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A Concubina
Círculo do Livro
CIRCULO DO LIVRO S.A.
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Estava na cama, num quarto, com um ventilador. Era dia. O resto podia
esperar até que ele se sentisse forte o bastante para poder se preocupar.
Tornou a fechar os olhos. Tinha a boca ressecada e sentia um gosto amargo,
metálico, na língua. A pele estava pegajosa e com um odor acentuado. Ao
tentar mover-se, constatou que os músculos estavam frouxos e não lhe
obedeciam.
— Entre.
— Estarei esperando.
Mesmo antes de abrir o jornal, ele sabia que seria pura perda de tempo.
Cingapura, Saigon, Bangkok, Hong Kong — eram todas as cidades de
mascates, entrepostos portuários. Nada ali lhe convinha.
Nada lhe convinha em lugar algum, a não ser onde as grandes estruturas
de aço se erguiam para o céu e as brocas estridentes mergulhavam no
subsolo e nas rochas, para atingir as areias pretas nas entranhas da terra. Era
um homem do petróleo, e não um funcionário ou um negociante. Era um
perfurador de terra, e seu lugar era ali, naquelas ilhas, ou nas Américas, ou
na Nova Guiné, ou até mesmo na orla do deserto australiano.
— Sente-se.
— Um desabafo caro.
— Por quê?
— Está interessado?
— Trinta e oito.
— Casado?
— Não.
— Tem vícios?
— Os de praxe.
— É lógico que tenho, mas não creio que o senhor a entendesse se lhe
contasse qual é.
— Experimente.
— Não o conheço, Rubensohn, nem sei o que deseja. Não sei e não me
importo muito se a resposta lhe desagradar. Mas, ei-la. Sou um irlandês
muito idiota, de pés irrequietos e que carrega nos ombros o seu lar. Minha
única aptidão consiste em fazer buracos na terra a fim de descobrir petróleo.
Minha verdadeira ambição é ganhar bastante dinheiro para poder comprar
um pequenino haras a trinta quilômetros de Dublin e ver se consigo criar o
vencedor do grande prêmio. Aí está. Ria, se quiser.
— Não vejo por quê — disse Rubensohn. — Nesse caso, você está
interessado em ganhar dinheiro, não é?
McCreary deu de ombros.
— Slainte!
— Aonde vamos?
— E daí?
Levantaram-se.
— Entende disso?
— De que se trata?
— Se for verdadeiro...
— Como assim?
— Está.
— O que há de melhor.
— Ótimo!
— Onde fica?
— O quê?
— Perfeitamente.
Rubensohn enrolou o mapa, colocou-o de novo dentro da sacola e
trancou-o no armário. Virou-se para McCreary. Seus olhos brilhavam de
satisfação e a boca vermelha sorria brandamente.
— Você me agrada, McCreary. Acho que, juntos, nós dois vamos longe.
— O quê?
Às oito horas dessa mesma noite, McCreary arrumou tudo o que tinha
numa sacola de lona, pagou a conta e mergulhou nas sombras mornas da
noite.
Podia sentir o cheiro da cidade mesmo ali no terreno elevado, longe das
baixadas insalubres e dos canais da cidade velha, onde a população escura
enxameava, chafurdando e despejando seus detritos nos canais estagnados.
Era um odor estranho, exótico, uma mistura de condimentos, vegetação
apodrecida, peixe ressecado, água pantanosa e a emanação de dois milhões
de corpos a suar no ar parado. Penetrava pelas narinas, provocava enjôo e
impregnava-se nas roupas. Não se podia removê-lo. Quando se ia embora,
ele permanecia como uma lembrança perturbadora, chamando-nos de volta.
McCreary pousou a sacola e encostou-se por uns instantes ao tronco de
uma grande figueira para acender um cigarro. Antes que tivesse apagado a
chama de seu isqueiro, três betjaks se aproximaram puxando seus veículos e
tocando furiosamente as campainhas. Começaram a puxar-lhe as mangas,
anunciando, como papagaios, em malaio, a velocidade e a limpeza de seus
respectivos veículos. McCreary sorriu, empurrou-os para trás, ergueu a
sacola e colocou-a no assento do carro que chegara primeiro. O condutor riu
e zombou de seus rivais com um palavrão e um gesto obsceno. Em pouco,
estavam todos estrada abaixo, com os penachos balouçantes, as campainhas
soando, e o ar zumbindo através das tiras de borracha esticadas sob o
assento.
— “Nós”, quem?
— A tripulação, senhor. O comandante é holandês, e os oficiais são
italianos.
— E os outros?
— Vinte nós — disse Janzoon em sua voz áspera. — Três mil milhas
marítimas percorridas. Precisa ver minha ponte de comando. Do último tipo!
Da melhor qualidade!
— Bondade...
— Desde que o Corsário foi reformado, três anos atrás. Antes disso eu
comandava petroleiros para a Bataafsche Petroleum. Este é o melhor barco
que já tive. Boa paga e biscates melhores ainda.
— Às vezes.
Ocorreu-lhe, então, que não tinha lar, apenas o vago sonho de uma casa
de pedra, toda cinzenta, e vastos pastos verdejantes cheios de garanhões
batendo os cascos. Via-se vestido com uma jaqueta e calça de montaria,
andando como um autêntico criador de cavalos, falando com delicadeza ao
treinador e aos cavalariços. O despropósito desse pensamento tomou-o de
surpresa, e ele se pôs de repente a rir, engasgando-se com o uísque, enquanto
Janzoon olhava-o com intrigada hostilidade.
— Mas se ele não sabe apreciar a vida, de que adianta tudo isso? —
McCreary deu de ombros e pôs um cigarro no canto da boca.
— Ah, não, meu amigo! — Janzoon tornou a rir entre dentes e conduziu-
o através da porta do lado oposto. — Aqui jantam os oficiais. Nós somos
hóspedes do grande homem. Jantamos em seu camarote, tendo a encantadora
Lisette por companhia.
— Quem é ela?
— Claro que entendi. Mas por que haveria de me interessar por uma
mulher fria como essa? Sou um sujeito afetuoso, e gosto de um sorriso, e às
vezes de umas palavras doces na cama.
— O que é?
Janzoon levantou os olhos, surpreso. Era evidente que ele, pelo menos,
não esperava mais ninguém antes de levantar âncora. Disse abruptamente:
— Capitão Nasa.
