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Morris West

A Concubina
Círculo do Livro
CIRCULO DO LIVRO S.A.

Caixa postal 7413

01051 São Paulo, Brasil

Edição integral

Título do original: "McCreary moves in"

Copyright © 1958 by Michael East by arrangement with

Paul R. Reynolds, Inc., N.Y.

Tradução: Luiz Fernandes

Foto: Image Bank

Licença editorial para o Círculo do Livro

por cortesia da Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S.A.

Venda permitida apenas aos sócios do Círculo

Composto pela Linoart Ltda.

Impresso e encadernado pelo Círculo do Livro S.A.

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Digit-Format-Correção:

pdf/epub / 2014 à LAVRo


Para Patricia
1

Quando ele acordou, a tarde já ia em meio.

A primeira coisa que viu foi o ventilador antiquado girando lenta e


inutilmente no ar pesado. Não produzia a menor ventilação, apenas um
zumbido soporífico, como se o eixo necessitasse de lubrificação. Depois,
percebeu o sol penetrando através das frestas das persianas de junco.

Era o suficiente para um começo.

Estava na cama, num quarto, com um ventilador. Era dia. O resto podia
esperar até que ele se sentisse forte o bastante para poder se preocupar.
Tornou a fechar os olhos. Tinha a boca ressecada e sentia um gosto amargo,
metálico, na língua. A pele estava pegajosa e com um odor acentuado. Ao
tentar mover-se, constatou que os músculos estavam frouxos e não lhe
obedeciam.

Recordou-se de que tivera febre.

Pensou vagamente em quanto tempo durara o acesso e se alguém teria


cuidado dele. Decerto que sim. Tinham-lhe tirado a roupa, e estava
completamente despido sob os lençóis. Escutara vozes indistintas e sentira
mãos enxugando-lhe a fronte, amparando-o enquanto outras mãos encostavam
um copo aos seus lábios trêmulos. Mãos e vozes, mas nunca um nome ou um
rosto.

Cautelosamente, abriu os olhos e virou a cabeça. Viu uma mesinha de


madeira vermelha lavrada, um jarro de vidro com água pela metade e um
copo. Ajeitou-se numa posição sentada e encheu o copo de água. As mãos
tremiam-lhe, e o jarro chocalhou contra o copo, fazendo com que um pouco
do líquido respingasse na mesinha.

A água decepcionou-o. Estava morna, insípida. Ainda sentia o gosto


amargo na boca ao terminá-la. Largou o copo e passou a examinar
detidamente o quarto: uma janela comprida, protegida por persianas de
junco; paredes brancas; um guarda-roupa pregado à parede, um toucador,
uma escrivaninha, tudo da mesma madeira vermelha; uma poltrona estofada
de tecido estampado; duas portas, uma delas com um aviso emoldurado.

Agora se lembrava do resto.

Estava num hotel — o Hotel Tanjil de Jacarta. Viajara de avião de


Pakanbaru, em Sumatra. A febre acometera-o uma hora após sua chegada —
uma agonia violenta de calafrios que terminara em trevas. Chamava-se Mike
McCreary. Trabalhava com petróleo e estava desempregado.

Bebeu outro copo de água, afastou a coberta e levantou-se, apoiando-se


à mesinha até passar o primeiro aturdimento. Depois atravessou lentamente o
assoalho encerado e foi ao banheiro. No espelho, um rosto magro e
amarelado encarava-o: uma fisionomia irlandesa, de olhos brilhantes e
espertos, engastados profundamente nas órbitas escuras, nariz petulante e
uma boca larga, de lábios finos, que sorria de forma cativante quando ele
estava satisfeito e que se fechava como uma armadilha quando se achava de
mau humor, como ocorria naquele momento.

Porque a verdade era que ele estava desempregado, sem um níquel,


fracassado e longe, bem longe, de Kerry, sua terra.

Fez a barba cuidadosamente e, depois, passou loção no rosto. Em


seguida, abriu o chuveiro e permaneceu longo tempo embaixo do jato de
água, ensaboando-se, lavando-se, até eliminar o último vestígio de febre e
sentir-se novamente bem. Voltou nu para o quarto, secando-se sob o
ventilador recalcitrante e monótono. Mal acabara de fazê-lo, voltou a
transpirar; após mais algumas tentativas de secar-se, desistiu e começou a
vestir-se, assobiando uma versão deturpada de Raftery little red fox, canção
criada em Kerry pelo grande Raftery, que fora um homem livre, um
andarilho.

Bateram à porta, e McCreary, parando de assobiar, disse:

— Entre.

A porta se abriu para dar passagem ao capitão Nasa.

Era um javanês de baixa estatura, maciço, de sorriso evasivo e suave.


Trajava um terno de tropical cinza, de corte militar, e usava à cabeça um fez
escuro colocado ligeiramente de lado. Fechou a porta e inclinou-se
cerimoniosamente:

— Boa tarde, sr. McCreary.

McCreary respondeu-lhe com outro boa-tarde e continuou a dar o laço


na gravata.

O capitão Nasa apanhou um cigarro, bateu-o na unha do polegar e


acendeu-o. Através da fumaça, sorriu para McCreary.

— O senhor esteve bastante doente, meu amigo. Como se sente agora?

McCreary deu de ombros.

— Não sei ainda. Acabei de sair da cama.

— Está se sentindo fraco?

— Não era de se esperar?

O capitão Nasa sorriu, estalou a língua e deu outra tragada no cigarro.


— Amanhã estará se sentindo melhor.

— Espero que sim — disse McCreary, sem convicção.

— Então virei apanhá-lo ao meio-dia e o levarei até o aeroporto.

McCreary voltou-se e enfrentou-o diretamente.

— Está com pressa de se livrar de mim, não está?

— A ordem de extradição já está vigorando há alguns dias — disse


Nasa suavemente. — Fui encarregado de cumpri-la logo que possível.
Enquanto isso — olhou para o dorso das mãos pequenas e morenas — ...
enquanto isso, acho melhor que não saia do hotel. Não é aconselhável um
europeu andar pela cidade sem ter os documentos em ordem.

— Também acho — concordou McCreary.

— Então, amanhã ao meio-dia?

— Estarei esperando.

— Passe bem, sr. McCreary.

— Gostaria de lhe dar uma surra, capitão! — respondeu McCreary em


voz baixa.

Nasa curvou-se novamente e saiu caminhando de leve, na ponta dos pés,


como um bailarino. McCreary esperou que a porta se fechasse e, então,
desandou a praguejar fluente e obscenamente. Nasa era um policial, o
representante da lei e da ordem — mas a lei assumia formas estranhas e
tortuosas naquela republiqueta de setenta e nove milhões de almas que se
espraiava por três mil ilhas. Tudo funcionava melhor quando a engrenagem
era “lubrificada”, mas tudo o que McCreary possuía era uma passagem de
avião para Cingapura, um mês de salário em rupias indonésias e a boa
estrela dos irlandeses.

A passagem de avião o transportaria de uma praia para outra. As rupias


perderiam vinte por cento do valor depois que os “tubarões” do câmbio
levassem o seu quinhão. Quanto à sorte dos irlandeses, esta parecia ter-se
esgotado.

McCreary vestiu o paletó, desceu até o salão do hotel, pediu um gin-


sling e um número do Strait Times. Já era tempo de procurar serviço em
Cingapura.

Mesmo antes de abrir o jornal, ele sabia que seria pura perda de tempo.
Cingapura, Saigon, Bangkok, Hong Kong — eram todas as cidades de
mascates, entrepostos portuários. Nada ali lhe convinha.

Nada lhe convinha em lugar algum, a não ser onde as grandes estruturas
de aço se erguiam para o céu e as brocas estridentes mergulhavam no
subsolo e nas rochas, para atingir as areias pretas nas entranhas da terra. Era
um homem do petróleo, e não um funcionário ou um negociante. Era um
perfurador de terra, e seu lugar era ali, naquelas ilhas, ou nas Américas, ou
na Nova Guiné, ou até mesmo na orla do deserto australiano.

Contudo, o petróleo era um negócio traiçoeiro — um negócio de fundo


político. As grandes companhias dependiam, para obter suas concessões,
dos favores de governos estrangeiros e da dispendiosa cooperação de
funcionários locais. Costumavam evitar homens que não soubessem controlar
os punhos e a língua. Depois do incidente em Pakanbaru, seu nome devia
estar na lista negra, e ele teria de recorrer a uma das companhias menores,
que faziam sondagens de petróleo nos territórios marginais — isto é, desde
que pudesse chegar lá.

Desistiu de ler os anúncios e concentrou-se na meia página que


apresentava a nova dançarina de leque que acabara de estrear no Dragão
Dourado. Mas nem mesmo uma dançarina de leque eurasiana o fazia resistir
à bebida, ao ar úmido e à sonolência dos ventiladores. O anúncio dançava
diante de seus olhos, e as palavras pareciam completamente sem sentido.

De repente, alguém lhe dirigiu a palavra em inglês: era uma voz


estridente e fina como um guincho de morcego.

— O senhor se chama McCreary?


Ele ergueu os olhos, surpreso, e viu um homem gordo, atarracado,
usando um terno de seda. Tinha cabelos negros, olhos verde-acinzentados; o
nariz assemelhava-se ao bico de uma ave de rapina, e a boca, acima do
queixo quadrado, era pequena e vermelha como a de uma mulher. O rosto era
de uma palidez mortal, exceto à altura do queixo, onde o sombreado da
barba se fazia notar. As mãos pequenas e grossas eram cobertas de pêlos
pretos e espessos. Uma figura difícil de ser conciliada com aquela voz
esganiçada. McCreary olhou-o por um momento antes de responder.

— Sou eu mesmo. Quem é o senhor?

— Rubensohn. Posso me sentar?

— Sente-se.

Ele se sentou e enxugou o rosto e as mãos com um lenço de seda.


Apanhando uma carteira de charutos roliços, ofereceu um a McCreary.

— Não, obrigado. Prefiro cigarros.

Rubensohn colocou a carteira de volta no bolso.

Pondo as mãos grossas na mesa, com as palmas viradas para baixo,


reclinou-se na cadeira e sorriu para McCreary.

— Ouvi dizer que está em apuros, meu amigo.

— Não diga — retrucou McCreary calmamente. — Que foi que ouviu?


Onde?

— Soube que o senhor estava fazendo perfurações para a Palmex em


Pakanbaru e deu uma surra num rapaz sudanês, que foi se queixar à polícia.
A companhia eximiu-se de qualquer responsabilidade, e a polícia então
expediu uma ordem de extradição. Soube, também, que há três dias tem
estado doente e que deve partir amanhã de Jacarta para Garuda no avião das
duas horas. Correto?

— Isso é parte da história.


— Qual é o resto?

— Bem, se lhe interessa saber — disse McCreary em seu suave sotaque


de Kerry —, ele estragou uma broca nova e dez metros de revestimento por
puro desleixo. Atrasou nossas atividades por mais de um mês. Já o havia
avisado de sobra. Dessa vez, tive de dar-lhe um soco.

— Um desabafo caro.

— Talvez, mas à minha custa. Por que se preocupa?

— Não estou preocupado, sr. McCreary, apenas interessado.

— Por quê?

— Gostaria de lhe oferecer trabalho.

McCreary fitou-o, perplexo.

— Não estou compreendendo.

— Está interessado?

— Certamente. Mas que espécie de serviço? Em que lugar?

— Ofereço-lhe uma bebida, está bem? — disse Rubensohn com voz


aguda e aflautada.

Bateu com as mãos espalmadas. Um nativo de barrete na cabeça e


sarongue estampado apressou-se em atendê-los. Enquanto esperavam pelas
bebidas, McCreary pôs-se a fumar um cigarro. Rubensohn observava-o com
divertida ironia. Inesperadamente, perguntou:

— Quantos anos tem, McCreary?

— Trinta e oito.

— Casado?
— Não.

— Tem vícios?

— Os de praxe.

— De temperamento um tanto incontrolável?

— Não tolero idiotas. Não gosto de serviço desleixado.

Rubensohn balançou a cabeça em concordância.

— Levemos isso a seu crédito. Diga-me, qual é a sua ambição?

McCreary sorriu por detrás da fumaça do cigarro.

— Aí está a pergunta mais difícil que já me fizeram.

— O senhor não tem ambição alguma?

— É lógico que tenho, mas não creio que o senhor a entendesse se lhe
contasse qual é.

— Experimente.

Os olhos de McCreary nublaram-se. Com um gesto súbito, ele amassou


o cigarro e curvou-se por sobre a mesa.

— Não o conheço, Rubensohn, nem sei o que deseja. Não sei e não me
importo muito se a resposta lhe desagradar. Mas, ei-la. Sou um irlandês
muito idiota, de pés irrequietos e que carrega nos ombros o seu lar. Minha
única aptidão consiste em fazer buracos na terra a fim de descobrir petróleo.
Minha verdadeira ambição é ganhar bastante dinheiro para poder comprar
um pequenino haras a trinta quilômetros de Dublin e ver se consigo criar o
vencedor do grande prêmio. Aí está. Ria, se quiser.

— Não vejo por quê — disse Rubensohn. — Nesse caso, você está
interessado em ganhar dinheiro, não é?
McCreary deu de ombros.

— E quem não está?

O rapaz voltou com as bebidas. Rubensohn pagou a conta e esperou que


ele se afastasse. Levantando o copo, disse:

— Boa sorte, McCreary!

— Slainte!

Rubensohn sorveu um gole e limpou os lábios vermelhos. Depois disse,


com circunspecção:

— Dinheiro é a coisa menos importante no mundo.

— Quando se tem — retrucou McCreary.

— Exatamente. Quando se tem é que se sabe de fato o que ele é: um


pedaço de papel sujo, um pouco de metal ordinário, um símbolo imundo de
algo bem mais importante: crédito. Eu, por exemplo — bateu no peito roliço
—, nunca trago mais do que o necessário para enfrentar despesas imediatas.
No entanto, tenho crédito em toda parte... Hong Kong, Jacarta, Nova York,
Paris, Londres.

— Felizardo — disse McCreary secamente.

Rubensohn não deu importância à interrupção e prosseguiu:

— Com crédito posso negociar com o mundo inteiro, como, aliás,


realmente faço. Para receber cinquenta e cinco mil libras, basta-me pegar o
telefone. Posso especular com a borracha de Cingapura e com a pimenta das
ilhas Celebes. Posso fazer as ações da Palmex baixarem três pontos numa
tarde. E também posso fazer as suas subirem vertiginosamente.

— Não tenho ações — disse McCreary.

— Poderá tê-las — replicou Rubensohn em sua voz aguda e


desagradável —, se aceitar o serviço.
— De que se trata?

Rubensohn sorriu e abanou a cabeça.

— Aqui, não, McCreary. Há muita gente falando e escutando. O melhor


negócio é o que é feito em particular. Olhe, para usar suas próprias palavras,
você é um homem de pés irrequietos e que carrega nos ombros o seu lar.
Pois bem, eu lhe ofereço três mil dólares para fazer uma viagem comigo e ir
ver do que se trata. Se não lhe agradar, ainda sai com lucro. Se gostar, fica
com o dinheiro e poderá ganhar mais — muito mais. Que acha?

— Aonde vamos?

— Bem longe daqui. Às ilhas Celebes.

— Fazem parte da República da Indonésia, e eu vou ser expulso do


país. A polícia reteve meu passaporte, que só me será devolvido amanhã,
quando eu tomar o avião.

Rubensohn sorriu mansamente e enfiou a mão no bolso interno do


paletó. Retirando uma pequena carteira com as armas da República da
Irlanda estampadas na capa, colocou-a sobre a mesa, entre eles.

McCreary esbugalhou os olhos ao vê-la.

— Mas é o meu passaporte! Como é que você...

Rubensohn fez com a mão um gesto depreciativo.

— Crédito, meu caro. É útil em todos os setores. O capitão Nasa


compreende bem isso. Ele está muito mais interessado num inesperado
aumento de sua conta bancária do que em você. Está disposto a concordar
com outro meio de transporte para você e a não fazer muitas perguntas sobre
o seu paradeiro.

— E daí?

— Se você concordar, zarparemos à meia-noite, aproveitando a maré


alta.
McCreary fitou-o, intrigado e pensativo. Balançou a cabeça.

— Não estou compreendendo, Rubensohn. Não estou entendendo nada.


Como homem de negócios, você há de querer ter lucro. Não é dos que fazem
caridade. Por que eu, um perfurador desempregado? Que lucro espera ter
comigo?

— Neste momento — Rubensohn disse lentamente —, preciso de um


homem para cuidar de um certo assunto meu na parte oriental desta
república. Tenho urgência. Tinha um homem em vista em Cingapura, mas ele
não pode mais vir. Você está em disponibilidade, e eu corro o risco. Está
disposto a fazer o mesmo?

— Por três mil dólares?

— E muito mais em perspectiva.

McCreary olhou-o por um momento e logo seu rosto magro abriu-se


num sorriso meio de lado.

— Um de nós dois é um grande idiota, Rubensohn. Tenho a impressão


de que sou eu.

— E a boa estrela dos irlandeses?

McCreary deu de ombros e estendeu-lhe a mão.

— Quem sabe? Muito bem, Rubensohn, já arranjou companhia.

O aperto de mão de Rubensohn foi displicente, mas nos olhos verde-


acinzentados havia um brilho de interesse. Encerrando o assunto, disse:

— Ótimo. Estamos combinados. Agora, vamos para o meu quarto tratar


de negócios.

Levantaram-se.

McCreary, movido por uma curiosa argúcia céltica, olhou o relógio.


Eram quatro e meia do dia 10 de julho. Se havia presságios por trás daquilo,
ele não o sabia. E não havia profetas por perto para gritar “Cave” (cuidado)
ao viajante.

Saíram juntos da sala.

O quarto de Rubensohn era largo e fresco, com móveis de teca


esculpida. Portas envidraçadas davam para um terraço gradeado, e das
paredes pendiam telas de pintores javaneses: nevoentos cumes de
montanhas, campos tranquilos animados por pessoas que passavam, praias
compridas, douradas, entre as colinas e o mar iridescente.

Mas os quadros eram descoloridos e sem vida perto daquela moça.

Pequenina, de busto alto, parecia uma boneca de cera. De cabelos muito


pretos, sua pele tinha aquele morno colorido de mel peculiar aos mestiços
— a estranha florescência produzida pelo cruzamento do Ocidente com o
Oriente. Trajava um vestido verde-jade de brocado com gola alta. Havia
jóias em seus dedos — um diamante e um rubi sanguíneo. Nos pés sem
meias, usava sandálias de salto alto, abertas, confeccionadas por um artesão
chinês.

Ao entrarem, ela estava se arrumando ao espelho. Virou-se e olhou-os


com curiosidade, porém em silêncio. McCreary sorriu-lhe, mas seus olhos
escuros não denotaram o menor interesse. Rubensohn apresentou-os com
negligência.

— Esta é Lisette. Lisette, o sr. McCreary, um novo associado. Ele


viajará conosco.

— Prazer em conhecê-la, minha senhora — disse McCreary com apuro.

Ela continuou calada, e Rubensohn esboçou um sorriso. McCreary


sentiu-se ligeiramente ridículo.

Rubensohn apontou com o polegar para as portas envidraçadas.

— Saia, Lisette. Espere por nós.


Ela deu de ombros e abandonou o espelho. Caminhou até a porta e
abriu-a. McCreary pôde ver uma espreguiçadeira colocada sob as
trepadeiras que cobriam as grades. A moça saiu, fechando a porta.

— É um bocado bonita — disse McCreary.

— É minha — respondeu Rubensohn com naturalidade. — Gosto de


mulheres decorativas.

— Tem sorte em poder mantê-las.

Rubensohn encolheu os ombros com indiferença e, dirigindo-se a um


armário, abriu uma gaveta e dela tirou uma pequena sacola de couro de
porco. Abriu-a e apanhou um longo rolo de papel transparente, que esticou
cuidadosamente sobre o tampo da mesa.

— Veja isto, McCreary.

McCreary curvou-se sobre a planta e assobiou baixinho. Era um mapa


preparado por uma famosa companhia americana de estudos geológicos.
Trazia a assinatura de seu melhor técnico. McCreary conhecia os dois.
Rubensohn observava-o com atenção.

— Entende disso?

— Claro que sim!

— De que se trata?

— De um levantamento topográfico de petróleo.

— E o que deduz dele?

— Se for verdadeiro...

— É. Custou-me vinte mil dólares.

— Barato — disse McCreary. — Deve haver petróleo à beça.


O dedo grosso de Rubensohn apontou para um local no mapa.

— Quanto tempo levaria para abrir um poço aqui?

— Espere aí, Rubensohn! — McCreary aprumou-se e encarou-o. —


Vamos esclarecer bem as coisas. Um levantamento é uma coisa. Abrir um
poço é outra completamente diferente.

— Como assim?

— Um agrimensor — falou McCreary com fluência — é um homem, e


não uma toupeira. Vive na superfície. Não pode ver o que está lá embaixo.
Com a ajuda da técnica e com habilidade, ele pode prestar uma porção de
informações a respeito da terra e das formações rochosas. Pode demarcar,
como este sujeito fez, um anticlinal promissor, onde tudo indica que exista
petróleo. Mas não pode afirmar que existe. Aí é que entra o risco — para os
financiadores e os perfuradores.

Rubensohn concordou com um movimento de cabeça. A resposta


parecia ter-lhe agradado. Fez outra pergunta.

— Estou disposto a arriscar. Mas ainda quero uma resposta.


Suponhamos que haja petróleo no anticlinal. A profundidade indicada neste
levantamento, quanto tempo você levaria para extraí-lo?

McCreary pesou a pergunta.

— O terreno está desobstruído?

— Está.

— Qual o tipo de equipamento?

— O que há de melhor.

— Então, diria que levaria de uma a duas semanas para erguer a


armação e começar a cavar. Depois, mais um mês. Se este sujeito não se
enganou, deveremos encontrar areia entre trezentos e quinhentos metros de
profundidade. Dê-me seis semanas ao todo e eu lhe darei a resposta:
positiva ou negativa.

— Ótimo!

McCreary olhou-o penetrantemente.

— Compreenda, Rubensohn! Não estou lhe prometendo nada. Não


posso evitar falhas humanas nem a interferência divina.

— Sei disso. De que tipo de mão-de-obra vai precisar?

— Antes de tudo, de um mecânico — que seja capaz de zelar pelo bom


funcionamento de tudo, que saiba conservar as ferramentas e fazer reparos
de oficina. Quanto ao resto, eu dou um jeito com gente do local, desde que
tenha carta branca.

— Mecânico eu já tenho. No lugar para onde vamos você conseguirá


todo o pessoal de que precisar — e também terá carta branca.

— Onde fica?

Rubensohn sorriu e meneou a cabeça.

— Carta de prego, McCreary, para ser aberta no terceiro dia de viagem.

McCreary fez um pequeno gesto de indiferença.

— Para mim dá no mesmo, Rubensohn. Você é quem paga, você é quem


manda. Mas há uma coisa.

— O quê?

— Assim que começarmos a trabalhar, eu darei as ordens. Conheço


minha profissão e não gosto de interferências.

— Perfeitamente.
Rubensohn enrolou o mapa, colocou-o de novo dentro da sacola e
trancou-o no armário. Virou-se para McCreary. Seus olhos brilhavam de
satisfação e a boca vermelha sorria brandamente.

— Você me agrada, McCreary. Acho que, juntos, nós dois vamos longe.

McCreary enfiou as mãos nos bolsos e encostou-se à mesa. Falou


suavemente:

— Antes de mais nada, Rubensohn...

— O quê?

— Quero saber quanto vou ganhar, além do adiantamento.

Sem hesitar um momento, Rubensohn expôs as condições.

— Três mil dólares adiantados, trezentos por semana durante a


perfuração, e uma bonificação de dez mil com a conclusão do poço, ou o
equivalente em ações numa companhia que venhamos a formar. Durante esse
período de trabalho, todas as suas despesas correrão por minha conta, e ao
final terá uma passagem para qualquer parte do mundo. A não ser,
naturalmente, que decida continuar trabalhando para mim. Que tal?

— Serve — disse McCreary com frieza.

— Quer isso por escrito?

McCreary abanou a cabeça.

— Basta-me a sua palavra.

Rubensohn olhou-o com estranheza e franziu o sobrolho.

— Nunca confie na palavra de ninguém em matéria de dinheiro,


McCreary.

McCreary colocou um cigarro no canto da boca e sorriu para


Rubensohn por entre as primeiras espirais de fumaça.
— Se a palavra de um homem não vale, sua assinatura muito menos.
Mas se quiser preparar um contrato, estou de acordo. A moça servirá de
testemunha.

— Prefiro assim — disse Rubensohn com calma. — Chame-a,


McCreary, e mande-a preparar uma bebida para nós. E, McCreary... — A
meio caminho da porta, ele se virou. Rubensohn sorria, porém havia dureza
em seu olhar. — Lisette é minha. Lembre-se sempre disso, certo?

— Com todo o seu dinheiro — disse McCreary suavemente —, não


vejo por que se preocupar.

Abriu a porta e olhou para a jovem. Parecia um pássaro, pensou, um


brilhante pássaro verde-dourado debaixo de trepadeiras serpeantes.
2

Às oito horas dessa mesma noite, McCreary arrumou tudo o que tinha
numa sacola de lona, pagou a conta e mergulhou nas sombras mornas da
noite.

As estrelas brilhavam a pouca altura num céu aveludado, e as luzes da


cidade espalhavam-se a seus pés, milhares delas: brilhantes à volta da
cidade nova; esparsas no bairro residencial, onde os bangalôs dos chineses
ricos se refugiavam por detrás da densa vegetação; amarelas e bruxuleantes
nos kampongs, escassas e intermitentes nos barcos pesqueiros além do porto
de Tanjungperink.

Podia sentir o cheiro da cidade mesmo ali no terreno elevado, longe das
baixadas insalubres e dos canais da cidade velha, onde a população escura
enxameava, chafurdando e despejando seus detritos nos canais estagnados.
Era um odor estranho, exótico, uma mistura de condimentos, vegetação
apodrecida, peixe ressecado, água pantanosa e a emanação de dois milhões
de corpos a suar no ar parado. Penetrava pelas narinas, provocava enjôo e
impregnava-se nas roupas. Não se podia removê-lo. Quando se ia embora,
ele permanecia como uma lembrança perturbadora, chamando-nos de volta.
McCreary pousou a sacola e encostou-se por uns instantes ao tronco de
uma grande figueira para acender um cigarro. Antes que tivesse apagado a
chama de seu isqueiro, três betjaks se aproximaram puxando seus veículos e
tocando furiosamente as campainhas. Começaram a puxar-lhe as mangas,
anunciando, como papagaios, em malaio, a velocidade e a limpeza de seus
respectivos veículos. McCreary sorriu, empurrou-os para trás, ergueu a
sacola e colocou-a no assento do carro que chegara primeiro. O condutor riu
e zombou de seus rivais com um palavrão e um gesto obsceno. Em pouco,
estavam todos estrada abaixo, com os penachos balouçantes, as campainhas
soando, e o ar zumbindo através das tiras de borracha esticadas sob o
assento.

O tráfego era escasso na cidade nova. McCreary encostou-se no banco e


deixou que o vento lhe fustigasse o rosto. As pernas esqueléticas do condutor
pedalavam para baixo e para cima, enquanto ele cantava, gritava, ria e fazia
soar a campainha a cada cruzamento e a cada carro que passava.

Era uma gente estranha, pensou McCreary: pareciam até irlandeses.


Simples, polidos, amantes das cores e da música. Andavam como bailarinos
e falavam como poetas. Mas o fermentozinho da loucura achava-se sempre
dentro de seus crânios escuros, e, como os irlandeses, estavam sujeitos a
enlouquecer com a bebida, o amor ou com as mais simples frustrações
cotidianas. Chamavam a isso de amok — e quando um homem ficava amok,
segurando uma machadinha ou brandindo um kris, era morto rapidamente
num canto escuro ou numa cela policial. Para ele não havia mais salvação.

Ao chegarem à cidade velha, diminuíram a velocidade.

As casas dos antigos colonizadores holandeses haviam sido dispostas


por entre as árvores, mas agora dormiam quatro famílias javanesas em cada
quarto, e seus jardins estavam atravancados de cabanas, de onde vida se
derramava pelas ruas apertadas — crianças brigando, mascates com seus
cestos espalhados, galinhas ciscando e vendedores com cestos de feijão e
arroz cozido, peixe frito e condimentos acres.

Rolos de batik espalhavam-se sob esteiras protetoras. Um escultor


achava-se agachado entre seus pássaros e suas pequeninas figuras femininas
de busto empinado, esculpidos em madeira. Por uma porta aberta saía o
tilintar da música do gamelan, e lá dentro McCreary divisou os fantoches
grotescos de uma exibição de silhuetas por cima da cabeça dos assistentes
agachados.

O homem do veículo desviava-se, batucava na campainha e chutava as


crianças no caminho, e dez minutos mais tarde atingiam a zona desobstruída
em volta do porto de Tanjungperink. McCreary pagou ao betjak,
encaminhou-se para o cais e ficou olhando a água oleosa da enseada.

Ali estavam navios de todas as nacionalidades: petroleiros de


Balikpapan; barcos costeiros enferrujados do mar da China; um grande
vapor branco italiano com vigias resplendentes, voltando de Sydney com
veranistas; juncos — embarcações chinesas de popas altas; um navio
mercante de mastros muito inclinados, procedente de Yokohama; e os
pequenos e bem-arrumados paquetes da esquadra da Nova República, com o
pássaro garuda de asas abertas, qual uma águia, por sobre as placas com
seus nomes.

Havia luzes, arrastar de amarras e o ranger da grande draga que tirava


lodo do canal. Havia o agitar de uma lancha policial, a lenta aproximação do
prau de um pescador, e o baque de barcaças de encontro ao casco de um
navio recém-chegado.

Viu então o que procurava.

Estava atracado a um dos cais oleosos, a uns duzentos metros de


distância, na curva noroeste do porto — um casco longo e branco com o
formato de uma corveta, o que provavelmente era. Estava aceso da proa à
popa, e ele podia ver as figuras apressadas dos malaios cuidando das
mangueiras pretas que mergulhavam nos depósitos de combustível.

À proa, um nome: CORSÁRIO, Panamá.

Apanhou a sacola e pôs-se a andar com rapidez ao longo do cais.

Um serang malaio acenou-lhe do alto da prancha de desembarque, e,


quando ele atingiu o topo, um jovem oficial saudou-o elegantemente e
perguntou-lhe, num inglês razoável, a que tinha vindo.
— Meu nome é McCreary.

— Estávamos esperando pelo senhor. Soube que vai viajar conosco.


Chamo-me Arturo Caracciolo, segundo-oficial.

— Prazer em conhecê-lo, Arturo. Onde posso encontrar o sr.


Rubensohn?

— No salão. Está à sua espera para jantar.

— Bondade dele. Como chego até lá?

— Por aqui, senhor.

Pegou a sacola de McCreary e conduziu-o pela escadinha. McCreary


observou que os tabiques tinham sido pintados recentemente e que o
corredor estava revestido de uma passadeira de borracha nova. Arturo abriu
a porta de um camarote e pôs-se de lado para deixá-lo passar. McCreary
assobiou de surpresa. O camarote era tão grande quanto um salão. Havia
uma cama, uma escrivaninha e uma espreguiçadeira aparafusada no chão.
Aquarelas italianas de cores vivas nas paredes; na cama e nas vigias,
padronagens modernas. Continha também um pequeno compartimento com
chuveiro e um espaçoso armário.

— Ora, vejam só! — disse McCreary em tom baixo. — A viagem


promete.

Arturo sorriu, satisfeito como uma criança.

— Foi construído na Inglaterra e sofreu adaptações em Gênova. Nós


temos muito orgulho dele.

McCreary olhou para o rapaz. Simpático, pensou. Recém-saído da


Escola de Marinha Mercante, a julgar pela aparência. Inocentemente,
perguntou:

— “Nós”, quem?
— A tripulação, senhor. O comandante é holandês, e os oficiais são
italianos.

— E os outros?

— No tombadilho, temos malaios; na sala de máquinas, lascares, e


chineses na cozinha.

McCreary balançou a cabeça. Esperto aquele Rubensohn, pensou. Até


nos menores detalhes. Dividir para reinar. Haveria pouca oportunidade de
encrencas com uma tripulação daquelas. Jogou a sacola sobre o leito e foi ao
pequeno compartimento aprontar-se para o jantar. Arturo levou-o até o salão
e anunciou-o.

— Comandante Janzoon, sr. Rubensohn... o sr. McCreary.

Levantaram-se para recebê-lo. O comandante, um louro agigantado com


cabelo à escovinha e cavanhaque, Rubensohn e a moça.

Rubensohn cumprimentou-o com estudada efusão. A jovem fez-lhe um


vago aceno de cabeça. O comandante Janzoon esmagou-lhe a mão dentro da
sua, grande como um presunto, bateu-lhe no ombro e casquinou em seu inglês
áspero e asmático:

— McCreary, hem? O irlandês selvagem. Parecemos uma Liga das


Nações. Holandês, italiano, inglês e uma bela mulher que é...

A voz fria de Rubensohn interrompeu o monólogo.

— Um drinque para McCreary, comandante.

Janzoon enrubesceu, porém calou-se. Despejou dois dedos de uísque


num copo e entregou-o a McCreary, que o temperou cuidadosamente com
água, levantando-o em seguida num brinde, Janzoon e Rubensohn
acompanharam-no. A moça fumava um cigarro escuro numa longa piteira de
bocal de ouro e ponteira de jade. Rubensohn pousou o copo na mesa e disse
bruscamente:

— Tenho de lhe dizer uma coisa, McCreary.


— O quê?

— Nós quatro aqui presentes somos os únicos envolvidos nesta... nesta


aventura. Os outros são contratados para tomar conta do navio e de nada
sabem. Está bem claro?

— Para mim, está claro como minha consciência — respondeu


McCreary. — Mais alguma coisa?

— No momento, não. Gostou do navio?

— Do pouco que vi, gostei. Acho que vou me distrair.

— Vinte nós — disse Janzoon em sua voz áspera. — Três mil milhas
marítimas percorridas. Precisa ver minha ponte de comando. Do último tipo!
Da melhor qualidade!

— Sempre compro o que há de melhor — disse Rubensohn.

— Temos sorte com o patrão — disse McCreary, rindo. — Todos nós.

Pela primeira vez um relâmpago de interesse faiscou nos olhos escuros


de Lisette, mas McCreary não reparou nele. Naquele momento, um camareiro
chinês aproximou-se e Rubensohn falou-lhe em cantonês. Ao sair, ouviram-
no fazer soar seu pequeno gongo de bronze para cima e para baixo pelas
passagens e pelo tombadilho.

— O jantar será servido dentro de quinze minutos. Com licença. Vamos,


Lisette!

Virou-se e saiu do salão. A moça seguiu-o silenciosa, sem um olhar


sequer para McCreary ou Janzoon. Os dois observaram-na partir. Se havia
provocação no seu andar, eles não a notaram. Ela era bela e fria como uma
boneca de cera.

McCreary e Janzoon entreolharam-se. O rosto de McCreary abriu-se


num sorriso, e Janzoon deu sua costumeira risadinha gutural.

— Que acha dela, hem, McCreary?


— Não posso achar — respondeu. — Avisaram-me para sair de seu
caminho.

Por debaixo das sobrancelhas espessas, Janzoon lançou-lhe um olhar


rápido e astuto.

— Precisamos nos conhecer melhor. Acho que podemos ser bons


amigos.

— Estou certo que sim.

Janzoon despejou mais uísque nos dois copos, e ao passar um para


McCreary perguntou-lhe de forma casual:

— Conhece Rubensohn há muito tempo?

— Umas quatro ou cinco horas. Por quê?

— Ele o tem em boa conta.

— Bondade...

— O que é que você sabe a respeito dele?

— Nada além do que ele próprio me contou.

Janzoon emborcou o uísque de uma só vez e limpou os lábios com as


costas da mão. Disse então, com aspereza:

— Você tem muito que aprender, meu amigo.

McCreary sorriu tranquilamente e respondeu no seu jeito suave:

— Eu aprendo com rapidez. Especialmente quando me pagam para isso.

— Ele é um grande homem — disse Janzoon ponderadamente. — Sabe


o que quer e como consegui-lo. Tem uma fortuna imensa. A simples menção
do seu nome abre portas em Roma, Paris, Genebra e Nova York. Este navio,
ele o comprou como sucata por trinta mil libras esterlinas, e gastou cinquenta
mil para transformá-lo no que é hoje. Pensa com largueza. Não poupa
dinheiro num projeto e paga bem por bons serviços prestados.

— Qual é o verdadeiro negócio dele? — perguntou McCreary


cautelosamente.

Janzoon deu de ombros.

— Um homem assim se interessa por tudo o que dê dinheiro, seja onde


for. Hoje é petróleo. Amanhã talvez sejam armas, ouro, ou algodão. Age de
acordo com o mercado. Financia uma nova firma aqui, adquire outra, mais
antiga, acolá. Em suma, tudo o que toca vira ouro.

— Está com ele há muito tempo?

— Desde que o Corsário foi reformado, três anos atrás. Antes disso eu
comandava petroleiros para a Bataafsche Petroleum. Este é o melhor barco
que já tive. Boa paga e biscates melhores ainda.

McCreary olhou-o de maneira intrigada.

— Um pouco da sobra do ouro, hem?

— Às vezes.

— Uma ideia promissora.

— Para o homem certo — disse Janzoon suavemente —, mais do que


promissora: uma certeza.

McCreary sorriu e enfiou o nariz no copo. Janzoon o sondava, mas ele


não iria cair na rede. Já havia engolido a “isca” o suficiente. Agora, era
cumprir sua tarefa, cobrar o que lhe deviam e ir para casa; e o pirata louro
que fosse para o inferno com seu riso barulhento como um sino e aqueles
olhos frios e calculistas.

Ocorreu-lhe, então, que não tinha lar, apenas o vago sonho de uma casa
de pedra, toda cinzenta, e vastos pastos verdejantes cheios de garanhões
batendo os cascos. Via-se vestido com uma jaqueta e calça de montaria,
andando como um autêntico criador de cavalos, falando com delicadeza ao
treinador e aos cavalariços. O despropósito desse pensamento tomou-o de
surpresa, e ele se pôs de repente a rir, engasgando-se com o uísque, enquanto
Janzoon olhava-o com intrigada hostilidade.

— Eu disse alguma coisa engraçada, por acaso?

— Nada! Absolutamente nada — disse McCreary, enxugando a boca e a


frente da camisa. — Uma piada particular, sem qualquer malícia.

Janzoon abanou a cabeça.

— Aproveito a ocasião para avisá-lo de que o sr. Rubensohn não gosta


de piadas, especialmente as que não pode compreender.

— Então, coitado dele — disse McCreary. — Triste vida leva aquele


que não sabe rir.

— Uma vida muito melhor do que a sua ou a minha — disse Janzoon


com certo amargor: — com dinheiro, uma mulher daquelas, e poder
suficiente para arruinar uma dúzia de homens em dez minutos.

— Mas se ele não sabe apreciar a vida, de que adianta tudo isso? —
McCreary deu de ombros e pôs um cigarro no canto da boca.

Janzoon inclinou-se, de isqueiro na mão. Estava ainda um pouco


confuso, mas havia admiração em seus olhos, um certo respeito relutante por
aquele homem magro de sorriso oblíquo. Disse com seriedade:

— Aprecio um homem que sabe rir mesmo de um superior. Mas


aconselho-o a não se rir nunca de Rubensohn. Nunca o provoque diante dela.
Ele é o chefão, claro, mas precisa se sentir importante o tempo todo.
Observe-o ao jantar. Observe-o toda vez que houver outras pessoas no
grupo. Ele precisa ter o refletor sobre si, como se estivesse no centro de um
palco.

McCreary encolheu os ombros e deu uma tragada.


— No que me diz respeito, pode continuar assim. Obrigado pelo
conselho.

Janzoon fez um gesto expansivo de protesto.

— Não me agradeça, McCreary. Só quero ajudar. Já lhe disse que


devemos ser bons amigos. E agora vamos jantar. Convém lembrar também
que Rubensohn gosta de pontualidade.

McCreary olhou em volta, perplexo. A mesa estava arrumada no salão,


e um camareiro chinês postava-se à passagem que dava para a cozinha do
navio.

— Pensei que íamos jantar aqui.

— Ah, não, meu amigo! — Janzoon tornou a rir entre dentes e conduziu-
o através da porta do lado oposto. — Aqui jantam os oficiais. Nós somos
hóspedes do grande homem. Jantamos em seu camarote, tendo a encantadora
Lisette por companhia.

— Quem é ela?

A pergunta saíra sem querer, e Janzoon lançou-lhe um olhar rápido,


enviesado, que contradisse sua resposta indiferente.

— Lisette? Uma mestiça de Saigon, a julgar pela cor da pele e pelo


sotaque. Mas se veio de um palácio ou da sarjeta, isso não se sabe. Ela é
agora o que Rubensohn moldou. É seu produto, sua propriedade.

— Foi o que ele me contou — disse McCreary suavemente. — Não sei


se ela pensa da mesma forma.

Janzoon parou de chofre. Segurando McCreary pelo braço, fê-lo


rodopiar e bater com força contra o anteparo de aço. A barba pontiaguda
roçou o rosto de McCreary. Com voz baixa e irritada, disse:

— Escute o que eu lhe digo, seu irlandês! Há dez milhões de mulheres


bonitas de Jacarta a Dilli. Por mim, você pode ficar com todas. Mas nessa
você não toca. Ela pertence ao grande homem e o faz feliz. Enquanto ele for
feliz, nós poderemos viver confortavelmente e enriquecer. Se você der ao
menos um sorriso para ela, terá duas facas enfiadas na garganta: a dele e a
minha! Entendeu?

O sorriso de McCreary foi terno como o de uma criança, e sua fala,


macia como manteiga.

— Claro que entendi. Mas por que haveria de me interessar por uma
mulher fria como essa? Sou um sujeito afetuoso, e gosto de um sorriso, e às
vezes de umas palavras doces na cama.

— Não se esqueça — resmungou Janzoon em tom azedo, largando o


braço de McCreary.

McCreary encarou-o face a face. Na boca ainda havia aquele sorriso


enviesado, mas a raiva chamejava-lhe no olhar. Disse friamente:

— Quero dizer-lhe uma palavrinha no ouvido, comandante.

— O que é?

— No futuro, mantenha suas mãos nos bolsos. Se encostar em mim outra


vez, quebro-lhe o maldito pescoço!

Boquiaberto, Janzoon girou nos calcanhares e, sem dizer palavra, seguiu


para o camarote de Rubensohn.

Ao entrarem, viram Lisette sentada languidamente num sofá debaixo de


um nu chamejante de D’Arezzo. O corpo miúdo e escultural estava envolto
num tecido prateado, e ela usava jóias de jade e esmeralda. Fumava um
cigarro e folheava displicentemente uma revista francesa de moda. Erguendo
os olhos, murmurou um cumprimento e voltou-se novamente para a revista.

