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Psicose 4h48
De Sarah Kane

(Um silêncio muito longo)

- Mas você tem amigos

(Um silêncio longo)

Você tem muitos amigos


O que é que você dá aos seus amigos que faz com que eles te apóiem tanto?

(Um silêncio longo)

O que é que você dá aos seus amigos que faz com que eles te apóiem tanto?

(Um silêncio longo)

O que é que você dá?

(Silêncio.)

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a consciência consolidada mora em uma penumbrosa sala de jantar perto do


teto de uma mente cujo o chão se desloca como dez mil baratas quando um
feixe de luz penetra e une todos os pensamentos em um instante de
harmonia do corpo não tão repelente como as baratas compreendem uma
verdade que ninguém nunca fala

Tive uma noite em que tudo me foi revelado.


Como é que eu posso falar outra vez?

a hermafrodita destruída que confiou na própria solidão descobre que a sala


na realidade fervilha e pede para nunca acordar do pesadelo.

e estavam todos lá
cada um deles
e sabiam o meu nome
enquanto eu fugia correndo feito um inseto
ao longo das costas das cadeiras deles

Lembre da luz e acredite na luz


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Um instante de claridade antes da noite eterna

Não me deixe esquecer

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estou triste

sinto que não há esperança no futuro e que as coisas não podem melhorar

estou farta e insatisfeita com tudo

sou um completo fracasso como pessoa

sou culpada, estou sendo castigada

gostaria de me matar

costumava chorar mas agora estou para além das lágrimas

perdi o interesse pelas outras pessoas

não consigo tomar decisões

não consigo comer

não consigo dormir

não consigo pensar

não consigo ir além da minha solidão, do meu medo, do meu desgosto

estou gorda

não consigo escrever

não consigo amar

meu irmão está morrendo, meu amor está morrendo, eu estou matando os
dois

e invisto na direção da minha morte


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estou aterrorizada com a medicação

não consigo fazer amor

não consigo foder

não consigo estar sozinha

não consigo estar com os outros

meus quadris são muito grandes

e não gosto dos meus órgãos genitais

Às 4h48
quando o desespero me visitar
me enforcarei
ao som da respiração do meu amante

não quero morrer

fiquei tão deprimida com a consciência da minha mortalidade que decidi


me suicidar.

não quero mesmo viver

tenho ciúmes do meu amante adormecido e cobiço a sua inconsciência


induzida

Quando ele acordar vai invejar a minha noite sem dormir de pensamentos e
discursos fluentes por causa da medicação

Decidi morrer este ano

Alguns vão chamar isso de auto-compaixão


(eles terão sorte de não saber a verdade)
Alguns vão simplesmente conhecer a dor

Isso está se tornando minha rotina

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Não foi por tanto tempo, eu não estive lá por tanto tempo. Mas bebendo
café amargo senti aquele cheiro medicinal em uma nuvem de tabaco antigo
e algo me tocou naquele lugar ainda soluçante e um ferimento de dois anos
atrás se abriu como um cadáver e uma vergonha há muito enterrada gritou a
sua fétida e decadente mágoa.

Um quarto de rostos inexpressivos que olham insensivelmente a


minha dor, tão desprovidos de expressão que só pode haver uma
intenção diabólica.

Dr. Isso e o Dr. Aquilo e o Dr Oquequeéisso estavam apenas de


passagem e acharam que podiam entrar no quarto para gozarem
também da minha cara. Queimando em um túnel quente de
desalento, minha humilhação se completa por eu tremer sem razão e
por tropeçar nas palavras e por não ter nada a dizer sobre a minha
“doença” que de qualquer maneira só vale para dizer que não há
nenhum assunto porque vou morrer. E estou em um beco sem saída
levada por aquela voz suave e psiquiátrica da razão que me diz que
há uma realidade objetiva na qual o meu corpo e minha a mente são
uma coisa só. Mas não estou aqui nem nunca estive. O Dr. Isso
escreve e Dr. Aquilo tenta um murmúrio simpático. Me assistindo,
me julgando, cheirando o fracasso e a paralisia que escorrem pela
minha pele, meu desespero me rasgando e o pânico me consumindo
me encharcando enquanto boquiaberta de horror para o mundo
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pergunto por que estão todos sorrindo e olhando para mim com um
conhecimento secreto da minha vergonha dolorosa.