McCreary sorriu.
— Talvez mais tarde. Por ora, você cuidará de Lisette e o deixará aos
meus cuidados.
— Se quiser, será um prazer!
Cinco minutos mais tarde, o capitão Nasa chegou e teve início o jantar.
A voz dela possuía o timbre alto dos mestiços, mas também nela não
havia vida. Era como o soar de pequenos sinos de vidro que se balançavam
à porta dos santuários dos antigos deuses. McCreary conjeturou como soaria
quando ela risse, e há quanto tempo ela não era atingida pela paixão ou pelas
lágrimas. Perguntou-lhe, de novo, no sotaque macio e doce dos habitantes de
Kerry:
— Será que não poderia sorrir para mim de vez em quando e conversar
um pouco para ajudar a passar o tempo? Parece que vamos conviver por um
longo período.
— Já sou paga para fazer isso para um homem. Para dois, seria demais.
Ela falou com simplicidade, sem medir as palavras, olhando através das
águas para, as luzes enfraquecidas de um petroleiro que passava.
— Já estive em Nápoles...
— Justamente.
— Isso mesmo.
— Decerto.
— Não vê, então, morena, que você não gozou nenhum desses
momentos? Você não conhece o mundo, nem o sabor da felicidade.
— Em Saigon.
— E você?
Pela primeira vez ele a ouviu rir. Mas não havia alegria na risada.
— Só por isso?
— Medo dele? Por que iria ter medo de um cara-de-pau como ele? O
máximo que ele podia fazer era me despachar de avião para Cingapura. Eu
já estava esperando por isso, portanto não havia razão para ter medo. Foi aí
que Rubensohn apareceu e me fez uma proposta. Disse-me que convenceria
Nasa a permitir minha extradição a bordo do Corsário. Não era nem mesmo
ilegal, embora não duvide de que Nasa tenha feito isso parecer uma
concessão especial e por ela tenha cobrado um bom dinheiro.
— Mas se não é por sua causa, por que Nasa veio hoje aqui?
— Seja qual for o motivo, morena, diga Rubensohn o que quiser, ele
não veio por minha causa.
— Agora, já sabemos.
O rosto dela estava nas sombras, de modo que ele não podia perceber
se ela sorria ou franzia o sobrolho, mas sua voz ao responder-lhe não era
mais irritadiça, e sim baixa e forçada.
— Você acha? Não o conhece como eu. Nada o detém quando quer
alguma coisa.
Antes que ele pudesse refutá-la, um camareiro chinês surgiu com passos
abafados no convés para informar que Rubensohn os aguardava.
Rubensohn sorriu.
— Ele não demorou muito para ficar neste estado. Estivemos afastados
só uma meia hora.
— Por quê?
— Porque ele veio aqui sem que seus superiores soubessem, a fim de
negociar um suborno. Se chamarmos um betjak até o navio, o motorista
saberá de onde ele saiu. Se for interrogado, acabaremos sendo também... e
temos de partir dentro de uma hora.
— É verdade.
— Espere aí! — disse McCreary. — Por que eu, e não um dos seus
tripulantes, um marinheiro?
— Porque agora eles estão preparando o navio para largar. São uns
tipos ignorantes, e não iriam compreender por que haveriam de tomar conta
de um policial bêbado. Além disso, McCreary, você está em débito comigo,
e peço-lhe apenas este pequeno favor. — Deu uma risadinha abafada e
continuou, com sua voz esganiçada de pássaro: — E porque, finalmente,
você agora tem a oportunidade de jogá-lo ao mar, se tiver vontade.
Sabia que era uma ideia doida. Teve até humor bastante para rir desse
projeto. Contudo, dar-lhe-ia o ensejo de planejar, empenhar-se e — o que
um celta desabrido acima de tudo necessitava — de lutar contra alguém.
— Voltou mais cedo do que eu esperava. Ele lhe deu algum trabalho?
— Creio que sim. É uma ideia grandiosa. É preciso tempo para refletir.
Rubensohn jogou a cabeça para trás e gargalhou naquele seu tom agudo
e sibilante.
— Você terá tempo, McCreary. Vou lhe mostrar coisas que superam as
das mil e uma noites de Harun al-Rachid. Verá um príncipe em cujos rios
correm jóias, que come em pratos de ouro e mantém quinhentas mulheres só
para seu prazer. Você verá o roteiro dos escravos, onde a beleza do mundo é
posta à venda. Eu lhe ensinarei a multiplicar o dinheiro, como sonha todo
jogador...
Desde aquele breve interlúdio na noite anterior não tinham mais tido
qualquer contato ou intimidade. Mesmo ao nadarem juntos na piscina, os
olhos frios de Rubensohn os observavam. Quando estavam sob o toldo,
Rubensohn dominava a conversa, afastando qualquer assunto de que não
participava, entremeando cada incidente com uma referência que lhe dizia
respeito. Aquela grosseria irritava McCreary, mas já aprendera a controlar-
se. Queria que Rubensohn se sentisse satisfeito, e não ficasse desconfiado.
Queria Lisette, também, mas sabia que tinha de aguardar a ocasião propícia.
Janzoon, por seu lado, esforçava-se para reatar relações com ele. Na
tarde do primeiro dia, desculpou-se desajeitadamente; depois, levou
McCreary até a ponte de comando e fez-lhe uma preleção, como a um turista,
sobre o equipamento. Depois, convidou-o a ir ao seu camarote, serviu-lhe
uma dose dupla de uísque com soda, e, falando com sagacidade e
comedimento, sondou-o sobre uma possível aliança.
— Acho que agora você já está percebendo como são as coisas por
aqui, hem?
— A gente aprende que o grande homem age como quer e não dá bola
para ninguém. E só se interessa por seu orgulho e sua pequena. Para que
mais ele liga?
— Sei disso — disse McCreary —, mas não vejo por que quer um
sócio. Além do mais, meu compromisso com Rubensohn é por pouco tempo.
Assim que terminar, vou embora.
— Por que você pensa que lhe falei sobre o mercado e as oportunidades
que se tem aqui? Para lhe mostrar por que deve ficar.
— Ainda tenho mais duas sacolas destas, McCreary, obtidas numa única
viagem. Lucro de cem por cento por pechinchar nos bazares e especular a
percentagem no mercado negro.
