava também além de qualquer conceito prévio de
óperas de maneira mais formal, como interpretação de libretos. Ela não
Ifigênia em Tauris (1974) e Orfeu e coreografava os enredos, mas, em vez
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Eurídice (1975), ambas do alemão disso, inspirava-se em elementos da
C.W. Gluck (1714-1787). Sobre sua trama como um ponto de partida para
percepção desta primeira fase: associações que refletiam seu tempo,
corpos e desejos. Servos (1984) afirma
É um processo bastante lento, que que, enquanto outros coreógrafos
não acontece de uma hora pra outra.
Por exemplo, criei Fritz naquela esforçavam-se para traduzir música
época. Não havia um modelo
particular e foi propositadamente em movimento, a dança-teatro de Pina
uma colagem. Então encenei Ifigênia,
outra peça chamada Eu o levo até a
Bausch lidava diretamente com
esquina e Orfeu. Elas eram muito energias físicas, e sua história era
diferentes, extremos entre os quais
me movia. E isso não aconteceu mais contada como a história do corpo, e
tarde, mas desde o começo. (Bausch
apud CYPRIANO, 2005, p. 30) não como literatura dançada.
Schimidt (1999) afirma que,
De acordo com Servos (1984),
desde o começo, as peças de Bausch
mesmo nos trabalhos que estavam
refletem questões essenciais da
totalmente dentro do quadro
existência humana, perguntas que nos
convencional da dança, a especial
fazemos e que têm ligação direta com
qualidade da dança-teatro de Pina
nossa maneira de estar no mundo.
Bausch era visível. No palco, seus
Sendo assim, nessa primeira fase, de
bailarinos desencadeavam uma
1973 a 1978, mesmo baseando-se em
energia nova e crua, e seus corpos
tramas pré-existentes, Bauschse
contavam histórias com honestidade,
concedia a liberdade de criar algo
livres depossíveis conotações
próprio: “Escolhi somente aquelas
impostas pela direção. Segundo o
obras que me concediam a liberdade
autor, embora as duas óperas, Ifigênia
de criar algo próprio. (...) Nelas
em Tauris e Orfeu e Eurídice, assim
encontrei exatamente o que queria
como Sagração da Primavera (1975) e
dizer. Daí nasceu uma nova forma: a
Barba-Azul (1977), fossem

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Tanzoper, a Ópera-dança” (Bausch de Pina Bausch3 (1994), podemos ver


apud SERVOS, 2000, p. 65). como a bailarina que interpreta a
Como dito anteriormente, vítima no momento de sua imolação
Sagração da Primavera, com música acaba seus movimentos com um
de Igor Stravinsky, também está entre desmaio. Seu desmaio real nesta
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as peças que se inspiram em uma obra gravação nos indica um jogo corporal
pré-existente. Essa peça segue uma entre narrativa e realidade que
narrativa em sua estrutura e fala da aproxima os movimentos às
escolha de uma mulher para o inquietudes existenciais do público,
sacrifício. O único cenário é uma seus sonhos e pesadelos.
camada de terra que cobre todo o Sagração da Primavera é a
palco. Essa camada de terra influencia última peça de Bausch a ter uma
diretamente no movimento dos coreografia tradicional e contínua,
bailarinos. A exaustão que aparece nos assim como se faziam as coreografias
corpos dos bailarinos é real, vem da criadas na tradição da dança clássica e
dificuldade de se realizar uma da dança moderna. A partir da
coreografia, que exige grande pesquisa bibliográfica, da visualização
habilidade técnica, em um palco todo dos espetáculos em vídeo ou
coberto de terra. Os bailarinos diretamente no palco, bem como do
terminam a apresentação trabalho de campo realizado,
completamente contaminados pelo consideramos que as peças Os Sete
cenário. A resistência da terra sob os Pecados Capitais (1976) e Barba-Azul
pés dos bailarinos cria uma tensão passaram a ter a collage como
muito particular que gera uma energia estrutura dramatúrgica principal. Esse
forte e direcionada no estado geral procedimento já pôde ser observado
dos corpos, concedendo grande em Fritz, a primeira peça criada por
intensidade aos rituais de transe e Pina Bausch com o Tanztheater
sacrifício. No vídeo-documentário A la Wuppertal.
búsqueda de la Danza – el otro teatro
3A la búsqueda de la Danza – El otro teatro de
Pina Bausch. Direção: Patrícia Corboud. Bonn:
Inter Nationes, 1994.