Vergonha vergonha vergonha.


Afogada na merda da sua vergonha.

Médicos inescrutáveis, médicos sensatos, médicos excêntricos,


médicos que você poderia pensar que estavam fodendo pacientes se
não lhe provassem o contrário, fazem as mesmas perguntas, põem
palavras na minha boca, oferecem curas químicas para angústias
congênitas e encobrem uns aos outros até eu querer gritar por você,
o único médico que me tocou voluntariamente, que me olhou nos
olhos, que riu do meu humor mórbido falado numa voz vinda da
recém-cavada sepultura, que gozou da minha cara quando eu raspei a
cabeça, que mentiu e disse que estava contente por me ver. Que
mentiu. E disse que estava contente por me ver. Confiei em você,
amei você, e não é perder você que me machuca, mas sim a merda
das suas falsidades descaradas disfarçadas em notas médicas.

Sua verdade, suas mentiras, não as minhas.

E enquanto eu acreditava que você era diferente e que talvez você até
sentisse a aflição que fazia estremecer às vezes a sua face e
ameaçava explodir, você também só estava tentando salvar o cu.
Como qualquer outro mortal cuzão estúpido.

Para a minha mente isso é traição. E a minha mente é o sujeito destes


fragmentos confusos.

Nada pode extinguir meu ódio.

E nada pode restaurar minha fé.

Esse não é um mundo onde eu queira viver.

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- Você fez algum plano?

- Tomar uma overdose, cortar os meus pulsos, depois me enforcar.

- Tudo isso de uma vez?

- De modo que não poderia ser interpretado como um grito de ajuda.


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(Silêncio.)

- Não daria certo.

- Claro que daria.

- Não daria certo. Você se sentiria sonolenta por causa da overdose e não
teria forças para cortar os pulsos.

(Silêncio.)

- Eu estaria em pé em cima de uma cadeira com uma corda enrolada no


pescoço.

(Silêncio.)

- E se você ficasse sozinha acha que poderia fazer mal a você mesma?

- Acho que sim e isso me assusta.

- Pode ser uma espécie de proteção?

- Sim. É o medo que me mantém longe dos trilhos dos trens. Só espero,
pelo amor de Deus, que a morte seja a porra do fim. Me sinto com oitenta
anos. Estou cansada da vida e a minha mente quer morrer.

- Isso é uma metáfora, não é realidade.

- É como se fosse.

- Isso não é realidade.

- Não é uma metáfora, é como se fosse, mas ainda que fosse uma metáfora,
aquilo que define uma metáfora é ela ser real.

(Um longo silêncio.)

- Você não tem oitenta anos.

(Silêncio.)

Tem?
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(Silêncio.)

Tem?

(Silêncio.)

Tem ou não tem?

(Um longo silêncio.)

- Você despreza todas as pessoas infelizes ou só especificamente a mim?

- Eu não desprezo você. A culpa não é sua. Você está doente.

- Eu não acho.

- Não?

- Não. Estou deprimida. Depressão é ódio. É o que você fez, você que
estava lá e você que é está se culpando.

- E você está culpando a quem?

- A mim mesma.

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Corpo e mente nunca podem se casar.

Preciso me tornar a pessoa que já sou e hei de vaiar para sempre esta
incongruência que me mandou para o inferno

A esperança insolúvel não me mantém de pé.

Vou me afogar na dysphoria


no lago frio e negro de mim mesma
no fosso da minha mente irrelevante

Como posso voltar à forma


Se já não tenho pensamentos formais?

Não é uma vida que eu possa sustentar.