— Então por que quer dividir comigo?
— Porque dois homens juntos fazem três, quatro vezes mais que um só.
É tudo uma questão de tempo. Sou comandante de navio. O tempo que me é
permitido passar no porto para tratar de assuntos particulares é a metade
daquele de um oficial comum ou de um marujo. Com alguém como você, com
liberdade de ação para fazer contatos, podemos conseguir grandes negócios.
Grandes, mesmo.
— Gostei da ideia, Janzoon, mas não vejo como arranjar tempo para
negócios quando devo estar fazendo perfurações.
— Para conseguir petróleo você gastará uns dois ou três meses. Depois
disso, será o que você decidir.
— Saúde!
— Foi para o camarote. Achou que o calor estava forte demais. Disse
que ia descansar até a hora do jantar.
— E agora você descobriu que é mesmo? Por favor, não me meta nas
suas loucuras. Agora, McCreary, você vai embora daqui ou vou eu?
Então, ela finalmente tirou os óculos escuros, e ele viu que seus olhos
estavam sombrios e inquietos. Fitou-o por algum tempo e balançou a cabeça
lentamente.
— Ninguém pode ajudar você, McCreary. Nem a mim tampouco.
Estamos ambos perdidos. A única diferença entre nós é que eu sei disso e
você não. Agora, deixe-me em paz, pelo amor de Deus!
— O que foi que você disse? — Guido estava tão espantado com o que
ouvira que se esqueceu de corresponder ao brinde. O copo de cerveja
estacara no ar, a meio caminho dos lábios. — Desistiu de mulher?!
Impossível! Isso não é normal. Já tentei. Não dá certo. A única maneira de
me poupar é vir para bordo. Mesmo aqui, tenho de me lembrar de que ainda
sou homem. Veja!
McCreary virou-se para admirar a fileira dupla de artistas de cinema,
com seios volumosos, colada no tabique aos pés do beliche. — Gosta delas?
— Menos dor de cabeça, certo, mas também menos prazer. Non è vero?
— Por falar em mulher, amico, essa que está aí... que acha dela?
— É a única coisa que as esquenta, amico. Por isso é que não servem
para sujeitos como você e eu, que gostamos de um pouco de amor sincero,
sem termos de pagar por cada beijo e cada agradinho. Tinha uma garota lá
em Reggio que...
— Ótimo.
— Exatamente.
— Foi o que eu disse assim que o vi, não foi, Rubensohn? Bom sujeito,
inteligente e de visão.
— E se eu não concordar?
— Vou lhe dar uma pasta cheia deles. Pode examiná-los sem pressa.
Rubensohn, porém, tinha muito a dizer. Seu relato foi animado, conciso
e estritamente comercial. McCreary não pôde deixar de, embora com
relutância, admirar-lhe a ponderada exposição e a estratégia cheia de
imaginação.
— Você sabe dar as cartas, McCreary. Eu não regateio apostas. Mas não
eleve demais o valor delas. Pode ser perigoso.
McCreary deu de ombros com naturalidade.
De Rubensohn, nem sinal. Mas isso por enquanto não queria dizer nada.
Os nomes eram usados pro forma pelos advogados nas formalidades de
constituição de firmas. A informação de valor real estaria contida na relação
dos diretores e no registro dos acionistas, mas disso não havia o menor
indício.
E como a maioria dos de sua laia, tinha chance tanto de acabar com uma
bala nas costas quanto com uma coleção de quadros e reputação de
filantropo.
Até que o poço fosse completado, ele estaria a salvo, por ser
imprescindível. E depois?... Não apenas seria dispensável, como também se
tornaria um constante risco para Rubensohn e uma despesa inútil em sua
contabilidade. Ficaria sozinho numa ilha. Seu único vínculo com o mundo
exterior seria o próprio barco de Rubensohn. Seus únicos amigos... lembrou-
se então de que não tinha amigos. Era inteiramente desenraizado, sem que
ninguém se interessasse pelo fato de ele estar vivo ou morto.
— Por que você fez isso, McCreary? Não podia guardar para você o
que sabia e o que tinha acontecido? Não vê que ele não perdoará jamais o
que você fez?
— Para lhe ser franco, morena, acho até que ele está sendo muito
camarada. Deu-me uma quarta parte dos lucros e o cargo de diretor.
— Deus do céu! — Os olhos de Lisette marejaram-se de lágrimas de
contrariedade. — Você não para de fazer tolices? Ainda não sabe o tipo de
homem que ele é? Pode encher o seu colo de dinheiro, os seus bolsos de
diamantes, mas nunca o perdoará. Ficará esperando pelo dia em que possa
enfiar uma faca nas suas costas, e ainda a torcerá até você gritar, pedindo
misericórdia. Mas da parte dele não haverá nenhuma. Por que você não
atendeu a meu pedido? Por quê? Por quê?
— Não fale assim! Já disse que você não o conhece como eu. Veja! —
Desabotoou a túnica chinesa de gola alta e deixou-a cair dos ombros.
— Ele me fez isto ontem à noite. Dava risadas enquanto me batia. Disse
que era para eu saber que meu corpo era para o prazer dele e não para ser
visto pelos outros no tombadilho. Está vendo agora que tipo de homem ele
é? Está vendo?
McCreary olhou demoradamente para ela com compaixão e ternura.
Depois sentiu um aperto no estômago, e o ódio subiu-lhe à garganta como se
fosse bílis. Seu olhar endureceu, e a boca comprimiu-se. Muito suavemente,
curvou-se e beijou-lhe os ombros, ajeitou a túnica sobre eles e abotoou-a,
enquanto ela o observava com olhos perturbados e interrogativos. Em
seguida, ele a fez sentar-se no beliche, enquanto lhe dirigia a palavra com
brandura e deliberação, num tom de voz que ela desconhecia nele:
— Eu vou apanhá-lo, Lisette. Não agora, porque aqui neste navio sou
tão indefeso quanto você. Por isso, eu rio, como e bebo ao lado dele, e
deixo-o sonhar com o que vai fazer comigo depois que eu deixar de ser útil.
Um dia, então, eu o atacarei. Primeiro, vou quebrá-lo inteirinho de pancadas,
depois o matarei, por você.
McCreary sorriu.