“Nem que fôssemos leiteiros”, pensou McCreary mal-humorado,


“lixeiros, ou limpadores de esgotos. Mas em meia hora à luz das estrelas eu
a faria mudar de atitude, morenaço.”

Lembrando-se das recomendações que recebera, voltou a atenção para


Rubensohn.
Este estava vestido tão meticulosamente como se para um jantar de gala,
mas a primeira impressão que dava era a de um sapo de cócoras comprimido
nas vestes de um cavalheiro. O rosto estava ainda mais pálido, depois de
perfeitamente escanhoado.

A pequena boca vermelha parecia uma cereja debaixo do nariz


protuberante. Cumprimentou-os com vivacidade.

— Sentem-se, senhores. Ainda dispomos de alguns minutos antes que


chegue o outro convidado. Tenho algo a dizer-lhes antes disso.

Janzoon levantou os olhos, surpreso. Era evidente que ele, pelo menos,
não esperava mais ninguém antes de levantar âncora. Disse abruptamente:

— Nada de encrencas, espero.

Rubensohn olhou-o com frieza e desprezo.

— Encrencas, comandante? Por quê? Partiremos à meia-noite, os


documentos estão em ordem, o piloto já está contratado. A menos,
naturalmente, que o senhor tenha se esquecido de alguma coisa.

— Não, não, não esqueci. Foi um palpite infeliz.

Afogueado, Janzoon limpou o rosto com o lenço. Rubensohn sorriu ante


seu constrangimento e disse:

— Nosso convidado é um amigo aqui do sr. McCreary.

— Não diga! Como é o nome dele?

— Capitão Nasa.

McCreary quase pulou da cadeira.

— Nasa! Olhe aqui, Rubensohn, se isto é uma brincadeira...

— Absolutamente, sr. McCreary. Uma simples transação comercial. O


capitão Nasa vem receber seu pagamento por serviços prestados.
— Bem, o navio é seu — disse McCreary sem entusiasmo. — Se fosse
meu, não deixaria aquele patife se aproximar. Dava-lhe o dinheiro num canto
escuro e ainda um soco nos dentes, para ensiná-lo.

— Para depois ter os seus também quebrados numa prisão de Jacarta?


Creia-me, McCreary, meus métodos dão melhores resultados.

McCreary sorriu.

— Ah, também creio. Seu dinheiro está aí para prová-lo.

— Ótimo! — exclamou Rubensohn com animação. — Agora, falemos


de negócios. O capitão Nasa vem receber. Infelizmente, agora está exigindo
mais do que havíamos combinado. Mais do que estou disposto a pagar.
Portanto, preciso conversar com ele em particular. Jantaremos com calma, e
depois do café, o senhor, comandante, irá tratar de seus afazeres na ponte de
comando. Quanto a você, McCreary, leve Lisette para o salão e converse
com ela um pouco. Quando acabar minha conversa com o capitão Nasa
mandarei chamá-lo. Entendido?

— Parece que a noite vai ser bem agradável! — disse McCreary.

— Espero que sim, para o seu próprio bem — murmurou Rubensohn


secamente.

McCreary olhou para ele com energia.

— Que quer dizer com isso?

Rubensohn encolheu os ombros e sorriu, contrafeito:

— Que se eu não me entender com o capitão Nasa, o senhor estará de


novo desempregado.

— Quer que o jogue ao mar para o senhor? — perguntou McCreary com


sombria ironia.

— Talvez mais tarde. Por ora, você cuidará de Lisette e o deixará aos
meus cuidados.
— Se quiser, será um prazer!

Virando-se, fez uma inclinação exagerada em direção a Lisette. Ela


ainda folheava as páginas da revista onde todas as mulheres tinham
fisionomias como a sua: frias, belas e inexpressivas.

Cinco minutos mais tarde, o capitão Nasa chegou e teve início o jantar.

Foi uma refeição tensa. O pequeno javanês mostrava-se prudente e


desconfiado, reagindo às mais simples perguntas com um sorriso equívoco.
Janzoon estava visivelmente contrariado. Era um capitão holandês num país
que seus compatriotas já haviam dominado e onde agora eram tratados com
indisfarçado desprezo e, às vezes, com ostensiva hostilidade. Tinha um
navio de grande tonelagem sob seu comando e ansiava por deixar para trás
as luzes do canal e ver-se bem longe dos limites territoriais.

Lisette não tivera a mínima participação na conversa, e McCreary via-


se assaltado pela tentação céltica de apoquentar o policial que estava
sentado sorridente, desdenhando dos ocidentais que tinham de pagar-lhe os
menores préstimos.

Só Rubensohn estava senhor da situação. Conduzia-os, como a um


conjunto de câmara, através das amenidades de uma refeição. Sua voz aguda
e penetrante só elogiava e lisonjeava; lançava um assunto após outro, de
sorte que a hostilidade e o conflito cederam lugar a uma espécie de harmonia
ilusória e passageira, mas suficiente para resistirem até o café e o primeiro
conhaque. Aí, então, Rubensohn despachou-os com naturalidade.

— Lisette, meus senhores, desculpem-nos por uns instantes, o capitão


Nasa e eu temos um negócio a resolver.

Janzoon deixou-os sem dizer palavra. McCreary e a moça subiram a


escadinha para o convés de popa.

O ar estava tépido, impregnado do cheiro da cidade e da floresta, mas


Lisette estremeceu quando McCreary deu-lhe o braço. Enquanto ele a
conduzia à amurada, suas sandálias ressoavam secamente nas chapas de aço
do tombadilho. Ficaram ali debruçados, apreciando as luzes que se refletiam
nas águas paradas e oleosas. McCreary sentia a pele sedosa do braço dela
colada à sua, mas não havia vibração nem correspondência à pressão de
seus dedos. Perguntou com ternura:

— Está sentindo frio, morena?

— Não. Estou muito bem, obrigada.

A voz dela possuía o timbre alto dos mestiços, mas também nela não
havia vida. Era como o soar de pequenos sinos de vidro que se balançavam
à porta dos santuários dos antigos deuses. McCreary conjeturou como soaria
quando ela risse, e há quanto tempo ela não era atingida pela paixão ou pelas
lágrimas. Perguntou-lhe, de novo, no sotaque macio e doce dos habitantes de
Kerry:

— Será que não poderia sorrir para mim de vez em quando e conversar
um pouco para ajudar a passar o tempo? Parece que vamos conviver por um
longo período.

— Que diferença faria para você se eu sorrisse ou ficasse carrancuda?

— Eu me sentiria melhor — disse McCreary alegremente. — Um pouco


mais humano, talvez, e não como um cigano vagabundo sem lareira para
esquentar os pés nem uma esposa para aquecer a cama.

— Já sou paga para fazer isso para um homem. Para dois, seria demais.

Ela falou com simplicidade, sem medir as palavras, olhando através das
águas para, as luzes enfraquecidas de um petroleiro que passava.

— Não se trata de pagamento — retrucou McCreary com um sorriso


alvar. — Sou um pobretão, de forma que o que consigo é por amor, e o que
dou sai de um coração abarrotado e de um bolso vazio. Portanto, estou fora
de cogitação. Existe alguma razão para não me dar o prazer de um sorriso de
vez em quando? Será que o mundo é tão triste que nada a faz rir? Olhe lá...
— Apontou para o lado oposto da baía, onde os rebocadores vinham
puxando o grande navio branco italiano para dentro do canal. — Veja que
visão. Sabe para onde ele vai? Primeiro para Cingapura, depois Colômbia, e
mais tarde para Nápoles...

— Já estive em Nápoles...

— Ah, já esteve? Com certeza ficou num hotel de luxo, na praia, na


melhor suíte que o dinheiro de Rubensohn pôde conseguir.

— Justamente.

— Com todos os malditos garçons se atropelando para servi-la e todos


os malditos vendedores tentando impingir-lhe suas bugigangas.

— Isso mesmo.

— Onde mais já esteve?

Ela ergueu de leve os ombros e enumerou os locais:

— Ah, em muitos lugares... Nova York, Londres, Paris, Cannes, Madri,


Viena.

— E todos se pareciam uns com os outros, não é?

— Decerto.

— Não vê, então, morena, que você não gozou nenhum desses
momentos? Você não conhece o mundo, nem o sabor da felicidade.

— Felicidade? — Ela se demorou na palavra quase com escárnio. —


Não, felicidade não conheço. Mas o mundo, esse eu conheço muitíssimo
melhor que você, McCreary.

— Como é possível, morena, se desde os dezesseis anos eu perambulo


pelo mundo?

— Não precisei perambular. O mundo veio a mim.

— E por que não? Com toda essa beleza morena e enigmática...


Ela não correspondeu ao galanteio como outra mulher o teria feito. Sua
mão permaneceu frouxa e insensível dentro da dele. Disse singelamente:

— No Pavilhão do Pavão não havia segredos. Bastava um homem ter


dinheiro para que todas as portas se abrissem para ele.

— Onde era isso?

— Em Saigon.

— Como você foi parar lá? Foi lá que Rubensohn a descobriu?

— Foi. Eu tinha jeito para agradá-lo, parece, e ele não é fácil de


contentar. Talvez por isso, ele tem satisfação em me apresentar a pessoas
responsáveis, em ver homens beijando minha mão e mulheres admirando
meus vestidos e minhas jóias, enquanto sabe que eu sou aquela que ele
retirou da sarjeta de Saigon.

— E você?

— Eu? — Novamente ele distinguiu em sua voz a música irritante dos


deuses antigos e feios. — Estou satisfeita. E por que não haveria de estar?
Lá no Pavilhão do Pavão eram duzentas mulheres. Aqui eu sou a única, e
muito mais bem paga que elas.

— Até que Rubensohn se canse de você.

— Você poderia fazer mais por mim, McCreary?

— Talvez — respondeu ele serenamente —, se nós nos apaixonássemos


e fôssemos para longe começar vida nova.

Pela primeira vez ele a ouviu rir. Mas não havia alegria na risada.

— Você é um tolo, McCreary.

— Sei disso há muito tempo, morena, mas prefiro a minha tolice à


sabedoria de Rubensohn.
— Por que se juntou a ele?

— Porque me ofereceu um bom dinheiro para fazer a única coisa que


sei: perfurar poços de petróleo.

— Só por isso?

— Por que mais poderia ser?

— Você estava com medo do capitão Nasa.

Foi a vez de McCreary rir — uma gargalhada que estrondeou pelo


porto, sobressaltando os pescadores que chegavam e as aves empoleiradas
nas bóias luminosas. Lisette afastou-se um pouco, espantada.

— Medo dele? Por que iria ter medo de um cara-de-pau como ele? O
máximo que ele podia fazer era me despachar de avião para Cingapura. Eu
já estava esperando por isso, portanto não havia razão para ter medo. Foi aí
que Rubensohn apareceu e me fez uma proposta. Disse-me que convenceria
Nasa a permitir minha extradição a bordo do Corsário. Não era nem mesmo
ilegal, embora não duvide de que Nasa tenha feito isso parecer uma
concessão especial e por ela tenha cobrado um bom dinheiro.

— Mas se não é por sua causa, por que Nasa veio hoje aqui?

— Seja qual for o motivo, morena, diga Rubensohn o que quiser, ele
não veio por minha causa.

— Então por quê?

Havia um tom estranho em sua voz que o intrigou, embora os olhos e o


rosto de boneca nada demonstrassem. Recostando-se à amurada, ele riu para
ela.

— E que lhe importa isso? Ou a mim? É assunto de Rubensohn, e o


dinheiro também é dele. Desde que nos pague, que importa? De uma coisa
esteja certa: Nasa está lucrando mais que qualquer de nós... com exceção de
mim.
Então, tomando-a nos braços, ele a beijou, enquanto ela batia em seu
peito com as pequeninas e frágeis mãos. Manteve-a apertada contra si, até
sentir-lhe toda a frieza desvanecer-se e os lábios corresponderem ao calor
dos seus.
3

Parecia ter decorrido muito tempo. Sentados ambos na coberta de lona


da escotilha, McCreary fumava calmamente, enquanto Lisette arrumava os
cabelos e retocava o batom.

McCreary falou suavemente:

— Agora, já sabemos.

O rosto dela estava nas sombras, de modo que ele não podia perceber
se ela sorria ou franzia o sobrolho, mas sua voz ao responder-lhe não era
mais irritadiça, e sim baixa e forçada.

— Já sabemos o quê? Que você se entusiasma com facilidade por uma


mulher?

— E que você me entusiasma.

— Está bem. Mas o que podemos esperar?

— O que você quiser — respondeu McCreary. — Podemos descer e


voltar para a cidade. É um bom começo.
Ela balançou a cabeça.

— Com a polícia atrás de você e sem dinheiro no bolso?

A mão dele procurou-a na escuridão, mas ela se afastou.

— Então ficaremos aqui, desejando um ao outro, eu tentando dia e noite


manter minhas mãos e meus olhos afastados de você, e você na cama de
outro homem, só porque ele tem mais dinheiro do que eu. É isso o que você
quer?

— Não é o que eu quero, McCreary. É o que eu tenho. Pretendo


conservá-lo até que alguém me ofereça coisa melhor.

— E o amor não é melhor? Mesmo com todos os riscos?

— Amor? — A palavra foi dita em tom de zombaria. — Você chama


isto de amor? Você não é o único homem por quem eu me senti assim, nem eu
a única mulher que o entusiasmou. Seja sincero, McCreary, como eu estou
sendo.

— Então, Rubensohn é de fato o seu dono.

— Ele é o dono só do que paga, de nada mais. Escute, McCreary — sua


voz amornou, e ela pôs a mão pequenina sobre a dele —, em outra época, em
outro lugar, talvez houvesse esperança para nós. Mas aqui, com ele, não é
possível. Você não compreende? Se ele soubesse o que acabou de se passar
entre nós, faria tudo o que estivesse ao seu alcance para nos ferir, para nos
humilhar... até mesmo nos destruir.

— Seria preciso um homem mais forte que Rubensohn para isso —


ponderou McCreary.

— Você acha? Não o conhece como eu. Nada o detém quando quer
alguma coisa.

— Eu também sou um homem decidido — disse McCreary com


vivacidade.
— Você é mais tolo do que eu imaginava — disse ela.

Antes que ele pudesse refutá-la, um camareiro chinês surgiu com passos
abafados no convés para informar que Rubensohn os aguardava.

A primeira coisa que viram ao entrar no camarote de Rubensohn foi o


capitão Nasa tombado sobre a mesa, roncando sonoramente. A altura do seu
cotovelo, um balde de champanha, e à frente, um copo emborcado.

Um regato de bebida derramada pingava da borda da mesa para o seu


colo. Rubensohn estava de pé, perto da vigia, fumando um de seus grossos
charutos.

Lisette olhou para Nasa com espanto. McCrcary praguejou baixinho:

— Santo Deus! Está fora de combate! Bêbado como um gambá!

Rubensohn sorriu.

— Um bom muçulmano nunca toca em álcool. Nasa se esqueceu de sua


crença, e aí está o resultado.

— Terminou seu negócio com ele? — perguntou McCreary.

— Terminei. Ambas as partes ficaram satisfeitas. Fiz servir champanha


para comemorar, mas bem que podia tê-lo economizado.

— Ele não demorou muito para ficar neste estado. Estivemos afastados
só uma meia hora.

Rubensohn lançou-lhe um olhar penetrante, mas os olhos inocentes de


McCreary não denotavam qualquer malícia.

— Esses tipos não têm muita resistência à bebida — disse Rubensohn


categoricamente. — Agora ele nos deixa com outro problema: como levá-lo
para casa?

— Muito simples — disse McCreary rapidamente. — Chame um


betjak, jogue-o lá dentro, e diga ao motorista para levá-lo à delegacia de
polícia.

— Não é tão simples assim, McCreary.

— Por quê?

Rubensohn fez um gesto de impaciência.

— Porque ele veio aqui sem que seus superiores soubessem, a fim de
negociar um suborno. Se chamarmos um betjak até o navio, o motorista
saberá de onde ele saiu. Se for interrogado, acabaremos sendo também... e
temos de partir dentro de uma hora.

— Ele não está em condições de ir sozinho para casa — observou


McCreary, sorridente.

— Não, mas podemos removê-lo do navio até a área do mercado. Lá


podemos metê-lo num táxi e mandá-lo embora.

— É verdade.

— Então — disse Rubensohn —, sugiro que o carregue daqui o mais


rápido possível. Já empestou demais o ambiente.

— Espere aí! — disse McCreary. — Por que eu, e não um dos seus
tripulantes, um marinheiro?

Rubensohn sorriu de leve.

— Porque agora eles estão preparando o navio para largar. São uns
tipos ignorantes, e não iriam compreender por que haveriam de tomar conta
de um policial bêbado. Além disso, McCreary, você está em débito comigo,
e peço-lhe apenas este pequeno favor. — Deu uma risadinha abafada e
continuou, com sua voz esganiçada de pássaro: — E porque, finalmente,
você agora tem a oportunidade de jogá-lo ao mar, se tiver vontade.

McCreary olhou-o por um momento, ponderando sobre a questão.


Depois, disse friamente:
— São quatro as razões que você me apresentou, Rubensohn, e a única
válida é que estou em débito com você. Por ela, eu faço.

Curvou-se sobre o capitão, que roncava, enfiou um braço por baixo de


seu ombro e ergueu-o vigorosamente da cadeira. O peso total de Nasa sobre
ele parecia-lhe o de um saco de carvão.

— Coloque-lhe o fez, Rubensohn, e ampare-o enquanto o levanto.


Preciso de ajuda até chegar à escadinha.

Rubensohn teve dificuldade para colocar o fez na cabeça oscilante de


Nasa, e McCreary, em parte fazendo-o andar e em parte arrastando-o,
carregou-o até a porta como a um velho amigo que se leva a casa depois de
uma farra.

Lisette ficou de lado para deixá-lo passar e observou-o cambalear pelo


corredor até a escadinha.

— Leve-o para bem longe da praia — disse Rubensohn. — Se der


muito trabalho, jogue-o no canal.

— Eu também já estive bêbado — disse Mike McCreary —, e não faria


isso nem ao meu pior inimigo. Vamos, Nasa, meu velho, veja se não pode
andar um pouco e aliviar esse peso dos meus ombros.

E, assobiando desafinadamente, foi tropeçando escada abaixo, enquanto


o capitão Nasa respirava forte e ruidosamente em seu pescoço.

A tripulação estava por demais atarefada desengatando as mangueiras


para dar-lhes mais do que um simples olhar, e pouco depois do Corsário as
docas estavam quase desertas. Mas havia sempre o perigo de serem
encontrados por uma patrulha em ronda pelo cais, e McCreary decidiu entrar
diretamente no conjunto de armazéns a fim de, embora dando uma volta mais
longa, sair no início da área do mercado, onde os betjaks faziam ponto.

De início, tentou forçar Nasa a andar, mas as pernas do homenzinho


balançavam frouxas como as de um fantoche e seus sapatos envernizados se
arrastavam na poeira, enquanto era carregado pelas sombras das rampas de
carga dos armazéns. Por mais de uma vez, McCreary teve de parar e
encostar-se a um muro de madeira ou a um poste de concreto para tomar
fôlego e aliviar a carga de seus ombros. Tinha os olhos e os ouvidos sempre
alerta, e imaginou o que responderia se fosse abordado pela polícia do cais.

Por fim, passou os armazéns e chegou a um estreito caminho ladeado de


mato, em cuja extremidade podia distinguir o formato de uma ponte de
bambu, o brilho da água de um canal e um grupo de luzes amarelas. A julgar
pelo cheiro, e pelo rumor distante de vozes e latidos de cães, o mercado
noturno estava em plena atividade.

Decidiu que seria preferível deixar de pretender fazer o capitão andar e


carregá-lo nos ombros — bem mais fácil do que arrastar um peso morto,
como vinha fazendo nos últimos quinze minutos.

Protegido pela sombra de uma grande figueira, parou e deixou o capitão


escorregar até o chão. Respirou fundo, massageou os músculos e afrouxou a
gravata. Percebeu que tinha as roupas encharcadas de suor, grudadas ao
corpo. Também percebeu algo mais.

Nasa não roncava mais. Nem ao menos respirava.

Abaixou-se rapidamente e encostou o ouvido ao peito do outro. Não


sentiu as batidas do coração. Tomou-lhe o pulso. Nada. As mãos estavam
frias, embora o ar estivesse quente. McCreary procurou atrapalhadamente o
isqueiro no bolso, acendeu-o e aproximou-o do rosto de Nasa. Os olhos
estavam abertos, fixos. A boca estava frouxa, e um filete de saliva secara no
queixo. Pelos sinais mais elementares, o capitão estava morto.

Com rapidez, McCreary devassou-lhe os bolsos. No superior, encontrou


uma carteira. No bolsinho da calça havia um punhado de notas de baixo
valor. Um lenço, um maço de cigarros americanos e um isqueiro japonês
barato. Abrindo a carteira, McCreary esmiuçou-lhe rapidamente o conteúdo.
Cartas, um cartão da polícia, o retrato de uma mulher com o filho, quinhentas
rupias em notas — e nada mais. Limpou a carteira com o lenço e recolocou-
a cuidadosamente no lugar. Obedecendo a um impulso brusco, passou o
isqueiro e os cigarros para os próprios bolsos.
Em seguida, levantou o corpo de Nasa, segurando-o por baixo dos
braços, e arrastou-o para trás do tronco da figueira. O fez havia caído.
Apanhou-o do chão, tirou-lhe cuidadosamente a poeira e arrumou-o na
cabeça de Nasa, por cima de seus olhos fixos. Limpou as mãos no próprio
lenço e recuou para a viela. A passos largos, retomou o caminho por onde
viera.

Ao atingir a proteção das sombras dos armazéns, parou, protegeu-se


num canto recuado e acendeu um cigarro: o cigarro e o isqueiro de um morto.
As mãos tremiam-lhe e a pequena chama amarelada tremulava à frente de seu
nariz. Um calafrio percorreu-o como se alguém tivesse passado por cima de
sua sepultura. Sentiu que o suor do corpo esfriara, como se a febre estivesse
voltando. Encostou-se à parede e tragou profundamente, lutando para colocar
os pensamentos em ordem.

“Pense, McCreary! Pense! Pense! Não fique aí parado como um idiota.


Um homem morreu em seus braços. Você está encrencado até o pescoço.
Nasa morreu, mas ninguém morre por causa de meia garrafa de champanha.
Muita gente nem chega a se embebedar a ponto de roncar. É uma mentira
deslavada daquele maldito Rubensohn. E aqui está outra. Que Nasa veio
receber. Rubensohn disse ter-lhe pago, mas você só encontrou nos bolsos
alguns trocados, que não seriam suficientes para pagar um jeitinho num
pedido de extradição, e nem mesmo a metade de quaisquer outros serviços
que Rubensohn possa ter obtido dele. Outros serviços? Quais? Importantes a
ponto de terem feito com que Nasa aumentasse o preço. Rubensohn lida com
petróleo. Petróleo é um negócio traiçoeiro. É preciso ter amizade em certos
setores do governo... Um policial não tem amigos, mas tem poder... poder
demais numa república vistosa mas de pouco valor como esta, onde a
extorsão e o suborno estão na ordem do dia. Então, ele aumentou a parada. E
Rubensohn o matou. Envenenou-lhe a bebida, ou talvez o tenha forçado, sob
a mira de um revólver, a engolir o veneno, pois é sempre mais fácil para um
homem morrer inconsciente do que sentir uma bala dilacerando-lhe as
entranhas. O resto foi pura encenação: champanha derramado pelo queixo e
pela camisa e conversa suficiente para que um irlandês impulsivo como
McCreary o livrasse do sujeito. Se surgissem complicações, McCreary seria
responsabilizado. Matara-o para recuperar seu passaporte. Já havia uma
acusação de violência contra ele em Pakanbaru. Se tudo corresse bem,
Rubensohn o conservaria para perfurar o poço e entregar-lhe um milhão
numa salva de prata. Que sujeito esperto! É como a moça bem disse,
McCreary, você é mais idiota do que parece.”

Fumou o cigarro até quase queimar os dedos. Jogou-o ao chão e


esmagou-o com o salto. Acendeu outro cigarro. As mãos estavam agora mais
firmes, e a cabeça, menos anuviada. Via claramente o que tinha de fazer.

Poderia abandonar Rubensohn imediatamente. Voltaria para a cidade,


tomaria no dia seguinte o avião das duas para Cingapura, esperando que a
polícia não o alcançasse nesse meio tempo. Contudo, provavelmente o
alcançariam. Aí, então, jogá-lo-iam numa prisão e começariam a “trabalhar”
nele, daquela forma impiedosa e sem propósito dos asiáticos, usando varas
de junco, até matarem-no ou arrancarem-lhe uma confissão à força. Depois,
matá-lo-iam do mesmo modo.

Nada teria a ganhar com isso. Entretanto, com Rubensohn, talvez


obtivesse algum lucro. Se pudesse conseguir forças suficientes para sorrir e
firmar o andar, poderia voltar para o barco e dizer a Rubensohn que Nasa
estava a caminho de casa, roncando, e Rubensohn acreditaria, porque lhe
convinha acreditar nele. E depois?... Faria o serviço para o qual fora
contratado. Observaria e disporia as coisas para um dia ter Rubensohn onde
desejava, olhando para a boca de um revólver e implorando piedade.
Apanharia Lisette e o dinheiro e faria Rubensohn lembrar-se de Nasa,
deixando-lhe aquele isqueiro ordinário como recordação.

Sabia que era uma ideia doida. Teve até humor bastante para rir desse
projeto. Contudo, dar-lhe-ia o ensejo de planejar, empenhar-se e — o que
um celta desabrido acima de tudo necessitava — de lutar contra alguém.

Lentamente e com deleite, fumou o resto do cigarro. Arrumou a gravata,


alisou o blusão amarrotado e, a passos enérgicos, voltou ao Corsário,
assobiando a marcha de Brian-na-Kopple, que fora o maior de todos os
lutadores de Kerry.

Chegando ao vapor, encontrou Rubensohn caminhando pelo tombadilho,


com um charuto na boca e as mãos para trás, na atitude de um Napoleão
meditativo. McCreary pôs-se a andar ao seu lado, enquanto Rubensohn o
interrogava.

— Voltou mais cedo do que eu esperava. Ele lhe deu algum trabalho?

— Nenhum. — O tom de sua voz era extremamente natural. —


Empurrei-o para dentro de um betjak e paguei ao homem para ir rodando até
que ele acordasse. Ameacei-o com uma surra se largasse Nasa antes que ele
estivesse no seu juízo perfeito.

— Magnífico, McCreary. Magnífico! Quando ele acordar já estaremos


saindo do canal na direção leste.

— Espero que estejamos bem mais longe ainda — replicou McCreary.

Rubensohn não percebeu a ironia. Andava agora mais rápido, com a


cabeça projetada para a frente como se estivesse abrindo caminho para uma
nova conquista. Tirou o charuto da boca e indicou com ele o mar.

— Temos grandes perspectivas à nossa frente, McCreary, maiores do


que imagina. Sabe por que estou aqui nestas águas malcheirosas do fim do
mundo? Por dinheiro? Estou abarrotado de dinheiro. Enquanto viver, posso
ter tudo e do melhor sem precisar mover um dedo. Mas isso não basta. Um
homem precisa de mais do que isso. Precisa sentir-se desafiado, ser
estimulado para pôr em ação as forças que tem dentro de si. E aqui — abriu
os braços num gesto teatral —, este mar de três mil ilhas é um dos poucos
lugares do mundo onde ainda se pode fazer isso. A riqueza da Europa foi
construída aqui pelos portugueses, holandeses e ingleses. A Europa agora
está agonizante, asfixiada pelo formalismo, pela diplomacia e pelos
controles que os homens se impõem uns aos outros por uma vã ilusão de
segurança. Você sabe o que eu sou, McCreary?

— Ainda não encontrei a palavra exata — respondeu ele mansamente.

— Pois vou dizer. Sou um pirata, um corsário, o que de mais próximo


existe dos príncipes mercadores que contratavam mercenários, faziam suas
armas e navegavam por todos os portos do mundo sob suas bandeiras. Estas
ilhas, e talvez a América do Sul, são os únicos lugares do mundo onde um
homem tem liberdade para respirar e construir seu império com seu próprio
talento, sua coragem e seu dinheiro. Você compreende?

— Creio que sim. É uma ideia grandiosa. É preciso tempo para refletir.

Rubensohn jogou a cabeça para trás e gargalhou naquele seu tom agudo
e sibilante.

— Você terá tempo, McCreary. Vou lhe mostrar coisas que superam as
das mil e uma noites de Harun al-Rachid. Verá um príncipe em cujos rios
correm jóias, que come em pratos de ouro e mantém quinhentas mulheres só
para seu prazer. Você verá o roteiro dos escravos, onde a beleza do mundo é
posta à venda. Eu lhe ensinarei a multiplicar o dinheiro, como sonha todo
jogador...

Silenciou de repente, por um momento, como que embriagado pela


própria eloquência. A iluminação da ponte de comando batia em cheio sobre
seu rosto, e, ao fitá-lo, McCreary divisou os olhos brilhantes de loucura de
um visionário e a boca franzida e cruel de um califa. Era óbvio que ele
acreditava em suas próprias-palavras, e McCreary estava um tanto propenso
a também aceitá-las.

Abruptamente, a exaltação cessou e Rubensohn voltou a ser ele mesmo,


o homem de olhar duro e esperto, dando instruções a seu subordinado.

— Perfure-me um poço, McCreary. O mais cedo que puder, e não se


arrependerá. Já há um equipamento completo e uma série enorme de peças
sobressalentes engradados no porão. Pode começar a trabalhar assim que
desembarcarmos.

— Quando vai ser isso?

Rubensohn deu uma risada e balançou a cabeça.

— Depois de três dias em alto-mar eu lhe mostrarei o mapa.

— Não confia muito nos outros, não é? — observou McCreary.

Rubensohn olhou-o ironicamente:


— Não confio em ninguém em matéria de dinheiro e mulher.

— E espera que seu pessoal confie em você?

A resposta de Rubensohn veio cortante como uma lâmina.

— Não me interessa se confiam ou não, McCreary. Espero que


produzam pelo que lhes pago. Se não o fizerem, eu me desforro... no
momento ou dez anos mais tarde. Tenho excelente memória. Está bem claro?

— Bastante — respondeu McCreary com des-preocupação. — É que


sou novato aqui e gosto de saber as regras do jogo. Não sou de
temperamento agressivo, mas não gosto de pensar que os outros estão me
passando a perna.

Rubensohn deu de ombros e afastou-se. A conversa estava encerrada. O


assunto era banal e não mais lhe interessava. McCreary sufocou a cólera e
encostou-se à amurada, observando a reduzida atividade no cais.

Viu a tripulação recolher as mangueiras e, depois, afastar-se. Viu as


pequenas figuras escuras paradas ao lado dos postos de amarração,
aguardando o momento de soltar as amarras. Viu o piloto subir a bordo. Era
um javanês que se assemelhava incrivelmente ao capitão Nasa. A prancha de
desembarque estava sendo erguida, e os marinheiros aguardavam no convés
junto ao oficial de plantão.

Sentiu o lento estremecer dos motores em funcionamento, ouviu a nota


estridente do apito do contramestre e a agitação da água quando as hélices se
movimentaram.

Lenta e cuidadosamente, o barco começou a deslizar pelo canal,


deixando para trás os vultos escuros dos barcos de pesca, e ultrapassou as
luzes bamboleantes das bóias, tomando a direção da lua nascente, a leste,
rumo a uma ilha e um mar desconhecidos.

O ar estava carregado, e McCreary sentiu-se subitamente frio e


desabrigado. Pensou no capitão Nasa morto, estendido sobre as raízes da
figueira. Quando um marujo descalço passou com passos abafados por ele
no convés, pareceu-lhe que alguém caminhava por cima de seu cadáver.
4

O céu era um deslumbramento de azai; o mar, um espelho liso, rompido


apenas pela agitação produzida pela passagem do navio. Java estava
bastante longe, ao sul, ao longo do nono paralelo. A bombordo achava-se um
amontoado de ilhas, meio encobertas devido ao mormaço. Os seus nomes
encerravam mistérios exóticos: Pulau Pulau, Kemudjan, e o elevado pico que
se projetava das águas denominava-se Karimunjawa. Com o binóculo,
podiam ver a mata verde do interior, a faixa dourada que eram as praias e as
pequeninas canoas dos nativos, do formato de aves.

Avançavam para leste, bem sobre o sexto paralelo, em direção do


estreito de Macássar e à extremidade sul das ilhas Celebes. Os motores
roncavam regular e ininterruptamente. Era um dia claro mas de indolente
monotonia. Um toldo fora estendido por sobre o convés posterior e uma
piscina de lona armada pouco além.

McCreary e Lisette passaram a maior parte do primeiro dia estendidos


sobre toalhas, debaixo do toldo, em trajes de banho, mas Rubensohn ficara
sentado numa espreguiçadeira, imaculado em sua camisa de seda e calças de
linho, como se temeroso ou envergonhado de expor a pele branca e flácida
ao sol. Um camareiro chinês aparecia a intervalos para servir cerveja
gelada. E quando o jovem Arturo terminou seu turno, vestiu também seus
shorts e se reuniu ao pequeno grupo sob o toldo.

Com franca admiração, olhou para o corpo esguio e perfeito de Lisette e


tentou, a princípio, cortejá-la com os elogios típicos dos latinos. Mas ao
pressentir o olhar glacial de Rubensohn, enrubesceu e enveredou,
embaraçado, por uma palestra trivial. Lisette, por sua vez, mantinha-se
indiferente e serena. McCreary sentia-lhe o desdém silencioso pelo jovem
pretendente e pelo próprio Rubensohn.

Desde aquele breve interlúdio na noite anterior não tinham mais tido
qualquer contato ou intimidade. Mesmo ao nadarem juntos na piscina, os
olhos frios de Rubensohn os observavam. Quando estavam sob o toldo,
Rubensohn dominava a conversa, afastando qualquer assunto de que não
participava, entremeando cada incidente com uma referência que lhe dizia
respeito. Aquela grosseria irritava McCreary, mas já aprendera a controlar-
se. Queria que Rubensohn se sentisse satisfeito, e não ficasse desconfiado.
Queria Lisette, também, mas sabia que tinha de aguardar a ocasião propícia.

Enquanto isso, decidira entabular relações diplomáticas com os oficiais


italianos: o jovem Arturo, de olhos brilhantes e sem malícia, orgulhoso de
seu primeiro posto; Agnello, florentino de rosto de cavalo, que cuidava dos
motores, um tipo tristonho que vagava pelo convés a tomar ar com um trapo
de algodão nas mãos, o macacão encharcado de suor e de óleo; Guido,
napolitano baixo e rechonchudo, de olhos buliçosos e rosto moreno de árabe.

Guido era o radiotelegrafista, e McCreary dedicou-lhe especial


atenção, rindo-se de suas primeiras piadas pornográficas, às quais
acrescentou uma ou duas de seu repertório. Guido possuía o entusiasmo
peculiar aos napolitanos pela obscenidade, e McCreary tinha em mente dar
uma espiada discreta na cabina de rádio do Corsário. Já com Alfieri,
primeiro-oficial de bordo, não fora tão bem sucedido. Era um veneziano
alto, soturno, que administrava o navio com fria eficiência e só tinha boas
maneiras para com Rubensohn e Lisette. McCreary considerava-o um
ambicioso, desses que não escolhem os meios para atingir os seus fins.

Janzoon, por seu lado, esforçava-se para reatar relações com ele. Na
tarde do primeiro dia, desculpou-se desajeitadamente; depois, levou
McCreary até a ponte de comando e fez-lhe uma preleção, como a um turista,
sobre o equipamento. Depois, convidou-o a ir ao seu camarote, serviu-lhe
uma dose dupla de uísque com soda, e, falando com sagacidade e
comedimento, sondou-o sobre uma possível aliança.

— Acho que agora você já está percebendo como são as coisas por
aqui, hem?

McCreary deu de ombros e sorriu-lhe por sobre o copo.

— Estou aprendendo. Um pouco aqui, um pouco ali. Você compreende.

— Claro que compreendo — disse Janzoon.

— A gente aprende que o grande homem age como quer e não dá bola
para ninguém. E só se interessa por seu orgulho e sua pequena. Para que
mais ele liga?

— Para mais nada.

— Exato! — disse Janzoon com voz grossa e enfática. — Portanto, a


gente faz aquilo que nos pagam para fazer e, no tempo que nos sobra, um
pequeno comerciozinho à parte, é ou não é?

McCreary fez uma careta de pesar.

— Nunca fui bom comerciante, Janzoon. Se fosse, eu agora teria muito


dinheiro. Meu bisavô foi negociante de cavalos lá em Kerry, mas
infelizmente não herdei essa habilidade.

O punho enorme de Janzoon gesticulou no espaço, afastando o


argumento.

— Não é preciso habilidade, somente prática. Olhe, vou lhe mostrar.

Levantou-se e abriu um armário por trás da cadeira de McCreary. Da


prateleira superior, tirou uma meia dúzia de maços de notas e brandiu-as sob
o nariz de McCreary.
— Sabe o que é isto?

— Dinheiro — respondeu McCreary. — Conheço pelo cheiro.

— Papel! — declarou Janzoon, com desdém exagerado —, a menos que


você saiba onde gastá-lo. Rupias indonésias. Não dariam para um copo de
cerveja em Cingapura. Em Londres, só serviriam para limpar o traseiro. Mas
lá, nas ilhas, você pode comprar ouro e jade com elas, se souber onde
procurá-los, e diamantes trazidos pelos rios do interior. Com essas coisas a
gente consegue dólares ou francos suíços. É assim que se faz.

— Sei disso — disse McCreary —, mas não vejo por que quer um
sócio. Além do mais, meu compromisso com Rubensohn é por pouco tempo.
Assim que terminar, vou embora.

Janzoon inclinou-se. Sua voz baixou a um sussurro confidencial, e ele


bateu com o dedo roliço no joelho de McCreary.

— Por que você pensa que lhe falei sobre o mercado e as oportunidades
que se tem aqui? Para lhe mostrar por que deve ficar.

— Depende de Rubensohn, não é?

— Depende de você — disse Janzoon, com ênfase gutural. —


Rubensohn precisa de auxiliares. Ele não confessa, mas precisa. Se ele
verificar que você age da maneira que ele quer, ficando calado e mantendo-
se afastado da moça, não há nada que você não possa obter. Acredite em
mim, McCreary!

Ergueu-se de novo, e dessa vez trouxe do armário um saco de camurça


maior que seu punho e despejou o conteúdo sobre a mesa. McCreary viu uma
miscelânea de pedras, lapidadas e em bruto, faiscando sob o raio de sol que
se escoava da escotilha. Janzoon segurou-as nas mãos e deixou-as escorrer
lentamente entre os dedos.

— Ainda tenho mais duas sacolas destas, McCreary, obtidas numa única
viagem. Lucro de cem por cento por pechinchar nos bazares e especular a
percentagem no mercado negro.
— Então por que quer dividir comigo?

Janzoon não se atrapalhou com a pergunta, refletiu McCreary, como se


tivesse sido instruído a esse respeito. Respondeu com arrebatamento:

— Porque dois homens juntos fazem três, quatro vezes mais que um só.
É tudo uma questão de tempo. Sou comandante de navio. O tempo que me é
permitido passar no porto para tratar de assuntos particulares é a metade
daquele de um oficial comum ou de um marujo. Com alguém como você, com
liberdade de ação para fazer contatos, podemos conseguir grandes negócios.
Grandes, mesmo.

McCreary sorriu, satisfeito, e serviu-se de outra dose do uísque do


comandante.

— Gostei da ideia, Janzoon, mas não vejo como arranjar tempo para
negócios quando devo estar fazendo perfurações.

— Para conseguir petróleo você gastará uns dois ou três meses. Depois
disso, será o que você decidir.

— Vou pensar no assunto — declarou McCreary cordialmente. — Vou


pensar com muita simpatia. Obrigado pela sugestão.

— De nada — falou Janzoon. — A ajuda é mútua. Saúde!

— Saúde!

Beberam juntos como uma dupla de conspiradores, e McCreary saiu


para o convés, onde o sol estava abrasador, com duas novas ideias a zumbir-
lhe na cabeça. A primeira era que Rubensohn estava tentando, por
intermédio de Janzoon, angariar sua simpatia para torná-lo membro
permanente do clube. Aquela conversa sobre dinheiro fácil era pouco natural
e estava em desacordo com a índole dos dois homens.

A segunda, e mais importante, era que aquela aventura petrolífera


representava um projeto de curta duração — seis semanas, dois ou três
meses, no máximo. Só esse detalhe já dava margem a desconfiança. Não se
agia dessa forma. Petróleo era negócio de vulto, um negócio em expansão.
Abria-se um poço, depois perfuravam-se outros. Começava-se a expandir as
propriedades e a desobstruir novas áreas. Pensava-se em termos de
oleodutos e armazenagem de estoque, de contratos com petroleiros e
ancoradouros, de proteção política e questões de capital. O petróleo era
negócio para uma vida inteira, mesmo para as empresas aventureiras.
Entretanto, ali se falava de abrir um poço em dois meses, e depois negociar
moedas e pedras nos bazares dos portos. Não tinha sentido. Ou será que
tinha?

Encostou-se à amurada e ficou por longo tempo contemplando a esteira


de espuma e o bater da água contra o casco do Corsário. Achou que não lhe
davam o seu verdadeiro valor. Era um irlandês cabeçudo, com sede de
viagens e uma inclinação pelo lado mais agradável da vida e do amor. Não o
comprariam com algumas notas sujas. Ele enxergava tão longe quanto os
outros.

Julgou compreender agora por que haviam matado o capitão Nasa.

Atirou o cigarro por sobre a amurada e observou-o rodopiar nas águas


esverdeadas e na espuma branca. Caminhou lentamente para a popa do
navio, a fim de se reunir a Rubensohn e Lisette sob o toldo.

Para sua surpresa, Lisette estava só, sentada numa espreguiçadeira


listrada, folheando uma revista. Seus olhos estavam ocultos por elegantes
óculos escuros. Ele instalou-se confortavelmente na poltrona a seu lado e
indagou despreocupadamente:

— Onde está Rubensohn?

Sem levantar a cabeça da revista, ela respondeu, inexpressivamente:

— Foi para o camarote. Achou que o calor estava forte demais. Disse
que ia descansar até a hora do jantar.

— Ótimo. Assim podemos conversar um pouco.

— Só por um instante. Eu também vou descer.


— Escute, morena! — Sua voz denotava insistência e raiva. — Já
ensaiamos esse trecho, lembra-se? Conheço de cor o diálogo. Já estamos no
segundo ato, cenário novo, ação nova, complicações novas. Você participa
dele, queira ou não.

— Já lhe disse antes, McCreary. Não estou interessada. Não quero me


comprometer. Você sabe por quê.