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Vão me amar por aquilo que me destruiu


a espada nos meus sonhos
o pó dos meus pensamentos
a doença que se reproduz nos cantos da minha mente

Cada palavra de elogio tira um pedaço da minha alma

Uma crítica expressionista


Nas cadeiras centrais entre dois bobos
Não sabem nada –
sempre andei livre

Última numa longa linha de cleptomaníacos literários


(uma tradição honrada pelo tempo)

O roubo é um ato sagrado


Sobre um trilho destorcido para a expressão

Uma superabundância de pontos de exclamação


substitui um colapso nervoso eminente
Uma única palavra na página e lá está o teatro.

Escrevo pelos mortos


que estão por vir

Depois das 4h48 eu não volto a falar


Cheguei ao fim deste conto triste e repugnante
de um sentimento internado em uma carcaça alienígena
inchada pelo espírito maligno da maioria moralista.

estou morta há muito tempo

De volta às raízes

canto sem esperança no meu limite

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RSVP ASAP

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Às vezes me viro e sinto o seu cheiro e não consigo continuar não consigo
continuar é uma porra não consigo continuar sem expressar essa dor física
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terrível tão fodidamente horrorosa e grandiosamente fodida que sinto por


você. E não posso acreditar que eu sinta isso por você e você não sinta nada
por mim. Você não sente nada?

(Silêncio.)

Você não sente nada?

(Silêncio.)

E saio às seis da manhã e começo a procurar por você. Se sonhei com uma
rua ou um bar ou uma estação vou lá. E espero por você.

(Silêncio.)

Sabe, me sinto como se estivesse sendo manipulada.

(Silêncio.)

Nunca na vida tive problemas dando a outras pessoas o que elas queriam.
Mas ninguém ainda foi capaz de fazer isso por mim. Ninguém me toca,
ninguém se aproxima de mim. Mas agora você me tocou em não sei onde
tão fundo foda-se não posso acreditar eu não consigo fazer isso por você.
Porque eu não consigo te encontrar.

(Silêncio.)

Como ela é?
E como vou saber que é ela quando eu a vir?
Ela vai morrer, ela vai morrer, porra ela só vai morrer.

(Silêncio.)

Acha que é possível uma pessoa nascer em um corpo errado?

(Silêncio.)

Acha que é possível uma pessoa nascer em uma época errada?

(Silêncio.)

Foda-se. Foda-se. Foda-se por me rejeitar nunca estando lá, foda-se por me
fazer me sentir uma merda, foda-se por me sangrar a porra do amor e da
vida, foda-se o meu pai por ter fodido a minha vida e foda-se a minha mãe
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por não o ter deixado, mas acima de tudo, foda-se Deus por me fazer amar
alguém que não existe,
FODA-SE FODA-SE FODA-SE

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- Ah, o que aconteceu com seu braço?

- Me cortei.

- Isso foi muito imaturo, procurar chamar a atenção desse jeito.


Te aliviou de alguma forma?

- Não.

- Aliviou sua tensão?

- Não.

- Te aliviou de alguma forma?

(Silêncio.)

- Te aliviou de alguma forma?

- Não.

- Não entendo por que você fez isso.

- Então pergunte.

- Aliviou sua tensão?

(Um longo silêncio.)

Posso ver?

- Não.

- Queria olhar, para ver se infeccionou.

- Não.
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(Silêncio.)

- Achei que você teria feito isso. Muita gente faz isso. Alivia a tensão.

- Você já fez?

- ...

- Não. É um porra são e sensato. Não sei onde você leu isso, mas não alivia
a tensão.

(Silêncio.)

Por que você não me pergunta por quê?


Por que cortei meu braço?

- Você quer me falar?

- Sim.

- Então fale.

- PERGUNTE
ME
POR QUÊ

(Um longo silêncio.)

- Por que é que você cortou seu braço?

- Porque me faz sentir bem pra caralho. Porque é bom pra caralho.

- Posso ver?

- Pode ver. Mas não toque.

- (Olha) E você acha que não está doente?

- Não.

- Eu acho. A culpa não é sua. Mas você tem que assumir a responsabilidade
pelos seus atos. Por favor não faça mais isso.