— Você não compreende os irlandeses, meu bem. São uma raça antiga e
sinistra, com extraordinários poderes de sobrevivência. Viram Herodes, o
Grande, morrer infestado de vermes nas entranhas, viram Nero soluçante,
implorando a um escravo que o matasse, e o lorde protetor da Inglaterra
atirado à sepultura com repolhos e frutas podres. Um sujeito como
Rubensohn pode ser comido por eles como café da manhã e ainda os deixará
com fome.
Seu perfume ainda pairava no camarote e em suas roupas, mas ele não
prestou atenção ao fato. Deitou-se no beliche e, com o isqueiro do capitão
Nasa nas mãos, pensou em matar Rubensohn.
— Entre, amico. Beba uma cerveja! Sente-se e fique com uma parte das
minhas mulheres. Só tenho estas agora, mas estão à sua disposição.
— Duvido.
McCreary soprou alguns anéis de fumaça no ar enquanto estudava seu
próximo movimento. Precisava desesperadamente de alguém em quem
pudesse confiar, e o pequeno radiotelegrafista parecia a pessoa mais
indicada. Mas, se cometesse um engano, estaria liquidado. Não teria
nenhuma chance de sobreviver. Guido observava-o com olhos vivos e
inteligentes. Disse com argúcia:
— Você está num dilema, compar’. Quer falar sobre um assunto, mas
não tem certeza de poder confiar aqui no Guido, não é?
— É grave assim, é?
— Se é, Guido!
— Mamma mia! Che covo di ladri! Que bando de patifes! Você está
mais enrascado do que eu pensava. Pode contar comigo para qualquer coisa,
você já sabe.
— Por enquanto não há nada que você possa fazer, Guido. Fique atento
às mensagens do rádio e depois me conte. Tenho trabalho pela frente quando
chegarmos a Karang Sharo. Mas quero que você fique em contato comigo e
de olho em Lisette. Assim que puder, eu conto a ela que você sabe. Pena eu
não ter uma arma.
— Eu tenho uma, amico. Não a uso desde a guerra, mas está sempre
comigo, para o caso de topar com a pequena errada na casa errada, sabe
como é.
Janzoon tossiu com o charuto na boca e começou a falar com sua voz
roufenha:
— Para a moça isto não tem interesse. Para vocês, homens, é muito
importante. Não estou brincando, é a pura verdade. Antes da guerra, vivi
nestas bandas boa parte de minha vida. Conheço um bocado a gente daqui...
e as mulheres.
— Por quê?
— Todos nós corremos riscos, Janzoon: eu, Rubensohn, você. Não é tão
desagradável quando se tem seguro de vida.
— Ninguém pediu para você pagar tanto assim. Você gosta da pequena.
Se Rubensohn souber disso, mata primeiro ela e depois você. Portanto, não
deixa de ser um ás, McCreary — o ás de copas...
— Reparei.
— Ah, você percebeu isso também? Muito bem! Mas já pensou sobre o
passo seguinte? Não é necessária a assinatura de Rubensohn para a venda.
Se houver qualquer alteração no documento atual, eu poderei rubricar
embaixo das respectivas cláusulas. Portanto, não acha que é melhor nós dois
continuarmos vivos e Rubensohn morrer, hem?
— Muito claro. Acho que posso fazer uma proposta que vai lhe
interessar. Mas antes vou pensar um pouco sobre isso, está bem?
— Pelo amor de Deus! Nunca! — Pela primeira vez, havia medo na voz
de Janzoon. Pousou a manopla no braço de McCreary, e seus dedos
apertaram-no com força. — No começo, claro que eu estava sondando você
para Rubensohn. Mas agora não! Isto é assunto particular. Só eu sei o perigo
que corremos. Não gosto nada disso. Quero ter lucro, mas não quero correr
riscos. Se Rubensohn souber...
— O quê?
— Por exemplo?
— Por quê?
— Não, mas...
— Estou querendo dizer que se você quer a moça é com Rubensohn que
tem de lutar, não comigo. Se você perder, ponha a culpa nele, não em mim.
Entende?
— Claro que eles não falham — disse McCreary com branda ironia. —
Falei por falar.
— Estou.
Janzoon sugeriu:
— Talvez Lisette gostasse de ver isto. É uma novidade para ela, não
acha?
— Está certo.
Deixou passar algum tempo, com receio de que sua pressa pudesse
levantar suspeitas, mas Rubensohn estava ainda apreciando pelo binóculo as
montanhas de Karang Sharo, que lembravam o dorso de um dragão. Então,
virou-se e desceu rapidamente a escadinha.
Ele entrou com rapidez, fechou a porta e tomou-a nos braços, sufocando
com beijos suas perguntas. Finalmente, largou-a e falou-lhe com rapidez e
ansiedade.
— Rubensohn está na ponte de comando. Quer que você suba até lá.
Leve os óculos escuros dele. Fiquei de dar esse recado a você, de modo que
não posso me arriscar a demorar mais.
— Vou tentar.
— Está bem. Agora, suba logo que puder e não se esqueça dos óculos
escuros.
— Só duas.
— Morrison — M. V. Melanie.
— E a assinatura?
— Asmin.
— Janzoon?
— Acho que ele mesmo ainda não está bem certo do que quer me
propor. Mas é uma destas coisas: ou me suborna pelo preço que achar
conveniente, para em troca obter proteção contra Rubensohn, ou junta-se a
mim contra Rubensohn e dividimos o lucro meio a meio.
— Não tenho certeza, mas acho que tem medo de que Rubensohn lhe
passe a perna no fim.
— Eu sei que ele pretende fazer isso — declarou Guido com toda a
simplicidade.
— Deduzi. Você sabe como Alfieri é... anda sempre de nariz para o ar e
de peito estufado, como se fosse um doge de Veneza.
— Dez a bombordo!
— O que posso dizer? Que beleza!? Quem planejou isso era um gênio.
— Há algo de errado?
— Sim?
— Temos muito o que falar, morena. Vamos antes de mais nada tratar
disso.
— Eu sei, Mike — era a primeira vez que ela o chamava pelo primeiro
nome. — Mas quero dizer uma coisa a você.
— Muito bem, pode dizer. Gosto mais de sua voz que da minha. Que é
que quer me contar?
— Não por palavras. Mas você sabe como ele é... sempre calado,
dissimulado, aguardando a ocasião em que possa ferir mais fundo.
