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Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Instituto de Artes
Departamento de Arte Dramática

Angélica Liddell e Jan Fabre:


o desconforto como reflexo do instinto humano
Bruno Busato do Amaral

Porto Alegre
Novembro de 2017
Resumo: Nesse artigo, propõe-se a apresentação e análise do fazer artístico e da
obra de dois importantes encenadores contemporâneos, que ganharam destaque a partir do
final do século XX. Tendo como base o pensamento e conduta de trabalho de Angélica
Liddell, espanhola, e Jan Fabre, belga, pretende-se elencar e cruzar elementos de ambos
na construção de uma busca comum pelo instinto humano.
Palavras-chave: Angélica Liddell; Jan Fabre; Instinto humano; Identificação;
Grotesco; Teatro contemporâneo.

Abstract: This paper proposes the presentation and analysis of the artistic works of
two important contemporary directors, who have gained prominence since the end of the
20th century. Based on the thinking and work behavior of Angélica Liddell, Spanish, and Jan
Fabre, Belgian, it is intended to list and cross elements of both in the construction of a
common search for human instinct.
Key-words: Angélica Liddell; Jan Fabre; Human instinct; Identification; Grotesque;
Contemporary theater.

DA IDENTIFICAÇÃO AO DESCONFORTO

Desde os primórdios do fazer teatral, quando rituais de adoração a


Dionísio foram evoluindo e ganhando características “padronizadas” de
espetáculo, dramaturgos e encenadores têm procurado diferentes maneiras
de atrair e manter a atenção do público. Tendo em vista que a reação da
plateia define-se como um elemento essencial à encenação dramática,
segundo SILVA (2005), as tragédias clássicas gregas, seguindo os preceitos
estabelecidos pela Poética Aristotélica, utilizavam-se da identificação como
gancho para fixar a atenção do público. Isso se dava através da imitação e
repetição de ações da vida humana, reconhecidas pelos espectadores como
cotidianas, promovendo, assim, uma aproximação destes com o enredo e/ou
com os personagens ali apresentados.
Essa linguagem sintética e coerente, em que todos os signos
convergiam numa mesma direção (a da identificação através do
reconhecimento), por mais que ainda seja adotada por muitos meios e
estilos (principalmente televisivos e melodramáticos), deixou de ser, ao
decorrer dos séculos, a estética-guia e, consequentemente, a mais difundida
e utilizada. Novos encenadores foram surgindo e propondo ao mundo suas

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ideias de como arrebatar grandes públicos, de maneiras até então pouco
exploradas:

Em resposta à crise do drama tradicional, cujos moldes foram


estabelecidos, segundo Szondi, no Renascimento, o século XX é
marcado pela experimentação formal e ruptura do modelo
dramático clássico. A partir dos anos setenta, grande parte da
discussão prática e teórica sobre teatro concentra-se nas
experiências do que Lehmann define como teatro pós-dramático.
(ALMEIDA, 2007: p. 167)

Nesse contexto pós-dramático, o desconfortável foi ganhando forma e


tomando o lugar do confortável, e o grotesco despontou como novidade no
cenário teatral, deslocando o significado de beleza perante as novas
possibilidades. Ao fim do século XX, o que atraía o público já não era mais
unicamente o espetáculo teatral à la Aristóteles.

ANGÉLICA LIDDELL E A ESTÉTICA DA DOR

Angélica Liddell é um dos maiores nomes do teatro europeu atual.


Atriz, encenadora e dramaturga espanhola, Liddel irrompe o teatro funcional
que comandava os grandes teatros, trazendo à cena, com sua companhia
Atra Bilis, obras de cunho pessimista, constantemente recorrendo a temas
como a morte, o amor, deus e o sexo. A busca incessante pela complexidade
do espírito humano, retratada de maneira violenta e sem censuras, torna
suas obras objeto de desconforto e controvérsias - o que parece ser visto
por ela como uma das virtudes de suas criações artísticas.
Em Gênesis 6, 6-7, sua encenação mais recente e última parte da
Trilogia del infinito (que conta ainda com Esta breve tragédia de la carne e
Que haré yo con esta espada?), Liddell evoca o Velho Testamento através
de imagens violentas e desconfortáveis aos olhos e à mente. A encenadora
“denuncia” a relativização da inquietude humana – tenta alcançar o mais

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profundo e escondido instinto animal pulsante em cada um – por meio da
materialização do símbolo, afirmando que “a eloquência nasce da ferida”
(BRASIL, 2017). Assim, Angélica Liddell cresce no cenário teatral enquanto
dramaturga e encenadora, com suas encenações incomuns que – quase –
nada herdam da Poética Aristotélica.

A METAMORFOSE DE JAN FABRE

Jan Fabre é um multifacetado artista belga nascido no fim da década


de 1950. Dramaturgo, encenador, coreógrafo e designer, Fabre tem uma
coletânea de obras híbridas, que incluem dança, performance, teatro e artes
plásticas. Fascinado pela metamorfose, traz em suas obras fortes
referências, que transitam entre campos aparentemente ambíguos.