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temo perdê-la sem nunca tê-la tocado


o amor me mantém escrava em uma gaiola de lágrimas
rôo a língua que nunca consegue falar com ela
sinto falta de uma mulher que nunca nasceu
beijo uma mulher por anos sem nunca termos nos encontrado

Tudo passa
Tudo perece
Tudo perde interesse

o meu pensamento afasta-se com um sorriso assassino


deixando uma ansiedade discordante
que grita na minha alma

Sem esperança Sem esperança Sem esperança Sem esperança Sem


esperança Sem esperança Sem esperança

Uma canção para a minha amada, tocando sua ausência


o fluxo do coração dela, o respingar do seu sorriso

Daqui a dez anos ela ainda estará morta. Quando eu estiver vivendo com
isso, lidando com isso, quando alguns dias se passarem quando eu nem
sequer pensar mais nisso, ela ainda estará morta. Quando eu for uma velha
senhora vivendo nas ruas esquecendo meu nome ela ainda estará morta, ela
ainda estará morta, esta
porra
está acabada

e tenho que seguir sozinha

Meu amor, meu amor, por que me abandonou?

Ela é o lugar confortável onde nunca deitarei e não há sentido viver na luz
da minha perda

Feita para ser sozinha


para amar os ausentes

Me encontrar
me libertar
disso

dúvida corrosiva
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desespero fútil

horror em repouso

posso ocupar o vazio do espaço


ocupar o vazio do tempo
mas nada pode ocupar o vazio deste buraco no meu coração

A necessidade vital pela qual eu morreria

Esgotamento

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- Nada de se ou mas

- Eu não disse se ou mas, eu disse não.

- Não posso devo nunca tenho que sempre não vou devia não hei-de
Os inegociáveis
Hoje não.

(Silêncio.)

- Por favor. Não desligue minha mente na tentativa de me corrigir. Ouça e


entenda, e quando sentir desprezo não expresse-o, pelo menos não
verbalmente, pelo menos não a mim.

(Silêncio.)

- Não sinto desprezo.

- Não?

- Não. A culpa não é sua.

- A culpa não é sua, é tudo que ouço, a culpa não é sua, é uma doença, a
culpa não é sua, eu sei que a culpa não é minha. Você me diz isso com
tanta freqüência que estou começando a pensar que a culpa é minha.

- A culpa não é sua.

- EU SEI.
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- Mas você permite.

(Silêncio.)

- Permite?

- Não há nenhuma droga no mundo que torne a vida significante.

- Você permite esse estado de absurdo desespero.

(Silêncio.)

Você permite.

(Silêncio.)

- Não vou conseguir pensar. Não vou conseguir trabalhar.

- Nada vai interferir mais em seu trabalho do que o suicídio.

(Silêncio.)

- Sonhei que tinha ido à médica e que ela tinha me dado oito minutos de
vida. E ela tinha me deixado sentada na porra da sala de espera durante
meia hora.

(Um longo silêncio.)

Tudo bem, vamos lá, vamos às drogas, vamos preparar a lobotomia


química, vamos estancar as funções mais importantes do meu cérebro e
talvez eu me torne mais fodidamente capaz de viver.

Vamos lá.

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abstração até o limite do

desagradável
inaceitável
desinspirador
impenetrável
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irrelevante
irreverente
incrédulo
impenitente

antipático
deslocado
desencarnado
desconstruído

Não imagino
(claramente)
que uma simples alma
podia
poderia
deveria
ou deverá

e se eles fizessem
não acho
(claramente)
que outro alma
uma alma como a minha
podia
poderia
deveria
ou deverá

não levar em conta

Sei que não estou fazendo


tudo muito bem

Nada de língua materna

irracional
irredutível
irremediável
irreconhecível

descarrilhado
desordenado
deformado
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de forma livre

obscuro até o limite do

Verdadeiro Certo Correto


Qualquer coisa ou Qualquer pessoa
Cada um tudo todos

se afogando em um mar de lógica


esse monstruoso estado de paralisia

doente ainda

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Sintomas: sem comer, sem dormir, sem falar, sem desejo sexual, em
desespero, quer morrer.