Havia tanta ansiedade no tom de voz da jovem, tanta dor em seus olhos,
que ele não teve outra alternativa senão deixá-la continuar.
— Quero lhe falar sobre mim, Mike. Quero tanto que você compreenda!
Se não compreender, poderá fazer alguma tolice, alguma coisa que não trará
nenhum benefício a qualquer um de nós.
— Nem eu perguntei.
— Mas eu quero que você saiba. Não sou de Saigon, sou do norte, de
Haiphong. Meu marido era funcionário da administração francesa.
Atrás dele vinha uma personagem rotunda, que parecia mais um chinês
que um malaio, e que McCreary supôs fosse o vizir. As sedas de suas vestes
flutuavam como cortinas, mas seus olhos apertados denotavam astúcia e
cálculo. O restante da comitiva era constituído de homens de baixa estatura,
como a de seu monarca, e tanto suas vestimentas quanto suas jóias
obedeciam a uma escala decrescente de suntuosidade.
— Ela ainda não é minha. Nós dois sabemos que temos de esperar e
fazer nossos planos, Guido.
— Ainda não. Está esperando para ver o pulo do gato. Por enquanto,
ainda não houve um sério teste de força entre mim e Rubensohn. É isso o que
está faltando para ele tomar sua decisão.
McCreary suportou o quanto pôde, e por fim tentou escapulir para saber
o que ocorrera com Lisette; ao fazê-lo, porém, Rubensohn chamou-o para
apresentá-lo ao sultão. A partir de então, ficou plantado até o fim da
cerimônia, transpirando e pouco à vontade, tentando responder a centenas de
perguntas sobre o mecanismo de explorações petrolíferas, utilizando-se dos
termos mais elementares do vocabulário malaio.
McCreary lançou-lhe um olhar rápido, mas não havia malícia nos olhos
do outro. Rubensohn sempre se mostrava em melhor disposição quando
havia tarefas a cumprir. A maldade e a malícia eram deleites para momentos
de folga. Não as deixava interferir nos seus projetos.
Janzoon riu.
— Porque esta noite, McCreary, você irá presenciar mais uma das
maravilhas de que lhe falei. Vão nos oferecer uma recepção em palácio.
Seremos carregados colina acima, em liteiras, e depois do banquete e outros
divertimentos cada um de nós receberá um presente régio, e regressaremos
de novo carregados, um tanto embriagados, sem dúvida.
— Tem alguma sugestão melhor? Fui informado pelo sultão de que cada
oficial será presenteado com uma concubina para seu uso durante a nossa
estada em Karang Sharo. — Sorriu e umedeceu os lábios vermelhos. —
Creio que se trata de um antigo costume, que, infelizmente, caiu em desuso
em outras partes do mundo. Achei que não seria aconselhável recusar,
portanto, fica a seu cargo, Janzoon, manter a disciplina e providenciar, o
mais cedo possível, acomodações adequadas em terra. Estamos indo bem,
não acha, McCreary?
— Pobre Arturo! Ficar como cão de guarda numa noite destas. Coitado!
— É melhor para ele ficar de fora — disse McCreary com uma careta.
— Disseram que a noite poderá acabar mal. Onde será que Rubensohn se
meteu?
Agora podia entender os sonhos dos piratas. Era isso o que os havia
atraído através dos séculos, sob bandeiras estranhas, em navios precários e
com tripulações maltrapilhas... essa visão de tronos de pavão, deuses com
jóias nos olhos e tesouros enterrados sob os alicerces de palácios
fantásticos.
Para eles, o poder era coisa tangível, medida pelo peso de barras de
ouro, pelo número de escravos, pelas dimensões e pelo esplendor do palácio
ou mausoléu.
Rubensohn tinha essa índole de pirata, e isso era a melhor parte de sua
complexa personalidade. Revelava-se em seus momentos de exaltação e na
tranquila audácia de suas patifarias. Era um tipo importante; poderia mesmo
ter sido um grande homem, não fossem sua crueldade e astúcia pervertida.
Lá estava uma caixa que iria trazer as vozes do mundo para o palácio de
Karang Sharo. Havia uma máquina que iluminaria o palácio inteiro ao
simples toque de um dedo. Havia também um palanquim sobre rodas que
transportaria o Umbigo do Universo a qualquer lugar que desejasse, assim
que se construíssem as estradas apropriadas para seu uso. Havia armas para
o arsenal real, louças iguais às usadas pelos príncipes europeus; sedas para
a família real e jóias para os dedos das esposas reais. Havia presentes para
todos os oficiais do palácio...
— Agora não, pelo amor de Deus! Você será trucidado e não poderá
ajudá-la! Controle-se... para o bem dela!
Ele se deixou afundar nas almofadas, sentindo a pressão dos dedos dos
dois em seus braços, e observou Lisette prostrar-se, como uma escrava, aos
pés do sultão. Viu depois aquelas mãos morenas fazerem-na erguer-se,
removerem-lhe o véu e conduzirem-na para o trono ao lado do seu, enquanto
os cortesãos manifestavam, com suspiros, sua admiração ante tanta beleza.
Tinha descido o último degrau e bem o sabia. Sabia, também, que fora a
sua fé inabalável na sorte dos irlandeses que o fizera chegar a tal ponto.
Tentara lutar com adversários acima de sua categoria e acabara na lona, com
Rubensohn esmurrando-lhe os dentes e Lisette sendo entregue, desamparada,
como parte de uma transação de petróleo. Perguntava-se por que ela nunca
lhe revelara a intenção de Rubensohn. A resposta era bem simples. Ela sabia
que ele nada poderia fazer, e, se soubesse, certamente iria proceder como um
irlandês cabeçudo e acabar sendo baleado. Por isso, ele estava agora de
cuecas, sentado na beirada da cama, segurando a cabeça dolorida e sem
saber o que fazer. Os outros deviam também estar na expectativa —
Rubensohn e Janzoon. Esperando a sua reação e preparando-se para contra-
atacar.
— Sei, tuan.
— Gostou da noitada?
— Também achei.
— O quê?
— Não escuto nada, velho. Por que não confessa logo? Você gostaria de
afastar nós dois do seu caminho para ficar com o bolo todo. Se não fosse
assim, por que motivo ofereceu a Alfieri o posto de comandante?
— Já avisou Janzoon?
