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Psicose 4h48
De Sarah Kane
O que é que você dá aos seus amigos que faz com que eles te apóiem tanto?
(Silêncio.)
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e estavam todos lá
cada um deles
e sabiam o meu nome
enquanto eu fugia correndo feito um inseto
ao longo das costas das cadeiras deles
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estou triste
sinto que não há esperança no futuro e que as coisas não podem melhorar
gostaria de me matar
estou gorda
meu irmão está morrendo, meu amor está morrendo, eu estou matando os
dois
Às 4h48
quando o desespero me visitar
me enforcarei
ao som da respiração do meu amante
Quando ele acordar vai invejar a minha noite sem dormir de pensamentos e
discursos fluentes por causa da medicação
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Não foi por tanto tempo, eu não estive lá por tanto tempo. Mas bebendo
café amargo senti aquele cheiro medicinal em uma nuvem de tabaco antigo
e algo me tocou naquele lugar ainda soluçante e um ferimento de dois anos
atrás se abriu como um cadáver e uma vergonha há muito enterrada gritou a
sua fétida e decadente mágoa.
pergunto por que estão todos sorrindo e olhando para mim com um
conhecimento secreto da minha vergonha dolorosa.
E enquanto eu acreditava que você era diferente e que talvez você até
sentisse a aflição que fazia estremecer às vezes a sua face e
ameaçava explodir, você também só estava tentando salvar o cu.
Como qualquer outro mortal cuzão estúpido.
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(Silêncio.)
- Não daria certo. Você se sentiria sonolenta por causa da overdose e não
teria forças para cortar os pulsos.
(Silêncio.)
(Silêncio.)
- E se você ficasse sozinha acha que poderia fazer mal a você mesma?
- Sim. É o medo que me mantém longe dos trilhos dos trens. Só espero,
pelo amor de Deus, que a morte seja a porra do fim. Me sinto com oitenta
anos. Estou cansada da vida e a minha mente quer morrer.
- É como se fosse.
- Não é uma metáfora, é como se fosse, mas ainda que fosse uma metáfora,
aquilo que define uma metáfora é ela ser real.
(Silêncio.)
Tem?
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(Silêncio.)
Tem?
(Silêncio.)
- Eu não acho.
- Não?
- Não. Estou deprimida. Depressão é ódio. É o que você fez, você que
estava lá e você que é está se culpando.
- A mim mesma.
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Preciso me tornar a pessoa que já sou e hei de vaiar para sempre esta
incongruência que me mandou para o inferno
De volta às raízes
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RSVP ASAP
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Às vezes me viro e sinto o seu cheiro e não consigo continuar não consigo
continuar é uma porra não consigo continuar sem expressar essa dor física
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(Silêncio.)
(Silêncio.)
E saio às seis da manhã e começo a procurar por você. Se sonhei com uma
rua ou um bar ou uma estação vou lá. E espero por você.
(Silêncio.)
(Silêncio.)
Nunca na vida tive problemas dando a outras pessoas o que elas queriam.
Mas ninguém ainda foi capaz de fazer isso por mim. Ninguém me toca,
ninguém se aproxima de mim. Mas agora você me tocou em não sei onde
tão fundo foda-se não posso acreditar eu não consigo fazer isso por você.
Porque eu não consigo te encontrar.
(Silêncio.)
Como ela é?
E como vou saber que é ela quando eu a vir?
Ela vai morrer, ela vai morrer, porra ela só vai morrer.
(Silêncio.)
(Silêncio.)
(Silêncio.)
Foda-se. Foda-se. Foda-se por me rejeitar nunca estando lá, foda-se por me
fazer me sentir uma merda, foda-se por me sangrar a porra do amor e da
vida, foda-se o meu pai por ter fodido a minha vida e foda-se a minha mãe
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por não o ter deixado, mas acima de tudo, foda-se Deus por me fazer amar
alguém que não existe,
FODA-SE FODA-SE FODA-SE
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- Me cortei.