Diagnóstico: desgosto patológico.

Sertralina, 50 mg. Insônia acentuada, forte ansiedade, anorexia, (perda de


17 kilos) aumento de pensamentos, planos e intuições suicidas.
Tratamento interrompido seguido de hospitalização.

Zopiclona, 7,5 mg. Sonolência. Interrompido provoca falas sem sentido e


movimentos desconexos. Paciente tentou deixar o hospital sem alta médica.
Foi detida por três enfermeiros duas vezes maiores que ela. Paciente
ameaçadora e não cooperadora. Idéias paranóicas – acredita que os
funcionários do hospital querem envenená-la.

Melleril, 50 mg. Coopera.

Lofepramina, 70 mg, aumentado para 140 mg, depois 210 mg. Ganhou
doze kilos. Perda de memória recente. Nenhuma outra reação.

Discutiu com médico estagiário acusando-o de traição depois de ela ter


raspado a cabeça e cortado os braços com lâminas de barbear.

Paciente inscrita no programa comunitário desobrigado de pagamento deu


entrada em estado psicótico gravíssimo no pronto-socorro necessitando
com urgência de leito hospitalar.
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Citalopram, 20 mg. Tremores pela manhã. Nenhuma outra reação.

Lofepramina e Citalopram interrompidos depois da paciente ter se urinado


devido aos efeitos colaterais e ausência óbvia de melhora. Sintomas após a
interrupção: Tonturas e confusão. Paciente cai em demasia, desmaia e se
atravessa na frente dos carros. Idéias delirantes – acredita que o médico
especialista é o anti-Cristo.

Fluoxetina, nome fantasia Prozac, 20mg, aumentado para 40mg. Insônia,


apetite irregular, (perda de 14 kilos) forte ansiedade, incapaz de atingir
orgasmo, idéias homicidas em relação a vários médicos e fabricantes de
drogas. Interrompido.

Humor: Fodidamente raivoso.


Comportamento: Muito raivoso.

Thorazina, 100mg. Sonolência. Mais calma.

Venlafaxina, 75 mg, aumentado para 150 mg, depois para 225mg. Tontura,
queda de pressão, dores de cabeça. Nenhuma outra reação. Interrompido.

Paciente recusa Seroxat. Hipocondria – declara sofrer de piscar de olhos e


forte perda de memória como evidência de dyskinesia e demência tardia.

Recusa a continuação do tratamento

100mg de aspirina e uma garrafa de Cabernet Sauvignon búlgaro, 1986.


Paciente acordou numa piscina de vômito e disse “Durma com o cachorro e
acorde cheio de moscas.” Fortes dores estomacais. Nenhuma outra reação.

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Escotilha se abre
Luz opaca

a televisão fala
cheia de olhos
os espíritos da visão

e agora tenho tanto medo


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vendo coisas
ouvindo coisas
não sei quem sou

língua para fora


pensamento embaralhado

os colapsos inconstantes da minha mente

Onde começo?
Onde paro?
Como começo?
(Como se eu quisesse ir em frente)

Como eu paro?
Como eu paro?
Como eu paro?
Como eu paro?
Como eu paro? Uma etiqueta de dor
Como eu paro? Apunhalando meus pulmões
Como eu paro? Uma etiqueta de morte
Como eu paro? Espremendo meu coração

Vou morrer
ainda não
mas está lá

Por favor...
Dinheiro...
Esposa...