Talvez um dia pudesse utilizar-se desses fatos. Por ora, tinha outros
assuntos com que se ocupar.
Guido assobiou.
— Você acha que conseguirá tê-la de volta?
— Sim, se quiserem.
— O quê?
— Tirar Lisette de lá não resolve nada. Você tem de fazer com que ela
saia da ilha, senão acabam os dois nas mãos dos carrascos. Ou acha que
Rubensohn vai dar uma passagem grátis a vocês dois no Corsário?
— Duvido muito.
— Então pense nisso também. Lembre-se de que somos três pessoas,
você, eu e a moça, atirados numa ilha, e que justamente o homem que
controla o transporte quer acabar com você.
McCreary olhou em torno com olhos experientes. Era uma boa área,
favorável ao trabalho. A água era limpa, livre da poluição dos kampongs.
Boa madeira por perto, além de bambu e troncos de palmeira em abundância
para a construção das cabanas. Ao término de um dia de trabalho, poderiam
apreciar o mar, comodamente sentados, longe da praga dos mosquitos, e se
subissem um pouco a lombada das montanhas poderiam observar os
caminhos que conduziam ao palácio. Talvez, pensou, conseguisse ver Lisette,
ainda que rapidamente, passeando no interior dos jardins murados em
companhia das outras mulheres. Pediria a Guido que lhe mandasse um
binóculo do navio.
— Em quê?
— É fácil. Quando este troço estourar como uma bomba, como deve
acontecer um dia, quem estará por aqui? Nós? Não. Nem Rubensohn. Mas
Miranda sim! Se o sultão quiser fazer churrasquinho dos dedos de alguém,
quem será o mais indicado? Quem é o intérprete e o intermediário? Miranda!
Acho que um dia desses você devia falar com ele, contar-lhe os fatos e
oferecer-lhe uma boa recompensa. Assim, terá um aliado... e um barco de
quebra.
Guido desejara passar a noite lá, mas McCreary recusara. Não seria
prudente, assim logo de início, deixar Rubensohn perceber que havia uma
associação mais estreita entre ambos. Seu sistema de comunicação já era
bastante incompleto e tinha de ser mantido a todo custo.
— Não, deste trabalho. Ver algo nascer das próprias mãos. Fazer um
furo no chão e ver jorrar petróleo. Sou maquinista, e tenho grande respeito
pelo óleo.
— Muito simples. Aqui eu sou o número um. Num navio grande, seria o
número dois. Ninguém me amola e ganho bem. Isso tem importância. Em
Florença, tenho mulher e duas filhas, que logo vão precisar de dotes.
Portanto, é bastante conveniente para mim.
— Felizardo.
— Eu sei, mas... mas não estou interessado. Quando eu era mais moço,
não me importava de bancar o idiota. Mas agora, quando vejo amigos meus
indo para aquelas casas perto do cais, quando vejo coisas como as que
aconteceram ontem à noite, no palácio, penso em minhas filhas e não me
animo.
Perguntei por perguntar, longe de mim querer criticar o que você faz;
mas quanto a mim...
A moça acenou com a cabeça, e seu pequeno rosto moreno abriu-se num
sorriso radiante. Aquilo, sim, ela entendia. Desde que tuan gostasse dela,
haveria sempre um amanhã e as noites subsequentes. Vergonhoso era quando
uma mulher não tinha poderes para atrair um homem, e ela desejava
ardentemente atrair aquele homem esguio de voz terna e olhos risonhos.
Dessa vez era uma antiga melodia, chamada lá em Kerry de The hounds
of Glenloe. Falava de uma caçada, com todos se esfalfando morro acima e
morro abaixo, enquanto a matreira raposa, sentada calmamente em sua toca,
fazia-lhes “fiau”! Já havia algum tempo que McCreary começara a
simpatizar com a Irmã Raposa.
— Estamos indo bem, não acha? Olhe só! Já começa a parecer alguma
coisa. A gente tem de compreender esses sujeitos. A gente tem de rir para
eles, mas ficar sempre de olho neles, para que trabalhem de verdade. Espero
que esteja satisfeito. Se quiser alguma coisa é só dizer aqui para Miranda.
Providencio logo. Prometi ao sr. Rubensohn cooperação total. E, quando eu
prometo, cumpro. Préstimos em troca de dinheiro, hem? É um bom negócio
para nós dois.
— Ah! Em Ambon, Buru, leste de Kai Ketjil, sul do Timor Lant e Timor.
— Ótimo, ótimo! Acho que vai gostar. E isso fica entre nós, hem? Outra
coisa. Se quiser uma garota...
— A mão-de-obra é suficiente?
— É.
— Por quê?
Rubensohn desculpou-se:
— Sinto muito, McCreary, mas você sabe como as coisas são por estas
bandas. O sultão é o Umbigo do Universo... primo em primeiro grau do
Todo- Poderoso. Não posso recusar. Ele pode fazer o nosso trabalho parar
com um simples estalar de dedos.
— Deixe para amanhã — disse McCreary. — Pedi que ele viesse hoje à
tarde dar uma olhada no transmissor, que não está funcionando bem.
— Tenho uma coisa a lhe contar, Agnello, uma história muito comprida.
— Ontem à noite você me acordou com seus gritos; olhei e você estava
dormindo.
— Falei muito?
— O suficiente.
— Muito bem. Pois agora vou lhe contar o resto. Assim que acabar, fica
a seu critério me ajudar ou não. Em caso negativo, eu saberei compreender,
mas espero contar com a sua reserva.
— E nem precisa. Você não disse que ele lhe propôs comprar gasolina
daqui do acampamento? Pois então. É só você dizer que não pode agir assim
abertamente, nem vender tudo de uma vez. Sugira que leve a chalupa para
aquela baía ali, para você poder entregar um tambor agora e os outros mais
tarde. O transporte poderá ser feito à noite. Ele ficará ancorado por ali
enquanto tiver oportunidade de conseguir mais tambores. Dessa maneira,
você terá um barco devidamente abastecido e pronto para zarpar quando lhe
convier.
— Puxa vida! Não é que pode mesmo dar certo? E se eu arranjar uma
dessas pirogas nativas e começar a me interessar por pescarias noturnas,
para que não estranhem a minha presença nas imediações... Vamos tomar
outra cerveja para comemorar essa ideia espetacular.
