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O ateliê voador

Valère Novarina

Tradução de Ângela Leite Lopes

Nove personagens:
Senhor Boucot
Senhora Boca
O Doutor

Seis empregados - A, B, C (três homens)


D, E, F (três mulheres)

Três lugares cênicos:


O ateliê – um térreo, um andar, uma roda, passarelas
A casa de Boucot
As três casas dos empregados.
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I
Todo o dispositivo cênico fica exposto. Entrada dos atores: os seis empregados e o Doutor
entram e se escondem atrás de um grande lençol estendido. Um tempo, depois o Senhor
Boucot e a Senhora Boca entram, abrem uma cortina sobre o ateliê e se escondem atrás de
um lençol que a Senhora Boca segura com o braço. Durante alguns instantes, todos os
atores e todos os elementos do dispositivo cênico ficam escondidos.

Abertura: Senhora Boca deixa cair a cortina e revela o seu marido: Boucot, braços
estendidos, segura um espelho e se examina com atenção:

Boucot (escandido) – Os resultados, do meu exame d’umbigo, não estão grandes coisas.
(Cantado) Essa fisionomia abatida: tomara que eu não emagreça!
Senhora Boca – Ah, Senhor Boucot, o senhor é i-ni-mi-tável!
Ela joga uma serpentina em cima dele.
Boucot – A senhora está zombando do teatro?... Hoje tenho que me enfeitar, pois vou
contratar pessoal novo. Adeus, bela ave, cuide bem do Mozartzinho!

Cena: Boucot desce da plataforma, vai até o Ateliê e abre a longa cortina que o cobria.
Boucot – Meus ateliês estão desertos... Me diga, Doutor, o senhor não achou nenhuma mão
de obra?
O Doutor aparece e arranca o lençol que cobria o grupo de empregados:
Doutor – Admire, Senhor Boucot, essa magnífica coleção francesa! Pessoal de
primeiríssima qualidade! Obedecem à voz e ao gesto!
Boucot – Oh, que belos manuais! Estou louco de desejo!
Doutor – O lote está à venda... Há comprador?
Boucot – Eu, Boucot, sou amador, grande colecionador de empregados subordinados! (Ele
os examina) Boas patas... Bons cérebros... Bonita trupe, tudo muito bom, contrato o todo.
Doutor – É para a relação?
Boucot – Sim.
Doutor – Fecundidade máxima!
Boucot (se aproximando dos empregados) – Estaria a cara senhora procurando trabalho? A
senhora permitiria que eu lhe fizesse uma oferta? Sobram ainda algumas vagas...
Os empregados dançam para seduzi-lo:
B – Eu aqui, Senhor Diretor!
Por favor, considere meus talentos!
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Meu saber, minha viva inteligência, minha experiência e minha rapidez!


Dê uma olhada nas minhas belezas!
D – Aqui jaz uma pessoa muito interessante: currículo de primeira qualidade!
C – Quanto você dá nisso? (Ele mostra o braço.)
B – E nisso? (Sua cabeça) Ela agüenta o tranco!
F – Senhor Comerciante, por favor, será que haveria a possibilidade de só vender uma única
das mãos?
D – Sim, sim! Eu gostaria de ficar com um quarto da minha cabeça!
Boucot – Senhores, lamento, por enquanto não se faz nada no varejo.
B – Mas a gente conserva a privacidade? (Ele tampa o próprio rabo.)
Boucot – Claro... Contrato, levo, coloque tudo na minha sacola!... (Ele está indo pegá-los...)
C – Stop. Não sou teu criado.
Boucot – Vem. Você vai ter um trocado.
C - Alto lá. Quanto?
Boucot – Cinqüenta mil.
C – É pouco.
Boucot – Há muitas perspectivas de horizontes com vários prêmios de promoção.
Os empregados – Oh, excelente!
Boucot – Vou ensinar a eles como fabricar para minha quitanda, como usar as suas funções
produtivas.
(Ele os amarra e os leva embora.)
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II
Boucot os instala no Ateliê. Os empregados enfiam guarda-pós de trabalho:

B – Ei Seu! Me ajuda a me abotoar! (Boucot ajuda.)

Início dos trabalhos: contorções, figuras acrobáticas.


Boucot – Vamos lá, centopéias, marchando!
Cresçam, cruzem, multipliquem-se, povoem nossos ateliês!
Vai produzir, seu cabra?
Eu fecundo o homem. Ele produz. Para mim.