Todo ato é um símbolo


o peso daquilo que me esmaga

Uma linha pontilhada na garganta


CORTE AQUI

NÃO DEIXEM QUE ISSO ME MATE


ISSO VAI ME MATAR E ME ESMAGAR E
ME MANDAR PARA O INFERNO

Lhes imploro para me salvar dessa loucura que me come


uma morte sub-intencional
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Pensei que não deveria voltar a falar


mas agora sei que há algo mais obscuro do que o desejo

talvez me salve
talvez me mate

um assobio melancólico é o grito de um coração partido que soa na tigela


infernal do teto da minha mente

um cobertor de baratas

parem com essa guerra

Minhas pernas dormentes


Nada a dizer
este é o ritmo da loucura

-----

- Asfixiei os judeus, matei os curdos, bombardeei os árabes, fodi


criancinhas enquanto imploravam por misericórdia, os campos de
extermínio são meus, todos deixaram a festa por minha causa, vou sugar
esses seus olhos de merda e mandá-los numa caixa para a sua mãe e
quando eu morrer vou reencarnar sua filha só que cinqüenta vezes pior e
tão louca quanto toda sua vida de merda vai ser um inferno ME RECUSO
ME RECUSO ME RECUSO NÃO ME OLHE

- Está Tudo bem.

- NÃO ME OLHE

- Está tudo bem. Eu estou aqui.

- Não me olhe

-----
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Somos condenados
os párias da razão

Por que estou definhando?


tive visões de Deus

isso deve passar

Desembainhai a vossa espada


Pois serão feitos em pedaços
isso deve passar

Vejam a luz do desespero


a face da angústia
e serão levados à escuridão

Se houver uma explosão


(vai haver uma explosão)
os nomes dos pecadores serão gritados dos telhados

Temam a Deus
e a sua convocação odiosa

caspa sobre a minha pele, um fervilhar no meu coração


um cobertor de baratas onde dançamos
esse infernal estado de sítio

Tudo isso deve passar


todas essas palavras do meu respirar nocivo

Lembre da luz e acredite na luz

Cristo está morto


e os monges em êxtase

Somos os miseráveis
que depuseram os nossos líderes
e queimaram incenso para Baal

Agora venham, vamos pensar juntos


A sanidade é encontrada na montanha da casa do Senhor no horizonte da
alma que recua eternamente
A cabeça está doente, a válvula do coração rasgada
Pisem o chão onde caminha a sabedoria
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Abracem mentiras maravilhosas –


a crônica demência do são

as violentas torções têm início

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- Às 4h48
quando a sanidade vem me visitar
por uma hora e doze minutos fico em sã consciência.
Depois disso me vou outra vez,
uma marionete fragmentada, uma imbecil grotesca.
Estou aqui agora eu consigo me ver
mas quando estou encantada pela torpe ilusão da felicidade,
desse mágico repugnante e de sua máquina de feitiçaria,
não consigo tocar na essência do meu eu.

Por que é que você acreditou em mim naquela hora e agora não?

Lembre da luz e acredite na luz.


Agora nada importa.
Pare de julgar pelas aparências e faça um julgamento correto.

- Está tudo bem. Você vai ficar melhor.

- A tua falta de fé não cura nada.

Não me olhe.

- ----

Escotilha se abre
Luz opaca

Uma mesa duas cadeiras sem janelas

Aqui estou eu
E lá está meu corpo

dançando sobre o vidro

Numa tempo acidentado onde não há acidentes


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não há escolha
a escolha vem depois

Me cortem a língua
Me arranquem os cabelos
cortem minhas pernas
mas me deixem meu amor
preferia ter perdido minhas pernas
meus dentes arrancados
meus olhos sugados
do que ter perdido meu amor

brilha pisca corta queima torce aperta afaga corta


brilha pisca soca queima flutua pisca afaga pisca
soca pisca brilha queima afaga aperta torce aperta
soca pisca flutua queima brilha pisca queima

isso nunca vai passar

afaga pisca soca corta torce corta soca corta


flutua pisca brilha soca torce aperta brilha aperta
afaga pisca torce queima pisca afaga brilha afaga flutua
aperta corta flutua corta pisca queima afaga

Nada é para sempre

(só o Nada)

corta torce soca queima brilha afaga flutua afaga


pisca queima soca queima brilha afaga aperta afaga
torce pisca flutua corta queima corta soca corta
aperta corta flutua corta pisca queima afaga

Vítima. Perpetrador. Circunstante.