— Para mim basta — disse Agnello com seu nálido sorriso. — Vou
descer para ver como o trabalho está andando. Esses nativos são
inteligentes, mas são como a gente do sul lá da minha terra. Preferem cantar
e se aquecer ao sol a trabalhar de verdade.
— Era criada das mulheres do sultão. Às vezes, quando uma das outras
ficava doente, eu dançava nos bailados djoged.
— Como assim?
— Então vocês dois devem estar muito felizes. É uma grande honra ser
mulher do sultão.
— Pode mesmo?
Aí, então, ele verificou que não era absolutamente simples. Era
terrivelmente complicado. Se não tomasse cuidado com a moça, ela acabaria
botando veneno no seu prato de arroz e Lisette poderia ir parar nas mãos do
carrasco do sultão.
13
— São três horas! Flor Flamejante disse que elas saem para tomar ar
fresco debaixo das árvores.
Quando chegasse a ocasião de retirar Lisette de lá, teriam de vir por ali,
pela encosta, atravessando as colinas inferiores para ganhar a reentrância
que dava acesso à zona de perfuração. A saída principal estaria obstruída
pelos guardas e trabalhadores da povoação.
— E mulher!
— Que amigos?
— O quê?
— Janzoon mandou um recado para você. Vem lhe fazer uma visitinha
amanha cedo.
— Que será que ele pretende com isso?
— Mais para o senhor que para mim. Veja como sou honesto com o
senhor. Meu melhor mercado é Díli: lá me oferecem mais ou menos a décima
parte do valor, e sou obrigado a aceitar. Mas o senhor... quando sair daqui,
pode ter um lucro fantástico. É coisa de primeira, o senhor sabe disso.
— Vou lhe dar mais uma garrafa de uísque, porque sou irlandês e
generoso. Negócio fechado?
— O quê?
— Por quê?
— Qualquer dia, tudo isto irá pelos ares. Só espero não estar aqui para
ver.
14
— Qual é a piada?
— Por quê?
— Ele me pediu que matasse você. Acha que Alfieri pode muito bem se
encarregar do navio, e ele e eu ficaríamos com a sua parte.
— Mas... você não acreditou nisso, acreditou? Sabe muito bem o que
ele pretende fazer, não sabe? Quer se livrar de nós dois. Fazer com que um
acabe com o outro!
— Você é que vai escutar, Janzoon. Há dois dias, poderíamos ter feito
negócio. Agora, é tarde. Você sabia o que estava para acontecer a Lisette e
não me contou. Não ergueu um dedo para evitar aquilo. Foi com Rubensohn
levá-la ao palácio e viu-a ser entregue ao sultão como se fosse dinheiro sujo.
E ainda por cima está querendo tirar proveito disso! Muito bem, continue!
Boa sorte, mas não se esqueça de que está trabalhando por conta própria. E
o mais engraçado é que nunca vai ficar sabendo quem puxou o gatilho... eu
ou Rubensohn. Agora, dê o fora do meu acampamento. Temos muito serviço
aqui!
— Continue, continue!
— Não sei bem se foi uma resposta — disse Guido com um leve
sorriso. — Mas quando acabei, escutei risadinhas e falatório atrás dos
biombos, e pouco depois uma criança chegou perto de mim com uma flor
vermelha na mão e disse, falando alto e em inglês, sem saber o que queria
dizer aquilo: “Para o homem”. Então, escutei-as rindo de novo. Passei a mão
pela cabeça da bambina e lhe dei de presente a minha lanterna preta... foi
uma ideia que tive depois... para ela poder responder ao seu sinal. Aí, os
homens também começaram a rir, todo mundo pensando que eu era um pazzo,
mas camarada. Então, deram-me um drinque e um prato de doces, que me
deixaram enjoado. Liguei os motores, acendi as luzes, ensinei a eles como
deviam fazer para acendê-las e apagá-las, e descobri que não tinham
compreendido nada. Aí, mandaram-me de volta para o navio, e, antes de
chegar lá, mandei a liteira embora e vim para cá a pé. E são essas as
novidades! Está satisfeito?
— Acho que a intenção dela foi mandá-la para você. Minha voz não é
assim tão boa, principalmente quando canto em inglês.
— Obrigado, compar’ — disse McCreary com voz trêmula. — Mille,
mille grazie!
Os dois olharam para ele, perplexos com o tom desconhecido que lhe
perceberam na voz.
— E então?...
— Então, vou dizer a vocês. Cada dia e cada noite das próximas
semanas, quero que vocês meditem sobre o assunto, e até sonhem com ele,
para que, quando chegar a hora, ninguém cometa o mais leve engano.
— E não era para estar? — McCreary estava decidido a não lhe poupar
nem um momento de ansiedade. — Qualquer desses tremores podia ter
derrubado o equipamento, e teríamos de começar tudo de novo. Se eles
forem ficando mais fortes, podem fazer o poço desmoronar, e com isso
perderíamos nossas brocas e a cobertura.
McCreary sorriu.
Bem, aquilo era o princípio. Pôs-se de pé, perscrutou mais uma vez as
planícies e procurou delinear uma rota, subindo e descendo a encosta, até
terminar sob o muro do jardim. Em seguida, deu início à jornada. Um minuto
depois, era tragado pela selva.
Levou oitenta minutos para vencer o percurso, nas condições mais
penosas. Plantas rasteiras agarravam-se-lhe aos tornozelos, madeiras
apodrecidas desfaziam-se sob seus pés, espinhos dilaceravam-lhe a roupa e
galhos vergastavam-lhe o rosto. Pássaros agitavam-se ruidosamente à sua
passagem e insetos monstruosos adejavam à frente de seu rosto. O suor
escorria-lhe pelo corpo, e tinha as narinas impregnadas do mau cheiro da
vegetação putrefacta.
Foi ao arroio banhar-se e vestiu roupas limpas. Na volta, viu que Flor
Flamejante havia aprontado sua refeição. A jovem sentou-se a seus pés
enquanto ele comia, e, ao terminar, ela lhe entregou um cigarro e acendeu-o.
O pequeno truque com o isqueiro nunca deixava de diverti-la, mas nessa
noite seu rosto miúdo e infantil mostrava-se preocupado. Ela o fitou por um
momento e disse com relutância:
— Tuan...
— O que é, menina?
— Agora, que o outro tuan foi embora, posso dormir aqui com você?