— É fantástico, querida — disse McCreary suavemente.

Pela reação dela, parecia que lhe tinha informado as horas.


Tranquilamente, ela virou outra página da revista e continuou a olhar as
fotografias e as legendas. Disse com simplicidade:

— Seja o que for, não é assunto meu.

— Escute, Lisette. Ontem à noite...

— Foi um momento de loucura que é melhor esquecer.

— Você disse que eu era um tolo e...

— E agora você descobriu que é mesmo? Por favor, não me meta nas
suas loucuras. Agora, McCreary, você vai embora daqui ou vou eu?

— Eu vou. — Ergueu-se da cadeira e por um momento ficou a


contemplá-la. O tom áspero de sua voz denotava decepção e frustração. —
Você passou por maus pedaços, Lisette, e tem medo de perder o pouco que
conseguiu. Mas você ainda vai ter pedaços piores pela frente, e verá então
que Rubensohn não lhe dará nenhuma ajuda. Ele jogará você às feras e ainda
ficará assistindo ao espetáculo. Aí, então, você se lembrará do que eu lhe
disse. Estou tentando ajudá-la, mas não conseguirei se não contar com a sua
ajuda.

Então, ela finalmente tirou os óculos escuros, e ele viu que seus olhos
estavam sombrios e inquietos. Fitou-o por algum tempo e balançou a cabeça
lentamente.
— Ninguém pode ajudar você, McCreary. Nem a mim tampouco.
Estamos ambos perdidos. A única diferença entre nós é que eu sei disso e
você não. Agora, deixe-me em paz, pelo amor de Deus!

Ele girou sobre os calcanhares e saiu praguejando em voz baixa. Ela o


viu percorrer rapidamente o convés e galgar a escada que conduzia à cabina
do radiotelegrafista. A revista caiu-lhe das mãos, e ela continuou sentada por
longo tempo, paralisada e de olhar fixo, enquanto o calor lhe fugia do corpo
dourado e a friagem começava a envolver o seu coração assustado.

Guido, o telegrafista de bordo, estava sentado confortavelmente à


espera do boletim da rádio de Cingapura. Quando McCreary introduziu a
cabeça na cabina, ele ergueu os olhos, e seu rosto trigueiro abriu-se num
sorriso de boas-vindas.

— Entre, amico! Entre! S’accomodi! Fique à vontade. Aceita uma


bebida?

— Até que não é má ideia, Guido. — McCreary sentou-se no beliche


enquanto o outro abria uma garrafa de Pilsener e espumava-a num copo. —
Não está ocupado?

— Ocupado? — Guido gesticulou operisticamente e apanhou outra


garrafa de Pilsener. — Nada importante... o noticiário em inglês transmitido
de Cingapura. Depois, nada mais além do boletim meteorológico das sete e a
confirmação às onze. A menos que alguém queira telegrafar ou telefonar à
sua pequena.

— Eu, não — disse McCreary com convicção. — Desisti de mulher.


Salute, Guido!

— O que foi que você disse? — Guido estava tão espantado com o que
ouvira que se esqueceu de corresponder ao brinde. O copo de cerveja
estacara no ar, a meio caminho dos lábios. — Desistiu de mulher?!
Impossível! Isso não é normal. Já tentei. Não dá certo. A única maneira de
me poupar é vir para bordo. Mesmo aqui, tenho de me lembrar de que ainda
sou homem. Veja!
McCreary virou-se para admirar a fileira dupla de artistas de cinema,
com seios volumosos, colada no tabique aos pés do beliche. — Gosta delas?

— Pelo menos, assim dão menos dor de cabeça — comentou McCreary


pesarosamente.

— Menos dor de cabeça, certo, mas também menos prazer. Non è vero?

McCreary deu uma risadinha. Depois do duelo com Lisette, a


concupiscência cômica do pequeno napolitano era uma mudança refrescante.

Guido inclinou a cabeça e olhou para ele como um papagaio curioso.


Indicou intencionalmente com o polegar o convés de popa.

— Por falar em mulher, amico, essa que está aí... que acha dela?

— Fria — disse McCreary com plena convicção. — Fria como um


peixe. Não vale a pena.

Guido concordou com um vigoroso movimento de cabeça e esfregou a


ponta do polegar na do indicador, no gesto que significa “dinheiro”.

— É a única coisa que as esquenta, amico. Por isso é que não servem
para sujeitos como você e eu, que gostamos de um pouco de amor sincero,
sem termos de pagar por cada beijo e cada agradinho. Tinha uma garota lá
em Reggio que...

— Quem sabe... — cortou McCreary rapidamente. — Quem sabe


podíamos ouvir as notícias de Cingapura, hem?

— Claro, claro! Vou passar para o alto-falante.

— Ótimo.

Guido ligou o interruptor, e após breves instantes a voz do locutor fez-


se ouvir:

“... E não se registraram outras demonstrações estudantis. Um último


comunicado do nosso correspondente em Jacarta declarou que as
autoridades policiais indonésias estão procurando localizar um antigo
empregado de uma companhia petrolífera, Michael Aloysius McCreary,
implicado no assassinato de um funcionário graduado do departamento
policial de Jacarta. McCreary, que devia ser extraditado por causa de uma
contravenção cometida na zona de Pakanbaru, está desaparecido. Uma busca
contínua está sendo realizada no aeroporto e nas docas, a fim de evitar que
McCreary abandone o país...”

McCreary adiantou-se e desligou o aparelho, fazendo o locutor sair do


ar.

Guido olhou para ele.

— É de você que estão falando, hem?

— Sou eu mesmo, Guido.

— Matou um tira, hem? Puxa! — Metade da população de Nápoles, no


íntimo, tem admiração por bandidos, e os olhos de Guido arregalaram-se. —
Que aconteceu, amico? Ele roubou a sua namorada ou...?

— Não o matei, Guido.

Guido bateu-lhe paternalmente no ombro.

— Você é quem sabe, compar’! É assunto exclusivamente seu. Pode


confiar em Guido.

McCreary virou-se bruscamente e encarou-o.

— Posso mesmo? Ótimo! Posso confiar em você para não contar a


ninguém o que ouviu, por uns dois dias?

— Confiar em mim? Senz’altro! Podia até jurar pelas cinzas da minha


mãe, se soubesse quem ela foi.

— Sua palavra me basta, Guido — disse McCreary com um sorriso. —


Mas repito que não fui eu quem o matou.
Levantou-se e deu com um punho cerrado na palma da outra mão.
Agora, estava de fato em maus lençóis. Seu nome seria transmitido a todos
os departamentos policiais do Oriente, como se fosse um assassino.
Quisesse ou não, passara a fazer parte do Clube dos Párias. Era hora de
aprender o regulamento e começar a segui-lo à risca.
5

Na manhã do terceiro dia, Rubensohn chamou McCreary ao seu


camarote. O comandante já estava lá, bem como Lisette. Rubensohn estava
curvado sobre um mapa estendido na mesa.

Cumprimentou-o com efusão e apontou para o mapa.

— O grande dia das revelações, McCreary. Chegue aqui e veja.

Os três curvaram-se sobre o mapa, enquanto Rubensohn apontava o


percurso do último trecho da viagem. Havia um ligeiro tom de triunfo em sua
voz.

— Estamos aqui, agora, as Celebes ao norte, Sumbawa bem para o sul.


À nossa frente — esta ilha comprida aqui — está Selajar, que é a entrada
para o mar de Banda. O comandante Janzoon me informou que tocaremos a
extremidade sul lá pelo meio-dia, hoje. Daqui... — rumou com o dedo
ligeiramente para o norte, seguindo um curso que se afastava do amontoado
de ilhas na extremidade sul das Celebes, parando quase no centro do mar de
Banda. Com um lápis, fez um círculo em volta da área, e McCreary viu que
era um pequeno arquipélago em cujo centro havia uma ilha um pouco maior.
Esforçou-se por ler a diminuta caligrafia do cartógrafo, mas Rubensohn
adiantou-lhe o nome: — chegamos ao nosso destino: a ilha de Karang Sharo.

— É bem afastada de tudo — observou McCreary.

— Uma vantagem que não me escapou — replicou Rubensohn. —


Tecnicamente, a ilha é território indonésio. Para todos os efeitos práticos, é
controlada por um sultão, cujo poder é absoluto em Karang Sharo e ilhas
circunvizinhas.

— Foi aqui que fizeram aquele levantamento?

— Exatamente.

— Como soube que havia petróleo?

Rubensohn respondeu sem hesitação:

— Devo isso ao comandante Janzoon. Lá pela década de 1930 a ilha


fora relacionada como área de pesquisa promissora pela Bataafsche
Petroleum Maatshappij. Com o advento da guerra e a posterior restrição da
franquia da Bataafsche por parte da República da Indonésia, nada mais foi
feito. O caso foi arquivado e esquecido. Quando Janzoon chamou minha
atenção para isso, fiz uma proposta ao sultão, obtive sua permissão para um
levantamento e posteriormente consegui a concessão, em bases bastante
favoráveis, do governo de Jacarta.

— Essa parte me interessa de perto — disse McCreary serenamente. —


Como conseguiu isso? Não se esqueça de que eu sou um homem do petróleo
e sei como é difícil, mesmo para grandes empresas, ampliar suas
concessões.

— Questão de prestígio, McCreary. Amigos poderosos, sabe como é.

— Sei — disse McCreary com despreocupação. — Foi uma pergunta


idiota, de fato. A propósito, como é o porto nesse lugar?

Rubensohn observava-o, e em tom desconfiado, replicou:


— Por que pergunta?

McCreary deu de ombros.

— Estava pensando no futuro: instalações na praia, tanques para


armazenamento, ancoradouro para petroleiros. Bombear petróleo é uma
coisa. Mas ele precisa ser transportado para ser colocado no mercado. Num
lugar destes — no fim do mundo —, é uma questão de suma importância.

Rubensohn franziu o cenho e disse categoricamente:

— Não é problema seu, nem meu. Nossa tarefa é cavar um poço.

— Depois, você o passa adiante como um negócio em pleno


funcionamento, hem?

— Você e esperto — disse Rubensohn. — Muito esperto, mesmo.


Parece que escolhemos o homem certo, hem, Janzoon?

Janzoon deu uma risadinha asmática e bateu com o vasto punho no


ombro de McCreary.

— Foi o que eu disse assim que o vi, não foi, Rubensohn? Bom sujeito,
inteligente e de visão.

— Gosto de saber onde piso — disse McCreary com naturalidade. —


Quem é o comprador. Rubensohn? É evidente que você deve ter um. Do
contrário, não teria tido todo este trabalho.

Rubensohn não mais sorria. Seus lábios estavam comprimidos. Os olhos


estavam inexpressivos e nublados como os de um pássaro. A raiva tornou
ainda mais estridente sua voz de morcego.

— Isso é assunto meu, McCreary.

— Não! — A palavra saiu-lhe cortante como uma chicotada. — É meu


também, Rubensohn. Quero saber.

Janzoon ficou boquiaberto. Os olhos de Lisette dilataram-se de espanto.


Rubensohn e McCreary encararam-se, tensos e sem sorrir, por sobre a
mesa. Finalmente, Rubensohn falou. As palavras saíam-lhe cuidadosa e
deliberadamente calculadas, como fichas numa mesa de jogo.

— Você é um perfurador, McCreary. É pago para escavar o solo. O


controle de qualquer empresa é mantido pelos acionistas e diretores. Se
você tem outras ideias a esse respeito, gostaria de ouvi-las agora.

— Está bem. Vou dizê-las. Você me contratou como perfurador. Eu faria


o meu serviço e você me pagaria na ficha. Não se fariam perguntas. Ótimo!
Acontece que você me deu outro serviço que não fazia absolutamente parte
da combinação. Na minha opinião, preciso de um novo contrato.

— Não compreendo o que você está querendo insinuar.

— Você quer que eu me explique aqui — indagou McCreary com


serenidade —, ou prefere que o faça em particular?

— Aqui, neste instante.

— Pois bem! Quem obteve a concessão para você em Jacarta foi o


capitão Nasa. Não sei quais os documentos que ele arranjou. Não sei nem se
têm valor, mas acredito que possam resistir o suficiente para você passar o
negócio adiante e cair fora. Nasa tentou elevar o preço e você acabou
envenenando o homem. Levei-o para fora do navio e ele morreu nos meus
braços. Deixei-o debaixo de uma figueira, a mais ou menos um quilômetro
do cais. Para terminar, a rádio de Cingapura mencionou o meu nome como
suspeito do assassinato. Isso não me agrada. Não gosto de ficar na mira do
cano de uma espingarda como um incauto. Acho que deve rasgar o contrato
atual e redigir outro.

Os olhos de Rubensohn não haviam abandonado por um segundo o rosto


de McCreary.

— Saia, Lisette! Espere no convés até eu mandar chamá-la — ordenou


ele.
Ela saiu rapidamente. McCreary abriu-lhe a porta e fechou-a à sua
passagem. Ao virar-se, viu que Rubensohn empunhava uma arma. O cano
parecia um olho preto, imóvel, fixando seu coração. Rubensohn sorria apati-
camente.

— Você está na mira do cano de uma espingarda agora, McCreary. A


morte está muito próxima de você. Tem mais alguma coisa a declarar?

McCreary deu um sorriso de desdém. Apanhou um cigarro, bateu uma


das pontas na unha do polegar e acendeu-o com o isqueiro de Nasa. Soprou
uma baforada de fumaça no rosto de Rubensohn e murmurou:

— Guarde isso, homem, e falemos de negócios. Você cometeu um


engano. Por que não o reconhece e começamos tudo de novo?

— E se eu não concordar?

— Bem, provavelmente me estourará os miolos. Mas... — apontou para


o mapa — você terá de procurar muito para encontrar um outro perfurador.

Janzoon enxugou o rosto com o lenço e disse, resolutamente:

— Ele tem razão, Rubensohn. Precisamos dele, do contrário nossos


planos ficarão prejudicados. Que mal há em conversarmos?

Lenta, muito lentamente, a tensão foi-se atenuando. Rubensohn pôs a


arma sobre a mesa e acomodou-se numa cadeira. Janzoon também sentou-se
e, por fim, McCreary fez o mesmo. Recostaram-se, mantendo as mãos nas
bordas da mesa e os olhos baixos, cada qual esperando que o outro abrisse o
jogo. Janzoon foi o primeiro a falar. Sua voz grossa denotava insegurança e
embaraço, mas finalmente conseguiu enunciar as palavras:

— E se McCreary nos dissesse o que pretende? Podemos partir daí.

— Está bem, McCreary. Fale — disse Rubensohn.

McCreary fumou placidamente por alguns instantes e então começou:


— A primeira coisa que quero é estar inteiramente a par do projeto,
fazer uma vistoria nos documentos da concessão e examinar toda a
correspondência trocada. Com isso, vocês ficarão sabendo que não estou
trabalhando no escuro. Depois, participar de qualquer empresa ou sociedade
agora existente para controlar a concessão e seu funcionamento.

— Quanto? — perguntou Rubensohn, positivo.

— Quanto Janzoon vai receber?

— Vinte por cento.

— Quero trinta — declarou McCreary com jovialidade. — Mesmo


assim, você ainda terá a maioria, Rubensohn.

— Mais alguma coisa?

— Sim. Participar de todas as negociações de venda e retirar meu


quinhão diretamente dos compradores.

— Como é que você espera impor suas exigências?

McCreary ergueu os ombros e abriu as mãos num gesto eloquente.

— Simplicíssimo. Se não concordar, não terá o seu petróleo. Se me


passar a perna, contarei aos compradores uma certa história sobre um
policial que foi subornado e mais tarde assassinado. Podem não me acreditar
logo de início, mas ficarão alertados e farão sindicâncias junto ao ministério
em Jacarta. Aí, então, verão que na realidade você não tinha o que lhes
vender. — Sorriu amavelmente através da fumaça. — Acho que isso não lhe
convém.

A boca vermelha de Rubensohn retorceu-se num sorriso contrafeito.

— Boa jogada, McCreary. Mas você se esqueceu de um detalhe: você e


um foragido. Está sendo procurado por assassinato.

— Você também — retrucou McCreary com calma —, embora talvez


demore um pouco mais para prová-lo.
— Isso é demais! — explodiu Janzoon na sua voz gutural. — Ele
chegou por último e só com uma ameaça já quer receber mais que eu... eu,
que...

— Cale-se, Janzoon! — O tom peremptório de Rubensohn interrompeu-


o bruscamente. — McCreary sabe negociar. Sabe que se deve sempre pedir
um pouco mais do que se está disposto a receber. Digamos, vinte por cento,
McCreary, e estamos conversados.

— Digamos vinte e cinco por cento, e eu me esquecerei do grave


prejuízo causado à minha reputação.

— Não! — Janzoon avançou a cabeça por sobre a mesa, enraivecido.

— Negócio fechado — disse Rubensohn. — As ações não são suas,


Janzoon, são minhas.

Janzoon retornou hostilmente ao silêncio.

— Vou ter acesso a todas as informações e documentos?

Rubensohn concordou com a cabeça:

— Vou lhe dar uma pasta cheia deles. Pode examiná-los sem pressa.

— Vamos passar para o papel o que ficou assentado, como é de praxe,


não é?

— Sim, antes de atracarmos em Karang Sharo. Mais alguma coisa?

— Não, creio que e só isso.

— Bem — disse Rubensohn com animação. — Agora, então, vamos


conversar sobre o que nos traz aqui. O que irá ocorrer quando chegarmos à
ilha.

Enquanto Rubensohn prosseguia nos detalhes da ação a ser levada a


cabo, McCreary escutava apenas em parte. Ao mesmo tempo, uma pergunta o
intrigava e preocupava: por que Rubensohn lhe entregava com tanta
facilidade uma fortuna, a ele, quando tinha poderes para o destruir?

O próprio Janzoon não parecia conhecer a resposta, pois até o término


da reunião permaneceu de olhos baixos, carrancudo, e não dirigiu uma única
palavra a McCreary.

Rubensohn, porém, tinha muito a dizer. Seu relato foi animado, conciso
e estritamente comercial. McCreary não pôde deixar de, embora com
relutância, admirar-lhe a ponderada exposição e a estratégia cheia de
imaginação.

— Em primeiro lugar, nossa concessão foi fornecida pelo governo


indonésio. Como. McCreary astutamente salientou, trata-se de um documento
dúbio, arrancado à força de um oficial graduado sobre quem o capitão Nasa
possuía um dossiê embaraçoso. Não obstante, é autêntico, embora eu
suspeite de que o ministério ignore a sua existência. Quem o emitiu preferirá
esquecê-lo por algum tempo e não o reconhecerá quando a questão vier à
tona; a essa altura, já estaremos com nossos lucros no bolso e deixaremos os
problemas legais para os que nos sucederem. Nosso problema imediato é
com o sultão de Karang Sharo. Como já disse, tem autoridade absoluta sobre
seu território. Mesmo que o pessoal de Jacarta quisesse, não conseguiria
controlá-lo. Já basta o trabalho que os rebeldes das Celebes estão dando; só
isso os manterá atarefados pelos próximos dez anos.

A primeira vez em que visitei a ilha, encontrei boa receptividade da


parte do sultão. Estava disposto, mediante certa quantia, a dar-nos uma
concessão e a conseguir-nos mão-de-obra. Levando em conta o valor da
concessão, o preço pedido era ínfimo — jóias, rádios, várias novidades
européias, até mesmo um pequeno carro, embora mal haja uma estrada na
ilha em que se possa usá-lo.

“O aspecto importante é que ele é um déspota primitivo. Temos que nos


aproximar dele cerimo-niosamente. Como estrangeiros prestando tributo a
um homem cujo título é ‘Umbigo do Universo’. Faremos isso. Tão bem
quanto nos for possível. Recebê-lo-emos a bordo, e ele, por sua vez, nos
receberá em palácio. Mais tarde, vamos tentar obter dele um documento com
a rubrica do palácio, dando-nos uma concessão em seu próprio nome.
Depois, se tivermos sorte, poderemos começar a trabalhar.”

— Quanto tempo você espera que durem essas preliminares?

— Um dia ou dois, no máximo. Em seguida, você poderá iniciar a


descarga dos materiais e instalar um acampamento permanente. A propósito,
entre os documentos que vou lhe entregar há uma relação completa do
equipamento e dos suprimentos. Pode conferi-la quando tiver tempo. Foi
feita cuidadosamente, com a ajuda de peritos. Acho que você encontrará tudo
o que precisa.

— Estou certo que sim — disse McCreary em tom de cumprimento. —


Começaremos então a trabalhar a fim de perfurar um poço. Quando chegará
o comprador, e de onde?

— O comprador é Scott Morrison. Você o conhece?

McCreary assobiou. Scott Morrison era um nome sobejamente


conhecido no mercado independente de petróleo. Era um mero especulador,
sempre de olho nos pequenos concessionários, pronto, no momento
adequado, a entrar num negócio deficiente de capital mas muito promissor.
Adquiria-o na baixa, elevava o financiamento, levantava o mercado e caía
fora de novo, com uma operação triplamente lucrativa e sem arriscar mais
do que o capital inicial. E as probabilidades estavam sempre de seu lado.
Tinha o melhor assessoramento que podia comprar e o melhor faro para
negócios no ramo.

McCreary riu entre dentes, e Rubensohn franziu o cenho com irritação.

— Qual é a graça, McCreary?

— Apenas esta: Morrison também é pirata, não é? Já fez das suas.


Quero ver como você irá se arranjar.

— Como nós iremos nos arranjar — corrigiu Rubensohn rapidamente.


— Somos sócios agora, McCreary, já se esqueceu?
— Não, não me esqueci. Só estou me divertindo com a piada enquanto
posso. Mais tarde vai perder a graça.

— Ainda bem que você compreende.

— Onde está Morrison agora? Quando irá aparecer?

— Navegando — disse Rubensohn. — Taiti, Bougainville, Nouméa,


Sydney. Depois aportará na Nova Guiné para ver algumas operações rio Fly
acima. Ele insiste em fazer as inspeções pessoalmente. Por isso é que
precisamos ter alguma coisa para mostrar-lhe.

McCreary fez uma careta.

— Ele é esperto. Se eu estivesse no lugar dele, faria o mesmo. Acha


que irá aceitar seus documentos de Jacarta por seu valor nominal?

— Basta farejar petróleo para aceitar concessões escritas até em papel


higiênico. Além do mais, só o fato de estarmos trabalhando abertamente já
será prova suficiente da nossa boa fé. Seja como for — a boca polpuda de
Rubensohn sorriu com sardónica satisfação —, daria uma fortuna para ver a
cara dele quando o governo indonésio expulsá-lo da ilha.

— Parece que não simpatiza muito com ele.

— Já tive negócios com ele antes — disse Rubensohn sombriamente. —


Há dez anos, quando eu lutava para conseguir um financiamento, ele me pôs
para fora do seu escritório. Esperei bastante para me desforrar, mas acho
que chegou a hora. Depende de você, McCreary.

— Ainda bem que me disse — murmurou McCreary. — Isso me deixa


mais satisfeito.

Rubensohn olhou-o fria e especulativamente. Apanhou o revólver de


sobre a mesa e reteve-o por um momento frouxamente entre as mãos. Depois
colocou-o de volta no bolso. O tom de sua voz era estudadamente calmo:

— Você sabe dar as cartas, McCreary. Eu não regateio apostas. Mas não
eleve demais o valor delas. Pode ser perigoso.
McCreary deu de ombros com naturalidade.

— Sou um homem modesto, Rubensohn. Contento-me com um joguinho


tranquilo. Desde que não o alterem.

Mas durante aquele tempo todo, os atrozes demônios irlandeses ficaram


rindo furtivamente dentro dele. “Se você soubesse, Rubensohn, como as
minhas apostas são altas!”
6

McCreary passou as duas horas subsequentes em seu camarote,


manuseando uma pasta cheia de documentos e correspondência que
Rubensohn lhe entregara. Na correspondência, poucas novidades encontrou.
Scott Morrison estava interessado em comprar um campo petrolífero em
Karang Sharo para explorá-lo, desde que o primeiro poço perfurado desse
bons resultados. Haviam-lhe garantido que toda a documentação ser-lhe-ia
apresentada, e uma data aproximada fora fixada para um encontro no próprio
local.

O que acima de tudo interessou a McCreary foi o fato de que Rubensohn


não assinara nenhum documento. Tudo fora remetido por um tal João da
Silva, diretor-gerente da Southeast Asia Mineral Research Ltd., com
endereço registrado em Cingapura. Rubensohn havia tido a preocupação de
anexar uma cópia do memorando e estatutos dessa companhia, dos quais
constava que havia sido constituída em Cingapura doze meses atrás e que
seus diretores eram John Mortimer Stavey, Wilhelm Kornelis Janzoon e João
da Silva, cada um deles com igual número de ações de um capital registrado
de cinquenta mil libras esterlinas.

De Rubensohn, nem sinal. Mas isso por enquanto não queria dizer nada.
Os nomes eram usados pro forma pelos advogados nas formalidades de
constituição de firmas. A informação de valor real estaria contida na relação
dos diretores e no registro dos acionistas, mas disso não havia o menor
indício.

O documento a seguir era bem mais valioso: provava a extensão da


confiança de Rubensohn e evidenciava sua necessidade de uma resolução
rápida. Era um instrumento de venda, em que a Southeast Asia Mineral
Research constava como vendedora e a Scott Morrison Enterprises como
compradora. Permitia a venda conjunta da concessão petrolífera de Karang
Sharo e de toda a instalação prevista à época da assinatura. Haviam deixado
espaço para a inclusão das cifras, e tanto o documento quanto o espaço
reservado às adições haviam sido assinados, em nome da companhia, por
João da Silva, tendo como testemunha Elisabeth Mary González.

Havia também um espaço em branco para a assinatura de um segundo


diretor no dia da conclusão, a qual, percebeu McCreary com interesse, seria
a de Janzoon, e não a de Rubensohn.

A cláusula mais significativa do acordo era a final: a venda seria


efetivamente realizada por meio de aviso telegráfico informando que o
cheque do comprador havia sido depositado e creditado na conta do
vendedor no Chase Manhattan Bank de Nova York.

Uma vez ajustadas as cifras, toda a transação poderia ser concluída


imediatamente, enviando-se mensagens pelo rádio para Nova York, para
confirmação e pagamento.

Feito isso, Rubensohn poderia levantar âncora e zarpar, mais rico em


vários milhões de dólares, deixando a Morrison e seus advogados uma
batalha de dez anos com os meandros da legislação internacional e as
responsabilidades de pessoas jurídicas registradas em territórios
estrangeiros. Mesmo assim, seriam os signatários que sofreriam a
penalidade, e não Rubensohn. Era de se supor que se considerassem bem
pagos por esse risco. Era fraude em grande escala, mas tudo indicava que
Rubensohn poderia levá-la a cabo.

Tudo dependia, naturalmente, do documento final: a concessão dada


pela República da Indonésia à companhia de Cingapura. Era uma obra de
quinze páginas escritas em malaio, com uma tradução inglesa autenticada,
encapada em papel manilha, e carimbada com o maciço selo da república: o
simbólico pássaro garuda, com dezessete penas em suas asas estendidas e
oito na cauda aberta.

Não havia dúvidas quanto à autenticidade do documento em si. O


verdadeiro problema estava em sua origem e nas assinaturas apostas ao pé
da página.

Qualquer funcionário com acesso aos arquivos poderia elaborar um


contrato fidedigno, rabiscar as assinaturas necessárias e nele afixar o sinete
governamental. Mas se lhe faltasse autoridade para tal, as assinaturas e os
sinetes não teriam valor para mais ninguém a não ser ele próprio. Aquele
que o comprasse arriscava toda a sua empresa num pedaço de papel sem
qualquer valor.

A jogada de Rubensohn, entretanto, baseava-se em dois simples fatores


psicológicos. O primeiro era que se estava trabalhando às claras e com a
aquiescência pessoal do monarca local. O mais matreiro dos advogados não
poderia duvidar da legalidade de tal fato. O segundo era que todos os
homens de negócios desconfiam de todos os governos. Ofendem-se com as
restrições que lhes são impostas pelos administradores e estão sempre
receosos dos fiscais e dos políticos. Quando lhes é entregue um documento
assinado, selado e desembaraçado, é com a maior satisfação que o
trancafiam de vez nos arquivos.

McCreary sorriu com amarga admiração ante a audácia e a astúcia de


Rubensohn. O homem era de fato um pirata — inteiramente amoral e
destemido.

E como a maioria dos de sua laia, tinha chance tanto de acabar com uma
bala nas costas quanto com uma coleção de quadros e reputação de
filantropo.

Pensando em balas, McCreary pensou em si e na sua vitória por demais


fácil no camarote de Rubensohn. Recolocou desordenadamente a papelada
dentro da pasta, acendeu um cigarro e estirou-se no beliche para considerar
sua situação.
Havia obtido para si um quarto do bolo de aniversário, mas fizera-se
cúmplice de uma aventura criminosa. Era o primeiro gosto amargo que
sentia. Levara uma existência acidentada, lutara e amara, às vezes,
impensadamente, mas até então havia conseguido manter as mãos limpas.
Agora, encontrava-se num dilema. Queria privar Rubensohn do dinheiro e da
garota. Mas parecia ser-lhe impossível consegui-lo sem descer ao nível
dele. Não havia solução imediata para o problema, de forma que afastou o
pensamento, na esperança de que o futuro lhe indicasse o caminho a seguir.

O problema seguinte já não foi tão facilmente posto de lado. Teria de


encontrar um meio de continuar vivo.

Até que o poço fosse completado, ele estaria a salvo, por ser
imprescindível. E depois?... Não apenas seria dispensável, como também se
tornaria um constante risco para Rubensohn e uma despesa inútil em sua
contabilidade. Ficaria sozinho numa ilha. Seu único vínculo com o mundo
exterior seria o próprio barco de Rubensohn. Seus únicos amigos... lembrou-
se então de que não tinha amigos. Era inteiramente desenraizado, sem que
ninguém se interessasse pelo fato de ele estar vivo ou morto.

Ainda ruminava essa verdade quando a porta do camarote se abriu e


Lisette entrou.

Fechou cuidadosamente a porta e trancou-a.

Aproximou-se rapidamente dele e postou-se junto ao beliche. Tinha as


faces lívidas, as mãos tremiam-lhe, e sua voz era um misto de pavor e raiva,
ao dizer, num arroubo:

— Por que você fez isso, McCreary? Não podia guardar para você o
que sabia e o que tinha acontecido? Não vê que ele não perdoará jamais o
que você fez?

McCreary tirou o cigarro da boca e sorriu.

— Para lhe ser franco, morena, acho até que ele está sendo muito
camarada. Deu-me uma quarta parte dos lucros e o cargo de diretor.
— Deus do céu! — Os olhos de Lisette marejaram-se de lágrimas de
contrariedade. — Você não para de fazer tolices? Ainda não sabe o tipo de
homem que ele é? Pode encher o seu colo de dinheiro, os seus bolsos de
diamantes, mas nunca o perdoará. Ficará esperando pelo dia em que possa
enfiar uma faca nas suas costas, e ainda a torcerá até você gritar, pedindo
misericórdia. Mas da parte dele não haverá nenhuma. Por que você não
atendeu a meu pedido? Por quê? Por quê?

— Meu São Patrício! — exclamou McCreary com ternura. — Então


você gosta de mim! Como é que pode existir um palhaço como eu! Você
gosta de mim!

Ergueu-se na cama e tomou-a nos braços. Ela se agarrou a ele


desesperadamente, e seu corpo, colado ao dele, tremia com profundos
soluços.

Ele a manteve junto a si, roçando-lhe os cabelos com os lábios,


afagando-a e reconfortando-a.

— Vamos, meu bem! Chore se sente necessidade, mas não vamos


transformar aquele sapo asqueroso do Rubensohn num elefante. Ele não é
Deus Todo-Poderoso, para controlar a vida e a morte. Não há nada que ele
possa nos fazer se tivermos a coragem de enfrentá-lo.

Nem bem acabara de pronunciar estas palavras e ela o afastou


bruscamente, dizendo com impetuosidade, sem conseguir refrear as lágrimas:

— Não fale assim! Já disse que você não o conhece como eu. Veja! —
Desabotoou a túnica chinesa de gola alta e deixou-a cair dos ombros.

Com expressão de espanto e revolta, McCreary viu que as costas e os


seios dela estavam riscados de vergões finos e salientes.

— Ele me fez isto ontem à noite. Dava risadas enquanto me batia. Disse
que era para eu saber que meu corpo era para o prazer dele e não para ser
visto pelos outros no tombadilho. Está vendo agora que tipo de homem ele
é? Está vendo?
McCreary olhou demoradamente para ela com compaixão e ternura.
Depois sentiu um aperto no estômago, e o ódio subiu-lhe à garganta como se
fosse bílis. Seu olhar endureceu, e a boca comprimiu-se. Muito suavemente,
curvou-se e beijou-lhe os ombros, ajeitou a túnica sobre eles e abotoou-a,
enquanto ela o observava com olhos perturbados e interrogativos. Em
seguida, ele a fez sentar-se no beliche, enquanto lhe dirigia a palavra com
brandura e deliberação, num tom de voz que ela desconhecia nele:

— Eu vou apanhá-lo, Lisette. Não agora, porque aqui neste navio sou
tão indefeso quanto você. Por isso, eu rio, como e bebo ao lado dele, e
deixo-o sonhar com o que vai fazer comigo depois que eu deixar de ser útil.
Um dia, então, eu o atacarei. Primeiro, vou quebrá-lo inteirinho de pancadas,
depois o matarei, por você.

Ela o olhou com uma ternura desalentada e balançou a cabeça.

— Você não conseguirá, McCreary. Outros tentaram e terminaram do


mesmo modo. O dinheiro e o poder servem de couraça para ele. É poderoso
demais para ser atingido. Ele o mataria antes que você pudesse se
aproximar.

McCreary sorriu.

— Você não compreende os irlandeses, meu bem. São uma raça antiga e
sinistra, com extraordinários poderes de sobrevivência. Viram Herodes, o
Grande, morrer infestado de vermes nas entranhas, viram Nero soluçante,
implorando a um escravo que o matasse, e o lorde protetor da Inglaterra
atirado à sepultura com repolhos e frutas podres. Um sujeito como
Rubensohn pode ser comido por eles como café da manhã e ainda os deixará
com fome.

Fez com que ela se levantasse e beijou-a de novo, demorada e


apaixonadamente, fazendo-a ir ao banheiro recompor as faces manchadas de
lágrimas, para que Rubensohn nada percebesse quando a mandasse chamar.

Ao voltar, seu rosto dava a mesma impressão vazia, de máscara, que


exibira em seu primeiro encontro, mas havia calor e gratidão em seus olhos.
Ele abriu a porta para ver se o caminho estava livre, fez com que ela
saísse rapidamente e observou-a afastando-se — uma criatura pequena e
rebelde, com vergões nos ombros e as chagas do mundo no coração.

Seu perfume ainda pairava no camarote e em suas roupas, mas ele não
prestou atenção ao fato. Deitou-se no beliche e, com o isqueiro do capitão
Nasa nas mãos, pensou em matar Rubensohn.

Logo depois do almoço, quando todos menos a turma de serviço se


haviam recolhido para escapar ao pior período do calor, ele subiu até a
cabina do telégrafo sem fio, para falar com Guido. Encontrou o pequeno
napolitano de cuecas, espichado no beliche, com um copo de cerveja à altura
da mão, um cigarro na boca e uma revista barata equilibrada nos joelhos.

Recebeu McCreary com um sorriso e um gesto teatral de boas-vindas.

— Entre, amico. Beba uma cerveja! Sente-se e fique com uma parte das
minhas mulheres. Só tenho estas agora, mas estão à sua disposição.

McCreary sorriu e arrancou-lhe a revista das mãos.

— Espere até chegarmos a terra, Guido! Conheci sujeitos que ficaram


malucos de tanto ler essas coisas.

— Mas eu não leio! — protestou Guido. — Só olho, sonho e rôo as


unhas.

McCreary sorriu e instalou-se na cadeira de Guido. Colocou os pés no


beliche, acendeu um cigarro e olhou para Guido com um interesse trocista.

— Mais algumas novidades de Cingapura. Guido?

— Nenhuma. — Guido balançou a cabeça enfaticamente. — Tenho


controlado todas as transmissões, mas não falaram mais nada. Será que já
acharam o assassino?

— Duvido.
McCreary soprou alguns anéis de fumaça no ar enquanto estudava seu
próximo movimento. Precisava desesperadamente de alguém em quem
pudesse confiar, e o pequeno radiotelegrafista parecia a pessoa mais
indicada. Mas, se cometesse um engano, estaria liquidado. Não teria
nenhuma chance de sobreviver. Guido observava-o com olhos vivos e
inteligentes. Disse com argúcia:

— Você está num dilema, compar’. Quer falar sobre um assunto, mas
não tem certeza de poder confiar aqui no Guido, não é?

— Exatamente, Guido — respondeu McCreary serenamente. — Se eu


estiver enganado a seu respeito, posso me considerar um homem morto.

Os lábios de Guido esboçaram um assobio mudo.

— É grave assim, é?

— Se é, Guido!

Guido girou os pés para fora do beliche e sentou-se na borda dele.


Falou com calma e rapidez, ilustrando o que dizia com gestos bem latinos.

— Ouça-me, amico. Vou explicar-lhe uma coisa. Você sabe o que eu


sou: napoletano! Você já deve ter ouvido dizer que somos uns mentirosos,
trapaceiros, que somos capazes de vender nossas próprias mães por um
maço de cigarros. Não é verdade. Quando não gostamos de uma pessoa —
sicuro! —, procuramos tirar o maior partido dela. Mas se alguém é
simpático fica sendo um compar’ — um amigo. Dividimos com ele nossa
cama, nossa comida e nosso vinho. Escondemos o amigo da polícia ou de um
marido raivoso. Se estiver ameaçado, nós o defendemos. É preciso que você
compreenda isso. Para mim, você é simpatico. Você não entra aqui com pose
de importante como muita gente aí. Entra com um sorriso. Bebe da minha
cerveja, eu fumo os seus cigarros. Você me chama de Guido. Acho que pode
confiar em mim, é ou não é?

— Obrigado, Guido — disse McCreary com efusão.


Passou, então, a contar-lhe tudo, desde o início, em Pakanbaru, até o
que sucedera com Lisette no camarote, momentos antes. Falou-lhe de suas
intenções e das dificuldades que teria para conseguir realizá-las. Ao
terminar, a fisionomia de Guido mostrava-se contraída pela raiva, e seus
olhos escuros estavam sombrios.

— Mamma mia! Che covo di ladri! Que bando de patifes! Você está
mais enrascado do que eu pensava. Pode contar comigo para qualquer coisa,
você já sabe.

— Por enquanto não há nada que você possa fazer, Guido. Fique atento
às mensagens do rádio e depois me conte. Tenho trabalho pela frente quando
chegarmos a Karang Sharo. Mas quero que você fique em contato comigo e
de olho em Lisette. Assim que puder, eu conto a ela que você sabe. Pena eu
não ter uma arma.

A fisionomia de Guido imediatamente se iluminou.

— Eu tenho uma, amico. Não a uso desde a guerra, mas está sempre
comigo, para o caso de topar com a pequena errada na casa errada, sabe
como é.

Escorregou do beliche e pôs-se a vasculhar uma mala velha até


encontrar uma automática curta e grossa e dois pentes de munição. A arma
estava cuidadosamente lubrificada. McCreary experimentou o maquinismo,
introduziu uma bala na agulha e puxou a trava de segurança. Colocou a arma
no bolso da calça. Seus olhos brilhavam de gratidão ao estender a mão para
Guido.

— Obrigado, Guido. Não me esquecerei disto. Quando esfolarmos


Rubensohn, você também terá o seu quinhão.

Guido deu de ombros.

— Esqueça-se disso. Cuide de você e da moça.

— Sua face abriu-se numa careta de simpática lubricidade e cutucou


McCreary no peito. — É para você ver, amico! Nunca se sabe. Uma dona
fria como aquela e de repente vira um fogaréu, como conhaque numa bomba!

— Você só pensa em besteira, Guido — disse McCreary com uma


risadinha. Empurrou o homenzinho para dentro do beliche novamente e saiu
para a brutal canícula dos trópicos. Permaneceu algum tempo debruçado na
amurada, contemplando a corcova verdejante de Selajar, que se afastava
para oeste.

Sentia-se melhor. As perspectivas já não eram tão sombrias. Tinha


aliados — Guido e Lisette —, e ao enfiar a mão no bolso, sentiu, com alívio,
a rija arma.
7

Na véspera do dia em que deviam chegar a Karang Sharo, Rubensohn


convocou sua equipe para uma conferência noturna.

Lá se achavam McCreary, Lisette, o capitão Janzoon e os oficiais de


bordo — todos, com exceção do jovem Arturo, que estava de guarda na
ponte de comando. Sentaram-se em círculo no convés posterior sob um céu
de estrelas suaves e baixas. Rubensohn estava expansivo. Fez vir champanha
e cigarros, e falava com muito mais encanto e ponderação do que McCreary
teria achado possível num homem tão grosseiro.

Depois de sentir que todos se achavam à vontade entre si e com ele


próprio, entrou com animação no assunto.

— Amanhã, meus senhores, desceremos a terra; Karang Sharo.


Devemos ficar lá por algum tempo, talvez seis semanas, possivelmente oito.
Todos vocês participarão do trabalho que vamos realizar. Terão a seu cargo
a responsabilidade de manter boas relações com os nativos e, por meio
deles, com seu governante. Agora... — Rubensohn gesticulou enfaticamente
com o charuto, e os demais curvaram-se atentamente em sua direção. —
Vamos ancorar ao largo, porque não existem instalações portuárias. Temos
cinquenta toneladas de equipamento para descarregar — uma parte irá em
nossos próprios salva-vidas, o restante será transportado para terra em
barcos que estarão à nossa espera.

McCreary olhou-o penetrantemente. Era a primeira vez que ouvia falar


de um agente de Rubensohn na ilha. Rubensohn percebeu-lhe o olhar rápido
e interrogativo e sorriu.

— Alguma pergunta, McCreary?

— Não, não! Eu estava imaginando — McCreary pôs de lado a ironia


— como vamos conseguir desembarcar dois geradores, equipamento de
bombear e seiscentos metros de estruturas metálicas.

— Temos alguém tratando disso para nós — disse Rubensohn. —


Chama-se Pedro Miranda. É um mestiço português de Timor, casado com
uma moça de lá. Tem uma espécie de posto comercial em Karang Sharo. Ele
fala o dialeto local e um pouco de inglês, e dá-se bem com as autoridades do
palácio. Combinei com ele para nos servir de intérprete, de mediador e
fornecedor de mão-de-obra. Se você, McCreary, ou qualquer de vocês, tiver
algum problema, trate o caso com ele. Entendido?

Houve um murmúrio de aquiescência no pequeno grupo.

Rubensohn prosseguiu. Sua voz estridente tinha um toque de humor


sardónico.