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As inovações realizadas por para o que parece ser um dos grandes


Pina Bausch em suas primeiras propósitos da diretora: apresentar
criações encontraram resistência por experiências humanas ressignificadas
parte de alguns bailarinos. Durante a esteticamente. Veremos, ao longo do
montagem de Os Sete Pecados Capitais, texto, como o conceito de experiência
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a coreógrafa diz que quase desistiu de pode ser revelador para o
trabalhar com o Tanztheater entendimento do trabalho da diretora
Wuppertal: alemã.
Segundo Bentivoglio (1994), foi
Lembro de que uma vez a Viviane em Barba-Azul que Pina passou a criar
Newport, no final de um ensaio de Os
Sete Pecados Capitais, sozinha, no a partir de perguntas. Em uma
palco, gritava muito alto para mim:
“Já chega, não aguentamos mais, entrevista feita com Dominique Mercy
odiamos tudo isso”... E eu tentava
fazer-me entender, mas não – bailarino que integra o elenco da
conseguia. Depois daquele espetáculo,
companhia desde 1973 –, este afirma:
tive uma crise tremenda, tinha
vontade de parar, de deixar de
trabalhar. Decidi nunca mais pôr os
pés no teatro. E, assim, comecei a Creio que tudo começou a partir dos
trabalhar algumas horas no estúdio ensaios de Blaubart [Barba-Azul:
de Jan Minarik [bailarino com quem escutando uma gravação em fita da
trabalhou até 2001], com os poucos ópera de BélaBartók, ‘O castelo de
bailarinos que ainda aceitavam a Barba-Azul’] em 1976. Mas no
minha maneira de montar um Blaubart, tratava-se ainda de um
espetáculo. Foi ali, naquele estúdio, procedimento esboçado e adotado só
que começamos a experimentar um em alguns momentos. Muitas das
modo de trabalhar diferente, novo. sequências foram diretamente
(Bausch apud CYPRIANO, 2005, p. 26) inventadas por Pina, baseando-se na
trama narrativa que tinha em mente.
Mas acontecia também, de vez em
quando, que resolvia estimular
improvisações; fazia perguntas que
Segunda fase: método das tínhamos de responder,
improvisando. No início, nós
perguntas bailarinos não compreendíamos bem.
Havia quem lamentasse, quem
protestasse [...] (Mercy apud
BENTIVOGLIO, 1994, p. 23)
De 1978 a 2009, Pina Bausch
passou a criar suas peças a partir do Bentivoglio (1994) afirma que
Método das Perguntas. Esse método Barba-Azul provocou uma ruptura
pode ser considerado como um interna do grupo, que, durante os
importante dispositivo de ensaios, foi se dividindo em dois
composição, que contribui fortemente

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blocos: os que apoiavam Pina Bausch e aliciante por essa forma de trabalho e
os que contestavam seu trabalho. compreendeu que, através desse
O Método das Perguntas método, começava a descobrir algo
estabeleceu-se, curiosamente, fora de muito importante sobre si mesmo.
Wuppertal, durante o processo de Pina Bausch falou sobre essa
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criação de Bausch a partir de uma experiência no discurso que proferiu
obra baseada em Macbeth, de na Universidade da Bolonha, na Itália,
Shakespeare, Ele a levou pela mão ao quando recebeu o título de Doutora
castelo, os outros os seguiram (1978), a Honoris Causa:
convite do teatro estatal da cidade de
Bochum, também na Alemanha.Pina Quando fizemos o Macbeth para o
teatro de Bochum, surgiu o método
Bausch fala da criação dessa peça: das perguntas. Como eu não pudesse
chegar aos atores com um lema (sic)
coreográfico, tendo que começar por
Utilizei, além dos bailarinos, vários outra parte, lhes formulei então
atores, e percebi que não podia criar a perguntas que fazia a mim mesma. As
partir de evoluções do corpo, mas sim perguntas existem para abordar um
da cabeça, e por isso comecei a fazer tema com toda a cautela. Esse é um
perguntas sobre o que o grupo método bem aberto e, no entanto,
pensava do texto e o vínculo com a bem preciso. Pois sei exatamente o
vida pessoal de cada um. Percebi que que procuro, mas sei com meu
isso funcionou muito bem, e desde sentimento, não com minha cabeça.
então sempre utilizei perguntas. Por isso, nunca se pode perguntar de
(Bausch apud CYPRIANO, 2005, p. maneira muito direta. Seria grosseiro
32). demais, e as respostas demasiado
banais. Sei o que procuro, mas não
consigo explicá-lo. Antes, é como se
Nessa peça, além dos atores, fosse preciso pôr-se em paz com as
palavras e, com muita calma, deixá-las
Pina Bausch trabalhou apenas com vir à tona. (BAUSCH, 2000, p. 12)

alguns bailarinos do Tanztheater


Wuppertal, entre eles, Jan Minarik,
De acordo com Bentivoglio
Dominique Mercy e Josephine Ann
(1994), a estreia de Ele a levou pela
Endicott, bailarinos que sempre
mão ao castelo, os outros os seguiram
tiveram presença muito marcante na
provocou certo alvoroço. O público,
companhia. Conforme Bentivoglio
que esperava ver um clássico
(1994), Dominique Mercy afirma que,
shakespeariano, ficou desiludido e
a partir dessa experiência em Bochum,
irritado. Os espectadores chegaram a
começou a sentir um interesse vivo e