No primeiro plano, à esquerda e à direita de Boucot, dois empregados satisfeitos:


B – Eu sou seu pedestre. Faço as suas compras. Esse trabalho gasta minhas pernas. Mas o
senhor Boucot me deu um trocado. Veja como ele cuida de mim: duas braçadas de grama
bem viçosa. Estou muito contente com meu patrão. Ele me dá supérfluos.
C – Eu sou seu fantoche. Boucot puxa as minhas cordas e recolhe os meus produtos. Eu
ganho aqui meu pão para assegurar minha vida privada. É esplêndido. Lá, na minha casa, eu
também faço uma baita produção: vou amontoando pimpolhos! (Histérico) Flores! Flores!
Quando tiro a privada, a pública está debaixo do ninho: mas quando tiro a pública, devolvo
a outra com um martelo! Há-há-há-há-há-há!

Primeira chuva: Boucot joga um punhado de confetes sobre eles:


Boucot – É simples: eu tapo as fuças deles com o pão cotidiano. Eles frutificam. Isso
desenvolve meu capital.
Belos pedaços de macacos, piupiuzinhos, vocês estão sendo comidos vivos! Sou teu patrão,
mordo você.
A – Não é verdade, Senhor Boucot: você nos fornece o que comer e o supérfluo.
C – Melhor não exagerar, melhor não caricaturar!
A – A condição está melhorando. Daqui a pouco isso aqui vai ficar bem decente.
Boucot – Vamos, vamos, tem que funcionar! Sem confusão!

Cena de conjunto: longa seqüência de trabalhos. Fabricação, manipulação, intensa


circulação de objetos.
B – Duro labor!
D – E muito poucos dólares, miséria miserável, muito poucos dólares!
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Boucot – Se vocês trabalharem, aumentarão.


A – Certíssimo. Para mais trabalho, mais grão.
Cada um com seu pão. Boucot também trabalha. Ele tem muitas preocupações. Eu não
gostaria de tê-las.
E – O trocado é pouco, deus do céu: vou puxar a corda!
Boucot – Se vocês trabalharem mais rápido, vão duplicar. Talvez até quadriplicar.

Imediatamente, um empregado corre até o público:


B – Você entende, Denise, quero sair daqui, não quero estagnar! (Ele volta pro seu lugar e
trabalha seis vezes mais rápido.)
A – Cuidado, chefe: se ele acelerar assim por muito tempo, ele vai arrebentar!
Boucot – Que infelicidade infeliz!... Mas já o senhor é muito preguiçoso!
A – Tudo bem, chefe, mas se ele acelerar demais, eu arrebento.

Visita médica. Boucot telefona para o Doutor:


Boucot – Alô, é da Higiene? Venha examinar os meus pessoais. Não estão achando o ritmo.
(O Doutor aparece.) Doutor, está faltando ardor a tudo isso, venha fortificá-los. Isso me
afeta muito, o senhor entende: eles são meu cofrinho, têm muito valor pra mim. Cada um no
seu lugar para a consulta!

Os empregados formam uma fila. O Doutor os examina:


Doutor – Oh, eles estão muito feios, todos furados!...
E – A gente não vai morrer já, né? A gente ainda vai servir, né?
Doutor – As cabeças flutuam, as patas estão moles... Vou administrar neles um pouco de
endurecedor muscular.Teoricamente, isso deveria revalorizá-los.
Boucot – Cuidado, Doutor, não exagere na dose: se eles ficarem muito musculosos, vão se
levantar e me bater!
Doutor – Tome, dê a eles o senhor mesmo a colher. (Boucot os alimenta.)
Boucot – Uma dose de leão.
C – Obrigado chefe. Isso vai nos dar uma saúde de ferro.
Boucot – É um fortificante. É um acelerador de partículas. Espero que não vá dar nos
nervos de vocês.
C – Não, chefe. Vamos ficar tranqüilos.

O trabalho retoma: movimentos elegantes, cadências harmônicas.


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Boucot – Ah Doutor, obrigado! Faz gosto de ver o resultado.


A – Sim, sim, está indo, está indo... Devemos estar de novo em plena expansão!

Reviravolta teatral: um empregado surge com um telefone.