— Alguns de vocês já visitaram a ilha anteriormente. Sabem que o povo


é uma mistura de famílias que emigraram de Bali, de Lombok, das Celebes e
de Ceram. As mulheres são bonitas, e os homens, temperamentais. Vocês
sabem também que quaisquer “arranjos” para sua comodidade deverão ser
feitos por intermédio de Miranda, e que as ofensas ao código familiar
poderão trazer consequências desastrosas. Por esse motivo, todo aquele que
não for europeu deverá regressar ao navio antes da meia-noite, com exceção
dos que estiverem destacados para trabalhar no acampamento com
McCreary. A presença de mulheres a bordo é terminantemente proibida. Isto
aqui é um navio, não um prostíbulo. Caberá ao oficial de guarda zelar pelo
cumprimento desta ordem. Qualquer transgressão será imediatamente
relatada ao comandante.
— A ordem se estende aos oficiais também? — perguntou Alfieri com
sua voz fria e impertinente.

— A todos os oficiais — disse Rubensohn com energia. — Podem fazer


os “arranjos” que bem entenderem, desde que não seja a bordo, e que isso
não os impeça de trabalhar no dia seguinte. Por falar nisso, não temos
médico a bordo. Na ilha também não há. A malária é endêmica aqui,
portanto, antes de desembarcarmos, todos receberão tabletes de quinino, e
tanto o grupo da ilha quanto o do navio usarão mosquiteiros à noite.

Observando-o à luz das estrelas, escutando-lhe as ordens concisas e


lógicas, McCreary não pôde mais uma vez deixar de admirar suas
qualidades de administrador e estrategista. Se era assim que ele tratava os
seus negócios, não seria de estranhar que tivesse feito fortuna. Se planejasse
com igual minúcia uma vingança, pobre daquele que tivesse em mira... A voz
elevada de Rubensohn deu continuidade ao assunto.

— Nossa primeira tarefa é transportar para a ilha o equipamento e


providenciar um acampamento no local onde McCreary irá perfurar. Em
seguida, temos de erguer a torre do poço de petróleo, instalar os motores e
geradores e construir depósitos. Há mão-de-obra suficiente na ilha, mas
inexperiente, de forma que você, McCreary, poderá recorrer a Agnello e ao
pessoal da sala de máquinas para ajudá-lo no que for preciso.

— A instalação é que vai dar mais trabalho — disse McCreary. — Uma


vez montada, a não ser por acidente, é claro, só necessitará da manutenção
normal.

— Espero que não haja qualquer acidente — disse Rubensohn


friamente.

— Eu também — disse McCreary em tom brando. — Mas eles


acontecem, e é bom estarmos prevenidos. Os motores ficarão ligados dia e
noite. Quero que Agnello os inspecione de três em três dias.

O florentino com cara de cavalo concordou com um movimento de


cabeça:
— De início, acamparei com você. Mais tarde, farei visitas. A que
distância da praia fica o acampamento?

— Cinco quilômetros — respondeu Rubensohn.

— Será ruim a falta de condução — disse McCreary. — Cada vez que


eu precisar de alguma coisa no navio, terei de mandar um mensageiro.

— Talvez eu possa ajudar — sugeriu Guido.

McCreary olhou para ele e compreendeu seu sorriso luminoso e o leve


indício de um piscar de olhos.

— Como? — indagou Rubensohn.

— Tenho dois conjuntos sobressalentes de transmissores-receptores.


Um pode ficar a bordo, aos meus cuidados ou do oficial de guarda. Se
McCreary precisar de alguma coisa, é só se comunicar conosco que nós a
providenciaremos. Presto!

— Ótima ideia — disse McCreary com entusiasmo.

Era melhor do que eles podiam imaginar. McCreary teria um elemento


de ligação com Guido e com Lisette, de quem, assim que começasse a
trabalhar, estaria bem distante. Naquele momento, não era tão importante,
porém mais tarde sua vida poderia depender disso.

Rubensohn concordou e passou rapidamente à parte seguinte do


programa.

— Algumas formalidades, senhores. Devemos chegar à ilha às dez


horas da manhã. Contamos com a visita do sultão e de sua comitiva a bordo
lá pelo meio-dia. Todos os oficiais e a equipagem se reunirão para recebê-
lo. Para os oficiais, uniforme de gala, para a equipagem, roupas limpas. O
comandante Janzoon irá ao encontro do sultão e o conduzirá ao salão.
Depois, o almoço será servido no convés. Esta parte fica aos seus cuidados,
Alfieri: serão umas dez ou quinze pessoas, além do nosso pessoal. Aos
visitantes será servido champanha; aos demais, suco de frutas. — Sorriu
zombeteiramente para os presentes. — Isto é apenas o começo. Teremos,
também, programas para a noite; segundo me consta, seremos recebidos em
palácio — somente os oficiais, mas cada um deles escolherá um homem da
equipagem para lhe servir de ajudante-de-ordens. Quero causar impressão.
O navio será deixado aos cuidados de um oficial de guarda e terá uma
tripulação reduzida na sala de máquinas, na cozinha e no convés. E com isto
terminamos, mas antes vamos ouvir umas últimas* palavras aqui do
comandante Janzoon.

Janzoon tossiu com o charuto na boca e começou a falar com sua voz
roufenha:

— Para a moça isto não tem interesse. Para vocês, homens, é muito
importante. Não estou brincando, é a pura verdade. Antes da guerra, vivi
nestas bandas boa parte de minha vida. Conheço um bocado a gente daqui...
e as mulheres.

Soltou uma risadinha gutural e prosseguiu:

— Como o sr. Rubensohn já disse, não interessa o tipo de diversão que


procurem, desde que não nos causem complicações. Mas vou dar a todos um
conselho amigo. Se quiserem, procurem uma companhia para se divertir, mas
nunca uma amante ou uma namorada. Se isso acontecer, vão verificar que
não poderão partir quando chegar a hora. Vão acabar numa esteira dentro de
uma cabana, botando as tripas para fora de tanto vomitar, porque a pequena
envenenou a sua bebida ou cortou os cabelos e misturou na comida. Não há
cura para isso. Começa com uma bruta dor de barriga; depois, hemorragia
interna, e acaba com peritonite. E nada de se meterem com mulheres
casadas, se não quiserem ter outro tipo de dor de barriga quando os maridos
entrarem em ação com os punhais.

A voz de Guido ergueu-se em tom lamurioso:

— Os homens devem ficar com suas revistas de nudismo.

Janzoon sorriu sombriamente.


— Dever, deviam, mas não ficam. Por isso, estou dando estes conselhos
de amigo. Quando eu tiver de sair com este navio daqui, não quero partir
com a tripulação desfalcada.

Houve um rumor de risadas pelo convés, e Rubensohn fez sinal ao


camareiro para que servisse mais champanha. Levantaram um brinde ao
empreendimento e depois brindaram-se mutuamente. Pouco depois,
Rubensohn e Lisette desceram e o grupo se dispersou.

McCreary caminhou até a amurada a boreste e acendeu um cigarro. A


lua ainda não nascera, e o navio era uma pequena ilha flutuante de luz no mar
escuro, pontilhado apenas por estrelas desconhecidas e tocado, aqui e acolá,
por ligeiras fosforescências. Já não se via mais terra, nem os sinais
luminosos dos cargueiros ao se cruzarem. Navegavam em direção nordeste,
fora da rota usual de comércio, e avançando por águas da antiga pirataria,
onde antes pululavam flibusteiros chineses, portugueses e bugineses. Os
flibusteiros agora eram eles, velejando sob a bandeira de uma república
maltrapilha em missão completamente fora da lei.

Ouviu passos às suas costas, e pouco depois a figura corpulenta do


comandante Janzoon debruçava- se sobre a amurada a seu lado.

— Bela noite, amigo.

— De fato — disse McCreary afavelmente. — Uma beleza.

— Você deve estar satisfeito, McCreary.

— Por quê?

Janzoon abriu os braços num gesto de ganância.

— Ora, por quê! A grande cartada... o grande lucro. Seu quinhão é um


bocado de dinheiro.

— Se eu não conseguir furar o poço — disse McCreary friamente —,


ninguém vai ganhar nada.

Janzoon lançou-lhe um rápido olhar.


— Seria bom você afastar alguns dos... riscos.

McCreary deu de ombros com aparente indiferença.

— Que risco eu corro? Só dependo de tempo e esforço. E isso não me


custa nada.

— Mas há a sua vida — declarou Janzoon mansamente. — E a da moça.

McCreary segurou-se com força à amurada e fitou fixamente o mar. Já


estavam os punhais de novo desembainhados, ferroando-lhe as costelas. Ao
menor lampejo de dúvida ou medo, seriam enterrados até o cabo. Depois de
uma longa pausa, disse com jovialidade:

— Todos nós corremos riscos, Janzoon: eu, Rubensohn, você. Não é tão
desagradável quando se tem seguro de vida.

Janzoon umedeceu os lábios. A conversa estava-se encaminhando para


um rumo inteiramente inesperado. Aquele irlandês de rosto magro era mais
reservado do que ele imaginara. Mudou de tática.

— Ouça, McCreary! Estou tentando dizer-lhe algo. Somos três neste


negócio: Rubensohn, eu e você. Rubensohn é o maioral, mas você e eu juntos
também somos grandes, compreende? Devemos ser aliados e não inimigos.

McCreary virou-se abruptamente e enfrentou-o. A voz era baixa, mas


enérgica e fria.

— Você já me veio com essa conversa uma vez, Janzoon. A grande


batota. Amigos e vizinhos. Irmãos em armas! Mas vamos aos fatos. Não
gosto de mistérios nem de ameaças tampouco. Nada de jogar com cartas
marcadas. Se você tem uma proposta a me fazer, vamos a ela de uma vez.
Sejamos francos! E é melhor que seja boa, porque a esta altura dos
acontecimentos você precisa muito mais de mim do que eu de você!

Janzoon riu por detrás do espesso cavanhaque. Havia um brilho


malicioso em seu olhar.
— Ah, é? Conversa franca? Cartas na mesa? Pois bem! Vou lhe mostrar
o meu jogo: três ases!

— Pago para ver.

— Primeiro: você está gostando da garota do Rubensohn.

McCreary deu de ombros.

— Isso não é um ás, é um 2 de paus. Já me senti assim por uma porção


de garotas antes. Nenhuma delas valia um quarto de milhão de dólares.

Janzoon abriu os braços num gesto largo de descrença.

— Ninguém pediu para você pagar tanto assim. Você gosta da pequena.
Se Rubensohn souber disso, mata primeiro ela e depois você. Portanto, não
deixa de ser um ás, McCreary — o ás de copas...

— Continue — disse McCreary com voz fria.

— O seguinte é o ás de ouros. — Janzoon estava satisfeito com a


metáfora. — Você pediu trinta e cinco por cento. Acabou com vinte e cinco,
mais do que eu, e fui eu quem botou a ideia na cabeça de Rubensohn. Você
impôs condições que achou inteligentes. O seu quinhão deve ser pago
diretamente. Rubensohn concorda com isso, também. Você com certeza acha
que ganhou uma mina. Seu grande idiota! — O sorriso de Janzoon
transformou-se num esgar. — Acha que sabe tudo, mas não sabe nada. Você
não vai receber um níquel enquanto Scott Morrison não chegar. E Scott
Morrison não virá enquanto Rubensohn não o chamar. E Rubensohn não vai
chamar o sujeito enquanto o petróleo não jorrar. Antes da vinda dele você
estará morto! Já viu bolso em mortalha, McCreary? Mas posso conservar
você vivo. Depende do que estiver disposto a pagar.

— Já vamos chegar lá — disse McCreary com naturalidade. — Quero


saber qual é o último ás que você está guardando.

— O ás de espadas — disse Janzoon. — Leu a papelada que Rubensohn


lhe entregou?
— Li, sim.

— Reparou no recibo de venda?

— Reparei.

— E nos estatutos de formação da companhia? Notou que o nome de


Rubensohn não aparece em nenhum dos dois?

— Considerei isso uma grande esperteza da parte dele — disse


McCreary com mordacidade. — Entra no dinheiro, mas não corre nenhum
risco. Você é que está sujeito a qualquer ação que venham a mover, porque
seu nome consta do registro em Cingapura.

Janzoon deu-lhe um olhar rápido de surpresa.

— Ah, você percebeu isso também? Muito bem! Mas já pensou sobre o
passo seguinte? Não é necessária a assinatura de Rubensohn para a venda.
Se houver qualquer alteração no documento atual, eu poderei rubricar
embaixo das respectivas cláusulas. Portanto, não acha que é melhor nós dois
continuarmos vivos e Rubensohn morrer, hem?

— Puxa! — exclamou McCreary em voz baixa. — Não tinha pensado


nisso!

Janzoon deu uma risadinha de triunfo.

— Boas cartas, hem, McCreary? Você tem melhores?

— Depende de como você joga — replicou McCreary.

— Que é que você quer dizer?

— Há três maneiras, Janzoon. É só você escolher. Primeira: fico quieto


e faço minha jogada contra você, levando em conta o trunfo que tenho... e
você ainda não sabe com certeza qual é. Do contrário, não estaria aqui
agora. Segunda: você pode me fazer sair da jogada por meio de pagamento
imediato, à vista. Assim, volto a ser um empregado assalariado, que não faz
perguntas; mas é preciso que sua oferta seja bastante boa, e quero uma
garantia de segurança para quando a minha tarefa estiver terminada. Lisette
estará incluída no preço da compra. Terceira e última: jogamos contra
Rubensohn e rachamos o lucro meio a meio. Mas é bom que você
compreenda... — McCreary encarou-o firmemente, os maxilares cerrados, os
olhos brilhando em desafio. — Não tolero ameaças, e ninguém me mete
medo. Não tenho ninguém com quem me preocupar, portanto posso dispor de
minha vida com a consciência tranquila. Para mim, tanto faz, entende? Se
puder sair inteiro e com um bom lucro, ótimo, mas se não puder, preparem-
se os dois para pagar caro. Está bem claro?

Janzoon olhou-o com ar sério.

— Muito claro. Acho que posso fazer uma proposta que vai lhe
interessar. Mas antes vou pensar um pouco sobre isso, está bem?

— Quer dizer que você vai pensar, ou Rubensohn é quem vai?

— Pelo amor de Deus! Nunca! — Pela primeira vez, havia medo na voz
de Janzoon. Pousou a manopla no braço de McCreary, e seus dedos
apertaram-no com força. — No começo, claro que eu estava sondando você
para Rubensohn. Mas agora não! Isto é assunto particular. Só eu sei o perigo
que corremos. Não gosto nada disso. Quero ter lucro, mas não quero correr
riscos. Se Rubensohn souber...

— Não vai saber — atalhou logo McCreary.

— Se você agir corretamente comigo. Outra coisa...

— O quê?

— Rubensohn mentiu sobre a viagem de Scott Morrison, não foi?

Janzoon olhou para ele, surpreso.

— Como é que você descobriu?

— Muito simples. Rubensohn disse que ele estava na Nova Guiné.


Acontece que toda aquela zona pertence a um truste. Não haveria interesse
por lá para um especulador independente como Morrison.
Janzoon moveu lentamente a cabeça, concordando.

— Rubensohn sempre faz assim. Faz uma mixórdia de mentirinhas por


nada. Se você não descobrir, azar, porque ele nunca diz a verdade. É uma
das coisas que me chateiam agora. Estamos em vias de pregar um logro
danado em Scott Morrison e Rubensohn ainda me vem com tapeação... a
mim, que sou seu sócio.

— Onde está Scott Morrison neste momento?

Janzoon relanceou rápida e temerosamente o olhar pelo convés deserto.

— Está no porto de Darwin, recebendo pedidos de petróleo no norte da


Austrália e esperando nosso chamado.

— A quantos dias de viagem daqui?

— Três ou quatro, no máximo. O tempo agora está bom por aqui.

— Obrigado — disse McCreary. — Isso facilita as coisas para nós.

Subitamente, Janzoon mostrou-se distante e distraído. Concordou com


um movimento de cabeça e pareceu hesitante, como se tentasse traduzir em
palavras um pensamento desagradável. McCreary acendeu um cigarro e
aguardou. Pouco depois, Janzoon falou, contrafeito:

— Acho que podemos fazer negócio, McCreary. Sei que devemos.


Mas... mas há umas coisas que não posso prometer.

— Por exemplo?

— A moça. Ela tem muita importância para você?

— Por quê?

— Porque... — Janzoon procurou um tanto desajei-tadamente pela frase


adequada. — Porque não quero complicações com o nosso negócio... por
causa do que Rubensohn pode... pode querer fazer com ela.
— Você sabe o que ele pretende fazer?

— Não, mas...

— Pelo amor de Deus, Janzoon! — A voz de McCreary era cortante e


impaciente. — Vamos, conte! Que é que você está querendo dizer?

Janzoon fez um gesto enfastiado.

— Estou querendo dizer que se você quer a moça é com Rubensohn que
tem de lutar, não comigo. Se você perder, ponha a culpa nele, não em mim.
Entende?

— Claro! Compreendo bem. As mulheres são assunto particular.


Tratarei disso quando chegar a hora.

— Ótimo! — Janzoon estava obviamente aliviado. — Quanto ao resto,


vou estudar as cifras e as condições, e depois lhe faço uma proposta. Está
bem assim?

— À vontade — respondeu McCreary, com uma careta. — Não tenho


pressa.

Contudo, ao ficar novamente só, contemplando o mar e as estrelas, sua


fisionomia tornou-se sombria.

Poderia controlar Janzoon, prevalecendo-se de sua cobiça ou do medo


que ele sentia de Rubensohn. Mas Lisette era um caso à parte. Agora sabia
que estava apaixonado pela garota, e qualquer ameaça que pairasse sobre
ela era como uma faca encostada à sua garganta.
8

— Lá está a ilha, McCreary! Karang Sharo. — A voz de Rubensohn,


com a emoção da aproximação de terra, elevou-se num tom mais alto que de
costume. — Veja com o binóculo!

Estavam de pé na ponte de comando, com o comandante Janzoon, vendo


a ilha crescer aos poucos na linha do horizonte, de um vago sombreado a um
contorno irregular, enquanto Alfieri gritava ao timoneiro as novas instruções
que os fariam contornar a costa até a entrada sudeste da baía.

McCreary ajustou cuidadosamente as lentes do binóculo até obter o


foco exato. Viu uma longa cadeia de montanhas pontiagudas erguendo-se
gradualmente até chegar a um elevado monte em forma de cone truncado,
sobre o qual flutuava indolentemente um pequeno cogumelo de fumaça.
Assobiou e voltou-se para Rubensohn.

— Ilha vulcânica, não é? Não me havia dito isso.

— Faz alguma diferença?

— Pode fazer. É possível que se encontre gás natural em vez de


petróleo.
Rubensohn concordou com um meneio de cabeça.

— Vejo que conhece sua profissão, McCreary. Você continua a me


impressionar. É um assunto que eu já havia discutido com os pesquisadores.
Eles acreditam que tudo indica existir petróleo.

— Claro que eles não falham — disse McCreary com branda ironia. —
Falei por falar.

Virou-se para observar os contornos da ilha. Formações rochosas de


cor preta emergiam das águas, e depois dos penhascos erguiam-se montanhas
recobertas de vegetação até os picos, exceto numa pequena área estéril
abaixo da boca do vulcão.

— Não vejo nada deste lado — disse McCreary. — Como é o outro


lado?

— Um paraíso! — Havia entusiasmo na voz de Rubensohn. — As


montanhas transformam-se em pequenos montes que se espalham por uma
larga planície dividida em plantações e arrozais. Há uma praia dourada e
uma baía circular margeada de palmeiras e cabanas de pescadores.

McCreary usou novamente o binóculo e viu um amontoado de ilhotas


verdejantes, cor de jade e de esmeralda, espalhadas ao sul de Karang Sharo.
Notou as mutações de colorido quando a luz do sol incidia sobre a água
rasante dos recifes, e as pequenas velas agrupadas como aves marinhas nas
zonas de pescaria.

— Está vendo aquelas montanhas? — Rubensohn pôs a mão sobre o


ombro de McCreary e virou-o em direção à ilha de Karang Sharo.

— Estou.

— Estão cheias de riachos, McCreary, riachos que descem correndo


para os canais e irrigam os arrozais. Esses riachos estão repletos de
diamantes. Você pode colhê-los nas peneiras como se fosse ouro. Os nativos
os trocam por fumo, noz de bétel ou qualquer coisa. O próprio Miranda
compra alguns para vender em Timor, mas ele está longe demais do mercado
para ter resultados compensadores. Você não deve se descuidar desse
aspecto enquanto estiver aqui.

— Não me esquecerei. Obrigado.

Devolveu o binóculo a Rubensohn e ficou observando o piloto


manobrar a proa do Corsário em novo bordejo.

Janzoon sugeriu:

— Talvez Lisette gostasse de ver isto. É uma novidade para ela, não
acha?

— As mulheres não são grandes apreciadoras de paisagens — disse


Rubensohn com indiferença —, a não ser quando servem de fundo para a
beleza delas.

— Vou descer para fazer a barba — disse McCreary no tom mais


indiferente que lhe foi possível. — Estarei de volta a tempo de ver a entrada
da baía. Quer que bata à porta do camarote e avise Lisette onde você está?

— Como quiser — respondeu Rubensohn por sobre o ombro. — Peça a


ela que traga meus óculos escuros. Vou precisar deles daqui a pouco.

— Está certo.

Deixou passar algum tempo, com receio de que sua pressa pudesse
levantar suspeitas, mas Rubensohn estava ainda apreciando pelo binóculo as
montanhas de Karang Sharo, que lembravam o dorso de um dragão. Então,
virou-se e desceu rapidamente a escadinha.

O coração batia-lhe descompassadamente ao chegar à porta do


camarote de Rubensohn. Seria seu primeiro momento de intimidade com
Lisette desde que ela fora visitá-lo em seu camarote. Haviam-se encontrado,
evidentemente, às refeições e no tombadilho, mas era como se estivessem
separados por vidro à prova de som: uma conversação muda, os gestos, uma
mímica sem significação. Bateu à porta. A voz de Lisette, límpida e
impessoal, respondeu:
— Quem é?

— Sou eu, McCreary. Abra, rápido.

Após ligeira pausa, a porta se abriu.

— McCreary, o que é que...?

Ele entrou com rapidez, fechou a porta e tomou-a nos braços, sufocando
com beijos suas perguntas. Finalmente, largou-a e falou-lhe com rapidez e
ansiedade.

— Rubensohn está na ponte de comando. Quer que você suba até lá.
Leve os óculos escuros dele. Fiquei de dar esse recado a você, de modo que
não posso me arriscar a demorar mais.

— Meu Deus, que saudade eu tenho sentido de você! — Ela se


aproximou novamente dele, com arrebatamento e paixão, puxando-lhe o
rosto na direção do seu, apertando-se de encontro ao seu corpo, para em
seguida afastá-lo com igual impetuosidade. — Tenho medo, McCreary. Hoje
começa tudo, e estou apavorada.

— Eu também, morena — disse McCreary. — Mais por você do que


por mim. Precisamos conversar, mas aqui e neste momento não é possível.
Como vamos nos encontrar?

— Estive pensando nisso, também. Talvez, quando chegarmos, Miranda


suba a bordo, e na certa eles vão querer falar em particular. Se eu puder
escapulir...

— Estarei no meu camarote. Espero por você lá.

— Vou tentar.

— Está bem. Agora, suba logo que puder e não se esqueça dos óculos
escuros.

— Dê-me um beijo, por favor.


Depois de atendido o pedido, ela ergueu as pequeninas mãos de marfim
e acariciou-lhe a face, dizendo suavemente:

— É pouca coisa, eu sei, ser amado por uma mulher do Pavilhão do


Pavão. Mas eu amo você, McCreary. Aconteça o que acontecer, eu amo
você.

— Eu adoro você, morena — disse McCreary em tom grave. — E não


vai nos acontecer nada de mau.

Tão abruptamente como viera, ele partiu, e Lisette ficou fitando


demoradamente a porta, pensando em como contar-lhe o ajuste que
Rubensohn lhe propusera.

A dois passos da porta do camarote de Rubensohn, McCreary colidiu


com Guido, que se dirigia para o salão para tomar uma xícara de café, um
tanto fora de hora. Ele assobiou e ergueu um dedo admoestador:

— Mamma mia! Que loucura, homem! Em plena luz do dia e com o


barco cheio de gente. Que aconteceria se em vez de Guido fosse Rubensohn
ou Janzoon?

— Cale-se, Guido, e venha comigo. Quero falar com você.

Antes que ele pudesse protestar, McCreary segurou-o pelo braço e


empurrou-o para dentro do seu camarote.

— Estou com sede — disse Guido com voz lamuriosa. — Levantei,


tarde e estou com um gosto ruim na boca. Preciso tomar café.

— É só um minuto — disse McCreary. — Preciso falar com você.

Guido suspirou profundamente e sentou-se no beliche, enquanto


McCreary começava a apanhar os apetrechos de barba e falava do interior
do banheiro.

— Qual foi a última vez que você transmitiu uma mensagem de


Rubensohn?
— Quando chegávamos a Jacarta.

— Como é feita a transmissão? Em código ou sem reserva?

— Em código. Sai mais barato.

— Qual código? Particular?

— Não. Ele usa o Bentley.

— Quem passa a mensagem para o código?

— Eu. — Guido tomou um dos cigarros de McCreary e acendeu-o, sem


o saber, com o isqueiro de um morto. — Escute, compar’! Talvez tudo ande
mais rápido se você me disser o que é que está pretendendo.

— Estou tentando confirmar dois fatos, Guido. Primeiro: se chegar uma


mensagem em código para Rubensohn, nós poderemos lê-la?

— Claro! — respondeu Guido confiantemente.

— Segundo: se eu quiser mandar uma mensagem em nome de


Rubensohn, poderei fazê-lo sem qualquer transtorno?

— Senz’altro! Poderá, se não se esquecer de duas coisinhas.

— Quais são, Guido? — McCreary pôs a cabeça para fora do


compartimento. Seu rosto estava cheio de espuma, mas os olhos brilhavam
de interesse.

Guido soprou despreocupadamente uma sucessão de anéis de fumaça e


sorriu como um garoto para McCreary.

— Todas essas informações, e eu não ganho nem uma xícara de café!

— Em vez disso, eu lhe dou uma garrafa de conhaque. Vamos, Guido!


Vá falando!

Guido baixou a voz a um sussurro e disse:


— Descobri isto porque sou um sujeito observador. Ninguém me disse
nada. Mas eu observo enquanto a transmissão está sendo feita. Quando
telegrafa para Cingapura, ele começa com “Para Silva” e assina “Rex”. Para
Nova York, começa com “Para Mortimer” e assina “Imperator”.

— Rex, Imperator. Rei, imperador. — McCreary quase engasgou com a


boca cheia de espuma. — Um pouco forte, não acha? Que será que ele pensa
que é? Napoleão Bonaparte ou Deus Todo-Poderoso?

— Da maneira como ele trata a moça — disse Guido —, podia passar


por Nero ou Calígula.

— Não pensei que você soubesse da existência deles — ponderou


McCreary com um sorriso oblíquo.

Guido fez um vago gesto de condescendência.

— Tenho um armário cheio de livros sobre eles, com uma porção de


fotografias de sacanagem.

— Não duvido. Mas, mudando de assunto, Guido, já transmitiu alguma


mensagem de Rubensohn para Scott Morrison?

— Só duas.

— A quem estavam endereçadas?

— Morrison — M. V. Melanie.

— E a assinatura?

— Asmin.

— Como é mesmo, Guido?

— Asmin. É o endereço telegráfico da South-east Asian Mineral


Research, a companhia de Rubensohn.

— Nenhuma outra assinatura?


— Ah, sim! Como sempre, a de Janzoon.

— Janzoon?

Guido meneou a cabeça enfaticamente.

— Eu também achei esquisito, quando vi Rubensohn escrever o texto e


me entregar. Mas não me pagam para fazer perguntas. Transmito as
mensagens do jeito que estão.

— Caramba! — McCreary estava tão absorto em fazer perguntas que


fez um corte em formato de triângulo no queixo. Guido deu uma risada de
deboche e disse:

— Concentre-se no serviço, amico. Ainda estou aqui, e seco como um...

— Preste atenção, Guido. — McCreary aplicou com pancadinhas uma


loção no rosto e disse, rápido e tenso: — Assim que chegarmos, não vamos
mais nos encontrar muito. De agora em diante, quero uma cópia de todas as
mensagens que chegarem. E não faça qualquer transmissão de mensagens até
receber minha autorização para mandá-las.

— Virgem Maria! — Os olhos de Guido esbugalharam-se e o cigarro


caiu-lhe da boca. — Percebe o que está me pedindo? As mensagens que
chegam... claro! Facílimo. Mas, e as outras? Sabe como Rubensohn faz? Traz
as mensagens e fica do meu lado enquanto as passo para o código e
transmito. Estou tentando ajudar você, McCreary, mas isso e suicídio!

McCreary passou de novo ao camarote. O rosto afilado abriu-se num


sorriso meio torto, e sua voz ficou adocicada ao dizer:

— Ainda podemos dar um jeito, Guido, e cuspir no rosto de Rubensohn


ao mesmo tempo. Preste atenção! Você vai me dar um conjunto transmissor-
receptor para eu levar para o acampamento. Vai me dar também a chave do
código Morse. Vamos combinar um horário de manhã e outro à tarde para
nos comunicarmos. Se Rubensohn quiser ficar ao seu lado enquanto sua
mensagem for transmitida, deixe! Se for assunto comum, você o transmite
normalmente, e no nosso próximo contato você me informa de tudo. Mas — e
é aí, meu valoroso bandido, que você terá de usar o seu raciocínio — se lhe
parecer estranho ou urgente, ou perigoso para mim, você é suficientemente
profissional para fingir um defeito no equipamento até ter tempo de me
avisar. Como é, tem ou não tem sentido?

Guido alegrou-se imediatamente. Seus olhos escuros faiscavam.

— Se você passar a conversa nas mulheres como faz comigo,


McCreary, nunca lhe faltarão camas. Assim, dará certo, sicuro!

— Ótimo. — McCreary apanhou os cigarros, enfiou um na boca de


Guido e outro na sua. — Bem, e agora outra coisa. Janzoon me procurou
para me fazer uma proposta.

— Que tipo de proposta?

McCreary acionou o isqueiro e acendeu os cigarros antes de responder:

— Acho que ele mesmo ainda não está bem certo do que quer me
propor. Mas é uma destas coisas: ou me suborna pelo preço que achar
conveniente, para em troca obter proteção contra Rubensohn, ou junta-se a
mim contra Rubensohn e dividimos o lucro meio a meio.

Guido inclinou a cabeça para um lado com ar cômico.

— Sabe por que ele está fazendo essa proposta, McCreary?

— Não tenho certeza, mas acho que tem medo de que Rubensohn lhe
passe a perna no fim.

— Eu sei que ele pretende fazer isso — declarou Guido com toda a
simplicidade.

— Como você pode saber uma coisa dessas?

— Deduzi. Você sabe como Alfieri é... anda sempre de nariz para o ar e
de peito estufado, como se fosse um doge de Veneza.

McCreary confirmou com um movimento de cabeça.


— Ontem à noite, ele estava tão cheio de novidades que precisava
contá-las a alguém. Foi até a minha cabina com uma garrafa de grappa e me
contou que Rubensohn o tinha sondado para o posto de comandante. Disse
que Janzoon com certeza ia se aposentar no fim da viagem, para se
estabelecer com um negócio qualquer. Pediu que ele guardasse segredo, é
claro. Mas ele tinha que dar com a língua nos dentes, senão era capaz de
explodir.

— Demônio dos infernos! — McCreary praguejou baixo. — Aonde é


que Rubensohn está querendo chegar?

Guido sorriu e cutucou-lhe o peito com o dedo.

— Eu sei, McCreary! É assim que fazem em Nápoles. Lá isso se chama


schiffo. A gente conta uma verdadezinha aqui, uma grande mentira acolá.
Paga-se um jantar para este e passa-se na cara a mulher do outro, e depois
escreve-se uma carta ao bispo sobre a moral do prefeito. No fim, todo
mundo está querendo se pegar, e a gente sai de fininho com o dinheiro numa
mão e a garota na outra. É o que Rubensohn vai fazer, pode esperar.

— Vai, uma figa! — exclamou McCreary. — Em matéria de chicaneiros


e mentirosos de primeira, fique sabendo que os melhores do mundo estão em
Kerry!

— Acredito — disse Guido, desconsolado. — E agora, amico, por


favor, será que posso ir tomar o meu café?
9

Estavam passando com dificuldade pelo círculo externo de ilhas,


fazendo balançar de leve, com a fraca marola produzida pela proa, as
pequenas embarcações que deixavam as praias e os praus que navegavam
com velas afrouxadas à margem dos recifes.

As praias estavam apinhadas de nativos, mulheres de seios desnudos


vestindo espalhafatosos sarongues, crianças engatinhando e homens baixos e
bronzeados com turbantes de cores vivas e pentes lavrados nos cabelos.
Atrás deles, apareciam os telhados dos kampongs por entre os troncos das
palmeiras e a luxuriante vegetação da floresta.

Karang Sharo ficava mais à frente e a bombordo, mas o ancoradouro


estava encoberto por um flanco da encosta que descia do cume do vulcão.

O céu estava límpido, sem nuvens, e o sol reverberava com intensidade


nas águas tranquilas, produzindo vigorosos desenhos de luz e sombra nos
recôncavos da terra.

Em companhia de Rubensohn e Lisette, McCreary deixava-se impregnar


pelo calor e colorido da cena. Lisette mantinha-se fria e distante. Seus olhos
eram um enigma por detrás dos óculos escuros. Rubensohn estava
alvoroçado e loquaz. Fazia gestos amplos e falava com sua voz aguda e
enfática, com um entusiasmo estranho e desconcertante num homem de
caráter tão tortuoso.

— Compreende agora o que eu lhe dizia, McCreary? A nova terra da


promissão! Sem fiscais de impostos, sem polícia, sem joões-ninguém
sentados atrás da papelada como reis maltrapilhos! Aqui há sol, céu, mar,
terra — e tudo o mais que um homem queira arrancar com as duas mãos.
Onde estão os aventureiros do passado? Há centenas de locais como este,
esperando ser possuídos como as mulheres, mas os aventureiros não
aparecem. Onde foram parar?

— Aí está uma pergunta interessante. — Havia um brilho travesso nos


olhos de McCreary. — Ao que me consta, alguns morreram de estranhas
doenças ou de bebedeira, alguns foram devorados por canibais, outros
decapitados pelo carrasco oficial, a nata morreu na guerra, e os restantes
estão sentados na Lombard Street, com fígados endurecidos e fumando
charutos.

Rubensohn riu em tom estridente.

— Você é um sujeito divertido, McCreary. Devia ficar sempre comigo.

— Você se cansaria de mim — disse McCreary em voz branda. — Os


irlandeses são bons companheiros de folguedo, mas incômodos parceiros de
cama.

— E são bons no amor?

— Não sou mulher — respondeu McCreary suavemente. — Portanto,


não sei dizer.

— Que é que você acha, Lisette? — A voz de Rubensohn estava cheia


de malícia.

Lisette deu de ombros, com indiferença.

— De amor eu não entendo nada.


— Uma resposta hábil, McCreary! — Os lábios vermelhos de
Rubensohn sorriam, mas seus olhos estavam duros. — Lisette é mulher de
alguma experiência. Quando eu a encontrei, ela era...

A voz de Janzoon, vinda do lado do timoneiro, interrompeu-o:

— Estamos contornando o cabo. O ancoradouro vai surgir a qualquer


momento. Poderão ver melhor a bombordo.

Ao se dirigirem através da casa do leme para ocuparem suas novas


posições, Lisette esbarrou em McCreary, que sentiu a leve pressão da mão
dela contra a sua. Foi mais eloquente do que se houvesse dito: “Ele
desconfia, McCreary. Cuidado! Não deixe que ele o provoque”.

Distanciou-se dele para reunir-se a Rubensohn na ala esquerda da ponte


de comando, mas McCreary ficou dentro da cabina, ao lado de Janzoon.

O comandante deu-lhe uma olhada rápida de alerta e começou a


esquadrinhar a extremidade do cabo que se aproximava.

— Dez a bombordo!

— Dez a bombordo! — repetiu o timoneiro como um papagaio.

Lentamente, contornaram a ponta verdejante e, de súbito, como


prenúncio de uma revelação, o ancoradouro de Karang Sharo assomou à
frente.

Era um semicírculo de águas plácidas, margeadas de areia dourada.


Mais além, o terreno elevava-se aos poucos em largos planaltos, até atingir
os flancos das colinas. Os arrozais se destacavam pela irrupção, aqui e ali,
de plantações, faixas de vegetação e brilhantes barragens e canais do sistema
de irrigação. Os kampongs estendiam-se ao longo da orla da praia,
pontilhando, intermitentemente, a parte mais elevada do terreno. Os telhados
das cabanas eram marrons e amarelos, contrastando com o verde-vivo da
vegetação, e as flores das árvores flamejantes eram manchas avermelhadas
sobre o atapetado de folhas.
O mais surpreendente, porém, era o palácio. Fora construído num largo
platô no sopé do vulcão, e o terreno à sua frente vinha descendo numa série
de jardins suspensos sustentados por caprichosas paliçadas esculpidas. Ao
fundo, o cone do vulcão erguia-se majestosamente e o edifício propriamente
dito alargava-se contra ele, como a cauda aberta de um pavão, num matizado
de dourado, azul-turquesa e âmbar-escuro.

As janelas e terraços davam diretamente para o sol da manhã, mas ao


meio-dia o sombreado da montanha começava a abater-se sobre ele,
proporcionando alívio do calor equatorial.

— E então, McCreary? — Janzoon olhou para ele e deu uma risadinha


rouca. — Que me diz disso?

McCreary balançou a cabeça:

— O que posso dizer? Que beleza!? Quem planejou isso era um gênio.

— Venha para cá, McCreary! — A voz estridente de Rubensohn


chamou-o para o ar livre. — Não disse que iria mostrar-lhe maravilhas?
Agora acredita em mim?

— Nunca duvidei — disse McCreary secamente. — Não há dúvida de


que é qualquer coisa de fantástico e maravilhoso. Parece obra de um
ourives.

— E há outras tantas maravilhas lá dentro! — declarou Rubensohn com


deleite. — Há aposentos para cem concubinas e seus rebentos. Há salões
para funções oficiais, um salão para as dançarinas da corte e um teatro de
marionetes. Há pintores, músicos e mestres, e as dançarinas e o tesouro real
estão guardados em túneis perfurados na própria montanha.

Os olhos de Rubensohn fulgiam atrás dos óculos escuros. Era como se


estivesse descrevendo a realização de seus próprios sonhos, o clímax
vislumbrado na carreira de todos os piratas.

Mais por animosidade que por interesse imediato, McCreary mudou o


curso da conversa. Perguntou:
— Onde vou perfurar?

— Lá! — Rubensohn apontou, em direção ao norte, um local afastado


do palácio, onde uma formação suplementar de colinas irrompia por entre os
terraplenos e como que apresentava uma saliência na cordilheira principal.
— Há uma estrada que contorna a baía e vai até a boca do vale. É por ela
que seguirão suas provisões e o equipamento. Fica afastada das aldeias
principais, como pode ver. Dessa maneira, você terá um certo isolamento.

— E vamos mesmo precisar disso. — McCreary apontou para a praia,


que parecia um formigueiro fervilhante de nativos em vestimentas berrantes.
Canoas estavam sendo empurradas das praias para o mar, e corpos escuros
pulavam para o interior das mesmas, enquanto a garotada atirava-se às águas
e nadava em direção ao navio. Um homem de calças brancas estava de pé
sobre o longo e estreito cais e acenava freneticamente. Rubensohn respondeu
ao aceno.

— Aquele é Miranda. Virá assim que tivermos ancorado.

Enquanto falava, ouviram Janzoon mandar parar as máquinas. Logo


após, deslizavam pela superfície lisa, enquanto os homens na proa
aguardavam o sinal para lançar a âncora.

Janzoon gritou uma ordem, e as correntes foram arriadas, os motores


voltaram a funcionar para poder avançar e retesar as correntes afrouxadas. O
sino tocou novamente quando atingiram a posição de “motores desligados”,
e fundearam nas águas calmas com aquela sensação curiosa, misto de
surpresa e decepção, que se segue à aproximação de terra.

McCreary e Lisette entreolharam-se. Rubensohn permaneceu por longo


tempo fitando o palácio e a montanha íumegante. Ao virar-se para eles,
sorria e esfregava as mãos roliças uma na outra.

— Terminou a ouverture. Vai começar a ópera. Espero que vocês a


apreciem.

— Tenho certeza de que sim — disse McCreary. — Conheço o


produtor. Ele é muito competente. E, além disso, conseguiu uma estrela muito
boa.

Rubensohn enrubesceu, subitamente irritado, e falou com rispidez:

— Você é impertinente, McCreary!

— Sei disso — explicou McCreary alegremente. — Mas sou também


um excelente perfurador, e quem é perito na sua profissão pode se dar o luxo
de talar com franqueza.

Rubensohn abriu a boca para responder, mas fechou-a em seguida.


Parecia tomado de uma cólera glacial. Deliberadamente, virou-lhe as costas,
deu o braço a Lisette e ficou observando a pequena figura vestida de branco
de Miranda saltar do cais para uma desengonçada lancha a motor pilotada
por dois rapazes de sarongue.

McCreary apoiou-se ao anteparo e acendeu um cigarro. Depois, também


voltou-se e caminhou para a sala de navegação, onde Janzoon conversava
com Alfieri. Estavam retirando o mapa da mesa e travando os instrumentos.
A tarefa deles, ao que parecia, havia terminado. A sua, entretanto, estava
apenas começando.

A lancha encostou desajeitadamente contra o costado do Corsário, e


minutos depois Pedro Miranda subia a bamboleante escada de bordo.
Rubensohn e Janzoon receberam-no na ponte de comando, enquanto Alfieri
permanecia ao lado de Lisette; McCreary aguardava, um tanto afastado dos
demais, estudando o recém-chegado.

Era um sujeito magricela, de rosto estreito, com estrabismo divergente e


pele de quem sofre de malária. Os dentes estavam manchados de bétel, e os
cabelos ralos emplastrados de óleo de palmeira. As mãos eram nodosas e
manchadas, e as calças surradas caíam-lhe como sacos. Seu inglês era
surpreendentemente bom, mas sua voz era áspera, lamurienta, e, ao falar, ele
apoiava-se nervosamente ora num pé, ora no outro.

— Bons dias, senhores! Sejam bem-vindos a Karang Sharo. Grande dia


este, para a ilha. Todos saíram de casa, como vêem. Até do palácio devem
estar observando. Está tudo pronto para os senhores...
— Construiu os pontões? — indagou Rubensohn abruptamente.