- Não.
- Não.
(Silêncio.)
- Não.
- Então pergunte.
Posso ver?
- Não.
- Não.
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(Silêncio.)
- Achei que você teria feito isso. Muita gente faz isso. Alivia a tensão.
- Você já fez?
- ...
- Não. É um porra são e sensato. Não sei onde você leu isso, mas não alivia
a tensão.
(Silêncio.)
- Sim.
- Então fale.
- PERGUNTE
ME
POR QUÊ
- Porque me faz sentir bem pra caralho. Porque é bom pra caralho.
- Posso ver?
- Não.
- Eu acho. A culpa não é sua. Mas você tem que assumir a responsabilidade
pelos seus atos. Por favor não faça mais isso.
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Tudo passa
Tudo perece
Tudo perde interesse
Daqui a dez anos ela ainda estará morta. Quando eu estiver vivendo com
isso, lidando com isso, quando alguns dias se passarem quando eu nem
sequer pensar mais nisso, ela ainda estará morta. Quando eu for uma velha
senhora vivendo nas ruas esquecendo meu nome ela ainda estará morta, ela
ainda estará morta, esta
porra
está acabada
Ela é o lugar confortável onde nunca deitarei e não há sentido viver na luz
da minha perda
Me encontrar
me libertar
disso
dúvida corrosiva
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desespero fútil
horror em repouso
Esgotamento
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- Nada de se ou mas
- Não posso devo nunca tenho que sempre não vou devia não hei-de
Os inegociáveis
Hoje não.
(Silêncio.)
(Silêncio.)
- Não?
- A culpa não é sua, é tudo que ouço, a culpa não é sua, é uma doença, a
culpa não é sua, eu sei que a culpa não é minha. Você me diz isso com
tanta freqüência que estou começando a pensar que a culpa é minha.
- EU SEI.
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(Silêncio.)
- Permite?
(Silêncio.)
Você permite.
(Silêncio.)
(Silêncio.)
- Sonhei que tinha ido à médica e que ela tinha me dado oito minutos de
vida. E ela tinha me deixado sentada na porra da sala de espera durante
meia hora.
Vamos lá.
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desagradável
inaceitável
desinspirador
impenetrável
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irrelevante
irreverente
incrédulo
impenitente
antipático
deslocado
desencarnado
desconstruído
Não imagino
(claramente)
que uma simples alma
podia
poderia
deveria
ou deverá
e se eles fizessem
não acho
(claramente)
que outro alma
uma alma como a minha
podia
poderia
deveria
ou deverá
irracional
irredutível
irremediável
irreconhecível
descarrilhado
desordenado
deformado
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de forma livre
doente ainda
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Sintomas: sem comer, sem dormir, sem falar, sem desejo sexual, em
desespero, quer morrer.
Lofepramina, 70 mg, aumentado para 140 mg, depois 210 mg. Ganhou
doze kilos. Perda de memória recente. Nenhuma outra reação.
Venlafaxina, 75 mg, aumentado para 150 mg, depois para 225mg. Tontura,
queda de pressão, dores de cabeça. Nenhuma outra reação. Interrompido.
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Escotilha se abre
Luz opaca
a televisão fala
cheia de olhos
os espíritos da visão
vendo coisas
ouvindo coisas
não sei quem sou
Onde começo?
Onde paro?
Como começo?
(Como se eu quisesse ir em frente)
Como eu paro?
Como eu paro?
Como eu paro?
Como eu paro?
Como eu paro? Uma etiqueta de dor
Como eu paro? Apunhalando meus pulmões
Como eu paro? Uma etiqueta de morte
Como eu paro? Espremendo meu coração
Vou morrer
ainda não
mas está lá
Por favor...
Dinheiro...
Esposa...
talvez me salve
talvez me mate
um cobertor de baratas
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- NÃO ME OLHE
- Não me olhe
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Somos condenados
os párias da razão
Temam a Deus
e a sua convocação odiosa
Somos os miseráveis
que depuseram os nossos líderes
e queimaram incenso para Baal
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- Às 4h48
quando a sanidade vem me visitar
por uma hora e doze minutos fico em sã consciência.