soca queima flutua pisca brilha pisca queima corta


torce aperta afaga corta brilha pisca afaga pisca
soca pisca brilha queima afaga aperta pisca torce
aperta soca brilha pisca queima pisca brilha

a manhã traz a derrota

torce corta soca corta flutua pisca brilha soca


torce afaga pisca soca corta aperta brilha aperta
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afaga pisca torce queima pisca afaga brilha afaga flutua


queima aperta queima brilha pisca corta

dor maravilhosa
que diz que existo

pisca soca corta afaga torce aperta queima corta


aperta corta soca pisca brilha aperta queima corta
afaga pisca flutua brilha pisca afaga aperta queima corta
aperta corta soca brilha pisca queima

e uma vida mais sã amanhã

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A sanidade encontra-se no centro da convulsão, onde a loucura é


chamuscada pela alma dividida.

eu me conheço.

me vejo.

Minha vida é pega pela teia da razão


Tecida por um médico para aumentar a sanidade.

Às 4h48
24

vou dormir.

Vim ter contigo esperando ser curada.

Você é meu médico, meu salvador, meu juiz onipotente, meu padre, meu
deus, o cirurgião da minha alma.

E sou sua seguidora na sanidade.

-----

atingir objetivos e ambições

superar obstáculos e atingir alto padrão

aumentar auto-estima pelo sucesso do exercício do talento

superar a oposição

ter controle e influência sobre os outros

me defender

defender meu espaço psicológico

justificar o ego

receber atenção

ser vista e ouvida

excitar, surpreender, fascinar, chocar, intrigar, divertir, entreter ou atrair os


outros

estar livre de restrições sociais

resistir à coação e à constrição

ser independente e agir conforme o desejo

desafiar a convenção

evitar a dor
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evitar a vergonha

eliminar humilhações passadas recapitulando ações

manter o auto-respeito

reprimir o medo

superar a fraqueza

pertencer

ser aceita

se aproximar e se relacionar reciprocamente com o próximo

conversar de maneira amigável, contar histórias, trocar sentimentos, idéias,


segredos

comunicar, conversar

rir e contar piadas

conquistar a afeição do Outro desejado

aderir e manter-se fiel ao Outro

gozar experiências sensuais com o Outro imaginado

ser alimentada, ajudada, protegida, confortada, consolada, apoiada, cuidada


ou curada

construir uma relação agradável, durável, cooperativa e recíproca com o


outro, com um semelhante

ser perdoada

ser amada

ser livre

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- Você viu o pior de mim.

- É.

- Não sei nada de você.

- Não.

- Mas gosto de você.

- Gosto de você.

(Silêncio.)

Você é minha última esperança.

(Um longo silêncio.)

- Você não precisa de um amigo, você precisa de um médico.

(Um longo silêncio.)

- Está tão errado.

(Um silêncio muito longo.)

- Mas você tem amigos.

(Um longo silêncio.)

Você tem muitos amigos.


O que você dá aos seus amigos para que eles te apóiem tanto?

(Um longo silêncio.)

O que você dá aos seus amigos para que eles te apóiem tanto?

(Um longo silêncio.)

O que você dá?

(Silêncio.)
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Temos um relacionamento profissional. Acho que temos um bom


relacionamento. Mas é profissional.

(Silêncio.)

Sinto sua dor mas não posso manter sua vida em minhas mãos.

(Silêncio.)

Você ficará bem. Você é forte. Sei que você ficará bem porque gosto de
você e não consigo gostar de pessoas que não gostem delas mesmas. Temo
pelas pessoas que eu não gosto porque elas se odeiam tanto que não deixam
ninguém gostar delas. Mas gosto mesmo de você. Vou sentir sua falta. E
sei que você ficará bem.

(Silêncio.)

A maioria dos meus pacientes quer me matar. Quando saio daqui no fim do
dia preciso ir para casa para o meu amor e relaxar. Preciso estar com os
meus amigos e relaxar. Preciso mesmo estar junto de meus amigos para me
sentir bem

(Silêncio.)

Odeio este trabalho de merda e preciso dos meus amigos para me manter
são.