O trânsito intenso e contínuo entre as diversas artes resultou


numa contaminação entre linguagens e na criação de um trabalho
sem fronteiras, marcado pela miscigenação. [...] Este é o ponto de
partida para qualquer investigação sobre o artista e aquilo que o
estimula a promover relações intensas entre as diversas
linguagens que utilizam o corpo como elemento fundamental de
sua constituição. No processo de criação dos espetáculos,
procedimentos de dança, performance, teatro e artes plásticas
encontram-se e se transformam mutuamente. (ALMEIDA, 2007: p.
168)

Influenciado fortemente pela tendência vanguardista de abandonar a


estética produzida até então, ele, assim como muitos criadores do século
XX, foca seu trabalho no potencial existente no teatro produzido para além
de uma dramaturgia escrita pré-produzida. Jan Fabre torna-se uma
referência importante em meio à cena contemporânea, rompendo fronteiras
e abrindo caminhos para a miscigenação das diversas linguagens artísticas
dentro do ramo teatral.

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LIDDEL E FABRE: O GROTESCO COMO ESTÉTICA E O DESCONFORTO
COMO ACESSO AO INSTINTO HUMANO

Angélica Liddell e Jan Fabre: dois expoentes do teatro-performance 1


criado desde o fim do século passado. Europeus, ambos reúnem obras
potentes, que chamam atenção tanto por críticas positivas, que elogiam seus
temas e mise en scène2, quanto por duros posicionamentos contra suas
estéticas violentas – que sempre provocam desconforto – e uso indevido de
animais em cena (Liddell e Fabre já enfrentaram diversas ameaças e
ataques quanto a isso).
Entretanto, as polêmicas levantadas ao fim de cada montagem não
parecem incomodar os dois encenadores, que querem cada vez mais
utilizar-se de estratégias de distanciamento (por mais que inicial) para atingir
o espectador.
O princípio Aristotélico da identificação por meio do reconhecimento
de elementos dentro da encenação não é de muito agrado de ambos.
Seguindo a tendência do final do século passado, portanto, passaram a
tentar provocar a catarse através de outras vias. A beleza, então, começa a
tomar outras formas, que não são puramente estéticas e geram
estranhamento no espectador. Com elementos grotescos, as encenações de
ambos colocam em pauta a tensão da dicotomia entre o belo e o feio,
testando os limites entre o confortável e o desconfortável.
Ao contrário do que se deve pensar, nesse lugar do desconforto, é
possível acessar o público de outras maneiras, por vezes muito mais ricas e

1 “A performance ou performance art, expressão que poderia ser traduzida por "teatro das
artes visuais", surgiu nos anos sessenta [...] [e] chega à maturidade somente nos anos
oitenta. A performance associa, sem preconceber idéias, artes visuais, teatro, dança,
música, vídeo, poesia e cinema. [...] Enfatiza-se a efemeridade e a falta de acabamento da
produção, mais do que a obra de arte representada e acabada”. (PAVIS, 2008: p. 284)
2 “O conceito de 'mise-en-scène' define, entre outros elementos, o espaçamento de corpos
e coisas em cena. Vem do teatro, do final do século XIX/início do XX, e surge com a
progressiva valorização da figura do diretor, que passa a planejar de forma global a
colocação do drama no espaço cênico”. (RAMOS, 2012: p. 54)

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efetivas. Uma imagem brutal, por exemplo, tem o poder de resgatar
memórias, lembranças ou sentimentos muito antigos ou escondidos, não
necessariamente em direta conexão com o que é visto. Uma cena chocante
pode despertar sensações nunca antes vividas por alguém. Mesmo que
inconscientemente, todos são tocados pelo que veem, por mais que o
processo seja angustiante.
Liddell e Fabre fazem isso muito bem. Em Génesis 6, 6-7, o
espectador é constantemente colocado em situações de ansiedade e
inquietude, sem saber o que virá a seguir. O público é afetado
ininterruptamente por tudo que acontece: o nervosismo causado pela
máquina de pão, que permanece – ao que parece – eternamente ligada; as
guitarras, que são giradas como objetos de malabarismo, deixando a plateia
nervosa e agitada; a faca, que é carregada em cena para todos os lados,
gerando a grande dúvida de onde e para que ela será utilizada; e, claro, a
chocante e, ao mesmo tempo potente introdução, em que é mostrado, em
zoom, o vídeo de uma sangrenta cirurgia de circuncisão peniana,
acompanhada de uma narração grave em outra língua, que ecoa no pano de
fundo da imagem pavorosa. A repetição e o esgotamento dos elementos
causa aflição e testa os limites do público, que é verdadeiramente
confrontado durante o espetáculo. Assim, pode-se desapegar da crença de
que a identificação é a única via para se atingir o espectador.
Segundo Luiz Gonzaga do Lopes, em recente matéria veiculada no
Jornal Correio do Povo,