— Estão prontos para efetuar os carregamentos. São quatro toros


maciços por baixo de uma cobertura de bambu. Cinco metros quadrados
podem suportar qualquer peso!

— Ótimo! Já tem mão-de-obra escolhida para nós?

— Mão-de-obra! — Miranda pôs-se a rir tolamente e estirou seu braço


esquelético. — Olhe só! Homens, mulheres e crianças. Basta assobiar para
eles virem como formigas.

— Quando poderemos começar a descarregar?

— Ah, quanto a isso — Miranda sacudiu um dedo admoestador —, é


melhor primeiro irem ao palácio prestar sua homenagem.

— Há algo de errado?

— Não! Não! Não! Nada de errado, só que... — baixou a voz num


sussurro confidencial — sabem como são as coisas por aqui. Somos o
Umbigo do Universo. Uma cocegazinha faz a gente se sentir melhor. Você
trouxe o...

Rubensohn interrompeu-o com um gesto.

— Sim, trouxe tudo. Vamos conversar lá embaixo. Janzoon!

— Sim?

— Você e Miranda, venham ao meu camarote. Temos muito que


conversar.

Sem dizer uma palavra a Lisette ou a McCreary, girou sobre os


calcanhares e desceu a escadinha do convés. Miranda e Janzoon seguiram-
no, deixando McCreary e Lisette com Alfieri.

McCreary comentou com serenidade:


— Eis aí uma ratazana de cais, sem a menor dúvida.

Alfieri empertigou-se e disse friamente:

— Miranda é uma personagem muito importante na ilha. O sr.


Rubensohn tem grande confiança nele. Ele tem contatos no palácio e...

— Sempre têm... — disse McCreary com desprezo — na porta de


entrada dos comerciantes e na porta dos fundos dos alojamentos das
mulheres. Ele tem cara de alcoviteiro e olhos de mercúrio. Não simpatizo
com ele.

— O senhor, evidentemente, tem muito mais experiência com pessoas


desse tipo do que eu.

Era um insulto flagrante, mas McCreary tolerou-o com um sorriso. No


seu jeito mais brando, falou:

— Você devia ficar mais à vontade, Alfieri. Já vi homens adquirirem


úlcera preocupando-se como você. Você ainda não é comandante, e, se não
for agradável com seus amigos, nunca chegará a ser!

Alfieri ficou rubro de raiva e gaguejou:

— Eu... eu não entendo o que o senhor quer dizer.

— Acho que entende — disse McCreary suavemente. — Rubensohn tem


balançado a promoção na frente do seu nariz como uma cenoura a um
jumento. Mas Lisette aqui poderá lhe dizer o quanto você ainda tem de se
esforçar para alcançá-la. Não é, Lisette?

Lisette colocou a mão sobre o braço dele, refreando-o.

— Por favor, McCreary, deixemos de coisas desagradáveis.

— Eu não estou sendo desagradável, morena. Mas Alfieri é jovem e


inocente. Já vi outros como ele ficarem de tanga por terem se metido com
más companhias. Aceite um conselho meu, senhor imediato. Não acredite em
tudo o que os patrões lhe disserem. E não se fie na promoção enquanto não
tiver os galões nos braços e os costados na poltrona do comandante.

Então, enquanto Alfieri o olhava com olhos arregalados, ele enfiou o


braço no de Lisette e conduziu-a pela escada do passadiço em direção à sua
própria cabina.

Com a porta fechada e trancada, ficaram abraçados por longo tempo, e


McCreary surpreendeu-se com a paixão encerrada naquele corpo de boneca.
Lentamente foram se soltando, e McCreary a fez sentar-se no leito, a seu
lado. Segurou-lhe as mãos e disse-lhe em tom grave:

— Temos muito o que falar, morena. Vamos antes de mais nada tratar
disso.

— Eu sei, Mike — era a primeira vez que ela o chamava pelo primeiro
nome. — Mas quero dizer uma coisa a você.

— Muito bem, pode dizer. Gosto mais de sua voz que da minha. Que é
que quer me contar?

— Quer me dar um cigarro, sim?

Ele abriu um maço novo, deu-lhe um cigarro e acendeu-o. Ela fumou-o


com sofreguidão por instantes e depois começou:

— Ele desconfia de nós, Mike.

McCreary confirmou com um movimento de cabeça.

— Suspeitei disso, lá na ponte de comando. Ele falou alguma coisa com


você?

— Não por palavras. Mas você sabe como ele é... sempre calado,
dissimulado, aguardando a ocasião em que possa ferir mais fundo.

— Eu sei, você tem razão.

— Ele quer destruir você, Mike.


— Sei disso também — disse McCreary com simplicidade. — Mas
enquanto eu não perfurar o poço ele não fará nada. E antes de chegarmos a
esse ponto, espero já ter tomado algumas providências. É sobre isso que eu
quero conversar com você. Eu vou...

— Por favor, Mike. Deixe-me falar primeiro.

Havia tanta ansiedade no tom de voz da jovem, tanta dor em seus olhos,
que ele não teve outra alternativa senão deixá-la continuar.

— Quero lhe falar sobre mim, Mike. Quero tanto que você compreenda!
Se não compreender, poderá fazer alguma tolice, alguma coisa que não trará
nenhum benefício a qualquer um de nós.

— Antes que você continue, Lisette... — A voz de McCreary denotava


inflexibilidade. — Vou falar sem rodeios. Aquilo que atinge você também
me atinge. Mesmo que eu tenha de matar meio mundo para escapar deste
ninho de ratos, eu o farei, e levarei você comigo. Continue, meu bem.

— Eu sei, Mike, eu sei. Mas, por favor... escute! Já contei que


Rubensohn me encontrou... no Pavilhão do Pavão, em Saigon, mas nunca
disse como fui parar lá.

— Nem eu perguntei.

— Mas eu quero que você saiba. Não sou de Saigon, sou do norte, de
Haiphong. Meu marido era funcionário da administração francesa.

— Seu marido? — A palavra abalou-o como se lhe tivessem atirado


água ao rosto.

Lisette balançou afirmativamente a cabeça.

— Chamava-se Raoul Morand. Era mestiço como eu. meio francês,


meio tonquinês, de sorte que quando a guerra começou e Ho Chi Minh com
seu exército desceu do norte, nós nos juntamos aos refugiados que iam para o
sul. E conseguimos chegar lá. Chegamos a Binh Dinh e encontramos um
modesto alojamento perto da cidade. Raoul saía todos os dias para tentar
entrar em contato com um funcionário francês de prestígio, para ver se
conseguia reassumir seu antigo posto. Foi então que numa tarde apareceram
três soldados de Bihn Xuyen. Disseram que estavam à procura de espiões.
Puseram Raoul encostado na parede, obrigando-o a olhar enquanto me
despiam. Zombaram dele o tempo todo e contaram o que iam fazer comigo;
quando ele tentou escapar para me ajudar, eles o mataram a tiros. Depois,
levaram-me para Saigon e venderam-me ao Pavilhão do Pavão, porque Bihn
Xuyen arrecadava para Bao Dai uma taxa dessas casas, que eram
abastecidas e controladas pelas tropas. Eu estava viva, embora preferisse
não estar. Mas, depois de algum tempo, comecei a me conformar. Então, uma
noite, Rubensohn apareceu por lá, gostou de mim e se ofereceu para me tirar
da casa. Pagou ao pavilhão uma boa quantia e me fez sua amante; depois
disso, venho viajando sempre com ele.

— É isso, morena? — A voz de McCreary era grave.

— Não, não é só isso! — Em seus olhos brilhantes havia um desafio. —


Existe uma moral na minha história, Mike. Faço questão de contar a você.
Primeiro, quero dizer com toda a sinceridade que mesmo no Pavilhão do
Pavão a gente pode ser grata por estar viva. E digo mais, quando Raoul
morreu por minha causa, cometeu um ato inútil. Se não tivesse tentado me
salvar, se tivesse sabido suportar o que estavam fazendo comigo,
poderíamos estar juntos hoje. Eu talvez nunca tivesse ido parar no Pavilhão
do Pavão e só teria ficado a lembrança daquela noite, e até mesmo isso com
o tempo nós esqueceríamos. — Sua voz ergueu-se num tom estridente. — A
morte é tão sem finalidade, Mike! É o fim da esperança, o fim do amor para
quem sobrevive. É isso o que eu quero que você me prometa... aconteça o
que acontecer, faça Rubensohn o que fizer para me magoar, continue vivo.
Promete, Mike?

— Prometo, querida — respondeu McCreary com suavidade.

Seus braços envolveram-na, e ele puxou-a para si, encostando no peito


aquela cabeça querida e sentindo o minúsculo e perfeito corpo bem apertado
junto ao seu. Contudo, nem todo o amor que transbordava de McCreary
conseguiu fazer com que ela lhe revelasse toda a verdade.
10

Pouco antes do meio-dia, Miranda baixou à terra e não demorou muito a


que o Umbigo do Universo surgisse para fazer a sua visita protocolar ao
Corsário.

Viram-no, primeiramente, ainda à distância, carregado, sobre um


palanquim dourado, por dez homens, avançando pelos terraços do palácio,
depois descendo pelas veredas sinuosas da planície. Havia guardas postados
à sua frente e à retaguarda, cada um deles com um punhal afivelado às
omoplatas e um comprido mosquete de formato antiquado por sobre o
ombro.

O cortejo desapareceu por algum tempo por entre os jardins suspensos,


e só foi novamente avistado quando a multidão postada na praia afastou-se
de reppnte, caindo de joelhos e emitindo um demorado brado em tom de
lamento, que flutuou fracamente por sobre as águas. Da desembocadura de
um canal surgiu uma longa canoa de proa esculpida, manejada por dez
remadores. Quando o cortejo chegou à altura da clareira aberta pelo povo,
rumou com rapidez em direção à praia, e o Umbigo da Universo foi
transportado para a canoa nos ombros de seus servos. Depois que ele se
sentou, os demais membros da comitiva acomodaram-se, tendo um deles
aberto um grande guarda-sol amarelo sobre sua cabeça.
Depois de impulsionada de volta para o mar, a canoa deslizou, célere,
enquanto os remadores rompiam as águas com seus grandes remos
esculpidos.

A prancha de desembarque fora baixada, e um marinheiro malaio estava


a postos com um gancho apropriado para trazer os visitantes bem junto ao
costado. Arturo aguardava no último degrau a fim de auxiliá-los a subir. A
tripulação do barco estava alinhada no tombadilho, os oficiais em uniformes
recém-engomados e os demais vestidos em trajes de terra, em posição de
sentido. Janzoon e Alfieri estavam no topo da escada, mas nem Rubensohn
nem Lisette estavam lá.

McCreary imaginou tratar-se de mais uma das hábeis encenações de


Rubensohn. O Umbigo do Universo deveria ser conduzido até onde se
encontrava o grande homem, inteiramente só, na intimidade de seu salão.
Lisette seria exibida como uma posse valiosa. Sentiu uma impiedosa
satisfação ao pensar que em breve também essa convenção seria destruída e
Rubensohn perderia Lisette e tudo o mais.

Assim que o pequeno cortejo atingiu o passadiço, McCreary


surpreendeu-se ao verificar que o sultão era um jovem de trinta anos no
máximo, de feições balinesas finamente modeladas, agora uma rígida
máscara protocolar. Vestia-se em tonalidades tão vivas quanto as de um
pássaro selvagem, envolto em seda bordada com fios de prata e ouro. Trazia
jóias ao pescoço e nos dedos. Uma adaga de cabo de ouro projetava-se da
sua faixa, e bem no centro do turbante um imenso rubi cintilava palidamente.

Atrás dele vinha uma personagem rotunda, que parecia mais um chinês
que um malaio, e que McCreary supôs fosse o vizir. As sedas de suas vestes
flutuavam como cortinas, mas seus olhos apertados denotavam astúcia e
cálculo. O restante da comitiva era constituído de homens de baixa estatura,
como a de seu monarca, e tanto suas vestimentas quanto suas jóias
obedeciam a uma escala decrescente de suntuosidade.

Ao atingirem o convés, Alfieri fez os oficiais ficarem em posição de


sentido, e a tripulação curvou-se em profunda reverência. O comandante
Janzoon fez a continência de praxe, proferindo a seguir um pequeno discurso
em malaio.
O sultão agradeceu em breves palavras, e Janzoon conduziu o grupo
para o salão inferior. Alfieri ordenou à tripulação que preparasse o convés
de popa para o almoço, e McCreary e Guido afastaram- se para fumar um
cigarro em tranquilidade.

Guido zombou, espirituosamente:

— Você agora e um acionista, McCreary. Não acha que devia também


estar lá embaixo, tomando parte no negócio?

McCreary ergueu os ombros:

— O negócio já foi fechado há muito tempo, Guido. Agora é mera


formalidade. Um vai ficar dizendo ao outro o quanto é importante e
esperando para ver a extensão do esplendor do outro.

— Mas a moça está lá... a sua garota.

— Ela ainda não é minha. Nós dois sabemos que temos de esperar e
fazer nossos planos, Guido.

Guido deu-lhe um estranho olhar de esguelha.

— Você diz isso como se estivesse apaixonado.

McCreary respondeu abruptamente:

— Será que ainda não tinha percebido isso?

— Não sei. — Guido torceu a boca e olhou intrigado para McCreary.


— Sei que você gosta dela; é natural que tenha satisfação em tirá-la de um
maledetto como Rubensohn. Mas, amor! Isso é assunto sério, amico. O amor
é mais exigente que o estômago, e fere como uma faca bem afiada. Tenho
pena de você.

— Pena por quê?

Guido balançou a cabeça.


— O mundo está cheio de mulheres... e você foi acabar gostando de
uma dona complicada. Ah! — mudou bruscamente de assunto —, Janzoon já
fez a proposta?

— Ainda não. Está esperando para ver o pulo do gato. Por enquanto,
ainda não houve um sério teste de força entre mim e Rubensohn. É isso o que
está faltando para ele tomar sua decisão.

— Acho que ele não vai ter de esperar muito.

Havia algo no tom de voz de Guido que alertou McCreary. O pequenino


napolitano não estava mais pilheriando. Seu rosto espelhava dúvida e
indecisão. McCreary indagou à queima-roupa:

— Você tem alguma ideia na cabeça, Guido? Vamos, desembuche!

— Não. — A recusa de Guido parecia definitiva. — Tenho uma ideia,


mas é minha, particular. Se eu estiver certo, não há nada que você possa
fazer. Mas se estiver enganado, então você está se preocupando com
ninharias quando devia estar tratando de outras coisas. Mas uma coisa eu lhe
digo. Ou muito me engano, ou o primeiro teste de força entre vocês vai
acontecer esta noite.

McCreary teve de se contentar com aquela explicação. Antes que


pudesse fazer-lhe outra pergunta, escutaram rumores de vozes no convés e
Janzoon apareceu com o vizir e cortesãos de Karang Sharo. O sultão
permanecera lá embaixo com Rubensohn e Lisette.

Durante as duas horas que se seguiram, eles ficaram de pé, sentaram-se


ou passearam sob o toldo, entretendo os visitantes, enquanto a equipe da
cozinha azafamava-se com pratos e bandejas de drinques. Os oficiais
falavam apenas o malaio rudimentar usado a bordo, de sorte que o grosso da
conversa recaiu sobre Janzoon e McCreary, mas a paciência de ambos em
breve esmoreceu ante a polidez sorridente dos nativos, que respondiam
evasivamente às perguntas mais banais e não contribuíam em nada para
manter a conversação.
Quando, pouco depois, Rubensohn e o sultão apareceram, a situação
piorou. Os membros da comitiva quedaram-se em atitude submissa, enquanto
o Umbigo do Universo comia, bebia e conversava exclusivamente com
Janzoon e Rubensohn.

McCreary suportou o quanto pôde, e por fim tentou escapulir para saber
o que ocorrera com Lisette; ao fazê-lo, porém, Rubensohn chamou-o para
apresentá-lo ao sultão. A partir de então, ficou plantado até o fim da
cerimônia, transpirando e pouco à vontade, tentando responder a centenas de
perguntas sobre o mecanismo de explorações petrolíferas, utilizando-se dos
termos mais elementares do vocabulário malaio.

Por fim, tudo terminou. Foram novamente passados em revista para as


despedidas, e, em seguida, o grupo real foi conduzido ao interior da grande
canoa. Antes de chegarem à metade do percurso, já Alfieri superintendia a
descarga dos presentes que deveriam ser ofertados na recepção que seria
realizada aquela mesma noite no palácio.

Ouviram o ronco da lancha de Miranda, que rebocava uma fila de


pontões irregulares, cada um deles levando um grupo de garotos com a
finalidade de desatar os cabos e preparar a carga para a viagem de volta à
praia.

Rubensohn manteve Janzoon e McCreary a seu lado enquanto


fiscalizava a maneira pela qual o serviço ia sendo feito. Satisfeito, disse:

— Temos negócios a resolver, senhores. Vamos para o seu camarote,


Janzoon. Lisette está descansando e não quero incomodá-la. Ela vai querer
apresentar-se em boa forma esta noite.

McCreary lançou-lhe um olhar rápido, mas não havia malícia nos olhos
do outro. Rubensohn sempre se mostrava em melhor disposição quando
havia tarefas a cumprir. A maldade e a malícia eram deleites para momentos
de folga. Não as deixava interferir nos seus projetos.

Janzoon instalou-os em seu camarote e serviu a todos uísque de seu


estoque particular. Ele e Rubensohn acenderam charutos, enquanto McCreary
fumava um cigarro. Rubensohn foi direto ao assunto.
— Meus senhores, somos uma empresa em atividade. O sultão está
satisfeito com os presentes que lhe oferecemos e com nossa promessa de lhe
pagarmos direitos sobre o petróleo extraído, o que será feito em espécie e
mediante depósitos em bancos norte-americanos.

— Que nunca chegarão às mãos dele, naturalmente — disse McCreary


secamente.

— Precisamente! — disse Rubensohn. — Mas quando ele descobrir


isso, estaremos longe e de posse do lucro. Então, Scott Morrison é que terá
de se preocupar com ele.

Janzoon riu.

— Gosto desse ponto. O último prego cravado no caixão, hem?

Rubensohn prosseguiu sem demora:

— O documento da concessão nos será apresentado esta noite, no


palácio. Não tem valor legal, mas não deixará de ser mais uma prova que
oferecemos ao nosso amigo Morrison. E ele não levantará dúvidas quanto à
sua autenticidade.

— Quando posso começar a desembarcar meu equipamento? — indagou


McCreary.

— Amanhã bem cedo. Ao amanhecer, Miranda se aproximará com as


barcaças. Primeiro levará as estruturas metálicas. O resto ficará para depois,
quando você estiver no convés para supervisionar a descarga, o que,
imagino, ocorrerá muito mais tarde.

— Por que diz isso?

Rubensohn bebeu um gole de uísque e sorriu.

— Porque esta noite, McCreary, você irá presenciar mais uma das
maravilhas de que lhe falei. Vão nos oferecer uma recepção em palácio.
Seremos carregados colina acima, em liteiras, e depois do banquete e outros
divertimentos cada um de nós receberá um presente régio, e regressaremos
de novo carregados, um tanto embriagados, sem dúvida.

Janzoon tartamudeou com o charuto na boca:

— Cuidado com o suco de palmeira, McCreary. Seja lá com que o


misturem, ele dá uma dor de cabeça homérica!

— Não me esquecerei — disse McCreary com um sorriso. — Parece


que vai ser o maior acontecimento da temporada.

— Maior do que você pensa, McCreary.

Rubensohn voltou-se para Janzoon.

— Uma alteração nas instruções, comandante. Pelo menos até tomarmos


outras providências em terra, é permitido aos oficiais trazerem mulheres
para bordo.

— Acha conveniente? — Janzoon franziu o sobrolho. — Gosto de me


divertir como qualquer homem, mas quero sempre ter o meu navio em
ordem.

— Tem alguma sugestão melhor? Fui informado pelo sultão de que cada
oficial será presenteado com uma concubina para seu uso durante a nossa
estada em Karang Sharo. — Sorriu e umedeceu os lábios vermelhos. —
Creio que se trata de um antigo costume, que, infelizmente, caiu em desuso
em outras partes do mundo. Achei que não seria aconselhável recusar,
portanto, fica a seu cargo, Janzoon, manter a disciplina e providenciar, o
mais cedo possível, acomodações adequadas em terra. Estamos indo bem,
não acha, McCreary?

— Bem demais — disse McCreary sem entusiasmo. — Por que se


preocupar tanto com um bando de intrometidos, que, aliás, estão fazendo um
negócio vantajoso?

Rubensohn afastou a objeção com um gesto vago.


— Acho que sou bom negociante. Talvez o Umbigo do Universo tenha
feito melhor negócio do que esperava, mas, de um jeito ou de outro, quem
somos nós para reclamar?

— É mesmo — respondeu McCreary em tom dúbio. Mas, lembrando-se


do aviso de Guido e dos rogos desesperados de Lisette, ficou preocupado e
receoso. A perspectiva dos festejos noturnos não lhe infundia prazer;
desejava desesperadamente falar com Lisette. Mas Rubensohn e Janzoon o
mantiveram conversando pelo resto da tarde. Quando foi hora de preparar-
se, Lisette ainda estava no seu camarote, e Rubensohn também, de maneira
que não tiveram oportunidade de se ver.

O sol desapareceu rapidamente por trás da crista das montanhas,


fazendo com que as ilhas e o mar mergulhassem de repente na escuridão. As
estrelas lucilavam, e o brilho das lanternas amareladas nos kampongs e a
luminosidade do vulcão delineavam-se de leve contra o céu sombrio.

Subitamente, como se a um sinal convencionado, acenderam-se tochas


— primeiro na praia, depois subindo pela alameda sinuosa e pelos terraços
ascendentes do palácio. As labaredas subiam e ondulavam nas mãos dos
tocheiros, dando a impressão de uma imensa serpente de fogo estorcendo-se
montanha abaixo.

Ao pisar no tombadilho, vestido a rigor, McCreary encontrou os demais


oficiais, que observavam o espetáculo, empertigados como pombos, com
jaquetas muito alvas e engomadas.

A escada do costado havia sido arriada até a altura do primeiro barco


que os devia transportar, o qual se balançava de leve sobre as águas, com os
remos recolhidos e um marinheiro de pé para ajudá-los a subir a bordo. A
cada oficial tinha sido designado um membro da tripulação para atendê-lo, e
os que haviam sido escolhidos mantinham-se à parte, com roupas limpas e
olhos transbordantes de interesse. Das sombras chegavam os sussurros
sibilantes de suas vozes.

Alfieri chegou-se a McCreary e disse laconicamente:


— O comandante envia-lhe cumprimentos, sr. McCreary. O senhor será
conduzido a terra no primeiro barco com os outros oficiais. Lá, liteiras
estarão aguardando ordem de seguir imediatamente para o palácio. Seu
criado caminhará ao lado da sua liteira e permanecerá de pé, um pouco
atrás, durante a cerimônia.

Gritou um nome, e um cozinheiro chinês de rosto redondo como a lua


avançou para servir McCreary. Guido pôs-se a seu lado e disse em voz
baixa:

— Também vou no primeiro barco, McCreary. Gostaria de ficar perto


de você.

— Ótimo, Guido. Preciso mesmo de companhia.

— Foi o que imaginei.

Alfieri então convocou-os com energia, e eles se puseram a descer a


escada, seguidos de seus ajudantes, e passaram para o barco à espera.

Ao chegarem à praia, encontraram as liteiras postadas entre as filas dos


carregadores de tochas e viram, por detrás da iluminação que elas
projetavam, os presentes empilhados, cobertos com panos, que os
carregadores iriam transportar. Sob uma das cobertas McCreary percebeu,
pelo formato, tratar-se de um pequeno carro amarrado por correias a longas
e resistentes varas a fim de ser carregado montanha acima. Um pouco além,
uma fila de guardas tentava conter uma multidão de pessoas, cujo murmúrio
soava como o zumbido de uma colmeia. A luz das tochas tremeluzia nos
rostos escuros e luzidios, realçando singularmente seus olhos esbugalhados.

Um dos carregadores de liteira tocou de leve no braço de McCreary e


indicou-lhe o lugar a tomar. McCreary subiu desajeitadamente para a
plataforma e sentou-se numa cadeirinha forrada de seda, que exalava um
aroma mesclado de condimentos e sândalo. Um pouco à sua frente, viu
Guido subindo também desgraciosamente para a sua liteira.

Em seguida, obedecendo a uma ordem, os carregadores curvaram-se e


levantaram as longas varas, colocando-as sobre os ombros, e McCreary se
viu carregado bem acima das tochas, como um capitão após algum triunfo
bárbaro.

Por todo o percurso da montanha havia tochas acesas e povo. Haviam


perfumado as tochas com incenso, que se misturava ao cheiro de gente, à
poeira, às emanações tépidas dos kampongs e da mata.

Por cima de sua cabeça, as árvores pendiam imóveis no ar pesado, e


acima das folhas o céu se mostrava cheio de estrelas. Às vezes, ouvia-se o
alarido de pássaros noturnos, que logo era abafado pelos gritos dos nativos,
que riam, bradavam e batiam palmas à passagem dos convidados do sultão.

Em certo momento, a luz das tochas iluminou uma vasta superfície de


água represada, e ele vislumbrou grandes lírios-d’água com suas pétalas
gigantescas curvadas para dentro, como que adormecidas; quando
começaram a escassear os espectadores ao longo do trajeto, ele pôde escutar
o grave zumbido dos insetos aproximando-se da claridade e o coaxar dos
sapos nas margens das águas esverdeadas.

Caminhando à frente, Guido virou-se para trás, juntou as mãos acima da


cabeça e gritou:

— Che passeggiata, amico! Como é, está gostando?

McCreary acenou e advertiu-o:

— Cuidado, Guido, senão você acaba caindo e quebrando o pescoço.

Viram-se de repente diante dos portões do palácio.

Dois grandes pilares de teca erguiam-se à entrada, esculpidos com


flores e monstros retorcidos, coroados por asas de pássaro abertas. Os
guardas postados à frente de cada pilar fizeram sinal para que o cortejo
seguisse em frente e, ao passar, McCreary reparou nos imensos portões de
madeira, entalhados em forma de biombo, e, mais além. nos jardins
ascendentes, que teriam de atravessar para chegar ao palácio.
Todas as janelas estavam iluminadas, bem como as arcadas e colunatas,
de maneira que toda aquela estrutura de pedra parecia leve como pluma,
prestes a voar à primeira rajada de vento. Mas não havia vento. No ar
parado, o cheiro de flores misturava-se ao de incenso queimado. Ao longe,
ouvia-se a música tilintante de guizos.

Embalado pelo oscilar da liteira, McCreary tinha a impressão de que


flutuava, separado de seu corpo, num sonho de ópio, incapaz de uma decisão
ou atitude. E então, por fim, o sonho terminou.

O cortejo estacara. As liteiras baixaram, e, ao descerem, um tanto


retesados, viram-se num pátio largo e descoberto, que tinha numa das
extremidades um lance de degraus que exibia os reluzentes ornatos em
relevo do palácio. No topo da escada, aguardava-os o rotundo vizir,
acompanhado de seu séquito.

Puseram-se a subir lentamente os degraus, seguidos de perto pelos


criados. O vizir cumprimentou-os no seu suave linguajar malaio e conduziu-
os através do pórtico, ao longo de uma elaborada colunata esculpida à
maneira hindu, tendo ao fundo um trono elevado e, por detrás dele, um
anteparo de pedra lavrada.

Entreolharam-se, mudos de assombro.

O aposento era suficientemente espaçoso para conter um exército. As


paredes, as colunas e o próprio trono deviam ter sido esculpidos pelos
artífices que haviam chegado no século IX com os monarcas hindus das
Molucas.

O quadrado central achava-se feericamente iluminado, e em volta dele


havia almofadas empilhadas e mesas baixas de madeira lavrada incrustadas
de pérolas. Atrás das colunas, na penumbra, servos com blusas bordadas e
sarongues coloridos aguardavam silenciosamente; à esquerda do trono, uma
orquestra gamelan tocava seus monótonos ritmos. Por trás do anteparo de
pedra lavrada, elevou-se um murmúrio de vozes femininas e risadinhas
abafadas, como se as mulheres de casa estivessem observando a chegada
dos estrangeiros.
O piso à frente do trono e entre as mesas achava-se desimpedido para
dar passagem aos servos e aos artistas, e o trono brilhava com as luzes
cambiantes das jóias, que refletiam as chamas tremulantes dos lampiões
pendentes do teto e dos ornatos dos pilares.

À direita do trono principal fora instalado outro, menor, menos


cravejado de jóias, evidentemente removível. McCreary conjecturou se era
destinado a Rubensohn ou ao membro mais idoso da família. Não havia um
protocolo rígido naqueles pequenos sultanatos. Seus hábitos eram
constituídos de uma combinação barroca de costumes adventícios e religiões
estranhamente interligadas.

O vizir conduziu-os ao alinhamento de almofadas dispostas diretamente


defronte do trono, fazendos-os sentarem-se próximo ao quadrado central.
Guido colocou-se ao lado de McCreary e contemplou de olhos arregalados o
vizir bater palmas para fazer aproximar-se um pequeno grupo de servos,
cada qual trazendo uma bandeja de prata com um cálice também de prata,
contendo uma bebida alcoólica à base de suco de palmeira, e uma caixa de
doces gelatinosos.

Curvaram-se, serviram a bebida e os doces e retiraram-se. Ao provar o


líquido adocicado mas insípido, Guido deu uma risadinha gaiata.

— Pobre Arturo! Ficar como cão de guarda numa noite destas. Coitado!

— É melhor para ele ficar de fora — disse McCreary com uma careta.
— Disseram que a noite poderá acabar mal. Onde será que Rubensohn se
meteu?

Guido encolheu os ombros dramaticamente.

— Ele já vem! A grande entrada, ao lado de Janzoon e com todos os


galões dourados, e a pequena pelo braço. Não me admiraria se ele fosse
direto ao trono e tomasse o lugar do sultão.

— Eu também não — disse McCreary. — Mas não esta noite.


Guido sorriu e voltou-se para a frente, conversando em italiano com os
outros oficiais. McCreary sorveu sua bebida e entregou-se à contemplação
do esplendor bárbaro à sua volta.

Agora podia entender os sonhos dos piratas. Era isso o que os havia
atraído através dos séculos, sob bandeiras estranhas, em navios precários e
com tripulações maltrapilhas... essa visão de tronos de pavão, deuses com
jóias nos olhos e tesouros enterrados sob os alicerces de palácios
fantásticos.

Para eles, o poder era coisa tangível, medida pelo peso de barras de
ouro, pelo número de escravos, pelas dimensões e pelo esplendor do palácio
ou mausoléu.

Eram os primitivos, banidos pela civilização. Não havia descanso para


eles nas metrópoles, nenhuma esperança no Velho Mundo. E se morressem
cedo demais, tombariam com o cheiro de incenso nas narinas e a música de
línguas exóticas nos ouvidos.

Rubensohn tinha essa índole de pirata, e isso era a melhor parte de sua
complexa personalidade. Revelava-se em seus momentos de exaltação e na
tranquila audácia de suas patifarias. Era um tipo importante; poderia mesmo
ter sido um grande homem, não fossem sua crueldade e astúcia pervertida.

A música cessou subitamente, recomeçando a seguir em cadência


diferente e mais forte. Ouviu-se o farfalhar de reposteiros afastados, o
murmúrio de vozes, e os cortesãos começaram a entrar em fila,
espalhafatosos como papagaios em suas blusas de seda, coletes bordados e
sarongues com ousados motivos florais. Curvaram-se formalmente,
mostrando os dentes manchados de bétel num sorriso de boas-vindas, e em
seguida tomaram lugar sobre as almofadas dispostas de cada lado do
quadrado desimpedido. Novamente os servos se aproximaram com bebidas e
guloseimas, voltando em seguida para as arcadas na penumbra.

Um pouco mais tarde, o vizir tornou a entrar no recinto. Rubensohn,


Janzoon e Lisette seguiam-no.
A beleza da moça era estonteante. O pequeno corpo estava envolto num
sari dourado, que, de maneira protocolar, lhe descia da cabeça e caía em
dobras suaves até as sandálias também douradas. Tinha esmeraldas no
pescoço e nos pulsos, e a pele mostrava um brilho alabastrino contra a
claridade.

O rosto parecia uma máscara moldada por um escultor, imóvel e


perfeita, na qual os olhos eram o único indício de vida.

Rubensohn e Janzoon conduziram-na até a almofada central e


acomodaram-na confortavelmente. Ela puxou o sari por sobre o rosto, como
um véu, e permaneceu muda e absorta, aguardando o início da cerimônia.

O roliço vizir achegou-se aos pés do trono e ficou em expectativa.


Então, um gongo soou, terrivelmente estridente, ecoando através das
colunatas e elevando-se por entre as figuras esculpidas do teto. Todos se
puseram de pé e aguardaram, de cabeça baixa e olhos cerrados, enquanto o
vizir proclamava os dez nomes rituais do sultão de Karang Sharo,
terminando pelo mais imponente: Umbigo do Universo.

Ao levantarem os olhos, viram-no de pé sobre o estrado, uma figura


miúda, de aspecto juvenil, contrastando com a imensidão do trono de pavão,
com os guardas alinhados à sua volta e o trono menor ao lado, ainda vazio.
Sentou-se. Todos aguardaram até que ele erguesse a mão e então
acomodaram-se nas almofadas.

McCreary achou que havia sido uma hábil encenação. Chegou a


imaginar que Rubensohn tivera alguma participação nela. Pensou, também,
que já era tempo de servirem mais drinques. Estava com a boca ressecada e
com o gosto dos doces gelatinosos na língua.

Foi então que o sujeito rotundo tornou a entrar em cena.

Falava, explicou, imerecidamente, em nome do magnificente, cuja voz


era um trovão capaz de despertar a montanha adormecida. Sua voz — que
ele esperava soasse como flores em sua boca — elevava-se para dar as
boas-vindas àqueles estrangeiros, cuja vinda traria prosperidade para o país
e riquezas para o povo. Haviam chegado como amigos, trazendo presentes
que eram promessas de presentes ainda melhores. Contudo, o grande homem,
aquele que possuía dez nomes e era o mais importante de todos, não
desejava ser superado em generosidade. Assim sendo, a cada um dos
estrangeiros ele oferecia sua dádiva, uma jóia para ser usada junto ao
coração, uma flor para perfumar seu travesseiro...

Ergueu a mão rechonchuda, e os gongos soaram novamente. Das


sombras das colunatas aproximaram-se sete moças, miúdas e perfeitas,
vivazes e viçosas, cada uma delas carregando uma pequena almofada sobre
a qual repousava uma jóia engastada na delicada filigrana dos artífices
locais. Ajoelharam-se à frente de Rubensohn e McCreary e de cada um dos
oficiais, apresentando-lhes as oferendas. Em seguida, postaram-se de
joelhos ao lado das almofadas de cada um deles em atitude de submissão a
seus novos amos.

Novamente os gongos ecoaram, e Rubensohn ergueu-se. McCreary


observou, fascinado. Embora odiando-o, não podia deixar de reconhecer a
força que dele emanava. Seu traje era insignificante ao lado dos vistosos
atavios dos asiáticos, e não obstante ele dominava a reunião, parecendo
mesmo amesquinhar a personagem sentada no trono de pavão. Fez uma breve
pausa e começou então a falar em perfeito malaio, cheio de alusões e
hipérboles hieráticas.

Sentia-se agradecido, dizia ele, às honrarias principescas tributadas a


ele e seus amigos. Os presentes que havia trazido eram insignificantes e
indignos em comparação aos do sultão; constituíam, entretanto, uma
promessa de outros melhores. Além do mais, provinham de um mundo novo,
onde os prodígios brotavam como mangueiras das mãos de um mágico...

Enquanto falava, os carregadores começaram a transportar os presentes,


que se achavam ao fundo do salão, enfileirando-os nas imediações do trono.

Lá estava uma caixa que iria trazer as vozes do mundo para o palácio de
Karang Sharo. Havia uma máquina que iluminaria o palácio inteiro ao
simples toque de um dedo. Havia também um palanquim sobre rodas que
transportaria o Umbigo do Universo a qualquer lugar que desejasse, assim
que se construíssem as estradas apropriadas para seu uso. Havia armas para
o arsenal real, louças iguais às usadas pelos príncipes europeus; sedas para
a família real e jóias para os dedos das esposas reais. Havia presentes para
todos os oficiais do palácio...

Fez outra pausa, enquanto a última caixa era colocada à volta do


reluzente veículo, impróprio e risível em meio àquela venerável
magnificência.

E, finalmente, o maior dos presentes que lhe era permitido oferecer,


uma pérola de qualidade incomparável, uma dádiva particular para o
Umbigo do Universo, que ele humildemente pedia permissão para entregar
pessoalmente...

Lentamente, fez Lisette levantar-se e conduziu-a, passo a passo, até o


espaço livre aos pés do trono.

— Não, meu Deus! — A voz de McCreary era um sussurro de horror, e


já começava a se levantar quando Janzoon e Guido o detiveram com firmeza,
forçando-o a sentar-se de novo. Guido falou-lhe ao ouvido
precipitadamente:

— Agora não, pelo amor de Deus! Você será trucidado e não poderá
ajudá-la! Controle-se... para o bem dela!

Ele se deixou afundar nas almofadas, sentindo a pressão dos dedos dos
dois em seus braços, e observou Lisette prostrar-se, como uma escrava, aos
pés do sultão. Viu depois aquelas mãos morenas fazerem-na erguer-se,
removerem-lhe o véu e conduzirem-na para o trono ao lado do seu, enquanto
os cortesãos manifestavam, com suspiros, sua admiração ante tanta beleza.

Viu Rubensohn curvar-se e caminhar lentamente de volta ao seu lugar:


tinha nos lábios um esboço de sorriso, os olhos brilhavam com malícia
triunfante. Sentiu um impulso desesperado de agarrá-lo e despedaçá-lo.
Todavia, Guido e Janzoon o detiveram.

O documento de concessão foi então apresentado e a música recomeçou,


e com ela o longo desfile de servos com iguarias e bebidas. Sucederam-se
malabaristas, acrobatas e dançarinas, movendo-se como bonecos articulados
ao ritmo de antigas mímicas.
McCreary nada via. Sentado em silêncio, a fisionomia dura,
encharcando-se de bebida, ele olhava para Lisette, que, pousada ao lado do
trono de pavão, deixava-se alimentar, como se fora um pássaro, pelos dedos
morenos do sultão.

Terminada a noitada, carregaram-no, totalmente embriagado, para a


liteira; quando chegaram ao navio, Guido e a miúda escrava parda despiram-
no e puseram-no na cama.
11

Ao despertar, sentiu-se horrivelmente mal. A cabeça latejava-lhe e a


língua parecia não mais caber-lhe na boca. Sua pele estava pegajosa e com
um cheiro horrível. Os lençóis envolviam-no como uma mortalha. Viu que o
camarote estava ensolarado e que uma jovem escura, sentada em sua cadeira,
observava-o com olhos arregalados e solenes.

Recordou-se, então — e a lembrança foi como um golpe no estômago.


Conseguiu levantar-se e foi, cambaleando, para o banheiro; pouco depois, a
moça seguiu-o e ajudou-o a barbear-se e banhar-se. Ela agia com
simplicidade e sem nada perguntar. Suas mãos eram macias, seus
movimentos, ágeis, e McCreary considerou-a um pequeno bálsamo para seus
últimos tormentos.

Tinha descido o último degrau e bem o sabia. Sabia, também, que fora a
sua fé inabalável na sorte dos irlandeses que o fizera chegar a tal ponto.
Tentara lutar com adversários acima de sua categoria e acabara na lona, com
Rubensohn esmurrando-lhe os dentes e Lisette sendo entregue, desamparada,
como parte de uma transação de petróleo. Perguntava-se por que ela nunca
lhe revelara a intenção de Rubensohn. A resposta era bem simples. Ela sabia
que ele nada poderia fazer, e, se soubesse, certamente iria proceder como um
irlandês cabeçudo e acabar sendo baleado. Por isso, ele estava agora de
cuecas, sentado na beirada da cama, segurando a cabeça dolorida e sem
saber o que fazer. Os outros deviam também estar na expectativa —
Rubensohn e Janzoon. Esperando a sua reação e preparando-se para contra-
atacar.

Que tinham pela frente? Um rebelde de olhos injetados, mal-humorado


devido à ressaca, atacando de cabeça baixa, para ser facilmente subjugado
com outro soco nos dentes? Não, não seria vantajoso, nem para Lisette nem
para ele próprio, proceder assim. Precisava de tempo para se dominar e
planejar a jogada antes de enfrentar Rubensohn. A nativa ajudou-o a vestir-
se. Ele a mandou à cozinha providenciar um café da manhã apropriado a uma
pessoa nauseada. Ela atendia rapidamente às suas ordens em malaio, mas ele
se achava por demais aturdido para entender bem o dialeto da exótica ilha.

Os despenseiros de bordo deram-lhe aparentemente o tratamento


habitual. Enviaram-lhe um grande bule de café, uma fatia de mamão e um
pequeno peixe grelhado com torradas amanteigadas. Só de olhar para a
comida, sentiu o estômago embrulhar-se, mas esforçou-se por comer, e ao
esvaziar o bule de café já começava a se sentir melhor. Olhando-se ao
espelho, tornou a piorar. A pele estava amarelada e manchada, os olhos mais
pareciam dois furos feitos com cigarro num lençol. Ao tentar acender um
cigarro, as mãos lhe tremeram como se estivesse com malária.

Despachou a nativa de volta à cozinha para buscar mais café e


alimentos para si própria, enquanto se sentava e tentava recuperar as forças.
Do lado de fora, chegavam-lhe aos ouvidos o rangido dos guindastes e os
berros da tripulação, que descarregava os materiais. Miranda entrara em
ação, e a primeira parte do equipamento de perfuração estava a caminho da
terra. Dentro em breve, ele teria de subir ao convés e superintender o
descarregamento dos motores e dos geradores, quando, pensou então,
chegaria à prova final.

Não obstante as náuseas e a dor que lhe ia no coração, teria de enfrentá-


los com um sorriso, abalar-lhes a certeza da vitória, deixando-os inseguros
quanto às suas futuras ações. Só lhe restava um trunfo: sem ele não poderiam
obter petróleo. Tudo dependia de como e quando o utilizasse.
A moça voltou com o café e um prato de arroz para si mesma. Sentou-se
a seus pés, de pernas cruzadas, à maneira nativa, e, enquanto comia,
McCreary fez-lhe perguntas com brandura.

— Qual é o seu nome, menina?

— Meu nome é Flor Flamejante, tuan.

— Nome muito bonito.

— Estou satisfeito por gostar dele, tuan.

— Você sabe que agora é minha?

— Sei, tuan.

— Daqui a pouco tenho de ir trabalhar. Enquanto eu estiver fora, lave a


minha roupa, e quando estiver seca guarde junto com as outras, como lhe
mostrarei. Vamos sair daqui.