Depois disso me vou outra vez,
uma marionete fragmentada, uma imbecil grotesca.
Estou aqui agora eu consigo me ver
mas quando estou encantada pela torpe ilusão da felicidade,
desse mágico repugnante e de sua máquina de feitiçaria,
não consigo tocar na essência do meu eu.
Por que é que você acreditou em mim naquela hora e agora não?
Não me olhe.
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Escotilha se abre
Luz opaca
Aqui estou eu
E lá está meu corpo
não há escolha
a escolha vem depois
Me cortem a língua
Me arranquem os cabelos
cortem minhas pernas
mas me deixem meu amor
preferia ter perdido minhas pernas
meus dentes arrancados
meus olhos sugados
do que ter perdido meu amor
(só o Nada)
dor maravilhosa
que diz que existo
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eu me conheço.
me vejo.
Às 4h48
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vou dormir.
Você é meu médico, meu salvador, meu juiz onipotente, meu padre, meu
deus, o cirurgião da minha alma.
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superar a oposição
me defender
justificar o ego
receber atenção
desafiar a convenção
evitar a dor
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evitar a vergonha
manter o auto-respeito
reprimir o medo
superar a fraqueza
pertencer
ser aceita
comunicar, conversar
ser perdoada
ser amada
ser livre
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- É.
- Não.
- Gosto de você.
(Silêncio.)
O que você dá aos seus amigos para que eles te apóiem tanto?
(Silêncio.)
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(Silêncio.)
Sinto sua dor mas não posso manter sua vida em minhas mãos.
(Silêncio.)
Você ficará bem. Você é forte. Sei que você ficará bem porque gosto de
você e não consigo gostar de pessoas que não gostem delas mesmas. Temo
pelas pessoas que eu não gosto porque elas se odeiam tanto que não deixam
ninguém gostar delas. Mas gosto mesmo de você. Vou sentir sua falta. E
sei que você ficará bem.
(Silêncio.)
A maioria dos meus pacientes quer me matar. Quando saio daqui no fim do
dia preciso ir para casa para o meu amor e relaxar. Preciso estar com os
meus amigos e relaxar. Preciso mesmo estar junto de meus amigos para me
sentir bem
(Silêncio.)
Odeio este trabalho de merda e preciso dos meus amigos para me manter
são.
(Silêncio.)
Desculpe.
(Silêncio.)
- Eu sei. Estou com raiva porque eu entendo, não porque eu não entendo.
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Engordada
Dividida
Expulsa
nunca entendi
o que eu devia sentir
como um pássaro voando em um céu inchado
minha mente é rasgada por um relâmpago
quando voa por trás de um trovão
Escotilha se abre
Luz opaca
e Nada
Nada
não se vê Nada
gosto de você
gosto de você
um filme preto e branco de sim ou não sim ou não sim ou não sim ou não
sim ou não sim ou não
Sempre te amei
mesmo quando te odiei
Escotilha se abre
Luz opaca
a ruptura começa
Vejo as estrelas
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prevejo o passado
e mudo o mundo com um eclipse de prata
um medo cíclico
isso não é a lua é a terra
Uma revolução
Engolido
Cortado
Pendurado
Está feito
crânio
sem ferimento
a captura
o êxtase
a ruptura
de uma alma
um solo sinfônico
às 4h48
a hora feliz
quando a claridade visita
escuridão quente
que alaga meus olhos
ser amada
está me destruindo
Fala
Fala
Fala
Ninguém fala
Me legitimem
Me testemunhem
Me vejam
32
Me amem
o parágrafo final
o último ponto
nunca livre
me vejam desaparecer
me vejam
desaparecer
me vejam
me vejam
vejam
Fui eu mesma que eu nunca conheci, aquela cuja a face está colada na parte
inferior da minha mente