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pensar que a peça fosse uma influência.[...]O que me interessa é a


provocação e começaram a gritar e humanidade, as relações entre os
assobiar durante o espetáculo, que seres humanos” (apud BENTIVOGLIO,
correu até o risco de ser interrompido. 1994, p. 16).
Diante dessa situação, Josephine Ann De acordo com Hoghe (1989),
100
Endicott interveio com violência, que foi dramaturgo do Tanztheater
gritando mais alto que o público, e entre 1980 e 1989, Pina incentivava
havia tal força em sua fúria isolada cada bailarino a se posicionar
que o público ficou atônito, sem saber individualmente, a obter seus próprios
se aquilo era parte do espetáculo. pensamentos, sentimentos,
Pina Bausch voltou a associações. Critérios como certo e
Wuppertal depois da montagem em errado não tinham a menor
Bochum e, desde então, suas peças importância.
foram criadas a partir de perguntas Para a criação de uma peça,
propostas aos bailarinos durante os Pina Bausch fazia mais de cem
ensaios. O Método das Perguntas é um perguntas aos bailarinos. Todas as
dos procedimentos importantes para respostas eram anotadas e registradas
se compreender a construção em vídeo. Segundo Regina Advento,
dramatúrgica das suas peças. As bailarina da companhia (informação
perguntas que a coreógrafa formulava oral)4, a diretora chegava de manhã
eram tentativas de sempre recomeçar, para o trabalho, fazia a primeira
de reaprender a ver o mundo, as pergunta, cada um pensava e
pessoas e suas relações. Os temas respondia. Os bailarinos eram livres
recorrentes nas perguntas da diretora para responder da maneira que
relacionavam-se à infância, ao amor, quisessem. As perguntas podiam ser
ao carinho, à saudade, ao medo, à respondidas com uma sequência de
tristeza e ao desejo de ser amado. movimentos, verbalmente ou as
Questões relativas ao seres humanos e respostas podiam começar de uma
suas relações eram o eixo de seu ideia que se desenvolvia no momento
trabalho. Nas palavras da diretora: “É mesmo em que era apresentada.Pina
a vida, o que sucede à nossa volta, que fazia cerca de quatro ou cinco
inevitavelmente constitui uma
4Entrevista concedida à autora.

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perguntas por dia de trabalho. que deveriam ser descartados e, num


Algumas perguntas eram apenas uma segundo momento, pedia aos
palavra, como, por exemplo, “ternura”, bailarinos que construíssem
“agressividade”. Outros exemplos de sequências maiores, juntando os
perguntas, segundo Bentivoglio (1994, movimentos que foram selecionados
101
p. 24), são: “sê terno consigo mesmo”, por ela em várias respostas. Cabia aos
“revela uma parte de ti”, “qual é o teu bailarinos descobrir como juntar
maior complexo físico”, “o que fazes pequenas sequências em uma
quando te sentes envergonhado”, “o sequência maior, que, assim que
que fazes quando alguém te agrada”, concluída, era novamente apresentada
“apresenta-te” “finge!”. Hoghe (1989) para a diretora.
afirma que a infância, assim como o Como vimos ao longo deste
amor, o carinho, a saudade, o medo, a texto, através de entrevistas da
tristeza e o desejo de ser amado eram própria coreógrafa ou de seus
temas sempre retomados por Pina bailarinos, as respostas que os
Bausch. Regina relata que, quando a bailarinos davam à diretora eram seu
pergunta era muito difícil e ninguém ponto de partida para a criação.
conseguia responder, Pina a Servos (1984) perguntou a Pina
reformulava até deixá-la mais clara e, Bausch como essas questões se
assim, provocar respostas em seus transformavam em dança. A diretora
bailarinos. As sequências de respondeu:
movimentos advinham das respostas e
eram também trabalhadas No final, é composição. O que você faz
com as coisas. Não há nada lá para
paralelamente durante a criação da começar. Só existem respostas:
sentenças, pequenas cenas que os
peça. Segundo Morena Nascimento5, bailarinos me mostraram. Está tudo
separado no começo. Depois, num
também bailarina da companhia, nas certo ponto, eu pego algo que eu
respostas que correspondiam a considero certo e junto com alguma
outra coisa. Isto com aquilo, aquilo
movimentos de dança, Pina com alguma outra coisa. Uma coisa
com várias outras coisas. E com o
selecionava, em cada resposta, os tempo, eu já encontrei a próxima
coisa, depois a pequena parte que eu
movimentos que queria utilizar e os tenho já é um pouco maior. E depois
eu saio numa direção completamente
5Entrevista concedida à autora diferente. Isto começa bem pequeno e

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vai se tornando gradualmente maior. omusic hall e o teatro de revista e