— Para onde, tuan?

— Para Karang Sharo. Vamos morar lá por algum tempo.

Ela o contemplou com olhos brilhantes e ingênuos.

— E eu vou ser a mulher do tuan, vou tomar conta dele e...

— Você tomará conta de mim, pequena — disse McCreary


apressadamente, acrescentando, de si para si: “E é melhor deixarmos o resto
para mais tarde. No momento, já tenho problemas demais”.

Tomou o último gole do café, levantou-se, fez um amontoado da roupa


suja e mostrou a ela como arrumá-la na sacola. Em seguida, colocou óculos
escuros para encobrir parte dos efeitos da noite anterior e subiu ao convés.

Alfieri estava junto aos guindastes, dando ordens aos trabalhadores.


Cumprimentou-o rapidamente e de má vontade, afastando-se em seguida.
McCreary fez votos de que ele estivesse tão bilioso quanto parecia.
O comandante Janzoon caminhava pelo convés de vante. McCreary
acenou e gritou um cumprimento. Janzoon ergueu os olhos, levemente
surpreso, e respondeu ao aceno com alguma hesitação. Não havia oficiais
pelas redondezas, apenas duas nativas acocoradas e recostadas no tabique,
comendo da mesma cuia de arroz e conversando em vozes estridentes que
lembravam o chilrear de pássaros.

McCreary avançou até a amurada e observou os rapazes nativos de pé


sobre os pontões oscilantes, manobrando as pesadas linguadas, enquanto
Miranda, do seu barco, gritava-lhes instruções.

Olhou por sobre as águas ofuscantes até o palácio no sopé da montanha


e pensou em Lisette. Pouco depois, escutou a voz aflautada de Rubensohn a
seu lado:

— Acordou cedo, McCreary.

— É um hábito antigo — respondeu McCreary, friamente. — A manhã é


a melhor parte do dia.

— Gostou da noitada?

— Claro. Foi muito boa.

— O maior acontecimento da temporada? — Rubensohn provocava-o


cruelmente, mas McCreary forçou um sorriso, dando graças por seus olhos
estarem ocultos pelos óculos escuros.

— O maior. Pelo menos, a parte que cheguei a ver.

— Achei que Lisette estava uma beleza.

— Também achei.

— Você discorda da minha transação?

— Acho que você é um tarado — declarou McCreary sem rancor. —


Mas, enfim, eu sabia de tudo. Além do mais, ela não é o meu tipo, senão eu
também teria dado umas voltinhas com ela.
Era uma rudeza calculada, mas não se arrependia dela. Sentiu uma
satisfação mórbida ao ver Rubensohn recuar e esforçar-se por se controlar.

— Você é mais duro do que eu pensava, McCreary.

Era um sussurro em voz alta, macio como seda.

— Tenho de ser — respondeu McCreary. — Estou lutando com gente


dura. E já que estamos falando de negócios, há um pequeno contrato a ser
assinado e entregue antes de eu começar a trabalhar.

— Estará pronto dentro de uma hora — afirmou Rubensohn


categoricamente.

— Mas antes de assinarmos...

— O quê?

— Quero examinar o seu passaporte.

Aquilo apanhou Rubensohn inteiramente desprevenido. Inclinou a


cabeça para trás, semicerrou os olhos, e a voz fina soou insegura.

— Aonde você está pretendendo chegar, McCreary?

McCreary recostou-se à amurada e sorriu.

— Só quero um documento legal, com assinatura confirmada. Por isso é


que gostaria de ver o seu passaporte.

Rubensohn fitou-o demoradamente e depois, para surpresa de


McCreary, abriu-se num sorriso.

— Antes de assinarmos, eu lhe mostro. Mais alguma coisa?

— Sim. Janzoon me fez uma proposta.

— Que espécie de proposta?


Isso também constituiu novidade para Rubensohn, que, apesar de todo o
seu controle, não pôde disfarçar o abalo causado pela revelação.

— Uma proposta dupla — respondeu McCreary sardonicamente. — Ele


ainda não se decidiu por nenhuma das duas modalidades. Ou me suborna em
espécie, garantindo proteção contra você, ou se junta a mim para passar a
perna em você. E bem que podemos fazer isso.

Rubensohn lançou-lhe um olhar demorado e especulativo.

— Nesse caso, por que está me contando tudo?

— Você é um grande homem, Rubensohn. Creio que pode fazer muito


por nós — disse McCreary com ponderação. — Mas mesmo os grandes
homens podem cometer erros que acabam por destruí-los. Seu maior engano
foi escolher o sujeito errado para receber seus coices. Janzoon tolera isso,
como tem demonstrado, por puro medo. Eu, não. Não tenho nada a perder e
muito a ganhar. Já lhe disse isso antes.

— Você mudou muito desde aquela primeira noite em Jacarta.

— Aprendo rápido — retrucou McCreary com bom humor. — Os


irlandeses são ótimos negociantes de cavalos.

Rubensohn confirmou com um lento movimento de cabeça e recostou-se


à amurada, absorto em seus pensamentos. Após curto intervalo, voltou-se
para McCreary:

— Seria melhor se pudéssemos ter mais confiança um no outro.

— Lá isso seria — concordou McCreary. — Mas não acho de todo


impossível que cheguemos a esse ponto. — Bruscamente, mudou de assunto.
— O descarregamento terminará dentro de duas horas. Assim que tivermos
resolvido a questão do contrato, pretendo pôr-me a caminho. Com certeza,
aparecerá com frequência para observar o andamento da obra, não?

— Todos os dias — respondeu Rubensohn —, até o poço estar


perfurado.
— Depois, pretende me matar, não é?

— Havia pensado nisso — respondeu Rubensohn com surpreendente


franqueza. — Mas agora mudei de ideia. Pensando bem, vou fazer você
matar Janzoon.

— Mais uma mentira — disse McCreary tranquilamente.

Rubensohn ficou vermelho de raiva.

— Escute aqui, McCreary...

— Não escuto nada, velho. Por que não confessa logo? Você gostaria de
afastar nós dois do seu caminho para ficar com o bolo todo. Se não fosse
assim, por que motivo ofereceu a Alfieri o posto de comandante?

— Alfieri lhe contou isso?

— Não, foi uma gaivota.

— Já avisou Janzoon?

— Pensei nisso — disse McCreary, cauteloso.

— Também pensei em espalhar pela ilha que a nova esposa do sultão


veio diretamente do Pavilhão do Pavão, de Saigon; pensei em informar a
Scott Morrison que a transação é uma fraude e que há um morto em jacarta
que poderá prová-lo. Da mesma forma que já imaginei todos os meios
possíveis de impedir que você obtenha uma gota de petróleo se existir a
menor probabilidade de me matar quando o vir jorrando. E, agora,
Rubensohn, não acha que já é tempo de jogar com honestidade?

Dito isso, virou-se e encaminhou-se para junto dos guindastes, pondo-se


a observar o primeiro dos geradores que era içado por sobre a amurada.
Não confiava muito no sucesso do seu plano. Fora um gesto tipicamente
irlandês, e esperava ter perturbado Rubensohn, mas no final era provável
que acabasse sendo de fato liquidado.
Duas horas mais tarde, acompanhado de Guido e de Agnello, o chefe
das máquinas, além de Flor Flamejante e da garota de Agnello, McCreary
deixou o navio em direção ao local de perfuração. Levava no bolso o mapa
do levantamento, bem como o contrato de Rubensohn, no qual constava que,
em troca de serviços prestados, teria direito a uma quarta parte do resultado
da venda e autorização para exigir tal pagamento diretamente do comprador.

Não tinha ilusões quanto à validade do documento. Não existia lei no


mundo que garantisse pagamento ao cúmplice de um crime. O que mais lhe
interessava era o fato de ser Rubensohn o seu nome verdadeiro, além de
possuir uma assinatura autêntica, comprovada pela do passaporte. Este lhe
prestara ainda outras informações. Rubensohn era súdito britânico, de
origem polonesa, tendo-se naturalizado dez anos antes. Tinha quarenta e oito
anos, e seu nome completo era Joseph Ladislas Rubensohn. Seu passaporte
tinha vários registros, bem de acordo com a existência errante de Rubensohn.

Talvez um dia pudesse utilizar-se desses fatos. Por ora, tinha outros
assuntos com que se ocupar.

Ao chegarem à praia, Miranda esperava-os com dois rapazes que


carregariam a bagagem e o transmissor. O resto do equipamento já se achava
a caminho, transportado sobre varas em armações de bambu por um pequeno
exército pardo.

Puseram-se a caminho pela trilha sinuosa que passava por vilarejos da


costa até atingir o primeiro contraforte da montanha, além do qual ficava a
área de perfuração.

Agnello ia à frente, juntamente com Miranda; Guido e McCreary vinham


a seguir, lado a lado, enquanto as duas nativas trotavam atrás deles como
duas crianças empolgadas.

A poeira levantava-se em pequenas nuvens sob seus passos,


ressecando-lhes os lábios e infiltrando-se pelas suas narinas. As grandes
folhas verdes pendiam imóveis, e crepitavam no ar o zumbido dos insetos e
o ruído de vozes procedentes das aldeias.
Aos poucos, a bebida foi sendo eliminada pela transpiração e
McCreary começou a absorver-se na vida pitoresca e intensa que fluía das
cabanas à margem da estrada. Mulheres de seios nus amamentavam crianças
à entrada de suas choças ou permaneciam nas lagoas à beira do caminho,
com água até o joelho, banhando-se ou lavando roupas. Um ferreiro
martelava a lâmina recurvada de uma adaga por sobre uma pequena fogueira
de carvão. Um vendedor caminhava compassadamente, sustentando aos
ombros duas compridas varas de bambu, das quais pendiam cachos de
bananas e cestos com feijão e arroz. Moças risonhas, sentadas, teciam as
grandes esteiras de palmeira que mais tarde seriam transformadas em
paredes de cabanas e em leitos. Um búfalo perambulava, espicaçado pelo
bambu afiado de um garotinho, e um bando de andorinhas mergulhou de
repente nas sombras do caminho, provindo do céu azulado. No alto dos
galhos desnudos de um flamboyant, um rapazinho colhia as flores escarlates
e atirava-as a uma cesta amarrada ao pescoço. Um ourives idoso e de olhar
turvo moldava um vaso com um pequeno martelo, e a seu lado um garoto de
pele cor de mel e mãos pequeninas como as de uma mulher entalhava um
pente em madeira clara e macia.

Por algum tempo, Guido também deixou-se absorver pelo espetáculo;


depois, abordou o assunto que o vinha preocupando.

— Foi chato aquilo ontem à noite, amico.

— Foi mesmo, Guido.

— Você... você compreendeu que eu tinha de agir daquele jeito, não?


Do contrário, eles acabariam com você.

— Sei disso, Guido. Obrigado.

— Que é que vai fazer agora?

— Trabalhar — respondeu McCreary sucintamente. — Trabalhar e


planejar para reaver Lisette e liquidar Rubensohn.

Guido assobiou.
— Você acha que conseguirá tê-la de volta?

— Pelo menos vou tentar.

— Mas como? Você viu como é o palácio. As mulheres ficam


completamente isoladas, e além disso há os guardas...

— Eu sei — concordou McCreary, acenando gravemente com a cabeça.


— Mas já temos um começo. Essas pequenas... — apontou para as duas
figurinhas que caminhavam rindo atrás deles. — Elas são do palácio, não se
esqueça. Conhecem a construção, e poderão nos ajudar.

— Sim, se quiserem.

McCreary olhou fixamente para ele.

— Que quer dizer com “se”?

Guido sorriu com vivacidade.

— Elas também são mulheres, McCreary. Parecem crianças, mas tanto


podem, ter quinze como vinte e cinco anos. Foram dadas de presente aos
tuans; acham que são nossas mulheres, e nós os homens delas. É bom que
não se esqueça disso. Se você quer ajuda, tem de pagar, de uma forma ou de
outra. Se quer Lisette de volta, precisa de uma aliada e não de uma rival.

— Bolas! — exclamou McCreary.

— Pois é. E outra coisa...

— O quê?

— Tirar Lisette de lá não resolve nada. Você tem de fazer com que ela
saia da ilha, senão acabam os dois nas mãos dos carrascos. Ou acha que
Rubensohn vai dar uma passagem grátis a vocês dois no Corsário?

— Duvido muito.
— Então pense nisso também. Lembre-se de que somos três pessoas,
você, eu e a moça, atirados numa ilha, e que justamente o homem que
controla o transporte quer acabar com você.

— Já pensei nisso — disse McCreary. — Já virei e revirei essas coisas


no pensamento, e só encontro uma solução. Um dia destes, não muito
distante, vou matar Rubensohn. Mas, antes disso, vou tirar tudo o que ele
tem. Não me pergunte como, mas vou fazer isso.

— Boa sorte — disse Guido sem muita convicção.

— Diga-me uma coisa. — McCreary baixou a voz e apontou com a


cabeça para os dois homens que caminhavam à sua frente. — Que tipo de
homem é esse tal de Agnello? Ele vai trabalhar grande parte do tempo
comigo, e quero saber se posso confiar nele.

Guido encolheu os ombros e deu um chute numa galinha que ciscava a


seus pés.

— Você sabe como são os maquinistas. Comem estopa e tomam banho


de óleo lubrificante. Às vezes penso que, se pudessem, se casariam com um
motor e teriam uma porção de motorzinhos. Agnello é desse tipo. Tem cara
de cavalo triste e fala pouco. O que pensa ou sente, a gente tem de adivinhar.
Se você conseguir fazer que passe para o nosso lado, vamos ficar bem mais
fortes. Sem ele, não podem fazer o navio funcionar.

— Vou me dedicar um pouco a ele — declarou McCreary


pensativamente.

Haviam passado pela última povoação e começavam a contornar o


contraforte que dividia a área de perfuração do restante da ilha. O caminho
cortava a mata cerrada. De um lado, passava um pequeno córrego por sobre
rochas esverdeadas recobertas de samambaias e descarnadas raízes de
árvores de fruta-pão.

Depois de meia hora de marcha, chegaram ao local: uma clareira


bastante ampla, da qual se divisava, a leste, o oceano e as ilhas esparsas. Ao
fundo, as montanhas elevavam-se gradualmente até o palácio, dominado pelo
cone vulcânico mais além.

Havia ali uma pequena multidão de nativos, escuros e tagarelas. O


equipamento estava a um canto, cuidadosamente arrumado em pilhas.

McCreary olhou em torno com olhos experientes. Era uma boa área,
favorável ao trabalho. A água era limpa, livre da poluição dos kampongs.
Boa madeira por perto, além de bambu e troncos de palmeira em abundância
para a construção das cabanas. Ao término de um dia de trabalho, poderiam
apreciar o mar, comodamente sentados, longe da praga dos mosquitos, e se
subissem um pouco a lombada das montanhas poderiam observar os
caminhos que conduziam ao palácio. Talvez, pensou, conseguisse ver Lisette,
ainda que rapidamente, passeando no interior dos jardins murados em
companhia das outras mulheres. Pediria a Guido que lhe mandasse um
binóculo do navio.

Miranda encaminhou-se para ele, gesticulando, saltando ora com um pé,


ora com o outro, e falando na sua cantilena de mascate.

— Aqui estamos. Disseram-me que o senhor é o patrão aqui. Lá estão o


material e os meus trabalhadores. É só dizer para o Miranda o que quer e
metemos mãos à obra, está bem?

— Certo! — disse McCreary, encerrando o assunto. Chamou Agnello e


Guido, e puseram-se a percorrer o local.

— A torre será levantada aqui, bem no centro. A casa de força, ali. A


oficina e a seção de manutenção, ali adiante. Agnello, você encontrará todas
as peças devidamente numeradas e um diagrama para poder identificá-las.
Cada engradado tem um número que corresponde ao da relação. Arranje sua
equipe e comece a trabalhar. Lá atrás, com fundos para a colina e frente para
o mar, serão erguidas duas cabanas para moradia; logo adiante, ficará o
depósito de peças de máquinas. Deve ser coberto e bem comprido, para
resguardar as tubulações e as peças mais pesadas. A cozinha pode ficar por
aqui. O transmissor, na minha cabana, Guido. Mais além da torre, os abrigos
para os trabalhadores. Ali, os depósitos de gasolina... uma cobertura bem-
feita, de palha, é suficiente.
Por algum tempo, tudo foi confusão e atividade, mas, pelo meio da
tarde, já haviam conseguido dividir-se por tarefas, e McCreary, de pé, com
Guido ao seu lado, na parte mais elevada da clareira, verificava o
andamento do serviço. Agnello e seu grupo estavam preparando as
fundações para as grandes pernas afastadas da torre; os toros para
sustentação dos motores eram cortados e arrastados da mata; as estruturas
das cabanas e dos abrigos já haviam sido feitas, e pequenos vultos escuros
andavam pelos telhados, colocando as coberturas de palha.

McCreary sentia profunda satisfação em ver a atividade daquele


formigueiro humano. Já o presenciara antes, muitas vezes e em diversos
lugares, mas de cada vez era como se fosse a primeira, porque cada poço
representava um desafio; o dia em que as brocas começavam a penetrar era
como uma nova corrida para um cavalo desconhecido: a multidão em
expectativa, os grupos lisos e luzidios na fita de partida, as flâmulas de cada
haras flutuando suavemente ao vento, sem que se saiba qual será o vencedor.

Chegava a ser um sacrilégio considerar que tudo aquilo era parte de


uma empresa criminosa, que teria como resultado a morte e o infortúnio.

Guido sentou-se no chão e mordiscou pensativamente um talo de grama.


Disse, hesitante:

— Estive pensando... McCreary.

— Em quê?

Guido apontou para o lado da colina, onde a agitada figura de


espantalho de Miranda apressava uma fileira de rapazes que cortavam
capim.

— Ali está o sujeito que pode ajudá-lo. Conhece as redondezas, sabe


como entrar clandestinamente no palácio e, além disso, ainda tem um barco,
aquela chalupa atracada no ancoradouro principal. Ele é negociante, não é?
Conhece bem estes mares. Pelo menos, pode levar você até Timor...

— Não confio nele — retrucou McCreary. — É um rato de cais. Aposto


que seria capaz de vender a própria mãe por uns níqueis.
— Não é preciso confiar nele — persistiu Guido. — Basta assustá-lo.

— E como eu iria conseguir isso?

— É fácil. Quando este troço estourar como uma bomba, como deve
acontecer um dia, quem estará por aqui? Nós? Não. Nem Rubensohn. Mas
Miranda sim! Se o sultão quiser fazer churrasquinho dos dedos de alguém,
quem será o mais indicado? Quem é o intérprete e o intermediário? Miranda!
Acho que um dia desses você devia falar com ele, contar-lhe os fatos e
oferecer-lhe uma boa recompensa. Assim, terá um aliado... e um barco de
quebra.

McCreary olhou para o pequeno napolitano e riu.

— Acho melhor trocarmos de emprego, Guido. Parece que você é o


único que raciocina por aqui.

— Eu, hem! — exclamou Guido com firmeza.

— Nem por um milhão de libras queria estar na sua pele! Ia ter


pesadelos toda noite, pensando que estavam me cortando o pescoço.

— São os pesadelos que já estou tendo — declarou McCreary


sombriamente. — Mas tenho que aprender a suportá-los, Guido.
12

Ao cair do sol, as duas cabanas de moradia haviam sido construídas,


bem como os depósitos principais. A armação da base para a torre já estava
pronta; os toros de madeira estavam preparados e arrumados perto dos
locais onde seriam colocados os motores. Miranda enfileirara seus
trabalhadores e conferira a devolução das ferramentas utilizadas, levando-os
posteriormente de volta às suas casas. Guido fora com ele, depois de ter
montado o transmissor e de ter dado a McCreary instruções detalhadas
quanto ao seu funcionamento. Haviam combinado um horário matinal, no
qual Guido chamaria McCreary e praticaria com ele uma meia hora no
aparelho, aproveitando para transmitir qualquer novidade ocorrida a bordo.

Guido desejara passar a noite lá, mas McCreary recusara. Não seria
prudente, assim logo de início, deixar Rubensohn perceber que havia uma
associação mais estreita entre ambos. Seu sistema de comunicação já era
bastante incompleto e tinha de ser mantido a todo custo.

As cabanas eram modestas, mas habitáveis. Cada uma continha duas


camas feitas de bambu e recobertas com esteiras de palmeiras. Havia uma
mesa tosca e duas cadeiras de bambu, improvisadas com surpreendente
rapidez pelos operários de Miranda. Quanto ao resto, o navio fornecera as
roupas de cama, utensílios de cozinha e mosquiteiros, além de um estoque de
medicamentos para primeiros socorros, comprimidos e bebidas — meia
dúzia de caixas de cerveja e duas garrafas de uísque para cada homem. A
comida seria de enlatados, suplementada por produtos locais fornecidos por
Miranda.

McCreary e Agnello estavam sentados do lado de fora da cabana de


McCreary, bebendo cerveja e olhando por sobre a orla da mata as águas
luminosas da pequena baía entre os dois contrafortes de pedra. A pequena
distância, as duas moças riam-se por sobre as fogueiras acesas para o
preparo do jantar, de onde exalava o aroma exótico da comida nativa. Seria
a primeira vez que iriam servir uma refeição aos novos amos, e por isso
estavam caprichando ao máximo.

Os dois homens bebericavam a cerveja e fumavam satisfeitos,


conversando pouco.

O maquinista de cara de cavalo possuía um temperamento repousante,


que contrastava flagrantemente com a natureza esfuziante de Guido. Falava
pouco, como os que se bastam a si mesmos; suas frases simples,
pragmáticas, demonstravam uma tranquila convicção. McCreary considerou-
o companhia bastante satisfatória para aquele fim de tarde, quando ele
também se achava imerso em seus pensamentos.

Já estavam na metade da segunda garrafa de cerveja quando Agnello


disse calmamente:

— Gosto disto. Agrada-me muito.

— O quê? A cerveja? — McCreary estava longe dali... lá no alto da


montanha, com Lisette.

— Não, deste trabalho. Ver algo nascer das próprias mãos. Fazer um
furo no chão e ver jorrar petróleo. Sou maquinista, e tenho grande respeito
pelo óleo.

— Muita gente tem — disse McCreary com ironia.


— Não. Só o encaram como um produto, uma fonte de lucros. Um
maquinista não, encara-o como uma fonte de vida das coisas de que ele mais
gosta no mundo: bons motores girando suavemente em seus eixos.

— Ótimo pensamento — disse McCreary. — Bem melhor do que os que


tenho ouvido ultimamente. Diga-me, Agnello, como foi que você se juntou a
essa turma? Por que ficou com ela?

Agnello fumou placidamente o seu cachimbo e ponderou sobre a


pergunta.

— Muito simples. Aqui eu sou o número um. Num navio grande, seria o
número dois. Ninguém me amola e ganho bem. Isso tem importância. Em
Florença, tenho mulher e duas filhas, que logo vão precisar de dotes.
Portanto, é bastante conveniente para mim.

— Felizardo.

Agnello continuou fumando, tomando cerveja e olhando a lua que


nascia. Apesar do aspecto equino e do olhar melancólico, parecia a
McCreary que o italiano deveria ser singularmente feliz. A pergunta que fez
a seguir provocou um sorriso em McCreary. Agnello pigarreou, um tanto
nervoso, e apontou com o polegar as moças junto às fogueiras. Falou
desajeitadamente:

— O que... que esperam que eu faça com aquilo?

McCreary riu baixo.

— Isso é com você, Agnello.

Agnello franziu a testa e resmungou, pouco satisfeito:

— Eu sei, mas... mas não estou interessado. Quando eu era mais moço,
não me importava de bancar o idiota. Mas agora, quando vejo amigos meus
indo para aquelas casas perto do cais, quando vejo coisas como as que
aconteceram ontem à noite, no palácio, penso em minhas filhas e não me
animo.
Perguntei por perguntar, longe de mim querer criticar o que você faz;
mas quanto a mim...

McCreary deixou cair o cigarro no chão e amassou-o com o salto. Deu


um sorriso de lado na escuridão e disse:

— Estou com você, Agnello. Enquanto estiver aqui, dividiremos a


minha cabana. Assim você me ajudará a não fazer asneiras. As moças podem
dormir juntas.

Pela primeira vez, um sorriso aflorou aos lábios do maquinista, que


disse, em tom de reconhecimento:

— Obrigado, amigo. Agora vou poder comer com apetite.

Riram-se, e McCreary achou igualmente que iria comer e dormir


melhor, além de alimentar alguma esperança de conseguir mais um aliado.

As jovens trouxeram uma das mesas da cabana e colocaram nela os


pratos de arroz fumegante e peixe temperado com caril, rodeado de pequenas
porções de condimentos, sobre folhas verdes. Depois, elas se acocoraram na
relva e ficaram observando os dois homens provarem cautelosamente os
pratos nada familiares a seu paladar e por fim começarem a apreciá-los.

As duas começaram a rir com acanhamento quando McCreary elogiou a


refeição e lhes disse que podiam também comer. Flor Flamejante vacilou por
um instante, depois perguntou:

— Quando devo vir para tuan?

— Hoje, não — disse McCreary suavemente.

— Eu a chamarei quando for preciso. Esta noite tenho assuntos a tratar


com meu amigo.

— A noite inteira? — Seus olhos infantis refletiam incredulidade.

McCreary sorriu e correu os dedos pelos cabelos sedosos e perfumados


da garota.
— A noite inteira, não. Mas estamos cansados. Temos de começar a
trabalhar cedo amanhã, e precisamos dormir bem.

A moça acenou com a cabeça, e seu pequeno rosto moreno abriu-se num
sorriso radiante. Aquilo, sim, ela entendia. Desde que tuan gostasse dela,
haveria sempre um amanhã e as noites subsequentes. Vergonhoso era quando
uma mulher não tinha poderes para atrair um homem, e ela desejava
ardentemente atrair aquele homem esguio de voz terna e olhos risonhos.

Voltou-se e dirigiu-se para junto da companheira. Bem mais tarde,


enquanto Agnello roncava, McCreary ouviu as vozes sussurrantes das duas
na cabana que lhes fora designada. Elas o faziam recordar-se de Lisette,
encerrada com tantas mulheres estranhas no palácio nababesco da colina. A
simples lembrança dela apertava-lhe o coração, chegando a produzir-lhe
uma dor física.

Cedo, na manhã seguinte, enquanto Agnello estava com Miranda e os


grupos de trabalhadores, Guido se fez anunciar pela cigarra do aparelho.

— Rubensohn está a caminho daí. Ele me entregou uma mensagem para


transmitir a Morrison.

— Qual é? — indagou McCreary, utilizando desajeitadamente os sinais.


Fazia muito tempo que não trabalhava com transmissor, e seus dedos ainda
não haviam readquirido a antiga agilidade.

— Começa assim... Trabalhos iniciados pt Espero resultados para


breve pt Aguarde notícias pt. Só isso. Já a transmiti.

— Muito bem. Mais alguma novidade?

— A briga entre Janzoon e Alfieri continua. Motivo: comando do


Corsário. Contarei mais pessoalmente. Mensageiro do palácio madrugou
hoje com mensagem para Rubensohn. Nada mais de novo.

— Obrigado. Não se esqueça do binóculo.


— Levarei esta tarde. Pratique transmissão de mensagens. Difícil de se
entender.

McCreary bateu letra por letra: “Vá para o inferno!”, e desligou.

Pôs de lado os fones e acendeu um cigarro. Sorria intimamente. Sua


conversa com Rubensohn começara a surtir efeito. Para encobrir as próprias
manobras, Rubensohn devia ter falado com Janzoon e distorcido a versão da
ambição de Alfieri com relação ao posto. Fazia parte da sua técnica turvar o
ambiente e sair lucrando com a confusão entre seus subordinados.

Bem, ele também havia turvado um pouco as coisas, e, com a


excentricidade dos celtas, sentia grande satisfação nisso. Saiu da cabana
para o sol escaldante, chamou Flor Flamejante para arrumar as coisas e
desceu a encosta que conduzia ao local de trabalho, assobiando jovialmente.

Dessa vez era uma antiga melodia, chamada lá em Kerry de The hounds
of Glenloe. Falava de uma caçada, com todos se esfalfando morro acima e
morro abaixo, enquanto a matreira raposa, sentada calmamente em sua toca,
fazia-lhes “fiau”! Já havia algum tempo que McCreary começara a
simpatizar com a Irmã Raposa.

Miranda dava ordens a um grupo de rapazes que empilhava os grandes


tambores de combustível debaixo de um abrigo coberto com folhas de
palmeira. Ao ver McCreary surgir em sua direção, mostrou os dentes
manchados de bétel num sorriso e começou logo a monologar em voz áspera.

— Estamos indo bem, não acha? Olhe só! Já começa a parecer alguma
coisa. A gente tem de compreender esses sujeitos. A gente tem de rir para
eles, mas ficar sempre de olho neles, para que trabalhem de verdade. Espero
que esteja satisfeito. Se quiser alguma coisa é só dizer aqui para Miranda.
Providencio logo. Prometi ao sr. Rubensohn cooperação total. E, quando eu
prometo, cumpro. Préstimos em troca de dinheiro, hem? É um bom negócio
para nós dois.

Miranda umedeceu os lábios. Seus olhos estrábicos olhavam a um só


tempo para direções opostas. Falou num sussurro confidencial:
— O senhor... será que poderia me vender uma garrafa de uísque? Essas
bebidas nativas acabam com a gente. Claro que eu pagarei...

— Eu lhe dou uma garrafa de presente — disse McCreary em tom


categórico.

Miranda começou a se desmanchar num profuso discurso de


agradecimentos, mas McCreary interrompeu-o abruptamente:

— Diga-me uma coisa: quanto está recebendo por isto?

— Três libras esterlinas por dia, em rupias indonésias. É uma ninharia,


eu sei, mas...

— Mas não ganharia isso em outro lugar, além de tirar comissão do


salário dos trabalhadores, do lucro que tem no material que fornece e dos
mantimentos...

Miranda ergueu os ombros e abriu as mãos em sinal de protesto.

— Ah, um pouquinho aqui, um pouquinho ali. Mas é normal em


negócios, não é? Afinal de contas, sou mesmo é negociante. Este emprego
aqui me impede de fazer minhas viagens costumeiras, portanto tenho direito
a um pequeno lucro, não acha?

McCreary sorriu ironicamente.

— Isso não é comigo, Miranda. Quem o contratou foi Rubensohn. Eu


apenas trabalho aqui. — Tirou do bolso um maço de cigarros e ofereceu-lhe
um. — Onde é que você em geral negocia?

Miranda soltou uma longa baforada e disse, sem hesitar, como um


príncipe mercante:

— Ah! Em Ambon, Buru, leste de Kai Ketjil, sul do Timor Lant e Timor.

— Com que você trabalha?


— Alimentos, condimentos, tecidos, coisas normais... a maior parte
aqui e barganha. Às vezes, um pouco de pedras, ouro e prataria. Há um
pequeno mercado em Díli, de exportação para a Europa. De vez em quando,
uma ou duas garotas para alegrar o sultão. Sabe como é.

— Claro — disse McCreary.

— Talvez... — Miranda hesitou. — Talvez o senhor também faça seus


negociozinhos por fora, hem?

— Pouca coisa. — McCreary ergueu uma sobrancelha de forma


indagativa. — Você sabe de algum negócio?

— Eu poderia lhe arranjar alguma coisa... quem sabe?

— O quê, por exemplo?

— Isto aqui. — Miranda indicou com o polegar as pilhas de tambores


de gasolina. — Pago-os em ouro em Díli, e é o único lugar onde posso
comprá-los. Mas não posso fazer estoque deles, porque assim perco espaço
útil de carga. Por isso, metade da viagem de chalupa eu faço a vela. Isso
duplica o meu tempo e corta pela metade o meu lucro. O senhor tem ali mais
do que precisa. Faço-lhe uma boa oferta. Pedras, um pouco de jade, belas
peças e outras coisas. Se estiver interessado, posso lhe mostrar.

— Pode trazê-las à minha cabana uma noite destas. A gente conversa.

Miranda arreganhou os lábios num largo sorriso de compreensão,


exibindo os dentes manchados.

— Ótimo, ótimo! Acho que vai gostar. E isso fica entre nós, hem? Outra
coisa. Se quiser uma garota...

— Já tenho uma — replicou McCreary abruptamente —, e não dou


conta dela. Agora, mexa-se! Quero esse troço empilhado dentro de vinte
minutos. Depois, pode começar com a estrutura.

— Sim, senhor! — Miranda afastou-se, praguejando com os


trabalhadores em fluente dialeto malaio. McCreary observou-o com irônica
satisfação.

Foi então que viu Rubensohn aproximando-se da clareira, como um


rajá, numa liteira sustida por seis homens. Vestia um terno de tussor e um
chapéu panamá branco e fumava um de seus imensos charutos.

Baixaram a liteira até o chão, e ele desceu, desajeitadamente. Ficou por


um momento observando a clareira, inspecionando com olhar crítico o
andamento dos trabalhos.

McCreary jogou fora o cigarro e aproximou-se dele. Rubensohn


cumprimentou-o alegremente.

— Assim é que eu gosto de ver, McCreary! Boa organização, trabalho


rápido. Tem tudo de que precisa?

— Por enquanto, sim.

— Quando acha que vai poder fazer a perfuração?

— Ainda é cedo para dizer. Dentro de uma semana a parte externa


estará pronta.

— Ótimo. Está satisfeito com Miranda?

— Até agora, sim.

— A mão-de-obra é suficiente?

— É.

— Outra coisa, McCreary. Sinto muito, mas terei de privá-lo de


Agnello por uns dois dias.

— Por quê?

Rubensohn ergueu os ombros.


— Um recado que recebi do palácio. Demos ao sultão, de presente,
equipamentos mecânicos... um gerador, um automóvel... Ele quer vê-los
funcionar. A iluminação é que vai ser difícil: uma porção de fiação a ser
colocada, e...

— Não posso dispor de Agnello! — disse McCreary.

Rubensohn franziu a testa.

— Compreenda, McCreary. Isto é...

— Compreendo muito bem! — disse McCreary com determinação. —


Você me deu carta branca aqui. Está vendo em que fase estamos agora. Sem
Agnello não posso fazer isto funcionar dentro do prazo. O problema é esse.

Rubensohn desculpou-se:

— Sinto muito, McCreary, mas você sabe como as coisas são por estas
bandas. O sultão é o Umbigo do Universo... primo em primeiro grau do
Todo- Poderoso. Não posso recusar. Ele pode fazer o nosso trabalho parar
com um simples estalar de dedos.

McCreary pensou por um momento. Estava tudo perfeitamente claro,


mas se alguém fosse ao palácio teria de ser quem pudesse proporcionar-lhe,
e a Lisette, alguma vantagem. Disse, irritado:

— Por que desperdiçar um maquinista tão competente numa tarefa


simples dessas? Qualquer aprendiz de eletricista serve. Deixe Agnello
comigo e mande Guido no lugar dele. Ele trabalha com equipamento de
transmissão... sabe como dispor a fiação e ligá-la ao gerador. E claro que
também sabe dirigir um carro. Diabo, Rubensohn, sejamos sensatos! Pouco
me importa que o sultão durma o resto da vida à luz de velas, mas para nós
dois é importante que esta maquinaria funcione no prazo certo. Quero
Agnello aqui!

Era evidente que a sugestão agradara a Rubensohn. Disse com


entusiasmo:
— Claro! Não sei como não pensei nisso. Guido é de fato a pessoa
indicada. Vou mandá-lo lá depois do almoço.

— Deixe para amanhã — disse McCreary. — Pedi que ele viesse hoje à
tarde dar uma olhada no transmissor, que não está funcionando bem.

Rubensohn deu uma risadinha estridente e bateu-lhe no ombro.

— Você é um sujeito rebelde, McCreary. Mas gosto da sua maneira de


trabalhar. Inspira confiança.

— Sem dúvida — disse McCreary, mal-humorado. — Bem, se quiser


dar uma espiada por aí, posso dispor de uns dez minutos. Agnello não fala
bem malaio, e tenho de ensinar uma dúzia desses camaradas a montar e
aparafusar as partes da torre.

Contudo, não era tão fácil desembaraçar-se de Rubensohn. Mesmo


depois que McCreary o deixou para começar a trabalhar na estrutura de aço
da torre, ele andou de um lado para outro pela clareira, observando o
trabalho com seus olhos astutos e calculistas. McCreary receou que ele não
se fosse antes da chegada de Guido, perturbando, dessa forma, a primeira
oportunidade que teria de comunicar-se com Lisette.

Pouco antes do meio-dia, porém, Rubensohn começou a demonstrar


sinais de fadiga. Seu terno de tussor estava molhado sob as axilas, e o suor
escorria-lhe pelo rosto pálido. Sentou-se sobre um toro de madeira, enxugou
o rosto e tentou fumar outro charuto. Então, subitamente, capitulou e fez sinal
aos carregadores da liteira para se aproximarem. Gritou as suas despedidas
para McCreary e partiu. A figura de branco foi balançando colina abaixo e
penetrou na mata.

McCreary desceu da estrutura de aço e chamou Agnello.

— Vamos tomar uma cerveja, Agnello?

— Está bem. Mas ainda não é meio-dia.


— Os rapazes estão indo bem. Vamos deixá-los continuar. Quero falar
com você.

Subiram juntos o pequeno declive que levava às cabanas de moradia e


mergulharam na sombra reconfortante, recendendo a folhas e grama recém-
cortada, além do perfume almiscarado de Flor Flamejante.

McCreary apanhou a cerveja, brindaram-se e emborcaram os primeiros


copos, sedentos como estavam, de urna só vez.

— Mais uma, Agnello?

— Obrigado. Até que não é má ideia.

Passaram, dessa vez, a sorver a cerveja aos poucos, saboreando-a com


deleite. McCreary disse com afabilidade:

— Tenho uma coisa a lhe contar, Agnello, uma história muito comprida.

Agnello aquiesceu com a cabeça e disse:

— Ontem à noite você me acordou com seus gritos; olhei e você estava
dormindo.

— Falei muito?

— O suficiente.

— Muito bem. Pois agora vou lhe contar o resto. Assim que acabar, fica
a seu critério me ajudar ou não. Em caso negativo, eu saberei compreender,
mas espero contar com a sua reserva.

— Pode contar — disse Agnello com voz grave e incisiva.

McCreary então contou-lhe tudo.

Ao terminar, o rosto de Agnello parecia ter-se espichado ainda mais e


seus olhos límpidos denotavam indignação. Disse com sinceridade:
— Que sujeira! E vender uma mulher dessa maneira é o cúmulo! Eu
tenho filhas... boas moças. Por isso, esse negócio me deixa ainda mais
enojado.

— Então está disposto a me ajudar?

— Se for possível, ajudo. Como?

McCreary falou-lhe sobre o pedido do sultão e como havia persuadido


Rubensohn a mandar Guido no lugar dele. E acrescentou:

— Tenho a impressão de que Guido conseguirá entrar em contato com


Lisette. Pelo menos, poderá ter uma noção da planta do palácio e,
principalmente, dos alojamentos das mulheres. Assim que ele chegar, hoje à
tarde, vou levá-lo ao alto da montanha para vermos qual o ângulo do palácio
que se vê de lá. É possível que eu passe cada vez mais tempo lá em cima nos
próximos dias. Você poderia controlar as coisas por aqui na minha ausência?
E responder às perguntas de Rubensohn, caso ele venha numa hora em que eu
não esteja aqui?

— Não há problema — disse Agnello. — Mas você tem que planejar


muito mais que isso.

— Eu sei — respondeu McCreary. — Mas por enquanto não posso me


adiantar muito. Tenho de agir de acordo com os acontecimentos. A maior
dificuldade é nos safarmos desta ilha assim que eu conseguir tirar Lisette de
lá.

Agnello depôs a cerveja e começou a encher o cachimbo com enervante


circunspeção. Depois, disse calmamente:

— Miranda tem uma chalupa.

— Mas não posso confiar inteiramente em Miranda.

— E nem precisa. Você não disse que ele lhe propôs comprar gasolina
daqui do acampamento? Pois então. É só você dizer que não pode agir assim
abertamente, nem vender tudo de uma vez. Sugira que leve a chalupa para
aquela baía ali, para você poder entregar um tambor agora e os outros mais
tarde. O transporte poderá ser feito à noite. Ele ficará ancorado por ali
enquanto tiver oportunidade de conseguir mais tambores. Dessa maneira,
você terá um barco devidamente abastecido e pronto para zarpar quando lhe
convier.

McCreary assobiou baixinho.

— Puxa vida! Não é que pode mesmo dar certo? E se eu arranjar uma
dessas pirogas nativas e começar a me interessar por pescarias noturnas,
para que não estranhem a minha presença nas imediações... Vamos tomar
outra cerveja para comemorar essa ideia espetacular.

— Para mim basta — disse Agnello com seu nálido sorriso. — Vou
descer para ver como o trabalho está andando. Esses nativos são
inteligentes, mas são como a gente do sul lá da minha terra. Preferem cantar
e se aquecer ao sol a trabalhar de verdade.

McCreary observou-o descendo lentamente em direção à torre, a


própria imagem da satisfação sem falsidade do sujeito que põe os motores
do navio para funcionar enquanto os passageiros bebem e seduzem as
esposas dos outros, e o capitão toma café com o agente do armador.

Retornou à cabana, apanhou lápis e papel e começou a fazer um esboço


do plano de campanha.

A miúda jovem morena aproximara-se e, sentada de cócoras aos seus


pés, observava-o de olhos bem abertos, em atitude de expectativa. McCreary
esbarrou-lhe distraidamente na cabeça, e ela encostou-se a ele, ronronando
como uma gatinha satisfeita.

McCreary levara vinte minutos para se aperceber de que ali estava


outro aliado, provavelmente o mais poderoso de todos.

Recurvou-se e ergueu-a, como a uma pluma, e sentou-a à sua frente


sobre a mesa. Ela sorriu como uma garotinha, perfeita como uma boneca,
com seios pequenos e empinados, pele cor de mel e mãos minúsculas e
expressivas.
Ele perguntou-lhe com meiguice:

— O que é que você fazia no palácio, menina?

— Era criada das mulheres do sultão. Às vezes, quando uma das outras
ficava doente, eu dançava nos bailados djoged.

— Você vivia presa como as mulheres do sultão?

Ela riu, divertida com a ignorância dele.

— Não! Só as esposas e as concubinas levam essa vida. Nós outras


tínhamos liberdade para entrar e sair. Não éramos nem noivas, nem
concubinas.

— Que teria acontecido a você, se não a tivessem dado a mim de


presente?

Ela fez beicinho e deu de ombros, com indiferença.

— Um dos servos talvez quisesse casar-se comigo. Talvez o sultão me


desse de presente a um membro da corte. Nós éramos propriedade dele, e
faríamos o que desejasse.

— Você nasceu no palácio?

— Não. Nasci na cidade, mas meus pais me deram para o palácio,


porque eram pobres e não podiam pagar o tributo cobrado pelo sultão.

— O que fazem as mulheres... as mulheres do sultão?