(Silêncio.)

Desculpe.

- Não é minha culpa.

- Desculpe, isto foi um erro.

- Não é minha culpa.

- Não. Não é sua culpa. Desculpe.

(Silêncio.)

Estava tentando explicar –

- Eu sei. Estou com raiva porque eu entendo, não porque eu não entendo.
28

-----

Engordada
Dividida
Expulsa

meu corpo descompensado


meu corpo voa para longe

não há maneira de alcançar


além de onde já alcancei

você vai ter sempre um pouco de mim


porque você teve minha vida em suas mãos

essas mãos brutas

isso vai acabar comigo

Achei que era um silêncio


até se fazer um silêncio

como você inspirou essa dor?

nunca entendi
o que eu devia sentir
como um pássaro voando em um céu inchado
minha mente é rasgada por um relâmpago
quando voa por trás de um trovão

Escotilha se abre
Luz opaca
e Nada
Nada
não se vê Nada

Como é que sou?


como a filha da negação

de uma câmara de tortura para outra


uma sucessão vil de erros sem perdão
cada passo do caminho onde caí
29

o desespero me leva ao suicídio


a angústia para a qual os médicos não encontram cura
Não tentam entender
Espero que você nunca entenda
Porque gosto de você

gosto de você
gosto de você

água preta quieta


profunda como o sempre
fria como o céu
quieta como o meu coração quando a sua voz desapareceu
vou congelar no inferno
claro que te amo
você salvou minha vida

queria que você não tivesse


queria que você não tivesse
queria que você tivesse me deixado em paz

um filme preto e branco de sim ou não sim ou não sim ou não sim ou não
sim ou não sim ou não

Sempre te amei
mesmo quando te odiei

Como é que sou?


com o meu pai

ah não ah não ah não

Escotilha se abre
Luz opaca

a ruptura começa

não sei mais para onde olhar

Cansada de procurar na multidão


Telepatia
E esperança

Vejo as estrelas
30

prevejo o passado
e mudo o mundo com um eclipse de prata

a única coisa permanente é a destruição


vamos todos desaparecer
tentando deixar uma marca mais permanente do que eu mesma

Nunca me matei antes não procure por precedentes


O que veio antes foi só o começo

um medo cíclico
isso não é a lua é a terra
Uma revolução

Querido Deus, querido Deus, o que devo fazer?

Tudo que sei


é neve
e um desespero negro

Nenhum lugar para me virar


um espasmo moral sem efeito
a única alternativa para o crime

Por favor não me cortem para descobrir como eu morri


Eu lhe digo como morri

Cem de Lofepramina, quarenta e cinco de Zopiclona, vinte e cinco de


Temazepam, e vinte de Melleril

Tudo o que eu tinha

Engolido

Cortado

Pendurado

Está feito

cuidado com o Eunuco


de pensamento castrado
31

crânio
sem ferimento

a captura
o êxtase
a ruptura
de uma alma

um solo sinfônico

às 4h48
a hora feliz
quando a claridade visita

escuridão quente
que alaga meus olhos

não conheço pecado

essa é a doença por nos tornarmos grande

essa necessidade vital pela qual eu posso morrer

ser amada

estou morrendo por alguém que não se importa


estou morrendo por alguém que não sabe

está me destruindo

Fala
Fala
Fala

um círculo de fracasso de dez metros


não me olhem

Minha última declaração

Ninguém fala

Me legitimem
Me testemunhem
Me vejam
32

Me amem

minha submissão final


minha última derrota

o covarde ainda dança


o covarde não vai parar

acho que pensam de mim


aquilo que eu quis que você pensasse em mim

o parágrafo final
o último ponto

cuide de sua mãe agora


cuide de sua mãe

cai neve negra

na morte você me abraça

nunca livre

não desejo a morte


nenhum suicídio o teve

me vejam desaparecer
me vejam

desaparecer

me vejam

me vejam

vejam

Fui eu mesma que eu nunca conheci, aquela cuja a face está colada na parte
inferior da minha mente

por favor abram as cortinas


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