(Apud SERVOS, 1984, p. 236, tradução
da autora). outras formas de entretenimento
populares no início do século XX. O
Na fase final do Método das
gênero vaudeville constituía-se de
Perguntas, Pina Bausch já começava a
espetáculos de variedades, em que
fazer uma primeira seleção do 102
vários números eram levados ao
material criado. Das mais de cem
palco, sem que estivessem
perguntas, somente 5 ou 10% eram
necessariamente relacionados entre
aproveitadas. A diretora selecionava
si. Misturava canto, dança, teatro e
as respostas que desejava utilizar no
continha elementos de crítica social –
espetáculo e dizia aos bailarinos o que
características que podem ser
desejava que eles repetissem. Cada
identificadas nas peças do
bailarino, então, tinha sua lista das
TanztheaterWuppertal. Segundo
respostas que a diretora iria utilizar
Lehmann (2007), o espetáculo de
na montagem do espetáculo. A partir
variedades, de início apenas
desse momento, Bausch começava a
frequentado pelas classes
experimentar diferentes
economicamente mais baixas, acabou
possibilidades de montagem das
se estabelecendo como um
respostas. Assim, uma possível
divertimento também muito
abordagem da estrutura das peças
apreciado pelas classes superiores.
montadas a partir do Método das
Assim como o vaudeville, as
Perguntas é que elas eram construídas
peças de Pina Bausch criadas a partir
a partir do procedimento da collage.
do Método das Perguntas podem ser
analisadas dentro da perspectiva da
A collage como dramaturgia
collage como estrutura, pois surgiam
da composição das respostas dadas
De acordo com Servos (1984), pelos bailarinos às suas perguntas.
o princípio da montagem de Pina Ruth Amarante dá seu depoimento
Bausch não veio do teatro falado ou da sobre o processo:
literatura, mas se desenvolveu das
tradições com menos reputação em Nós passamos um bom tempo
repetindo improvisações, e destas, ela
seu próprio meio, como o vaudeville, peneira ainda mais; e no final, bem no

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finalzinho mesmo ela diz: “tente tranquilizador” (PICASSO apud


juntar isso com isso, isso com aquilo,
tente fazer com outra pessoa”. Aí ela DEMPSEY, 2003, p. 86).
começa a fazer um dominozinho;
neste ponto o trabalho é só dela, o De acordo com Regina
trabalho final, de composição. (Apud
FERNANDES, 2000, p. 162)
Advento6, na fase de seleção do
material criado, Pina Bausch escolhia
103
De acordo com Pavis (2005), o uma das respostas dadas às suas
termo collage foi introduzido no perguntas como tema da cena a ser
contexto artístico pelos cubistas no criada e experimentava a collage de
início do século XX. Pablo Picasso, várias outras respostas com a
Georges Braque e Juan Gris fizeram resposta-tema, testando, assim, várias
parte desse movimento. Em sua possibilidades de composição. Com
pintura Natureza morta com cadeira esse procedimento, ela ia montando
de palha, Picasso criou a primeira pequenas cenas, colando-as a outras e
collage cubista, e todos os três artistas formando blocos de cenas. No final a
criaram papierscollés (composição de diretora juntava bloco com bloco até
papéis recortados e colados). Na obra finalizar o espetáculo. Servos também
citada, Picasso cola na tela pintada identifica a composição a partir de
fragmentos de objetos: uma corda e elementos descontínuos e
um oleado com o desenho de uma relacionados de forma singular como
cadeira de palhinha. A collage cria processo nas criações de Bausch:
uma estranheza, pois mistura fato e
ficção e desafia a crença numa As peças não pretendem ter o tipo de
integridade em que cada elemento
definição única da realidade. De pode ser questionado em sua
significação individual em relação a
acordo com Picasso, era essa uma história contínua. [...] Seu
estranheza que interessava. Ele diz: “É princípio capital é aquele de uma
dramaturgia de números individuais,
sobre essa estranheza que queríamos que lida com temas numa ordem livre,
mas, ao mesmo tempo, precisamente
levar as pessoas a refletir, pois calculada e coreografada. (SERVOS,
1984, p. 21, tradução da autora)
tínhamos plena consciência de que
nosso mundo estava se tornando
muito estranho e não exatamente

6 Entrevista concedida à autora.

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A collage, no caso de Pina A recepção inicial refletiu uma dura


batalha contra críticos, que são
Bausch, é a justaposição de pequenas extremamente relutantes em mudar
seus padrões estabelecidos de ver e
cenas advindas das respostas dos absorver o que estão vendo. De um
lado, as pessoas estavam certamente
bailarinos às perguntas da diretora. preparadas para admitir que a artista
Quando se cola uma cena em outra, Bausch tinha fantasia, imaginação e
genialidade, mas, por outro lado, o 104
ressignificam-se ambas, e a conteúdo de seus trabalhos
permanecia fortemente misterioso e
consequência disso é a proliferação inacessível. (SERVOS, 1984, p. 20,
tradução da autora)
dos sentidos criados pela peça, ou seja,
se cenas que normalmente não O autor observa que a ligação
aconteceriam juntas são justapostas, de cenas em livre associação, sem a
elas ganham novos significados e necessidade da continuidade da
possibilidades. Quando se destaca algo trama, psicologia do personagem ou
de seu contexto original e se coloca em causalidade, também se recusa a ser
outro contexto, força-se uma decifrada por essas vias
observação distanciada deste. Na convencionais.Dessa forma, parece-
collage nenhuma interpretação nos que, assim como o procedimento
conclusiva pode ser afirmada. Essa pictórico da collage, a elucidação de
característica sintoniza-se com as cada detalhe a partir de um único e
propostas da diretora que universal ponto de vista é tão
estimulavam a participação ativa dos improvável quanto pegar os
espectadores na fruição das peças e na elementos individuais das obras e dar-
atribuição de sentidos que permanecia lhes um sentido bem definido. A
sempre aberta. Cada espectador manutenção de uma obra aberta a
deveria estar livre para fazer suas diferentes percepções, que escapa,
próprias conexões e deveria formar o muitas vezes, a uma leitura racional e
seu próprio ponto de vista sobre as deseja sua apropriação a partir dos
obras. diversos sentidos do espectador, nos
Servos diz que esse princípio parece ser um desejo constante da
de montagem, no começo, causou diretora, que aponta a experiência
muita irritação no público e nos como elemento central em sua
críticos: produção. Observamos que a collage
de elementos díspares e