McCreary olhou para ela com brandura. Ela era jovem e desenvolvida,
perfeita como uma flor tropical, e ele se sentia solitário, necessitado de
consolo. Até então vivera e amara despreocupadamente. Por que hesitar
agora? Podia tê-la sem o menor problema. Ali estava um presente régio,
inteiramente à sua disposição. Era só usá-la e depois abandoná-la com um
filho, esquecendo-a como o faziam tantos outros flibusteiros cujos
descendentes povoavam as ilhas asiáticas. Lisette não o culparia por isso.
Ninguém mais se importaria com isso, a não ser ele próprio. E ele se
importava singular e fortemente. Teve uma rápida visão da jovem na noite
decisiva, arrastada à presença dos carrascos, com o filho de McCreary no
ventre.
— Onde, tuan?
— Mas isso nunca vai acontecer, tuan. Nenhuma mulher sai daquele
palácio... nunca.
— Ela sairá. Uma noite ela sairá, e eu a levarei para longe de Karang
Sharo, e levarei também você comigo. Para um lugar onde o sultão nunca nos
encontrará.
— Juro.
— Então... então... já que não pode ter nada comigo... será que posso
vir dormir aqui na sua cabana? Quando estou sozinha e o chão começa a
tremer, fico morrendo de medo.
McCreary sorriu para ela, passou a mão pelos seus cabelos perfumados
e disse em inglês:
— Eu disse que levarei você daqui, menina. Fica contente com isso?
McCreary riu entre dentres com o relato seco de Agnello. Sabia quanto
o humor de Rubensohn devia estar se desgastando com a espera. Lamentava
não poder prolongá-la ao máximo.
— Pode não significar grande coisa — observou Agnello com sua voz
calma. — O Etna prega desses sustos de vez em quando. E o Stromboli está
sempre resmungando. Mas se ele... Deus nos livre!
— É melhor não pensarmos mais nisso — retrucou McCreary,
desassossegado — e esperar que estejamos longe daqui quando ele entrar
em erupção.
— Minha Nossa Senhora! Não posso fazer uma coisa dessas... Sabe o
que vai acontecer? Vou ficar arruinado! Vou perder tudo o que tenho!
— Entendi, sim... mas como pode ter certeza de que tudo vai sair
direito?
— Não vão se preocupar por muito tempo, Guido. Esta noite será o fim
de tudo.
Ele lhe assegurou não só isso, mas que o mataria se perdesse o sangue-
frio. Sentou-se e escreveu um lacônico bilhete a Rubensohn:
— É você, Mike? — indagou ela num sussurro, que ele ouviu como se
fosse o rugir de tambores.
Ele ainda se manteve ali o tempo suficiente para vê-la alçar-se aos
primeiros galhos em segurança, sustando a respiração por temer que os
estalos dos galhos secos fizessem com que pessoas do palácio surgissem
gritando e correndo no encalço dela. Em seguida, deslizou pela corda e
aguardou, impaciente, até que a viu, como uma mariposa branca, assomar no
alto da muralha por entre as folhagens escuras.
Viu-a hesitar por um instante e depois pular. O impacto fez que ele
escorregasse pelo declive resvaladiço, mas logo se pôs de pé, e, sem um
beijo ou um abraço, puxou-a para as sombras. Aos tropeções, internaram-se
na mata.
— Fique na cabana até que eu mande chamá-la. Não saia de lá. Agora,
vão... rápido! Guido!
— Pronto, amico.
— Já liguei, Mike... está ali fora. Imaginei que você quisesse colocá-la
ali.
— Ótimo! Há uma porção de pedras e objetos de jade na minha sacola.
Apanhe-a e leve-a para Flor Flamejante. Diga a ela para carregá-la quando
formos para o barco.
McCreary sorriu e entrou na cabana. Levou nada mais nada menos que
três minutos para se lavar e trocar de roupa, e quando Rubensohn e Janzoon
chegaram caminhando pesadamente colina acima, ele já estava à espera, de
cigarro na boca e com um lampejo de triunfo no olhar.
— Não vai demorar nada! Esta noite! Vocês me verão inclinado sobre
um pistão, contarão até três... talvez até cinco... e irão presenciar uma das
cenas mais espetaculares do mundo: um poço esguichando um óleo negro e
pegajoso em direção às estrelas. É ou não é uma notícia agradável,
senhores?
— Escute, McCreary...
— Três... quatro...
— Dê-me a caneta!
— O que é isto?
— McCreary! McCreary!
Agora, ambos soltavam berros lancinantes, e quando, por fim, ele virou
a cabeça, viu-os chapinhando, com água até a cintura.
“Acabei com ele”, pensou McCreary. “Ali está... um rosto que não
posso ver e uma voz que não posso ouvir, tudo engolido pelo mar em poucos
segundos. Tirei-lhe a garota, o dinheiro e a vida. Posso não sentir orgulho do
que fiz, mas macacos me mordam se tenho pena daquele sujeito!”
— Mike! Mike! Será que não podemos fazer alguma coisa por eles? —
Lisette estava às suas costas, escorando-se na amurada. — Não é possível
voltarmos e salvar algumas pessoas?
— Não olhe mais para lá, morena — disse McCreary com energia. —
Feche os olhos, os ouvidos e o coração. Você já sofreu demais, e não pode
fazer nada para remediar aquilo. Agarre-se a mim, meu amor, que passará a
escutar o rumorejar do vento sobre a grama, o canto do melro e o ressoar
dos cascos das potrancas subindo a ladeira e voltando para casa no alto das
colinas de Armagh. Escute tudo isso, morena! Escute...
Como seus livros estão ligados a temas atuais, Morris West tem sido
classificado, apressadamente, por parte da imprensa, como profeta. Em
1963, quando publicou o romance "As sandálias do pescador”, narrava a
história de um arcebispo do mundo socialista que se tornava cardeal e
depois papa. Anos mais tarde, João Paulo II transformava em realidade esse
enredo ousado. Em 1965, escreveu "O embaixador”, no qual descrevia o
crescente envolvimento dos Estados Unidos no Vietnam. Os fatos
comprovaram mais uma vez a hipótese de West. Tudo isso confirma seu
poder de análise, que, aliado à habilidade indiscutível de armar tramas
apaixonantes, parece ser o segredo de sua popularidade.