Para reconquistar a beleza perdida, o espetáculo [Génesis, de


Angélica Liddell,] desvincula-se do teatro funcional e busca a
materialização do símbolo, a volta do contato com os instintos
mais primevos. A morte, o amor, um ser supremo e o sexo são
temas recorrentes na obra da diretora, que quer falar da parte
tóxica do homem, da humanidade, e das instituições. (LOPES,
2017)

Vê-se, assim, que a identificação com a obra não se dá mais


diretamente e através do reconhecimento de ações (visto que seria difícil se
relacionar com elementos tão extra-cotidianos). A busca agora é por meios

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de acesso ao instinto humano, o resgate dos impulsos naturais mais
primitivos, que levamos milhares de anos para aquietar.
Mount Olympus, espetáculo de Jan Fabre, também testa os limites (e
a paciência) do público: uma performance com duração de 24 horas, que
resgata o culto à tragédia grega, em que performer e espectador se afetam
mutuamente. Além da dificuldade de se manter atento por horas, a plateia
também presencia momentos de aflição e ojeriza: a atmosfera visceral,
concepções animalescas, cenas “sujas” (ou seja, com muitos elementos
cenográficos e movimentações acontecendo ao mesmo tempo). A agonia de
não saber o que esperar é levada ao limite, e “aguentar” 24 horas de
angústia não é fácil. Segundo Wallace Freitas, no espetáculo,

Mais uma vez a sensação de celebração ou homenagem à


tragédia grega é levantada, uma espécie de desejo de voltar aos
antigos para confrontar o que é novo (confrontar o tempo atual) ou
purificar os hábitos que esquecemos e que nos colocam mais
próximos do instinto animal, os quais, as novas tecnologias podem
nos ter feito esquecer. Penso que Fabre cria uma plataforma, na
qual, não somente o performer vai se transformando (afinal, ficar
24 horas em cena deve trazer uma fusão de sensações para o
performer), mas o espectador também compactua dessa
transformação. (FREITAS, 2017: p. 111-112)

Por mais que os elementos em cena sejam chocantes, os temas


prendem os espectadores e os aproximam do “enredo” quando estes
reconhecem, em cena, sensações presentes no mais íntimo âmago
individual. É necessário digerir todas as informações apresentadas, ao
mesmo tempo em que se lida com a forte e pesada atmosfera que se cria
durante as apresentações. Mas esse é o objetivo final: conseguir tocar o
espectador, promover algum tipo de mudança interna, de outros meios que
não sejam as já esgotadas estratégias de reconhecimento. E é fato: nem
sempre isso vai agradar a todos, ou atingir o público por inteiro, mas é
apenas consequência da pluralidade dos tempos de hoje, que produz
incontável número de interpretações e sensações diferentes para um mesmo
trabalho.

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Referenciais Teóricos

RAMOS, Fernão Pessoa. A Mise-en-scène realista: Renoir, Rivette e Michel


Mourlet In: XIII Estudos de Cinema e Audiovisual SOCINE.1, 2012, v.1, p.
53-68.

LOPES, Luiz Gonzaga do. Angélica Liddell: “A beleza é um ato de terrorismo


contra a intolerância”. Correio do Povo, Porto Alegre, 13 set. 2017.
Disponível em: < https://goo.gl/LeYfUL>. Acesso em: 22/11/2017.

BRASIL, Ubiratan. Angélica Liddell e sua Medeia do século 21 na peça


“Génesis 6, 6-7”. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 20 set. 2017. Disponível
em: <https://goo.gl/aEK7Jo>. Acesso em 22/11/2017.

CONARGO, Óscar. Atra Bilis o el rito de la perversión. Archivo Virtual de


Artes Escénicas (AVAE), 2005. Disponível em: <https://goo.gl/wVmirt>.
Acesso em 23/11/2017.

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução de J. Guinsburg e Maria Lúcia


Pereira. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.

SILVA, Cristiane Valéria. Do Personagem ao Público: a Questão da


Identificação no Melodrama. Existência e Arte: Revista Eletrônica do Grupo
PET – Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São
João Del-Rei. Minas Gerais, Ano I, Número I, Janeiro a Dezembro de 2005.
Disponível em: <https://goo.gl/afL5vV>. Acesso em 23/11/2017.

FREITAS, Wallace José de Oliveira. Dossiê Jan Fabre: Diálogos e


Germinações. 2017. 151 f. Dissertação (Pós-Graduação em Artes Cênicas) –
Departamento de Artes, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Rio Grande do Norte.
Disponível em: <https://goo.gl/pdZQjM>. Acesso em 21/11/2017.

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HIRSZMAN, Maria. Jan Fabre, a arte de um belga fascinado pelo grotesco.
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 12 ago. 2010. Disponível em:
<https://goo.gl/Zm6Q45>. Acesso em 23/11/2017.

ALMEIDA, Joana Doria de. Jan Fabre e a construção de um teatro híbrido.


Sala Preta, v. 7, pg. 167-170, 2007. Disponível em: <https://goo.gl/WXkfoF>.
Acesso em 23/11/2017.

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