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contraditórios mantém a atenção do De acordo com


público para a experiência convival ao Cypriano(2005), Bausch trabalhou
evitar uma leitura a priori da obra a com Borzik na criação de doze peças
partir de relações de causa e para o Tanztheater Wuppertal, entre
consequência. elas, Sagração da Primavera, Café
105
Muller e Árias(1979), a peça predileta
Concepção cênica das peças de Pina, com o palco todo coberto de
água. Rolf Borzik, além disso, fez parte
Para observar a concepção do elenco original da peça Café Muller,
cênica das peças do uma das duas únicas peças da
TanztheaterWuppertal, é fundamental companhia em que Pina Bausch
considerar a presença do holandês dançou – a outra é Danzon. Os dois
Rolf Borzik. Figura central no início da estavam sempre em constante diálogo.
carreira de Pina Bausch, Borzik era Na ficha técnica de várias peças de
cenógrafo, fotógrafo e figurinista. Pina Bausch, ele aparece como
Estudou com Bausch em Essen e foi cenógrafo, figurinista e, também, como
seu companheiro de 1970 até 1980, colaborador. Em 1999, o Tanztheater
quando morreu prematuramente de Wuppertal editou uma publicação em
leucemia. Foi junto a Rolf Borzik que memória de Borzik com imagens dos
Pina Bausch concebeu os cenários com espetáculos, fotos e desenhos feitos
materiais orgânicos (terra, água, por ele. Meryl Tankard fala de como
galhos de árvores, etc.) e os cenários foi difícil continuar sem Rolf:
com objetos do dia a dia (sofás,
cadeiras, mesas, chuveiro, etc.), assim Nós nunca pensamos que fôssemos
capazes de fazer uma nova peça sem
como os figurinos que explicitam ele... mas de alguma maneira nós
tínhamos que dar à Pina a força para
papéis sociais, como vestidos e ternos.
criar uma linda peça dedicada a Rolf.
A utilização desses elementos cênicos Por Rolf ... de alguma maneira, eu
acho que perdi minha timidez e medo
foi e continua sendo uma ... um tipo de poder surgiu ... Eu queria
criar uma linda paisagem para ele...
característica marcante da construção verdes montanhas e vales com
árvores e rios e canais ... uma perfeita
dramatúrgica das peças, paisagem ... De alguma forma, uma
força interior retornou ... e nós
criamos 1980 para Rolf ... Nunca mais

João Pessoa, V. 4 N. 2 jul-dez/2013


Juliana da Silveira e Mariana Muniz

foi a mesma coisa depois daquilo um certo impacto. Ocupam nossos


(TANZTHEATER WUPPERTAL, 1999, sentidos e fazem com que se pare de
p. 88, tradução da autora). pensar e se comece a sentir. (BAUSCH,
2000, p. 12)

Pabst deu continuidade à


Com a morte de Rolf Borzik,
proposta de Borzik de cobrir os 106
Peter Pabst foi convidado para criar os
cenários com elementos orgânicos e,
cenários das novas peças, e Marion
além disso, utilizou reproduções de
Cito ficou responsável pelos figurinos.
materiais orgânicos, como na peça
Pabst e Cito deram continuidade ao
Cravos, por exemplo, em que o palco
trabalho desenvolvido por Borzik. As
está todo coberto de flores de plástico,
escolhas feitas em relação aos
criando dúvidas no espectador se as
cenários são muito importantes para a
flores são reais ou não. Pabst afirma:
composição cênico-dramatúrgica das
“O teatro é um lugar artificial e, por
peças, pois criam uma atmosfera
isso, um jogo delicado. Muita gente
sensível diferenciada, alteram os
acredita que as milhares de flores da
movimentos e convidam o espectador
peça são verdadeiras, e uma das
a contemplar de outra forma, como
características mais importantes no
afirma a diretora:
trabalho da Pina é essa tensão entre
artificialidade e natureza” (apud
É assim também com os cenários que
desenvolvi juntamente com Rolf CYPRIANO, 2005, p. 97).
Borzik e Peter Pabst. Terra, água,
folhagem ou pedras no palco criam Pabst declara que tudo o que
uma atmosfera sensível toda própria.
está presente em cena tem que ser
Alteram os movimentos, esboçam
vestígios de movimentos, exalam apropriado pelos bailarinos:
certos aromas. A terra gruda na pele,
a água embebe as roupas, torna-as
pesadas e produz ruídos. As pedras de
um muro derrubado tornam o passo Os bailarinos têm de apropriar-se de
difícil e inseguro. Quando se traz para cada objeto, de tocá-lo, de utilizá-lo.
dentro do teatro algo que em geral se Tudo tem o seu papel expressivo. O
encontra fora, faz-se apelo ao olhar. trabalho de um cenógrafo com Pina
Coisas que julgamos conhecer, de Bausch deve ser, portanto, paralelo e
repente, as vemos de maneira integrante, relativamente à criação do
inteiramente nova e diversa, como se espetáculo. Tem de assistir a todos os
pela primeira vez. Os muitos ensaios, de olhar, sentir e entrar nele
materiais que utilizamos são coisas com toda a sua paixão e fantasia:
muito simples, que na verdade não nunca deve limitar-se ao trabalho
fazem parte do contexto. Eles irritam, puramente cenográfico. E, na minha
convidam a pessoa a contemplar de opinião, tudo deve ter início no solo: o
outro modo, pois possuem também chão é a primeira condição do
desenvolvimento de uma