— Sentam-se e conversam. Escutam os músicos atrás dos biombos.


Comem doces, costuram e têm filhos. De vez em quando, passeiam no jardim
privativo, para tomar ar fresco.

— E nenhum homem pode chegar perto delas... só o sultão?

— Homem nenhum. Há guardas nas portas, e qualquer homem que tente


entrar lá morre.
— Quer dizer que elas nunca têm amantes?

Os olhos da jovem arregalaram-se de surpresa, mostrando um leve


temor.

— Ah, não! Quem teria coragem de correr o risco de enfrentar os


carrascos e morrer queimado?

— Como assim?

Ela explicou, com muitos gestos das graciosas mãozinhas. Se uma


mulher fosse infiel ao sultão, ela e o amante seriam primeiro torturados.
Depois, seriam amarrados e atirados juntos no Gurung Merapi, a montanha
de fogo.

Uma perspectiva sinistra, pensou McCreary. Capaz de esfriar o ardor de


qualquer amante. Imaginou Lisette encerrada entre as ociosas e tagarelas
concubinas, sofrendo em silêncio nos jardins fortificados com altos
paredões, e o pensamento encheu-o de rancor contra Rubensohn, responsável
por tudo aquilo. Flor Flamejante observava-o com olhar perplexo e curioso.
Ele tirou bruscamente um cigarro do maço e meteu-o na boca. Quando ia
acendê-lo, a jovem tirou-lhe o isqueiro das mãos e riu, deleitada, quando por
fim conseguiu produzir a chama. McCreary fumou em silêncio por instantes,
conjecturando como fazer a pergunta seguinte. Recordou a advertência de
Guido de que a garota também era mulher, passível de ciúmes e de vingança.
De repente brotou-lhe uma ideia. Disse-lhe com ar tristonho:

— A mulher com que presentearam o sultão é minha irmã.

Para sua surpresa, Flor Flamejante gargalhou de alegria e bateu palmas.

— Então vocês dois devem estar muito felizes. É uma grande honra ser
mulher do sultão.

— Não! — exclamou ele, muito sério. — Sinto muita saudade dela.


Éramos como flores da mesma planta, feijões da mesma vagem. Ela não
queria ir. Queria se casar com alguém da mesma classe. Eu queria que ela
estivesse ao meu lado, quando eu também me casasse com a minha eleita.
Você compreende isso?

— Sim. As vezes vão para lá mulheres que não desejam ficar no


palácio. Ficam tristes e vivem chorando... mas só quando o sultão não está
lá.

— Eu tinha tanta vontade de mandar um bilhete para minha irmã —


disse McCreary — e receber um dela! Se eu soubesse que ela está feliz, eu
também me sentiria feliz. Você sabe como eu poderia mandá-lo?

— Eu posso levar para você.

— Pode mesmo?

— Naturalmente. E assim que as novidades chegam ao palácio. Nós


somos de dentro. Podemos voltar na hora que quisermos. Os guardas nos
conhecem e deixam a gente passar sem qualquer complicação.

— Puxa! — exclamou McCreary. — Nunca imaginei que fosse assim


tão simples.

— E quando você souber que ela está feliz — perguntou Flor


Flamejante com inocência —, começará a ser feliz comigo?

Aí, então, ele verificou que não era absolutamente simples. Era
terrivelmente complicado. Se não tomasse cuidado com a moça, ela acabaria
botando veneno no seu prato de arroz e Lisette poderia ir parar nas mãos do
carrasco do sultão.
13

— Que é que acha, Guido?

— Estreito — respondeu Guido enigmaticamente. — Estreito como a


boca de um navio. Se você olha para ele de frente, alarga-se até o flanco da
colina. Mas, daqui, não tem profundidade. A colina é como um penhasco
atrás dele, e o platô é estreito. Os jardins é que dão essa impressão.

Estavam deitados de bruços no alto da reentrância acima da área de


perfuração e olhavam na direção sul, ao longo do flanco da colina, para o
palácio do sultão. Abaixo deles estava a orla da floresta, e, acima, a
vegetação mais esparsa do morro. Achavam-se encobertos por dois grandes
blocos de pedra, e o binóculo trazia a construção quase ao alcance da mão.

— Que mais, Guido?

— Há uma colunata numa extremidade, e uma fonte no jardim, meio


escondida pelas árvores. Não... espere! Esse jardim é completamente
fechado. Não tem ligação com os jardins suspensos da frente.

— Está vendo alguém?

— Não. Está cheio de sombras.


McCreary consultou seu relógio.

— São três horas! Flor Flamejante disse que elas saem para tomar ar
fresco debaixo das árvores.

— Pode não ser esse o jardim delas.

— Tem de ser! — exclamou McCreary em tom desesperado. — Fica do


mesmo lado do muro que nós vimos lá no palácio. É separado dos outros
jardins. Tem de ser este!

— Tome, veja você mesmo!

Guido passou-lhe o binóculo, depois levantou-se, apoiado na rocha, e


acendeu um cigarro. McCreary focalizou o binóculo e examinou o jardim que
ficava por trás da alta muralha e da elaborada colunata. A fonte jorrava
mansamente, mas não se viam mulheres no jardim, salvo se estivessem
encobertas pelas árvores. Seria fácil distingui-las por suas roupagens de
cores vivas. Talvez, se aguardasse algum tempo, elas surgissem. A tarde
ainda ia em meio.

Mudou de posição e pôs-se a esquadrinhar a verdejante e íngreme


encosta que se estendia entre seu posto de observação e a divisa do palácio.

Quando chegasse a ocasião de retirar Lisette de lá, teriam de vir por ali,
pela encosta, atravessando as colinas inferiores para ganhar a reentrância
que dava acesso à zona de perfuração. A saída principal estaria obstruída
pelos guardas e trabalhadores da povoação.

Examinou meticulosamente a encosta de cima a baixo, percorrendo a


orla da mata e subindo pelas savanas espaçadas até chegar à depressão na
lombada do morro. Não havia trilha. O tapete verde era compacto, como se
por praxe ou alguma proibição o acesso ao palácio por ali fosse vedado à
população de Karang Sharo.

McCreary depôs o binóculo e esfregou os olhos.

— Por enquanto, nada. Vamos esperar um pouco mais.


— Tenha calma, amico, e diga o que quer que eu faça amanhã.

McCreary recostou-se à sombra de uma rocha e começou a dar suas


instruções. Eram claras e detalhadas. Planejara-as com o máximo de
ponderação.

— Primeiro, você vai ao palácio de manhã para instalar o sistema de


iluminação. O gerador não é muito potente, de forma que não iluminará o
palácio inteiro. Tenho a impressão — posso estar errado — de que
mandarão você iluminar os aposentos do sultão. Minha esperança é que lhe
peçam para estender a instalação até os alojamentos das mulheres. Mesmo
que isso não aconteça, você estará se locomovendo pelo palácio. Antes, terá
de escolher um local para o gerador do lado de fora, e depois preparar o
sistema de fiação. Isso lhe dará oportunidade de usar lápis e papel e traçar
alguns diagramas — saídas, entradas, posições dos guardas e, o mais
importante de tudo, os vários acessos aos alojamentos das mulheres. Se
puder encaixar uma chave geral em algum ponto acessível, talvez seja
bastante útil. Entendido, até aqui?

— Entendidíssimo — respondeu Guido com animação.

— Quais são os seus conhecimentos da língua malaia?

— Ah... linguagem de marinheiro — declarou Guido jovialmente. —


Você compreende... dinheiro, comida, bebida...

— E mulher!

— Seu espertinho. Como é que adivinhou?

— Minha avó era profetisa — disse McCreary.

— É uma pena você ser ignorante, senão poderia descobrir um bocado


de coisas batendo papo com as criadas, com o vizir, ou seja lá quem for que
vai acompanhá-lo por lá.

— Deixe comigo, compar’. Talvez você tenha uma surpresa.


— Assim espero. Agora, escute, Guido, que é a parte mais importante.
Não sei se vai haver possibilidade de você entrar em contato com Lisette...
isso é muito pouco provável. Não pode correr o risco de entregar-lhe um
bilhete. Não pode se arriscar a abordá-la diretamente, ainda que a veja. Mas
precisa, de algum modo, tentar dizer a ela que estamos planejando tirá-la de
lá, que é este o lado do palácio que ela deve observar, e que quando receber
um recado meu — seja de que maneira for — deve fazer o que eu mandar
sem titubear.

— Posso dizer isso cantando — sugeriu Guido com ironia.

— É exatamente isso o que você vai fazer — afirmou McCreary


abruptamente. — E pelo amor de Deus, cante em inglês e não em napolitano.
Nem o papa consegue entender napolitano!

— Você está me ofendendo, amico! O napolitano é a linguagem dos


amantes. Até a minha garota está começando a aprender. E por falar em
amantes, você não me deu tempo de falar dos nossos amigos do Corsário.

— Que amigos?

— Janzoon e Alfieri! — Guido recostou-se à rocha e soltou uma


gargalhada abafada. — Mamma mia, que espetáculo! Começou assim que
Rubensohn saiu do navio. Meu camarote fica perto da ponte de comando.
Ouvi Janzoon chamar Alfieri pelo alto-falante. Quando ele chegou, Janzoon
disse que tinha sabido pelo patrão que Alfieri queria o posto de comandante
quando ele, Janzoon, fosse embora. Alfieri gaguejou e negou. Gostaria de
chamar o patrão de mentiroso, mas não teve coragem. Janzoon descascou o
sujeito como uma banana, deu-lhe uma porção de tarefas extras, cancelou sua
autorização para ir a terra e disse que ia anotar tudo no diário de bordo.
Alfieri ficou o tempo todo olhando para o nariz veneziano e fungando,
porque não sabia em que terreno estava pisando. Ah, outra coisa...

— O quê?

— Janzoon mandou um recado para você. Vem lhe fazer uma visitinha
amanha cedo.
— Que será que ele pretende com isso?

Tornou a girar o corpo e focalizou o binóculo no jardim do palácio. Na


parte mais baixa, o muro parecia ter de três a três metros e meio de altura; no
ponto mais elevado, havia uma elevação brusca de uns quinze metros até as
árvores da mata. Um homem precisaria de corda e arpão para escalá-lo.
Seria mais simples sair do que entrar. Uma grande árvore erguia-se no canto
mais baixo, e seus grossos galhos pendiam até o nível do jardim.
Subitamente, seus olhos divisaram um lampejo de cores por entre as sombras
da colunata. Perdeu-as de vista por um momento, depois tornou a vê-lo.
Duas figuras de sarongue e blusa de tonalidades vivas caminhavam de mãos
dadas em direção à fonte. McCreary passou o binóculo a Guido e disse
rapidamente:

— Espie só, Guido... são homens ou mulheres? Desta distância todos


parecem iguais.

— Não para mim, amico! — replicou Guido, com a convicção de um


perito. — Deixe ver... Não, são mulheres. Vêm vindo mais duas, mas
nenhuma delas é Lisette.

— Estávamos certos! — exclamou McCreary com entusiasmo. — Aí


ficam o alojamento e o jardim das mulheres. Agora já sabemos onde
encontrá-la!

Entretanto, por mais que esperassem, revezando-se com o binóculo, não


conseguiram ver Lisette entre as mulheres que passeavam
despreocupadamente pelo jardim. Depois de muito tempo, desistiram e
desceram pelo mato em direção à área de perfuração.

Os trabalhadores azafamavam-se como formigas pela clareira, e a


estrutura de aço da torre ia se erguendo qual gigantesca teia de aranha contra
o céu.

Naquela noite, após o jantar, Miranda fez-lhe uma visita.

Agnello piscou com ar de compreensão e saiu para fumar o seu


cachimbo. As duas moças entraram vagarosamente na cabana e se sentaram
na cama, curiosas como crianças enquanto Miranda espalhava suas ofertas
em cima da mesa iluminada pelo lampião.

A primeira foi uma sacola de camurça com diamantes de rio, foscos e


sem vida, que Miranda derramou sobre a mesa. McCreary fitou-os,
dissimulando seu interesse. Um joalheiro poderia dar-lhes valor, mas para
McCreary pareciam um punhado de seixos. Havia outras pedras, esmeraldas
e rubis, polidas mas não facetadas, engastadas na frágil filigrana dos
artífices locais. Havia ainda duas estatuetas de jade, finamente lavradas, um
conjunto de marfim indiano representando as manifestações de Xiva, uma
série de adornos primorosamente executados e um par de adagas com pedras
incrustadas.

McCreary revirou-as nas mãos, impressionado com aquela beleza


estranha, exótica, muito embora ocultando seu interesse das vistas
mercenárias de Miranda. Disse com indiferença:

— Quanto vale isso?

Miranda fez um gesto vago com a mão suja e mostrou os dentes


separados num sorriso.

— Mais para o senhor que para mim. Veja como sou honesto com o
senhor. Meu melhor mercado é Díli: lá me oferecem mais ou menos a décima
parte do valor, e sou obrigado a aceitar. Mas o senhor... quando sair daqui,
pode ter um lucro fantástico. É coisa de primeira, o senhor sabe disso.

— Quanto vale para você agora?

— Digamos, trezentos galões? Trinta tambores?

— Trezentos! — McCreary soltou uma gargalhada e afastou a


mercadoria na mesa. — Que é que está pensando que eu sou, Miranda?

— Bem, vinte tambores?

— Deixe por quinze e talvez se faça negócio. Digo “talvez” —


McCreary levantou um dedo de advertência — porque é muito arriscado. Se
Rubensohn descobrir, eu estou no fogo... e você também. Perco meu
emprego, você perde seu lucro e o seu combustível. Aqueles tambores são
de dez galões cada um. Como pretende levá-los sem que ninguém veja? Não
pode simplesmente rolá-los até a praia, debaixo do nariz de Rubensohn.

— Eu podia vir de noite e extrair a gasolina com um sifão.

— Que ideia maluca é essa? Assim que começarmos a perfurar, sabe


Deus quem pode estar por aqui de noite. Nada disso; se você quer a
gasolina, faremos o seguinte. Tire a sua chalupa do ancoradouro principal e
ancore na enseada lá embaixo. Assim pode vir à noite e levar dois tambores
de cada vez. Não pode levar tudo nem numa semana. Até um imbecil com
metade de um olho perceberia, se desaparecessem todos de uma voz. Isso
terá de ser feito durante um mês ou seis semanas, mas em dias bem
espaçados, para não dar na vista. Nossos motores vão ficar funcionando dia
e noite durante a perfuração, e quero que pareça que o uso de combustível é
normal.

Miranda mostrou-se desolado e tentou regatear.

— Quinze tambores... cento e trinta galões... é pouco demais pelo que


estou pagando.

McCreary fez um gesto de descaso.

— O problema não é meu, Miranda. Foi você quem sugeriu o negócio.


Aceite se quiser.

— Talvez... talvez com mais uma garrafa de uísque...?

— Vou lhe dar mais uma garrafa de uísque, porque sou irlandês e
generoso. Negócio fechado?

— Estou sendo roubado... — lamentou-se Miranda. — Mas assim


mesmo...

— Está tendo muito lucro, e sabe disso muito bem — interrompeu


McCreary. — Metade disso tudo não vale nada, e a outra metade vai me
custar muita sola de sapato e comissão até que a venda.

Ouviram um ruído semelhante ao de um trem expresso, e o chão oscilou


fortemente sob seus pés. As moças gritaram e o lampião balançou até quase
encostar na folhagem do teto e voltou. Em seguida o barulho cessou e o chão
tornou a firmar-se. Todos se entreolharam sobressaltados.

— Tremor de terra — explicou Miranda, aflito. — De vez em quando


temos disso aqui. Mas esse foi forte. Às vezes... — umedeceu os lábios e
apontou para a parede ao fundo da cabana — às vezes fico achando que o
Gurung Merapi vai acordar e explodir, mandando-nos todos para o inferno.
Já faz muito tempo que está dormindo.

— Até que não seria má ideia — comentou McCreary laconicamente.


Chegou até a porta e gritou na escuridão: — Agnello! Tudo bem com você?

A voz de Agnello veio do lado da torre:

— Tudo bem! A estrutura também parece estar em ordem. Amanhã


cedinho vou fazer uma inspeção. Não aconteceu nada com o resto.

“Isso é que é maquinista”, pensou McCreary. “Cuida das máquinas


como dos filhos.”

Voltou para a cabana, juntou as jóias de Miranda e foi apanhar a garrafa


de uísque.

— Amanhã — disse Miranda, com ansiedade.

— Amanhã à noite levo o barco para o local combinado e posso


começar a carregar, não é?

— Certo. Mas vá aos poucos. Quanto mais tempo levar, melhor!

— Se você descobrir petróleo, pode ser que faça um negócio melhor


comigo, não?

— Se eu descobrir petróleo — afirmou McCreary amavelmente —, dou


o lote todo a você. Todos aqueles raios de tambores!
Enfiou a garrafa de uísque debaixo do braço de Miranda e acompanhou-
o até a porta da cabana. Depois, sentou-se à mesa, e pôs-se a revolver as
pedras e os outros objetos, deslizando os dedos pela superfície lisa do jade.
As duas jovens vieram espiar por cima dos seus ombros, sussurrando
entusiasticamente.

Ele entregou a cada uma um pequeno broche de ouro, deu-lhes uma


palmada, e mandou-as dormir. Era uma forma de mantê-las felizes, mas teria
de enriquecer muito para continuar lançando mão desse expediente.

Envolveu o restante numa camisa empoeirada e guardou-a na sacola; em


seguida, saiu para o plácido luar, a fim de fumar um último cigarro em
companhia de Agnello.

Caminharam em passos lentos ao redor da clareira, verificando se havia


algum indício de avarias causadas pelo tremor, mas nada encontraram.
Enquanto isso, McCreary fez a Agnello um relato sucinto dos acontecimentos
do dia.

Ao terminar, o maquinista resumiu:

— Até agora, só houve vantagens. Você tem duas possibilidades de se


comunicar com o palácio: Guido e a garota. Tem um barco, abastecido e
preparado para zarpar da ilha. Dois aliados: eu e Guido... três, contando
Flor Flamejante. Tem um pequeno capital em jóias para começar a vida em
alguma parte. Sabe o que eu faria se fosse você?

— O quê?

— Daria logo o fora daqui — respondeu Agnello, íleumático. —


Planeje bem e rápido, apanhe sua garota e saia da ilha. Esqueça o petróleo.
Esqueça Rubensohn. Pense unicamente na sua segurança e numa nova vida.
— Apontou com o cabo do cachimbo para o cone do Gurung Merapi, cujo
brilho enfumaçado parecia mais encolerizado depois do tremor. — Veja: se
quer um aviso, ali está. Você está sentado em cima de um vulcão. Fuja, antes
que comece uma erupção!
— Não! — exclamou McCreary com expressão sinistra. — Quero
apanhar Rubensohn. Quero ver aquele canalha humilhado e reduzido ao que
realmente é, e quero tirar tudo o que ele tem.

— Por quê?

— Aí é que está — disse McCreary com um sorriso. — Eu mesmo não


sei responder a essa pergunta, mas creio que é mais ou menos pelo seguinte:
há um milhão de mulheres no mundo que você pode levar para a cama, e com
quem pode ter filhos e viver razoavelmente satisfeito. No entanto, existe uma
única que é tão certa e perfeita para você que todas as outras passam a ser
sem graça e insossas. Há também vinte milhões de patifes a quem você
gostaria de quebrar os dentes com um murro. Mas existe o número um, o
maior de todos. Seja lá o que for que ele faça, para você parece duplamente
pior, você o detesta duplamente, deseja que morra e sofra uma dúzia de
vezes mais que os outros. Provavelmente — admitiu McCreary, com pesar
— porque ele é tão semelhante à sua própria imagem secreta que você não
pode nem olhar para ele. Também não tenho certeza quanto a isso. Mas é o
que sinto diante de Rubensohn. Se eu sair agora, mesmo com Lisette,
Rubensohn continuará incólume, inatingível, enquanto nós vaguearemos pelo
mundo como um par de fugitivos. Há uma acusação de assassinato contra
mim em Jacarta — e é o mesmo que dizer em três mil ilhas entre a Nova
Guiné e Cingapura. Minha garota foi vendida por um pedaço de papel, para
que Rubensohn possa embolsar alguns milhões. Não vou deixar que ele
escape impunemente. Não posso, de jeito nenhum. E este, meu velho, foi o
raio de discurso mais comprido que já fiz em toda a minha vida, e ainda não
estou certo se o que eu disse tem algum sentido.

Agnello chupava o seu cachimbo e meditava em silêncio. Se encontrou


alguma resposta, não teve tempo de formulá-la. O estrondo sobreveio
novamente e o solo começou a estremecer sob seus pés, fazendo com que as
apavoradas garotas deixassem a cabana e viessem juntar-se a eles.

Quando voltou o silêncio e o chão de novo se imobilizou, Agnello


ergueu os olhos para a montanha irada e disse serenamente:

— Qualquer dia, tudo isto irá pelos ares. Só espero não estar aqui para
ver.
14

O dia seguinte foi insuportavelmente longo.

Os trabalhadores nativos chegaram ao romper do dia e sem demora


começaram a labutar na torre, reforçando os alicerces contra futuros
tremores, erguendo as divisões de aço do formato de um elevado cone
afilado. McCreary e Agnello ocuparam-se do apoio dos motores, fixando
solidamente os grandes toros à terra e aparafusando com firmeza os blocos
aos entalhes feitos a machado.

Rubensohn apareceu na parte da manhã, transpirando e preocupadíssimo


com os efeitos do tremor de terra. Deram-lhe pouca atenção e fizeram com
que se fosse meia hora mais tarde.

Miranda, com os olhos injetados e desgrenhado, uma garrafa de uísque


presa ao cinto, arrastava os pés em meio às turmas de operários, incitando-
os com palavrões a redobrar suas atividades, enquanto os rapazes
cantarolavam e faziam-lhe caretas com o rosto oculto pela mão.

McCreary trabalhava com intensidade implacável, tentando afastar


Lisette do pensamento e imaginando constantemente o que estaria Guido
fazendo no palácio. Ao meio-dia, bebeu uma garrafa de cerveja e comeu uma
fatia de mamão, retornando vinte minutos depois para subir nas arestas da
torre e inspecionar o serviço executado pelo pessoal.

Às três da tarde, o comandante Janzoon chegou para falar com ele.

McCreary levou-o para a margem da clareira. Sentaram-se sobre um


toro de madeira e acenderam cigarros. Janzoon estava avermelhado, e o suor
escorria-lhe pela face. O cavanhaque mexia-se nervosamente. Sua voz
roufenha vacilou no preâmbulo.

— Quanto àquela proposta, McCreary... andei pensando sobre o


assunto, como tinha prometido. Eu acho... acho, não, tenho certeza... que
podemos fazer negócio.

— Ah, já se resolveu — disse McCreary secamente. — E qual é a sua


proposta?

— Nós nos aliamos — sugeriu Janzoon com ansiedade. — Trabalhamos


juntos, livramo-nos de Rubensohn e dividimos tudo meio a meio. Aliás, a
ideia foi sua, lembra-se?

McCreary atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada. Janzoon


olhou para ele, indignado e perplexo, enquanto os pássaros assustados
guinchavam nos galhos da frondosa casuarina às suas costas.

— Qual é a piada?

— É de você mesmo que estou rindo, Janzoon.

— Por quê?

— Rubensohn me convidou para aliar-me a ele e darmos cabo de você.

A boca de Janzoon foi se abrindo lentamente, e havia medo em seus


olhos. Para um homenzarrão como ele, com galões de comandante no braço,
era mínima a combatividade que denotava. Disse titubeante:

— Você não está falando sério, está?


— Estou — respondeu McCreary friamente.

— Ele me pediu que matasse você. Acha que Alfieri pode muito bem se
encarregar do navio, e ele e eu ficaríamos com a sua parte.

— Mas... você não acreditou nisso, acreditou? Sabe muito bem o que
ele pretende fazer, não sabe? Quer se livrar de nós dois. Fazer com que um
acabe com o outro!

— Sei disso, sim. — A voz de McCreary era amarga. — Portanto, o


melhor é eu tomar cuidado e agir como achar melhor. Vocês dois que vão
para o inferno!

— Mas, escute, McCreary. — Agarrou-lhe a manga com o punho


enorme.

McCreary afastou-o com um repelão e encarou-o com expressão


enérgica nos olhos e na boca apertada.

— Você é que vai escutar, Janzoon. Há dois dias, poderíamos ter feito
negócio. Agora, é tarde. Você sabia o que estava para acontecer a Lisette e
não me contou. Não ergueu um dedo para evitar aquilo. Foi com Rubensohn
levá-la ao palácio e viu-a ser entregue ao sultão como se fosse dinheiro sujo.
E ainda por cima está querendo tirar proveito disso! Muito bem, continue!
Boa sorte, mas não se esqueça de que está trabalhando por conta própria. E
o mais engraçado é que nunca vai ficar sabendo quem puxou o gatilho... eu
ou Rubensohn. Agora, dê o fora do meu acampamento. Temos muito serviço
aqui!

McCreary levantou-se e observou-o afastar-se pela clareira com passos


vacilantes, um homem que parecia um touro, com ambição desmedida e
espírito covarde. Não podia ao menos apiedar-se dele nem utilizar-lhe os
préstimos. Estava farto daquelas transações sub-reptícias e negociações
mercenárias. Queria uma luta renhida e às claras; quanto mais cedo
principiasse a perfurar, mais perto estaria da realização desse seu desejo.
Atirou longe o cigarro e encaminhou-se para a direita, onde Agnello
procurava ajustar uma peça do compressor.
Ao pôr-do-sol, a armação principal da torre estava terminada e as
máquinas, assentadas. Tinham feito algum progresso, o que muito os
satisfazia. McCreary gritou para as moças trazerem roupas limpas e dirigiu-
se com Agnello ao rio a fim de se banharem antes do jantar. Ficaram debaixo
de uma pequena cachoeira e deixaram a água fresca cair-lhes pelo corpo,
enquanto as jovens, sentadas num barranco, observavam-nos e teciam
comentários no dialeto local.

Mais tarde, enxutos e vestidos, atiraram a roupa suja para as duas e as


deixaram lavando-a. Ao emergirem dos arbustos, divisaram Guido.

McCreary saiu em disparada ao encontro dele.

— Quais são as notícias, Guido? Boas ou más? Você a viu? Conseguiu


dar-lhe o recado...?

Guido silenciou-o com um gesto extenuado.

— As novidades são boas, compar’, a maioria delas. Não cheguei a vê-


la, mas acho que consegui mandar-lhe um recado. E se eu não tomar um
banho e uma cerveja imediatamente, não lhe conto mais nada! Che brutta
giornata! Que dia infernal!

Levaram-no para o arroio e aguardaram pacientemente até que tirasse a


poeira da caminhada e mitigasse o cansaço. Em seguida, dirigiram-se todos
à cabana, colocaram algumas garrafas de cerveja à sua frente e sentaram-se à
mesa tosca, sob a lâmpada pendente, enquanto ele expunha os
acontecimentos do dia.

O estilo da narrativa de Guido foi vívido e teatral, pródigo em


pormenores.

—... Para começar, entramos da mesma forma daquela noite da festança,


com a diferença que dessa vez era dia e pude reparar melhor. Os portões são
de teca, de uns quatro metros de altura, com enormes espigões. Todo o muro
da frente e largo, como uma muralha de fortaleza, e os guardas ficam
rondando na parte superior. Têm armas compridas, daquelas que vocês
viram. Sabe Deus se costumam dispará-las, mas metem um medo danado.
Agora, os jardins... só terraços ligados por alguns degraus. Entrei pelo
mesmo lugar... portas lavradas, abertas mas guardadas por um homem de
cada lado. Agora, estou dentro. É uma entrada tão... — descreveu-a
rapidamente, desenhando uma planta. — À esquerda, portas de venezianas
com sentinelas. Descobri mais tarde que dão para os aposentos do sultão e,
acima dele, para os quartos dos cortesãos. Agora, vejamos primeiro isto.
Levei tempo para entender, mas é importante. O andar térreo e tudo o que há
por ali é para o sultão — seu alojamento particular, salões de recepção,
acomodações das mulheres e as cozinhas. O resto fica em cima... dois, três
andares, porque o Umbigo do Universo não pode se cansar subindo alguns
degraus. Agora, chegamos ao ponto. Eu tinha de fazer a instalação no enorme
salão onde está o trono... para o sultão dar o seu show quando a corte estiver
reunida. Acho também que ele tem medo dessas novidades nas suas salas
particulares. Foi uma decepção, mas eu me lembrei que atrás do salão ficam
as acomodações das mulheres. Então, tentei explicar que precisava de um
lugar para colocar o motor e o gerador. Riram e papaguearam, mas não
entendi nada. Depois, finalmente, levaram-me para o jardim, não o jardim
das mulheres, mas o terraço abaixo dele, de modo que pude ver o muro e a
árvore grande. Assentei as máquinas, depois corri o fio pelo alto do muro,
para ver se dava uma espiada lá dentro. Observei também a altura do muro,
e é mais ou menos a que calculamos com a ajuda do binóculo. Qualquer
pessoa pode se safar trepando na árvore e pulando o muro, mas entrar é
difícil, se não se usar uma corda e um gancho.

— Quer dizer que Lisette pode escapar?

— Sicuro! — exclamou Guido com veemência. — E se houver alguém


do lado de fora para apará-la, será mais fácil ainda.

— Continue, continue!

— Depois, entrei para colocar os fios no saguão. Fiz uma verdadeira


bagunça... amarrei os fios de uma coluna a outra, com lâmpadas simples nos
intervalos... mas ninguém se incomodou. Estavam achando uma beleza
aquilo. E enquanto eu trabalhava, ia cantando bem alto, de forma que no
princípio pensaram que eu era biruta, depois começaram a rir. Inventei uma
canção para combinar com a música de Marechiare, que falava de uma
pequena que toda noite, assim que escurecia, ia até o jardim espiar a
montanha, de onde o amante fazia um sinal com a lanterna, só um, bem nítido
e rápido. Depois eu dizia que um dia ela receberia um recado, e nessa
mesma noite veria três sinais da lanterna, o que significava que o amante
chegaria dentro de uma hora e que ela devia estar pronta para trepar na
árvore e pular o muro para se encontrar com ele. Cantei tantas vezes, e tão
alto, que até lá no navio devem ter escutado.

— Esperemos que isso não tenha acontecido

— observou McCreary. — E depois? Recebeu alguma resposta?

— Não sei bem se foi uma resposta — disse Guido com um leve
sorriso. — Mas quando acabei, escutei risadinhas e falatório atrás dos
biombos, e pouco depois uma criança chegou perto de mim com uma flor
vermelha na mão e disse, falando alto e em inglês, sem saber o que queria
dizer aquilo: “Para o homem”. Então, escutei-as rindo de novo. Passei a mão
pela cabeça da bambina e lhe dei de presente a minha lanterna preta... foi
uma ideia que tive depois... para ela poder responder ao seu sinal. Aí, os
homens também começaram a rir, todo mundo pensando que eu era um pazzo,
mas camarada. Então, deram-me um drinque e um prato de doces, que me
deixaram enjoado. Liguei os motores, acendi as luzes, ensinei a eles como
deviam fazer para acendê-las e apagá-las, e descobri que não tinham
compreendido nada. Aí, mandaram-me de volta para o navio, e, antes de
chegar lá, mandei a liteira embora e vim para cá a pé. E são essas as
novidades! Está satisfeito?

— Satisfeitíssimo! — exclamou McCreary. — Há muito tempo eu não


ouvia uma coisa que me agradasse tanto. Outra cerveja para ele, Agnello! Dê
quantas ele quiser. E, depois que ele tiver jantado, vou dar...

— Ah, outra coisa... — Os olhos de Guido cintilavam de malícia. — Só


para provar que tudo isso é verdade...

Remexeu no bolso da camisa e retirou um pequeno hibisco vermelho,


amassado e quase murcho, que depôs na palma da mão de McCreary.

— Acho que a intenção dela foi mandá-la para você. Minha voz não é
assim tão boa, principalmente quando canto em inglês.
— Obrigado, compar’ — disse McCreary com voz trêmula. — Mille,
mille grazie!

Então, Agnello retirou o cachimbo da boca e disse calmamente:

— Vamos ver se agora você pode me dizer uma coisa.

— O quê? — perguntou McCreary, absorto.

— Apenas isto. Já está começando a descobrir um jeito de dar o fora


desta ilha com a sua garota. E então?

— É fogo! — exclamou Guido com deleite. — Vai haver uma bagunça


danada. Sequestrar a noiva do sultão! Mamma mia! Aí, vão chamar os
guardas... com aqueles facões tortos.

— Justamente! — O rosto comprido de Agnello aumentou ainda mais.


— E lá está o Corsário no ancoradouro, com uma tripulação mista de
brancos, chineses, lascares e malaios. O que acontecerá a eles? Eles estão
lá, com exceção de Rubensohn e de Janzoon, como simples marinheiros. Não
têm nada a ver com esse negócio nojento. Que vai acontecer a eles quando
os facões entrarem em ação e os aldeões ficarem amok à procura da noiva
do sultão? Já pensou nisso?

— Já pensei, sim — respondeu McCreary.

Os dois olharam para ele, perplexos com o tom desconhecido que lhe
perceberam na voz.

A claridade do lampião batia-lhe em cheio na face, e eles puderam ver-


lhe o queixo, saliente, a boca quase como um fio de linha de tão comprimida,
e os perspicazes olhos irlandeses, que não mais estavam risonhos.

— Já pensou nisso — disse Agnello, positivo.

— E então?...

— Então, vou dizer a vocês. Cada dia e cada noite das próximas
semanas, quero que vocês meditem sobre o assunto, e até sonhem com ele,
para que, quando chegar a hora, ninguém cometa o mais leve engano.

Inclinaram-se, tensos e atentos, sobre a mesa de bambu, e ele lhes


contou exatamente o que iria suceder no dia em que o petróleo jorrasse.
15

Três dias depois, começariam a perfurar.

Rubensohn desejava transformar o fato em verdadeira comemoração:


formar os oficiais e a tripulação do navio, fazer descerem o sultão e sua
corte, oferecer champanha a todos, para então acionar os motores e ver as
brocas penetrando a terra pela primeira vez. Havia sensíveis traços teatrais
em seu temperamento.

McCreary rejeitou imediatamente a ideia, sem se preocupar em mostrar-


se polido.

— Escute aqui, Rubensohn, se se tratasse de um projeto normal, estaria


certo! Seria um ótimo golpe de publicidade, faria felizes os acionistas e
daria impulso às ações. Mas você sabe que não é um projeto normal... que
não passa de uma ladroeira muito suja, que começou com um assassinato.
Você quer o seu petróleo. Estou tentando fazê-lo jorrar. Por que desperdiçar
um dia com esse tipo de mistificação? Se tem champanha sobrando, mande-o
para cá. Vou ter um bocado de tempo para beber.

Rubensohn lançou-lhe um olhar penetrante, depois sacudiu os ombros.


— Como você quiser, naturalmente. Você é que manda. Mas por que
ficou tão escrupuloso agora? Está preocupado com alguma coisa?

— E não era para estar? — McCreary estava decidido a não lhe poupar
nem um momento de ansiedade. — Qualquer desses tremores podia ter
derrubado o equipamento, e teríamos de começar tudo de novo. Se eles
forem ficando mais fortes, podem fazer o poço desmoronar, e com isso
perderíamos nossas brocas e a cobertura.

— Você acha que os tremores vão se repetir?

— Como é que vou saber? Eu preveni você, posso responsabilizar-me


por dificuldades técnicas, mas nunca por acidentes inevitáveis. Se você
reparar na montanha lá em cima, pode notar que está mais quente e mais
brilhante do que quando chegamos. E natural... é uma espécie de válvula de
segurança. Mas o que está acontecendo debaixo da terra ninguém sabe.

Rubensohn franziu o cenho e afastou-se, transpirando por todos os


poros, sob o olhar mal-humorado de McCreary. Não havia a mínima
segurança num emprego daqueles, embora houvesse muito dinheiro em jogo.
Era o inconveniente de uma cartada desonesta. O lucro era avultado, mas
podia-se adquirir úlceras enquanto se aguardava o resultado, McCreary bem
o sabia. Participava da cartada.

Por conseguinte, quando puseram os motores em funcionamento e a


enorme broca começou a mastigar a macia camada superficial do solo,
achavam-se presentes apenas McCreary, Rubensohn, Agnello, Janzoon, as
moças e um punhado de trabalhadores. Depois de terem apreciado o trabalho
por algum tempo, McCreary levou-os à sua cabana, serviu-lhes bebidas e
declarou com firmeza:

— Daqui por diante, é uma questão de tempo. Vocês todos estão


ansiosos, e o mesmo acontece comigo, mas não quero ser importunado com
coisa alguma. Tenho de ficar vigiando a broca. Agnello pode vir de três em
três dias fazer uma vistoria nos motores e tratar das ferramentas. Quero que
me mandem uma máquina de escrever do navio e papel quadriculado.
Escreverei um diário e traçarei o progresso da perfuração num gráfico que
corresponda ao levantamento do geólogo. Remeterei uma cópia a vocês
todas as manhãs, por um mensageiro, para que fiquem a par do que acontece.
Guido entrará em contato comigo pelo transmissor para quaisquer outras
mensagens. Se eu precisar de qualquer coisa do navio, cabe a vocês fazerem
com que eu a receba sem demora. Em resumo, quero ficar sozinho. Está bem
claro?

— Perfeitamente — disse Rubensohn. — Mas você talvez fique por


muito tempo. Será que não vai precisar de companhia?

McCreary sorriu.

— Tenho Flor Flamejante para mc fazer companhia... e Miranda, caso


me dê vontade de ouvir anedotas obscenas. Quando Agnello vier, pode
passar a noite aqui. Quanto ao mais, talvez eu pesque um pouco, dê uns
passeios, e se algum dia me sentir muito sozinho, vou jantar no navio.

— Vá mesmo — disse Rubensohn com amabilidade. — Só nos dará


prazer.

— Estou certo disso — replicou McCreary.

— Vai ficar trabalhando a noite toda? — perguntou Janzoon.

— Eu, não — respondeu McCreary —, mas a aparelhagem, sim. Vocês


poderão olhar para cá de noite, ver as luzes da torre, e pensar nos milhões
que vão ganhar quando o petróleo jorrar.

— Você também os ganhará — retrucou Rubensohn. — Não se esqueça


disso.

— Não me esquecerei — disse McCreary. — Estarei o tempo todo


pensando nisso.

Depois que todos partiram, ele ficou no centro da clareira escutando os


baques surdos dos motores e observando a comprida haste de aço mergulhar
do cimo da torre como uma agulha reluzente. Sentia satisfação ao ver aquela
cena, a satisfação simples e profunda do profissional. Contudo, ela era
prejudicada pelo pensamento de que aquele projeto jamais passaria da fase
inicial. Não haveria adutoras correndo para as águas, a barulhada dos
reservatórios e postos de bombeamento, uma cidade formando-se à beira do
cais, nem navios ancorados na baía. A torre se enferrujaria sob as chuvas
das monções, e a mata ressurgiria para devorar os transitórios vestígios de
sua permanência ali.

Ao cair da noite, tornou a subir ao desfiladeiro do vale, de onde Guido


e ele haviam antes avistado o palácio. Levou o binóculo a tiracolo e uma
lanterna elétrica no bolso. Deu passadas rápidas e cronometrou
meticulosamente a caminhada: vinte e três minutos.

Quando chegou junto aos dois rochedos, deitou-se de bruços e


esquadrinhou o jardim e a colunata. Havia iluminação no palácio, mas o
jardim e as colunatas estavam imersos na escuridão. Mesmo que Lisette lá
estivesse, não havia esperança de vê-la.

Tirou a lanterna do bolso, apontou-a para lá e acendeu-a. Nada mais


que um segundo... e tornou a apagá-la. Esperou, com o coração batendo
descompassadamente, e nas sombras do jardim surgiu um tênue pontinho de
luz, qual estrela solitária. Desapareceu tão rapidamente que poderia ter sido
fruto da sua imaginação, mas revelou-lhe o que desejava. Ela recebera a
mensagem. Estava de posse da lanterna de Guido. Aguardaria até que ele
estivesse pronto para ir buscá-la.

Tornou a erguer o binóculo e vasculhou a área sombria que se estendia


entre o local onde se achava e o muro do jardim. Devia ter dois quilômetros
e meio no máximo. Contudo, não havia trilhas, e a mata era cerrada, com
vegetação rasteira e trepadeiras. Ela o ocultaria como um dossel, e ele teria
de caminhar por uma longa rampa. Teria de adquirir prática — através de
sucessivas viagens — até abrir uma trilha e reduzir o tempo despendido ao
mínimo possível. Quando chegasse a noite final, o tempo seria um fator
decisivo. Ao descobrirem a fuga de Lisette, dariam o alarma, e a ilha se
transformaria num formigueiro à sua procura.

Bem, aquilo era o princípio. Pôs-se de pé, perscrutou mais uma vez as
planícies e procurou delinear uma rota, subindo e descendo a encosta, até
terminar sob o muro do jardim. Em seguida, deu início à jornada. Um minuto
depois, era tragado pela selva.
Levou oitenta minutos para vencer o percurso, nas condições mais
penosas. Plantas rasteiras agarravam-se-lhe aos tornozelos, madeiras
apodrecidas desfaziam-se sob seus pés, espinhos dilaceravam-lhe a roupa e
galhos vergastavam-lhe o rosto. Pássaros agitavam-se ruidosamente à sua
passagem e insetos monstruosos adejavam à frente de seu rosto. O suor
escorria-lhe pelo corpo, e tinha as narinas impregnadas do mau cheiro da
vegetação putrefacta.

Quando, por fim, deparou com as pedras da muralha, percebeu,


horrorizado, que estava mais de trinta metros abaixo do seu objetivo, e que
um guarda armado de longo mosquete postava-se no parapeito bem acima
dele. Recuou para a vegetação como um animal assustado, levando outros
quinze minutos para chegar ao ponto em que a imensa magnólia vergava do
parapeito.

Escutou. Não percebeu ruídos no jardim, apenas um longínquo retinir de


ritmos gamelan que provinham do interior do palácio. Ergueu os olhos para
as pedras úmidas e limosas do muro. Este era mais acessível do que parecia
à distância — no máximo, três metros de altura. Os galhos pendiam quase a
ponto de poderem ser alcançados com um forte impulso. Por eles poder-se-
ia chegar ao alto da muralha. Teve de se esforçar para vencer a tentação de
fazê-lo naquele mesmo instante. Lisette se achava tão perto e, no entanto, não
podia juntar-se a ela, nem ao menos se atrevia a elevar a voz para chamá-la.

Verificou as horas e tornou a mergulhar nas trevas da mata.

Quando chegou ao acampamento, encontrou Flor Flamejante acocorada


do lado de fora de sua cabana, com os olhos arregalados de pavor. Ele
estivera ausente por quase quatro horas. Com sorte e prática, julgava ser
possível reduzir esse tempo para duas horas e meia. Caso contrário, as
possibilidades de sobrevivência seriam mínimas.