A – Socorro Senhor Boucot! O telefone acaba de anunciar que o estrangeiro acha que
estamos fabricando demais. Corremos o risco de não poder mais vender!
Boucot – Vejam como sou assoberbado de responsabilidades! Agora que o rendimento
aumentou, tenho que reduzir a produção!... Mão de obra demais: vai ser preciso despedir de
novo... Ah, acreditem, Senhoras, não é com o coração feliz!... (Ele bate com as mãos.)
Inspeção! Inspeção! Todo mundo de pé! (Os empregados fazem fila de novo. Boucot
escolhe um deles e o examina.) Que bolso grande é esse?... O senhor está me ouvindo,
Floupiot?... (Ele o revista.) O que é isso? Um prego no seu bolso?... É um prego. Você me
roubou um prego. Ele me roubou um prego. É um ladrão. Vocês também, ele vai roubar
vocês!
Os empregados – Pu-ni-ção!
B – Se Floupiot foi desonesto, tem que ser expulso. Punição.
Boucot – Me dêem a ficha dele! (Ele lê.) Ah! Sexualidade latente...!
A - É verdade, sim, chefe!... Isso nos impedia, a nós, de trabalhar, o tempo todo nos
induzindo em tentação, não conseguíamos mais cumprir com nossas funções, prazer
nenhum no serviço!

Boucot expulsa o ladrão com um pontapé.


Boucot – Se despede dessa vida, seu torto!
F – Ah, já vai tarde!

O trabalho retoma.
Monólogo: um empregado do andar inferior se dirige ao público:
A – O senhor Verdit me dá ordens, mas eu dou ao senhor Verdet. Verdit é um babaca.
Verdet é um babaca. Boucot também, aliás. Vou aumentar o meu ritmo. O senhor Boucot
vai reparar em mim e vai me fazer subir dois degraus. Lá em cima, vou ganhar dois dólares
a mais. Vou continuar levando pancada, mas vou poder dar duas vezes mais. Logo, saio
ganhando. Triste lei da natureza cada um iça o seu rabo. O rato defende a pele contra os
outros ratos. Aliás, o senhor Boucot deve ter começado como eu. É um lobo bichado, um
porco cruel; mas ele chegou lá com a força dos seus punhos, é preciso reconhecer. Ele
começou nos empregos baixos, agora ele está nos empregos altos. Se eu trabalhar muito, eu
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também vou me elevar nas condições. Aliás não é por egoísmo, subo comigo uma família
inteira, para circunstâncias melhores! (Ele se eleva, trepa até o andar superior.) Me segue
com os olhos, querida, não tira os olhos de mim! (Já no topo:) Ah, daqui, de fato, se está
muito melhor! Já se está mais no alto da casa, tem uns acessos!
Agora, vou colaborar ao telefone!

Um empregado do alto lhe dá um grande pontapé e o devolve para baixo:


B – Você aí! Aguarda o seu sinal!
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III
Fim da jornada de trabalho. Boucot agita uma matraca:
Boucot – Seis horas, hora de fechar, passem os produtos! (Ele recolhe os objetos fabricados
e distribui aos empregados moeda em grão.) Eis um bom salário!

Os empregados saem e se agrupam diante do Ateliê, que virou Loja:


Os empregados – Abram! Abram! Comida! Comida!
Voz de Senhora Boca – Pronto, pronto, minutinho, já vai, estou abrindo a loja! (Ela abre.
Os empregados entram.)
Senhora Boca – Escolham meus belos artigos!
A – Três desses.
Senhora Boca – Oito francos.
B – Caro demais!
Senhora Boca – Hoje a colheita foi muito magra.
C – Esse aqui!
Senhora Boca – Cem mil!
D – Quanto?
Senhora Boca – Oito francos. Acabou de nascer.
C – Coloque três desses!... E eu queria também uma calça, alguma coisa sólida, alguma
coisa da qual eu seja realmente proprietário!
E – Oh quanta linda combinação, e nem caras são!