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PINA BAUSCH E TANZTHEATER WUPPERTAL

representação que decorre num nave va, na qual a coreógrafa


espaço cênico e que o ocupa
conquistando-o, como acontece nos interpretou a princesa cega Lherimia.
espetáculos da Pina. (Apud
BENTIVOGLIO, 1994, p. 29) Cypriano (2005) chama a atenção
para o fato de que foi nesse mesmo
Assim, observa-se que as ano que Pina Bausch começou a
107
escolhas feitas em relação aos utilizar projeções em suas peças.
cenários e aos figurinos das peças de Cypriano (2005) relata que Valsas
Pina Bausch são elementos (1982), primeira peça criada depois
determinantes para a construção do nascimento do filho de Bausch,
dramatúrgica. Parecem indicar a utiliza projeções de um parto, o que
intenção da diretora de potencializar novamente nos remete a uma relação
as experiências sensíveis dos de tensão entre artificialidade e
bailarinos, o que poderia potencializar natureza, real e ficção, experiência
também a experiência do público. Os vivida e metáfora.
cenários conferem uma atmosfera A relação de Bausch com Fellini
sensível às cenas,e os muitos materiais continuou, mesmo depois da filmagem
orgânicos utilizados provocam de E la nave va, como afirma a
experiênciasdiferenciadas tanto nos diretora:
bailarinos, quanto nos espectadores.
Os figurinos explicitam papéis sociais, Adorava ver o jeito como Fellini ia
tentando isso e aquilo, sofrendo para
contribuindo, assim, para a chegar ao que queria, mas muito
gentil, muito cordial. Anos depois do
apresentação das relações e filme, eu continuava visitando Fellini,
sempre que estava em Roma. Ia vê-lo
experiências humanas. trabalhar nos estúdios da Cinecittà. E
ele também vinha sempre ver nossos
Outro elemento do espaço espetáculos. (BAUSCH apud
NESTROVSKI; BOGÉA, 2000, p.10)
cênico que precisa ser ressaltado é o
uso de projeções nas peças,e, neste
A experiência de Bausch com o
caso, Federico Fellini pode ter sido
cinema de Fellini pode ter sido
uma influência significativa. Em 1982,
também um estímulo para a criação de
Pina Bausch foi convidada por Fellini
seu filme O lamento da Imperatriz
para participar da filmagem de E la
(1990). As filmagens foram feitas

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entre outubro de 1987 e abril de 1989, observação da construção


em Wuppertal, com o elenco do dramatúrgica das peças de Pina
Tanztheater. O filme tem a estrutura Bausch é a música, que participa da
da collage, assim como as peças da criação de diferentes atmosferas. De
companhia a partir de 1978. Bausch acordo com Bentivoglio (1994), a
108
afirma que “não é um filme relação com a música é muito aberta,
propriamente dito: simplesmente, foi nunca condicionada por regras fixas.
como ter um palco maior à disposição” Para a escolha das músicas que seriam
(Apud CYPRIANO, 2005, p. 38). usadas nas peças, Pina Bausch tinha
Outra experiência da diretora dois assistentes, Matthias Burkert e
com o cinema foi em 2002, quando o Andreas Einsenschneider, que
diretor Pedro Almodóvar incluiu procuravam em lojas, encontravam
cenas das peças Café Muller e Masurca pessoas, vasculhavam coleções em
Fogo em seu filme Fale com ela (2002). busca de material para o trabalho. Os
Para 2009, estava agendada a bailarinos também traziam o que
filmagem das peças Café Muller, consideravam interessante, e os
Sagração da Primavera, Vollmond e amigos que os integrantes da
Kontakthof pelo diretor Wim Wenders, companhia faziam pelo mundo
projeto que foi continuado mesmo também os ajudavam a encontrar as
como falecimento de Pina em junho de músicas. Bausch afirma que procurava
2009. O projeto sofreu alterações e encontrar as músicas que iria utilizar
deu origem ao encantador filme Pina, depois da criação de cada cena, nunca
um documentário em 3D que é antes, e que, às vezes, tudo mudava:
também uma homenagem de Wenders uma, duas, até três vezes.
à diretora alemã. Apresenta cenas das Em 1980, Pina Bausch veio com
peças acima mencionadas, filmadas o Tanztheater Wuppertal pela
em diferentes localidades de primeira vez ao Brasil. Nessa ocasião,
Wuppertal,além de trazer ela entrou em contato com a cultura e
depoimentos dos bailarinos sobre o com o universo musical do país, o que
trabalho com Bausch. teve rápida repercussão em seu
Outro dispositivo de trabalho. De acordo com Cypriano
composição importante para a (2005), as duas peças realizadas logo