Foi ao arroio banhar-se e vestiu roupas limpas. Na volta, viu que Flor
Flamejante havia aprontado sua refeição. A jovem sentou-se a seus pés
enquanto ele comia, e, ao terminar, ela lhe entregou um cigarro e acendeu-o.
O pequeno truque com o isqueiro nunca deixava de diverti-la, mas nessa
noite seu rosto miúdo e infantil mostrava-se preocupado. Ela o fitou por um
momento e disse com relutância:
— Tuan...

— O que é, menina?

— Agora, que o outro tuan foi embora, posso dormir aqui com você?

McCreary olhou para ela com brandura. Ela era jovem e desenvolvida,
perfeita como uma flor tropical, e ele se sentia solitário, necessitado de
consolo. Até então vivera e amara despreocupadamente. Por que hesitar
agora? Podia tê-la sem o menor problema. Ali estava um presente régio,
inteiramente à sua disposição. Era só usá-la e depois abandoná-la com um
filho, esquecendo-a como o faziam tantos outros flibusteiros cujos
descendentes povoavam as ilhas asiáticas. Lisette não o culparia por isso.
Ninguém mais se importaria com isso, a não ser ele próprio. E ele se
importava singular e fortemente. Teve uma rápida visão da jovem na noite
decisiva, arrastada à presença dos carrascos, com o filho de McCreary no
ventre.

Como explicar tudo isso a ela com seus parcos conhecimentos do


idioma malaio? Como fazê-la com- prender sem humilhá-la e sem riscos
para ele e Lisette? Disse-lhe cautelosamente:

— Sabe onde estive hoje à noite, garota?

— Onde, tuan?

— Fiz uma longa caminhada pela mata.

— Não, tuan! — Ela levou a mão à boca. — Os espíritos dos mortos


estão espalhados pela floresta, e a Deusa da Morte fica rondando, montada
num monstro listrado.

Era uma estranha e distorcida versão de antiga crença hindu, ainda em


voga naquelas ilhas.

McCreary confirmou com um movimento de cabeça.

— Atravessei a mata e cheguei ao muro do jardim do sultão, e escutei


minha irmã chorando lá dentro. Não tive coragem de chamá-la, só fiquei
sentado, escutando. Pouco depois, ela foi embora.

— E depois, tuan? — Seus olhos estavam transbordantes de


compaixão.

— Fiz um voto aos meus deuses de não tocar em nenhuma mulher


enquanto minha irmã não saísse do palácio e voltasse para meu lado.

— Mas isso nunca vai acontecer, tuan. Nenhuma mulher sai daquele
palácio... nunca.

— Ela sairá. Uma noite ela sairá, e eu a levarei para longe de Karang
Sharo, e levarei também você comigo. Para um lugar onde o sultão nunca nos
encontrará.

— Jura que vai fazer isso, tuan?

— Juro.

— Então... então... já que não pode ter nada comigo... será que posso
vir dormir aqui na sua cabana? Quando estou sozinha e o chão começa a
tremer, fico morrendo de medo.

McCreary sorriu para ela, passou a mão pelos seus cabelos perfumados
e disse em inglês:

— Seja lá o que for que eu faça, você é um tormento constante para


mim, garota. Acho que tanto faz que você venha para cá.

— Que foi que disse, tuan?

— Eu disse que levarei você daqui, menina. Fica contente com isso?

— Desde que eu esteja perto de tuan, estou contente.

Ele não pôde deixar de imaginar que, se todas as mulheres do mundo


fossem como aquela, a vida seria bem mais fácil para o sexo masculino.
Despiu-se e deitou-se, enquanto Flor Flamejante subia à cama de Agnello.
Durante longo tempo McCreary ficou acordado, escutando a respiração
tranquila e regular da jovem, bem como as pancadas abafadas e constantes
dos motores impulsionando a perfuração. Em seguida, exausto, adormeceu.
Houve mais dois leves tremores durante a noite, mas nem ele nem Flor
Flamejante despertaram, e pela manhã encontrou a aparelhagem intata e a
broca adiantando-se em direção à primeira camada rochosa.

Nas semanas seguintes, os dias de McCreary foram rotineiros.


Levantava-se cedo, banhava-se no arroio e retornava à cabana para tomar o
café da manhã que Flor Flamejante já tinha preparado. Guido chamava-o
pelo rádio, e conversavam cautelosamente, temendo possíveis bisbilhoteiros
no navio.

Não estavam chegando mensagens para Rubensohn, exceto um


cabograma para a companhia em Cingapura, solicitando renovação do
crédito para estocagem de carvão no Corsário em Luzon e Hong Kong.
McCreary não fez qualquer comentário. O crédito poderia ser bastante útil
futuramente.

Após a transmissão matinal, ele se dirigia à aparelhagem, abastecia e


regulava os motores e orientava o pequeno grupo de trabalhadores que
mantivera. Verificou que aprendiam com facilidade.

À medida que as brocas iam perfurando mais fundo e a cobertura as


acompanhava, McCreary começou a retirar amostras da pirosfera,
confrontando-as com o levantamento do geólogo relativo a alterações nas
camadas.

À noite, ele anotava suas observações no diário e no mapa topográfico,


depois subia ao posto de observação e fazia o sinal para Lisette —
acendendo a lanterna uma única vez. Quando divisava o pontinho luminoso
em resposta, embrenhava-se de novo na mata e cronometrava o tempo que
levava para chegar ao muro do jardim e voltar. Após meia dúzia de
incursões, descobriu que poderia fazê-lo em duas horas e meia. Depois
disso, passou a pensar na possibilidade de reduzir esse tempo para duas
horas.
Nas noites em que Miranda ia buscar os tambores de combustível,
McCreary o acompanhava até a praia e passava uma hora pescando entre a
margem e o barco de Miranda.

O mestiço conseguira arrancar-lhe mais duas garrafas de uísque, e agora


havia uma canoa oculta sob os arbustos, pronta para ser utilizada a qualquer
momento. Era grande e de difícil manejo para um só homem, mas quando
chegasse a hora ela teria de comportar uma carga completa.

De três em três dias, Agnello chegava e passava o dia reparando as


brocas usadas, calibrando os motores e examinando os circuitos elétricos.
Depois do jantar, ia com McCreary ao posto de observação e aguardava até
que este retornasse da caminhada à muralha do palácio. Sentavam-se então
na cabana e fumavam placidamente, conversando a respeito dos planos para
o dia da fuga.

Agnello conseguira um novo aliado: o jovem oficial Arturo. Ele lhes


seria conveniente na noite decisiva. De resto, as notícias procedentes do
navio eram sem importância. Rubensohn passava grande parte do tempo em
seu camarote, escrevendo e estudando os relatórios de McCreary. Janzoon e
Alfieri estavam de relações cortadas, e as garotas davam mais amolação que
prazer.

McCreary riu entre dentres com o relato seco de Agnello. Sabia quanto
o humor de Rubensohn devia estar se desgastando com a espera. Lamentava
não poder prolongá-la ao máximo.

Ao que parecia, uma coisa preocupava-os a todos: o vulcão. Estava


mais ativo que nunca. Às vezes ouviam-no roncando, como uma trovoada ou
um gigante a ressonar. À noite, uma incandescência avermelhada iluminava o
cone, e de vez em quando viam uma saraivada de chispas elevar-se bem alto
no espaço e espalhar-se como fogos de artifício. Os tremores haviam se
tornado mais brandos, porém mais frequentes, e o rádio noticiara intensos
abalos em outras áreas.

— Pode não significar grande coisa — observou Agnello com sua voz
calma. — O Etna prega desses sustos de vez em quando. E o Stromboli está
sempre resmungando. Mas se ele... Deus nos livre!
— É melhor não pensarmos mais nisso — retrucou McCreary,
desassossegado — e esperar que estejamos longe daqui quando ele entrar
em erupção.

Contudo, não conseguiu esquecer o assunto, e mais de uma vez


despertou gritando após um pesadelo em que vira a montanha vomitando
fogo, que aos poucos tragava o palácio e os jardins, enquanto a voz de
Lisette bradava por socorro e ele era retido por mãos invisíveis.

Finalmente, uma tarde, foi recolhida nova amostra da pirosfera. Era


negra e porosa, e parecia uma crosta de cimento. Enquanto a manuseava,
percebeu que lhe deixava nas mãos uma mancha parda, semelhante a
alcatrão. McCreary fitou-a por longo tempo, com os lábios movendo-se sem
emitir qualquer som e o coração pulsando desordenadamente. Sabia o que
representava, já vira aquilo muitas vezes.

As brocas haviam atingido a camada porosa que algumas vezes reveste


uma jazida de petróleo, talvez a própria jazida. Para fazer o poço jorrar,
seria necessário arriar uma extensa porção da cobertura, carregada de
projéteis revestidos de aço. Quando estes fossem disparados por contato
elétrico, a crosta se estilhaçaria, liberando o petróleo e fazendo-o esguichar
para a superfície. Os geólogos estavam certos. Rubensohn acertara a cartada.
Existia petróleo em Karang Sharo. “Amanhã, Mike McCreary, você fará o
poço jorrar. Amanhã!”

Durante o resto da tarde e por longo tempo após o pôr-do-sol,


McCreary incitou seu grupo com extrema energia. A broca foi parada e
trazida à superfície. Os longos projéteis revestidos de aço foram
introduzidos na câmara de combustível e o conteúdo foi fundido. A câmara
foi baixada lentamente até a haste, e, feito isto, McCreary correu um par de
longos cabos condutores até sua cabana, carregando também para lá a caixa
de contato, que acomodou debaixo da cama.

Em seguida, dispensou os rapazes e ficou algum tempo fitando a imensa


torre, com suas escoras descobertas entrecruzadas contra as estrelas.
“Amanhã!”
Contudo, mesmo naquela noite havia muito a fazer. Ligou o rádio,
colocou os fones nos ouvidos, e pouco depois escutava o sinal impaciente de
Guido. Estava atrasado.

“Amanhã...” Bateu de leve as letras, com dedos trêmulos. “Avise


Agnello. Venha logo depois do almoço. Nem uma palavra a quem quer que
seja. É só. Nada mais esta noite.”

“Entendido”, respondeu Guido. “Entendido.” E McCreary sabia que


podia confiar nele. Há muito tempo vinha ponderando sobre o assunto.

Sentou-se à mesa, puxou a máquina de escrever e, lenta e penosamente,


começou a bater as letras. Eram dois documentos extensos e um mais curto.
Quando terminou, dobrou-os com cuidado e guardou-os na carteira, que
colocou debaixo do travesseiro. “Amanhã!”

Flor Flamejante serviu-lhe a refeição, que ele comeu, suado e sujo


como se achava, regando-a com duas garrafas de cerveja; depois, fumou três
cigarros.

Apanhou sua arma, lubrificou-a e experimentou meticulosamente o seu


funcionamento, carregou-a, correu a trava de segurança e colocou-a sob o
travesseiro ao lado da carteira. “Amanhã!”

Sentia-se extremamente exausto. A cabeça zumbia-lhe, as mãos


tremiam-lhe, todo o seu corpo se enchia de fadiga. Dirigiu-se ao arroio para
se banhar, sendo seguido por Flor Flamejante, e, ao postar-se sob a
refrescante queda-d’água, ela se acercou, ensaboou-o e esfregou-lhe o corpo
com mãos macias, depois enxugou-o, e ele retomou o caminho da cabana,
andando como um sonâmbulo.

Lá chegando, ela instou com McCreary para que se deitasse e dormisse,


mas ele se recusou a fazê-lo. Em lugar disso, ergueu-a e sentou-a sobre a
mesa, dizendo-lhe, atentamente, o que ela deveria fazer no dia seguinte.
Devia ir ao palácio, dirigir-se aos aposentos das mulheres e diverti-las com
o relato de sua vida com o tuan, dizendo a Lisette, displicentemente, como
se imitasse uma criancinha: “Esta noite... três luzes... espere!”
Ele a fez repetir várias vezes, como um papagaio, a fim de que não
houvesse qualquer engano. Em seguida, disse-lhe que voltasse logo depois
do almoço para confirmar que Lisette recebera a mensagem. Ela assentiu
com um aceno de cabeça e McCreary pediu-lhe que repetisse uma última
vez, devagar e com o máximo cuidado, suas instruções; ao perguntar-lhe
quais eram as palavras, ela expressou-as com clareza e sem titubear:

— Esta noite... três luzes... espere!

Nada mais havia a fazer até o dia seguinte. Deitou-se inteiramente


vestido e adormeceu instantaneamente. Mas Flor Flamejante, ao ouvi-lo
resmungar e lutar em seus pesadelos, acercou-se dele e acalmou-o
cantarolando com voz terna e acariciando-o com as mãos; após alguns
minutos, deitou-se a seu lado sobre as cobertas e colocou a cabeça dele
junto ao peito, para que quando sobreviessem os tremores ele não os
escutasse, e só despertasse quando já fosse... amanhã!
16

Os trabalhadores de Karang Sharo subiram a colina rindo e tagarelando


como era seu hábito. McCreary encarregou-os de reempilhar os materiais,
lustrar os motores, cortar madeira... enfim, de tudo o que pôde imaginar para
mantê-los atarefados e criar um clima ilusório de atividade normal.

Quando Miranda chegou, de olhar turvo e inquisitivo como uma


doninha, McCreary levou-o à cabana e disse-lhe o que desejava que ele
fizesse. Os olhos do sujeito arregalaram-se e ele ficou boquiaberto.

— Minha Nossa Senhora! Não posso fazer uma coisa dessas... Sabe o
que vai acontecer? Vou ficar arruinado! Vou perder tudo o que tenho!

— Você tem uma cabana e um monte de porcarias para negociar! —


retrucou McCreary com brutalidade. — Mais tarde eu lhe pagarei isso em
dobro. Tem também mulher e filhos, que não posso repor, e o pescoço, que
eu não reporia mesmo que pudesse. Se você ficar, será assassinado. Se tentar
me trair, eu mesmo acabarei com você. Decida-se!

— Não... não... não! — balbuciou Miranda, aterrorizado. — Pode dizer,


que eu faço tudo o que quiser. Mas promete pagar pelo barco e me dar uma
oportunidade de começar vida nova?
— Prometo! Agora, escute com muita atenção. Leve sua mulher e as
crianças para a chalupa... agora não, à tardinha! Depois, volte aqui. Se não
estiver aqui quando escurecer, mandarei Guido meter uma bala em você.
Entendeu bem?

— Entendi, sim... mas como pode ter certeza de que tudo vai sair
direito?

— Tenho certeza de que vai — respondeu McCreary. — Certeza


absoluta. Agora, suma-se daqui e volte quando escurecer. Quero que leve
uma mensagem ao navio.

Depois que ele se afastou, McCreary voltou-se para Flor Flamejante.


Rapidamente, ele a fez repetir a ladainha. Ela respondeu sem hesitação,
enunciando as palavras em inglês com a maior clareza. Então, ela também se
pôs a caminho, e ele seguiu com o coração a colorida figurinha a cintilar
como a plumagem de um papagaio até vê-la desaparecer dentro da mata.

Logo depois, chegava Guido, todo suado e agitado.

— Grandes acontecimentos, amico! Dia de festa! E lá no navio eles


cochilam, bebem e rosnam um para o outro como se fosse um dia comum.
Estão apavorados com a montanha. Não estão gostando nada dos estrondos e
das cuspidelas que ela dá. Eu caçôo deles e conto como foi quando o
Vesúvio ficou furioso. Andam com os olhos arregalados de medo, e até têm
tido indigestão de tanto se preocuparem.

— Não vão se preocupar por muito tempo, Guido. Esta noite será o fim
de tudo.

— Assim espero — disse Guido com fervor.

— Até eu já estou ficando meio chateado.

— Tudo em ordem no navio?

— Tudo. Agnello e Arturo já estão avisados. Estão a par de todos os


movimentos e dos horários.
— Os horários... tudo vai depender disso.

— É verdade — concordou Guido.

Sentaram-se para repassar as providências.

Pouco depois das quatro, Flor Flamejante regressou. Estivera nos


aposentos das mulheres. Elas a haviam recebido carinhosamente, tendo
escutado com avidez suas histórias sobre os tuans e suas maneiras estranhas.
Recitara as três palavrinhas para Lisette, e todas tinham rido a valer com as
caretas e gestos que fizera, sem compreender nada do que dizia.

Quando partira, haviam-lhe dado presentes, frutas, doces, um pente para


os cabelos e uma pulseira. Lisette ofertara-lhe um lenço de cambraia,
impregnado de perfume. A mensagem estava escrita no lenço com laca:
“Mike, venha cedo. No máximo, duas horas depois do pôr-do-sol”.

McCreary sorriu. Duas horas depois do pôr-do-sol ela ali estaria, na


cabana, à espera de Rubensohn e Janzoon. Os horários teriam de ser
cumpridos à risca. Esperava com fervor que Rubensohn e Janzoon
chegassem a tempo.

Às cinco horas, despediram os trabalhadores e em dez minutos a


clareira achava-se deserta.

Às cinco e meia, chegou Miranda, de olhos avermelhados e angustiado.


A família já estava a bordo da chalupa, e gostaria também de ir para lá o
mais cedo possível. Estava preocupado... não tinha jeito para esse tipo de
coisas... McCreary lhe garantia que o compensaria por suas perdas e o
auxiliaria a recomeçar a vida...?

Ele lhe assegurou não só isso, mas que o mataria se perdesse o sangue-
frio. Sentou-se e escreveu um lacônico bilhete a Rubensohn:

“Local da perfuração hoje à noite. Conferência urgente. Você e Janzoon.


Espero ter boas notícias. McCreary”.

Dobrou-o e entregou-o a Miranda.


— Você sairá daqui às seis, pelo relógio do Guido. Em passo normal,
chegará ao navio antes das sete. Não faça cera, não se apresse, e acima de
tudo não se distraia com coisa alguma. Se cometer qualquer engano de
cronometragem, estaremos todos mortos. Compreenda bem isso.

Miranda compreendeu, mas necessitou de bebida, cigarros e um misto


de ameaças e encorajamento para sustentar o reduzido ânimo que possuía.

Faltavam vinte minutos para as seis horas quando McCreary subiu a


trilha da montanha para o seu posto de observação. Carregava nos bolsos a
lanterna e a arma. Levava o binóculo em volta do pescoço e trazia aos
ombros, ao estilo dos alpinistas, boa quantidade de corda, com um grande
gancho preso a uma das extremidades. Agnello preparara-a para ele,
revestindo o gancho com uma mangueira de borracha a fim de que não
fizesse barulho ao chocar-se com as pedras da muralha. Subiu rapidamente a
ladeira, pensando em Lisette, refletindo sobre tudo o que deveria ser
realizado nas próximas horas, quando alguns minutos poderiam representar a
diferença entre o sucesso e o desastre.

Ao avizinhar-se dos rochedos, as trevas já envolviam a ilha, e o cone


do Gurung Merapi brilhava furiosamente contra o céu negro. Houve um
ronco surdo, e o morro estremeceu sob seus pés e gradualmente foi-se
imobilizando de novo. O cone do vulcão expeliu uma língua de fogo, que em
seguida declinou por entre a fumaça.

Ele permaneceu encostado à rocha, segurando o binóculo com uma das


mãos. Cautelosamente, como se mirasse com um revólver, apontou a lanterna
para além das rochas e acendeu-a... uma, duas, três vezes. A resposta veio
imediatamente. Três curtos clarões, um pouco aumentados pelo binóculo,
mas ainda pequenos e incertos, como sua própria esperança.

Colocou a lanterna no bolso, desceu a rampa e embrenhou-se na mata. O


caminho era-lhe mais familiar agora, os riscos, menores. A longa prática
fazia com que soubesse onde pisava, levando-o ora a um tronco tombado,
ora a um emaranhado de cipó, a um declive, e além do ruído de água, à
esquerda...
Arquejando e cambaleando, chegou à base da muralha e recostou-se a
ela para tomar fôlego. Consultou o relógio de pulso. Fizera o percurso em
quarenta minutos. Tinha uma margem de tempo um pouco maior, mas não
poderia desperdiçá-la.

Em passo mais moderado, subiu a rampa até o ponto em que a grande


magnólia pendia sobre o muro. O solo estava escorregadio devido à
umidade do morro. Tinha de tomar o máximo cuidado para não escorregar.

Desenrolou a corda e segurou o gancho revestido nas mãos. Tentou uma


vez atirá-lo, mas foi por demais cauteloso e o gancho veio cair a seus pés
com um baque surdo. Tentou de novo; o gancho prendeu-se no muro, mas a
um puxão da corda a borda do muro esboroou-se, produzindo uma chuva de
pedregulhos. McCreary apoiou-se nas pedras, tremendo. Não escutou
nenhum ruído no jardim além do murmúrio da fonte.

Com toda a cautela, tornou a tentar. Dessa vez o gancho firmou-se.


Experimentou-o com um forte puxão, repetindo o gesto algumas vezes.
Continuava firme. Pôs-se então a içar-se pela corda muro acima, protegido
pelas sombras dos galhos.

Chegando ao alto, ainda dependurado, espiou o jardim através dos


pequenos intervalos entre a folhagem.

Um momento depois, seu coração parecia ter parado.

O sultão encontrava-se no jardim, em companhia de Lisette. Passeavam


descuidadamente ao lado da fonte sob as árvores florescentes.

Não se atreveu a subir um pouco mais. Não podia retroceder, temendo


que Lisette saísse do jardim sem vê-lo. Ficou lá, dependurado, agarrado à
árvore, até que seus músculos começaram a torturá-lo e a transpiração a
ensopar-lhe a roupa. Teve de morder os lábios para não gritar. O tique-taque
de seu relógio parecia-lhe um dobre de sinos, e ele se dava conta de que o
tempo e suas forças o abandonavam.

Então, eles pararam de caminhar. A diminuta figura morena do sultão


afastou-se; em seguida, voltou. Falou por um instante em voz baixa, e Lisette
assentiu. Depois, abruptamente, ele girou nos calcanhares e foi andando com
passos rápidos, deixando Lisette sozinha.

McCreary elevou-se um pouco mais na corda e se esforçou por


encontrar forças para assobiar. O som que seus lábios emitiram foi
assustadoramente estridente. Ele viu Lisette voltar bruscamente a cabeça
para a copada magnólia.

— É você, Mike? — indagou ela num sussurro, que ele ouviu como se
fosse o rugir de tambores.

— Sou eu, morena. — Sua voz era contida e enérgica. — Trepe já na


árvore... depressa!

Ele ainda se manteve ali o tempo suficiente para vê-la alçar-se aos
primeiros galhos em segurança, sustando a respiração por temer que os
estalos dos galhos secos fizessem com que pessoas do palácio surgissem
gritando e correndo no encalço dela. Em seguida, deslizou pela corda e
aguardou, impaciente, até que a viu, como uma mariposa branca, assomar no
alto da muralha por entre as folhagens escuras.

— Salte, querida! Eu aparo você!

Viu-a hesitar por um instante e depois pular. O impacto fez que ele
escorregasse pelo declive resvaladiço, mas logo se pôs de pé, e, sem um
beijo ou um abraço, puxou-a para as sombras. Aos tropeções, internaram-se
na mata.

Antes mesmo de terem caminhado um quilômetro, ela já estava arfando


e soluçando devido à náusea provocada pelo odor pestilento que se
desprendia de todos os lados. McCreary estacou, puxou-a para si e amparou
seu peso no peito e no ombro. Olhou o relógio. Três minutos depois das sete.
Não havia tempo a perder, se quisessem estar de volta antes da chegada de
Rubensohn.

Tomou-lhe o rosto e beijou-a ternamente. Depois falou com rapidez e


animação:
— Escute, Lisette. O tempo está contra nós. Temos uma hora para
chegar ao acampamento, e meia hora de comédia que preparei
exclusivamente para você. Aí, daremos adeus para sempre a estas paragens e
partiremos. Vou carregar você nas costas parte do caminho, depois quero que
você ande, e ande com toda a energia que tiver. Não me vá falhar agora,
morena! Diga que não me falhará!

— Eu... eu não falharei, Mike.

— Assim é que eu gosto, meu bem.

Ergueu-a ao ombro e carregou-a por algum tempo, até que ela


recuperasse as forças; depois ela se pôs a caminhar, com denodo e
persistência, atrás dele, até atingirem o acampamento, dez minutos antes da
chegada de Rubensohn e Janzoon.

Guido ria, gaguejava, praguejava e afagava-lhes os ombros, enquanto


Flor Flamejante mantinha-se parada, de olhos arregalados ante aquelas
aparições em frangalhos. McCreary admoestou-os com impaciência.

— Parem com isso! Vocês dois! O tempo está correndo! Tempo!


Lembrem-se disso! Leve Lisette para a outra cabana, Flor Flamejante.
Ajude-a a se lavar e empreste roupa limpa a ela. Desculpe, querida, mas
quero que você pareça uma rainha quando Rubensohn chegar, apesar de todo
o cansaço que você tem nesses bravos pezinhos!

— Estarei pronta, Mike! — Ela ergueu orgulhosamente a cabeça, e a


exaustão pareceu tê-la abandonado.

— Fique na cabana até que eu mande chamá-la. Não saia de lá. Agora,
vão... rápido! Guido!

— Pronto, amico.

— Ligue a caixa de pistões.

— Já liguei, Mike... está ali fora. Imaginei que você quisesse colocá-la
ali.
— Ótimo! Há uma porção de pedras e objetos de jade na minha sacola.
Apanhe-a e leve-a para Flor Flamejante. Diga a ela para carregá-la quando
formos para o barco.

— Está bem, Mike. Mais alguma coisa?

— Sim, Guido. — Sua voz agora era calma e ponderada. — Teremos


uma pequena cerimônia quando eles chegarem. Não quero que haja o menor
risco. Se Rubensohn fizer qualquer movimento em falso, meta-lhe uma bala.
Sem perguntas, sem qualquer hesitação. Mate aquele canalha!

— Com prazer, compar’ — declarou Guido, emocionado.

McCreary sorriu e entrou na cabana. Levou nada mais nada menos que
três minutos para se lavar e trocar de roupa, e quando Rubensohn e Janzoon
chegaram caminhando pesadamente colina acima, ele já estava à espera, de
cigarro na boca e com um lampejo de triunfo no olhar.

— E então, McCreary? — A voz de Rubensohn era estridente e


impaciente. Seus olhos brilhavam de expectativa, e os lábios avermelhados
sobressaíam-lhe na face pálida e suarenta. — Seu recado falava em boas
notícias. Esperamos que elas compensem o fato de termos jantado às
pressas.

— Tenho a impressão de que vão achar que a caminhada valeu a pena


— respondeu McCreary com um sorriso. — Vão me desculpar por também
estar um tanto agitado. Façam o favor de entrar, cavalheiros, e sentem-se.

Entraram na cabana e acomodaram-se em volta da mesa de bambu,


tendo McCreary o cuidado de colocá-los voltados para a porta. Essa
formalidade fez com que eles o olhassem com curiosidade, conjetu- rando se
estivera bebendo. McCreary sorriu, recostou-se à escora de bambu da porta
e disse-lhes, gentilmente:

— Meus senhores, tenho novidades... e grandes! O petróleo vai jorrar!

— Meu Deus! — A voz de Rubensohn parecia um guincho de morcego.


— Tem certeza? — perguntou Janzoon num sussurro roufenho. —
Quando?

McCreary olhou para o relógio de pulso. Oito e quinze. O tempo se


escoava rapidamente. Disse com vivacidade:

— Não vai demorar nada! Esta noite! Vocês me verão inclinado sobre
um pistão, contarão até três... talvez até cinco... e irão presenciar uma das
cenas mais espetaculares do mundo: um poço esguichando um óleo negro e
pegajoso em direção às estrelas. É ou não é uma notícia agradável,
senhores?

— Maravilhosa! — exclamou Rubensohn com uma risadinha aguda. —


Você nem imagina quanto é agradável a notícia, McCreary.

— Mas antes de fazer isso — continuou McCreary —, quero mostrar-


lhes uma coisa que para mim é muito mais maravilhosa que todo o petróleo
do mundo! — Elevou a voz e gritou: — Guido!

Um instante depois, Guido entrava na cabana em companhia de Lisette.

Janzoon encarou-a com olhos arregalados e boquiaberto. Rubensohn


deu um salto da cadeira.

— Sente-se, Rubensohn — disse a voz macia de McCreary. — Sente-


se, senão meto-lhe uma bala!

Rubensohn viu a arma em suas mãos e a morte naquele olhar irlandês.


Tornou a se sentar. Lisette permaneceu imóvel, olhando para ele, com um
sorriso estranho bailando-lhe nos lábios.

— Você está doido! — berrou Rubensohn com estridência. —


Completamente louco! A qualquer momento, estarão batendo os gongos no
palácio e toda a ilha cairá em cima de nós.

— Sei disso — declarou McCreary. — Já tinha pensado nessa


possibilidade... muitas vezes. Tire as armas deles, Guido!
Guido contornou rapidamente a mesa e voltou com dois revólveres.
McCreary exibiu o seu melhor sorriso.

— Então você ia me matar, hem? Isso torna tudo mais fácil.

— Escute, McCreary...

— Cale a boca, Rubensohn! — O sorriso desapareceu, e a boca ficou


apertada de raiva. — Fique de olho nos dois, Guido! Se fizerem o menor
movimento, atire!

— Era exatamente o que eu estava pensando em fazer — respondeu


Guido.

McCreary levou a mão ao bolsinho da camisa e tirou uma caneta-


tinteiro e os documentos que elaborara na noite anterior. Abriu-os e
estendeu-os na mesa à frente de Rubensohn.

— Faça o favor de assinar os dois primeiros.

Rubensohn ergueu os olhos frios, cheios de ódio.

— Que é que você pretende que eu assine?

— O primeiro é um testamento, que será testemunhado por Guido e


Agnello, deixando todos os seus bens para Lisette Morand, residente
ultimamente em Saigon, com exceção do Corsário, que fica para mim,
porque você me deve dinheiro e muita coisa mais de que não pode me
reembolsar. O segundo é uma confissão, também testemunhada, de que
assassinou o capitão Nasa em Jacarta no dia 10 de julho.

— Você está louco, McCreary! Não vou assinar nada disso.

McCreary consultou o relógio.

— Se não assinar — disse McCreary calmamente — Guido matará


vocês dois em cinco segundos a partir deste instante. E garanto que
arrancarei a assinatura de ambos antes de morrerem.
— E se eu assinar?

— Aí, farei o porão jorrar e vocês dois poderão voltar ao Corsário.

— Aí está uma prova de que você enlouqueceu — retrucou Rubensohn.


— O testamento não tem valor nenhum enquanto seu autor não morrer.

— Você já está morto — disse McCreary com brandura —, só que


ainda não sabe. Vou começar a contar. Um... dois...

— Assine, Rubensohn... pelo amor de Deus, assine logo! — Janzoon


transpirava copiosamente.

— Três... quatro...

— Dê-me a caneta!

— Agora já conheço a sua assinatura, Rubensohn — preveniu


McCreary com brandura. — Portanto não vá se enganar e fazer outra.

Rubensohn rabiscou sua assinatura nos dois primeiros documentos.


McCreary apanhou-os, dobrou- os e guardou-os no bolso.

— O que é isto?

Rubensohn olhava fixamente para a última folha de papel. McCreary


respondeu friamente:

— É a mensagem que Guido vai expedir a Scott Morrison em Porto


Darwin, informando que não existe petróleo em Karang Sharo e que o
negócio está desfeito. E, naturalmente, será assinado, como todos os outros,
por Janzoon.

A face de Rubensohn estava cadavérica; pela primeira vez, havia pavor


em seus olhos e em seus lábios retorcidos.

— Mas... mas existe petróleo aqui! Você disse que...


— Eu sei — atalhou McCreary. — Prometi petróleo, e você o terá...
pode até se entupir com ele. Depois, eu vou... Ouçam!

Todos ouviram a tremenda vibração de gongos, procedente do palácio


da montanha, ecoando através das planícies, ao mesmo tempo que das
aldeias vinha um ruído enervante que se misturava àquele clamor estridente,
parecendo o lamento das almas penadas.

— Lá está! — exclamou McCreary. — O alarma. A esposa do sultão


desapareceu. Daqui a vinte minutos estarão dando uma batida na ilha. Até
que seria interessante vocês dois ficarem aqui para apreciar o espetáculo.
Depois, claro, seriam levados e liquidados. Neste instante, o Corsário está
zarpando da baía com o jovem Arturo ao leme e Agnello na casa das
máquinas, enquanto Alfieri bate com a cabeça na porta. Se eu conseguir
chamá-lo à razão amanhã ou depois, talvez ele fique no comando, Janzoon!

De repente, todo o horror da situação pareceu abater-se sobre


Rubensohn e Janzoon. Eles ficaram embasbacados, boquiabertos, e Janzoon
fez uma tentativa de se levantar da mesa, sendo logo demovido pela pistola
de Guido. Rubensohn irrompeu em rogos:

— Pelo amor de Deus, McCreary! Escute! Eu lhe dou...

— Você não tem nada a me dar — interrompeu McCreary. — Perdeu


tudo! A parada terminou, Rubensohn! Convença-se de que é um joão-
ninguém, um fracassado! E aqui está um pequeno souvenir da ocasião... o
isqueiro de Nasa! Eu o tirei do cadáver dele!

Atirou o isqueiro sobre a mesa. Então, enquanto Rubensohn fitava


fixamente o objeto, voltou-se e conduziu Lisette para o exterior da cabana.
Guido ordenou que os outros os seguissem com um aceno do cano da pistola.

A ilha ainda estava tomada do clangor dos possantes gongos, mas


McCreary mantinha-se firme com a mão sobre o pistão. Lisette estava a seu
lado, de cabeça erguida e altiva.

— Atenção! — disse McCreary, exultante. — Atenção! Conte até três...


ou até cinco, e vai ver jorrar aquilo que fez você matar um homem e vender
uma moça, aquilo que vai causar a sua morte, Rubensohn... Petróleo!

Apertou o pistão, e eles aguardaram. Um... dois... porém, antes de ter


fim a contagem, a terra começou a tremer sob seus pés, e eles ouviram um
estrondo mais forte que cem gongos; enquanto todos cambaleavam, viram o
topo da montanha explodir e expelir uma infinidade de partículas, como um
sol dinamitado que se precipitasse no espaço. Puseram- se a correr
tumultuadamente pela trilha, McCreary puxando Lisette pela mão, Guido com
Flor Flamejante logo atrás e Janzoon e Rubensohn seguindo-os aos
tropeções, enquanto explosões sucessivas abalavam o solo e bolas de fogo
projetavam-se como raios.

A trilha forneceu-lhes abrigo razoável contra os fragmentos


incandescentes, mas ouviam-nos cair com estrondo e sibilar entre as árvores,
que se vergavam, e quando algum os roçava, chamuscava-lhes a pele,
fazendo-os gritar de dor.

Ao chegarem ao caminho que levava à aldeia, constataram por um


rápido instante o horror crescente da situação. Ao longo do litoral, os
kampongs estavam em chamas pelo contato das precipitações com a palha
seca dos telhados.

Viram as labaredas e escutaram o berreiro desvairado e violento. Sem


demora, McCreary arrastou- os pela trilha e através do último labirinto
verdejante diante do mar.

Os quatro chegaram à praia uns cinquenta metros à frente de Rubensohn


e Janzoon. O mar estava agitado, furiosamente encrespado e estrondeando
como em dias de borrasca. Viram a chalupa debatendo-se e forçando a
âncora, mas Miranda estava agachado debaixo dos arbustos, apavorado,
observando a catástrofe. Sacudiram-no para tirá-lo do estupor e empurraram
a canoa pela areia até a água.

Assim que embarcaram, Rubensohn e Janzoon surgiram por detrás dos


arbustos em direção à praia.

— McCreary! — Era a voz de Rubensohn, aguda e desesperada.


McCreary não voltou a cabeça. Ele e Guido, curvados sobre os remos,
manejavam a canoa por entre as ondas impetuosas em direção à chalupa.

— McCreary! McCreary!

Agora, ambos soltavam berros lancinantes, e quando, por fim, ele virou
a cabeça, viu-os chapinhando, com água até a cintura.

Era desesperador o esforço que tinham de fazer para manter a frágil


embarcação em movimento contra o impacto das vagas descomunais, mas,
finalmente, conseguiram avizinhar-se do lado da chalupa abrigado contra o
vento. Ao subirem a bordo, encontraram a esposa e filhos de Miranda
gritando, apavorados, mas McCreary impeliu Miranda como um demente.

— Ponha esses malditos motores em funcionamento! Guido! Suspenda a


âncora! Todos os outros, lá para baixo, se não quiserem ser queimados!
Depressa! Depressa! Depressa!

Pequenas bolas de fogo projetavam-se sobre o convés, que em alguns


pontos já começava a ficar enfumaçado. A chalupa empinava-se como um
cavalo selvagem devido aos estremecimentos do fundo do mar, elevando
cada vez mais as ondas. Praguejando, Guido esforçava-se para fazer a
âncora subir. Parecia ter decorrido uma eternidade quando McCreary ouviu
o ronco dos motores e o grito de Guido, e o barco guinou, incerto, ao
impulso inicial das hélices.

O mar estava encapelado em todas as direções a um só tempo, mas


quando as enormes ondas abatiam-se sobre o convés, o fato só lhes causava
alívio, pois elas apagavam as brasas caídas, além de arrefecer o poder das
outras que ainda cortavam o espaço.

Miranda tocava agora a embarcação a toda a velocidade em direção às


luzes do Corsário, a algumas milhas dali.

McCreary estava de pé na popa, olhando para a praia, onde Rubensohn


e Janzoon já se encontravam com água até o pescoço, sem desistir de seus
rogos desesperados.
— McCreary! McCreary!

Uma nova chuva de partículas incandescentes sobreveio, e suas vozes


transformaram-se num grito de agonia, que se extinguiu quando as águas
impetuosas os tragaram.

“Acabei com ele”, pensou McCreary. “Ali está... um rosto que não
posso ver e uma voz que não posso ouvir, tudo engolido pelo mar em poucos
segundos. Tirei-lhe a garota, o dinheiro e a vida. Posso não sentir orgulho do
que fiz, mas macacos me mordam se tenho pena daquele sujeito!”

Contornaram o pequeno cabo e divisaram pela primeira vez o


espetáculo tenebroso. O vulcão ainda vomitava fogo e estrugia como um
gigante enfurecido. O ar estava impregnado de uma fétida fumaça sulfurosa,
e todo o litoral ardia como se tivesse sido borrifado com gasolina.

Os nativos corriam como formigas encurraladas em busca da água. Não


obstante o rugido da montanha, seus gritos estridentes chegavam até ele
através das ondas.

— Meu Deus! — exclamou McCreary num sussurro angustiado.

— Mike! Mike! Será que não podemos fazer alguma coisa por eles? —
Lisette estava às suas costas, escorando-se na amurada. — Não é possível
voltarmos e salvar algumas pessoas?

McCreary meneou a cabeça e gritou para que ela ouvisse.

— Nós nos queimaríamos e afundaríamos em dois minutos. O máximo


que podemos fazer é ficar com o Corsário o mais perto possível e tentar
apanhar os sobreviventes. Olhe...!

Ela seguia a direção de seu dedo e viu as primeiras canoas afastando-se


da praia, os pequenos e persistentes praus dando guinadas e pessoas
esforçando-se por se firmarem nos bancos.

A cerca de vinte metros da praia, as águas enfurecidas atiraram-nos ao


espaço e viraram as embarcações.
— Que coisa horrível, Mike! — Ela enterrou o rosto em seu peito, e
McCreary apertou-a de encontro a si, enquanto Miranda praguejava e se
esforçava por manter a chalupa na direção do Corsário.

— Não olhe mais para lá, morena — disse McCreary com energia. —
Feche os olhos, os ouvidos e o coração. Você já sofreu demais, e não pode
fazer nada para remediar aquilo. Agarre-se a mim, meu amor, que passará a
escutar o rumorejar do vento sobre a grama, o canto do melro e o ressoar
dos cascos das potrancas subindo a ladeira e voltando para casa no alto das
colinas de Armagh. Escute tudo isso, morena! Escute...

Contudo, enquanto assim falava, ouviram algo semelhante ao ribombo


de mil trovões e, ao olharem, paralisados de terror, viram toda a encosta da
colina abrir-se e um enorme rio de fogo deslizar lentamente por sobre o
palácio em direção às aldeias e ao mar.
O AUTOR E SUA OBRA

Com os milhares de dólares que tem recebido da venda de seus


romances, Morris West conseguiu realizar um velho sonho: viajar pelo
mundo. De cada viagem ele extrai uma obra de ficção, como “O
embaixador” (Vietnam), “A Torre de Babel” (Oriente Médio), “O verão do
lobo vermelho” (Irlanda). "A concubina” tem como cenário inicial a capital
da Indonésia, Jacarta, onde Mike McCreary, um aventureiro irlandês, se
defronta com Rubensohn, um especulador sem escrúpulos.

Como seus livros estão ligados a temas atuais, Morris West tem sido
classificado, apressadamente, por parte da imprensa, como profeta. Em
1963, quando publicou o romance "As sandálias do pescador”, narrava a
história de um arcebispo do mundo socialista que se tornava cardeal e
depois papa. Anos mais tarde, João Paulo II transformava em realidade esse
enredo ousado. Em 1965, escreveu "O embaixador”, no qual descrevia o
crescente envolvimento dos Estados Unidos no Vietnam. Os fatos
comprovaram mais uma vez a hipótese de West. Tudo isso confirma seu
poder de análise, que, aliado à habilidade indiscutível de armar tramas
apaixonantes, parece ser o segredo de sua popularidade.

Contrariando a tese de que os autores de best sellers são superficiais,


Morris West, um dos escritores mais lidos de todo o mundo, faz questão de
afirmar que a preocupação humanística domina toda a sua obra. “Tenho
escrito sobre as coisas que realmente me afligem, como os problemas
religiosos, a perda da fé, o homem moderno, o mundo que nos cerca, a
esperança, a guerra, a fome e a injustiça.” E a origem dessas preocupações
está, sem dúvida, em sua formação.

Nascido em Melbourne, Austrália, no dia 26 de abril de 1916, Morris


West recebeu uma rigorosa educação católica. Cursou as universidades de
Melbourne e da Tasmânia, tornou-se professor de inglês, francês e história, e
chegou a ordenar-se padre aos vinte e três anos.

Abandonando o hábito, alistou-se, durante a Segunda Guerra Mundial,


como soldado das Forças Imperiais Australianas. Após a guerra, foi
publicitário, autor de novelas radiofônicas, jornalista da BBC e
correspondente do “London Daily Mail” no Vaticano. Só depois dos
quarenta anos é que se dedicou à literatura, alcançando êxito com livros
como “O Navegante”, “Proteu” e "A segunda vitória” (publicados pelo
Círculo).

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