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PINA BAUSCH E TANZTHEATER WUPPERTAL

em seguida à vinda ao Brasil estavam diante do que via e ouvia. Observa-se


repletas de canções brasileiras. O que os aspectos sensíveis pareciam,
autor afirma que Valsas (1982) reuniu portanto, orientar a escolha da música,
onze choros e valsas brasileiras, sete também no sentido de ampliar as
delas de Zequinha de Abreu. Pina experiências dos bailarinos e do
109
Bausch considerava Valsas uma peça público, como observado
sobre o Brasil, pois ela foi criada logo anteriormente em relação à escolha
depois da turnê da companhia pelo dos cenários e figurinos.
país, e a música brasileira foi uma
fonte de inspiração. A importância da experiência na
Desde então, a música dança-teatro de Pina Bausch
brasileira foi utilizada constantemente
pela diretora, como, por exemplo, “S Como fomos observando ao
Wonderful”, na voz de João Gilberto, longo deste texto, aexperiência é um
em O Dido (1999); “Alô Alô, Marciano”, importante dispositivo de composição
com Elis Regina, em Só Você (1996); na obra da diretora alemã. De acordo
“Que Não Se Vê” e “Leãozinho”, de com Servos (1984), as experiências
Caetano Veloso, em Terra de Prados diárias dos indivíduos são
(2000) e Para as crianças de ontem, demonstradas no palco e são, assim,
hoje e amanhã (2002), experimentadas pelo público. O autor
respectivamente; “Desentope afirma que, na dança-teatro de Bausch,
Batucada”, de Marcos Suzano, “Samba os bailarinos aparecem não como se
de Orfeu”, de Luiz Bonfá, e “Batuque n° estivessem desempenhando seus
16”, de Baden Powell, na peça papéis de forma técnica, mas
Mazurca Fogo (1998). A escolha das desprotegidos em suas próprias
músicas que comporiam a trilha personalidades, e desenvolvem uma
sonora das peças aparentemente era lógica corporal própria, ao invés de
feita com base na intuição de Bausch aparecem como portadores de uma
para compor as diferentes atmosferas intenção exterior a eles. Seus medos e
das cenas. O critério para a seleção alegrias possuem a força de uma
parecia ser a sensibilidade da diretora experiência autêntica. Segundo o

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Juliana da Silveira e Mariana Muniz

autor, a dança-teatro de certa forma Segundo o autor, esse tipo de


mostra a história universal do corpo, ‘teatro da experiência’ não somente
pois está também sempre contando muda as condições da recepção,
alguma coisa da história real da vida envolvendo todos os sentidos do
das pessoas. Nas peças, os bailarinos espectador, mas transfere a dança de
110
são chamados pelos próprios nomes, um nível estético abstrato para a
contam experiências vividas ou experiência física do dia a dia.
imaginadas; cria-se, assim, um jogo Enquanto a dança era vista como o
entre realidade e representação. domínio de ilusões atrativas, como um
Servos (1984) declara que o real refúgio para uma técnica que se auto-
significado do trabalho da diretora satisfazia, o trabalho de Bausch faz o
está em como ela ampliou o conceito espectador voltar-se para a realidade.
de dança, liberando o termo A diretora alemã convida o espectador
coreografia de sua estreita definição a ser protagonista de sua própria
como uma série de movimentos experiência.
conectados. A passagem da dança de
um nível estético abstrato para aquele Tudo é sempre diretamente visível e
cada espectador pode compreender
do comportamento físico cotidiano de imediato com seu próprio corpo e
seu próprio coração. Essa é a
muda seu significado. De forma maravilha da dança: que o corpo seja
uma realidade pela qual se atravessa.
crescente, a própria dança se tornou Ele nos dá algo bastante concreto que
um objeto a ser questionado. se pode captar, sentir e que nos move.
Os espectadores são sempre uma
parte do espetáculo, tal como eu
própria sou uma parte do espetáculo,
A dança-teatro desenvolveu-se em ainda que não esteja no palco. E cada
algo que alguém poderia definir como espectador é convidado a confiar em
‘teatro da experiência’, um teatro que seus próprios sentimentos. Em nossos
fez a realidade comunicada de uma programas também nunca há uma
forma estética, tangível como uma indicação de como as peças devem ser
realidade física. Simultaneamente compreendidas. Temos de fazer
rejeitando limitações literárias e nossas próprias experiências, como
concretizando a abstração da dança, o na vida. Isso ninguém pode nos
Tanztheater Wuppertal fez dança – impedir. (BAUSCH, 2000, p. 13)
talvez pela primeira vez em sua
história – consciente de si mesma,
libertou a dança para seus próprios
Sobre o conceito de
meios. (SERVOS, 1984, p. 20, tradução
da autora) experiência, Benjamin (1987) traz
contribuições relevantes, quando
discorre sobre o enfraquecimento da

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PINA BAUSCH E TANZTHEATER WUPPERTAL

experiência (em alemão, Erfahrung) de narração, que seria fruto de um


no mundo capitalista moderno em trabalho de construção empreendido
detrimento de outro conceito, o de por aqueles que reconheceram a
vivência (em alemão, Erlebnis), que impossibilidade da experiência
caracterizaria o indivíduo solitário7. tradicional na sociedade moderna e
111
Segundo o filósofo, as condições de que se recusam a se contentar com a
vida mudam em um ritmo demasiado privacidade da vivência individual.
rápido para a capacidade humana de O método das perguntas,
assimilação, por isso a memória e a utilizado por Pina Bausch, pode ser
tradição comuns já não existem, e o visto como uma investigação que
indivíduo sente-se isolado, busca revelar, resgatar e recriar as
desorientado, o que caracterizaria o experiências que estão inscritas nos
conceito de vivência. A experiência corpos dos bailarinos: suas
coletiva era ligada a um trabalho e um esperanças, seus desejos e medos,
tempo partilhados, em um mesmo suas diferenças de comportamento,
universo de prática e linguagem, e era suas diferentes maneiras de dançar,
o que garantia uma tradição e uma suas relações com a vida e com as
memória comuns.O autor fala da outras pessoas, etc. Esse método usa o
necessidade de reconstrução da conhecimento que está preservado e
experiência como reação à implícito em cada corpo e o traz à luz
desagregação e ao esfacelamento do do dia. Ele dá a cada bailarino a
social. Afirma que a ideia de uma liberdade de encontrar e compartilhar
reconstrução da experiência deveria sua experiência com o público.
ser acompanhada de uma nova forma Os figurinos que explicitam
papéis sociais acompanham a
7
Benjamin (1987) estabelece um laço entre o tendência de mostrar pessoas e suas
fracasso da experiência e o fim da narrativa.
Afirma que a tradição e a existência de uma experiências em cena, assim como os
memória comum garantiam a existência de
uma experiência coletiva. Mas o autor afirma cenários com materiais orgânicos e
que, com o rápido desenvolvimento do
capitalismo moderno, os indivíduos perderam objetos do dia a diacriam no palco
seus laços com essa tradição e memória
comuns e, por isso, sentem-se desorientados e
uma atmosfera sensível própria.
isolados, o que caracteriza a vivência. Alteram os movimentos, esboçam

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Juliana da Silveira e Mariana Muniz

vestígios de movimentos, exalam DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas e


movimentos. São Paulo: Cosac &Naify,
aromas, sempre provocando novas e
2003.
imprevisíveis experiências entre
FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o
bailarinos e espectadores. Wuppertal Dança-Teatro: repetição e
Assim, percebemos que os transformação. São Paulo: Hucitec,
2000. 112
diversos dispositivos de composição
da diretora alemã aqui descritos HOGHE, Raimund. Bandoneon: em que
o tango pode ser bom para tudo. São
buscam um resgate da experiência Paulo: Attar Editorial, 1989.
humana através da dança, desejo
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-
talvez utópico, mas que potencializa dramático. São Paulo: Cosac &Naify,
2007.
os elementos sensíveis na relação com
o outro, seja ele bailarino ou NESTROVSKI, Arthur; BÓGEA, Inês. O
gesto essencial. Folha de São Paulo.
espectador. São Paulo, 2000.

O QUE FAZEM Pina Bausch e seus


dançarinos em Wuppertal? Direção:
Klaus Wildenhahn. Bonn: Inter
Artigo recebido em 06/03/2013 Nationes, 1982-1983.1 DVD (75 min.)

Aprovado em 05/05/2013 PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro.


São Paulo: Perspectiva, 2005.

SERVOS, Norbert; WEIGELT, Gert


Referências bibliográficas (Photography).Pina Bausch –
Wuppertal Dance Theater or the art of
BAUSCH, Pina. Dance senão estamos training a goldfish: excursions into
perdidos. Folha de São Paulo, São dance.Cologne: Ballett-Buhnen-Verlag
Paulo, 27/08/2000, p. 12. Rolf Garske, 1984.
BENTIVOGLIO, Leonetta. O teatro de SERVOS, Norbert. As muitas faces de
Pina Bausch. Lisboa: Fundação Pina. Revista Bravo, v.4, n. 39, São
Calouste Goubenkian, 1994. Paulo, 2000.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, SCHIMIDT, Jochen. Tanzengegen die
arte e política: ensaios sobre literatura angst. Munchen: Econ Taschenbuch,
e história da cultura. São Paulo: 1999.
Editora Brasiliense, 1987.
TANZTHEATER WUPPERTAL (edit.).
CYPRIANO, Fábio. Pina Bausch. São Rolf Borzik und das Tanztheater.
Paulo: Cosac & Naify, 2005. Wuppertal: Tanztheater Wuppertal,
1999.

João Pessoa, V. 4 N. 2 jul-dez/2013

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