Cena entre Senhora Boca e um cliente. Senhora Boca segura nas mãos dois objetos
idênticos:
Senhora Boca – Certeza esplêndida! Aquisição, exceção! Quem deseja qual?
A – Mim! Moá! Çaqui ali io lhe piss...não, issi não, ssi gordão que se agrupa... nada
dissacó, dissaqui! (A senhora Boca continua mostrando aquele que ele não quer.)
A grupa não, a brisa: Ali, à arca do cochete!
Senhora Boca – “Puro pergamóide por cento.”
A – Na, desse pluchô mal partido e meio-gordo não me leca! Io lhe piss, envesgo miurfar as
brossas desse bágico-aí que me estende sua rotunda! Não, o outro!
Senhora Boca – “Essa compra aí, a muitos fregueses petisca; quem não se arrisca, vira a
bisca da história.”
A – Incrível! Ela quer porque quer me empurrar o outro!... Se continuar assim, vou partir
embora daqui...
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Senhora Boca – Sem, o senhor não irá longe. O senhor quer quem?
A – Esse aqui ou me mando!
Senhora Boca – Há pouco o senhor queria o outro!
A – Afinal, a senhora fala francês, ou não? (Dança furiosa)
Se eu disser, você verá!
Se eu disser eu vou querer!
Se você não quiser eu me vou! Pois eu quero esse aqui.
Esse aqui estendido no seu braço, estendido nesse aqui dos seus braços! Esse que está nessa
aqui das suas mãos estendido nesse aqui dos seus braços! Esse! Este!
Esse ali!
Esse ali aqui ali embaixo!
Esse ali aqui ali embaixo daqui!
Esse aqui ali aqui embaixo daqui ali daqui!
Esse ali!
Senhora Boca – Esse aqui?
A – Sim.
Senhora Boca – Não é possível. É um par. Não dá pra desagrupar.
A – Quanto pelas duas?
Senhora Boca – Francos oito.
A – Embolso. Vamos embolsar. (Ele sai com os dois objetos.)

Fim da venda. Os empregados voltam pra casa.


Senhora Boca – Eles devoraram tudo. Eles ciscam como lobos.

Cenas nas casas dos empregados:


Casa I:
O homem – A carne, hoje, está deliciosa.
A mulher – Ela está mesmo é bem cozida.

Casa II: o comprador dos dois objetos e sua mulher. Primeiro melodrama:
Ela – Ô maravilha!... Por que dois?
Ele – Um vai quebrar por último.
Ela – Não dá pra dizer qual é o mais bonito! E olha que...
Ele – Não está rachado, né?
Ela – Não, não... Caros produtos, caros ornamentos!
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Ele – Cobre eles. Fiquei com eles por pouco! Isso representa grosso modo cento e vinte e
sete horas do meu trabalho! São meus frutos! (Ele pega um dos objetos e o aperta tão forte
contra o peito que o quebra.) Ô desgraça, quebrei, partiu, se perdeu... Desgraça, quebrou, se
partiu! Agora não tem mais o par... Anda, anda, joga esses cacos no mar!
Ela – Não! Vamos guardar, vamos guardar!
Ele – Se a gente guardar, vai ter que colar; isso vai nos tomar dinheiro e anos...! Se a gente
jogar, vai nos cavar um baita vazio dentro de casa...
Ela – Joga no ralo!
Ele – Isso, ninguém pode me pedir, pois eu o segurei com as minhas mãos, eu o vi morrer
entre as minhas mãos, eu o marquei com o meu pé! Ele não se parece com ninguém. Se
você o jogar, eu vou com ele, ralo abaixo!... Anda, anda, varre isso tudo aí!
Ela – Nada de injustiça! Não é porque não sobrou nada que a gente tem que se privar!
Apesar das queixas que se pode ter, ele é uma testemunha das nossas horas difíceis! E
também eu amo ele, afinal de contas, tanto quanto ou até mais do que esse aqui que é
apenas o estrangeiro do casal! (Ela pega o objeto ainda intacto.) Vou quebrá-lo!
Ele – Alto lá! Pensa no que isso vale: cento e trinta horas da minha pele!... Pois sim.
Justamente! O que isso vale, se não dá pra serem contados os pedaços? (Ele pega o objeto
intacto.) Se nossa relação quiser persistir, a gente vai ter que quebrá-lo! Vou rachá-lo à tua
imagem... Rola na poeira, cara de pato!
Ela – Piedade, poderoso senhor, não bate no meu focinho!
Ele – Vitória!... (Ele joga o objeto e o quebra.)
Ela - Com quantas penas a gente ficou agora?
Ele – Quatrocentas penas. Quase um quilo!
Ela – Temos que ficar com elas, temos que ficar com elas! Toma conta!
Ele – Se alguém aparecer... me jogo em cima delas.
Ela – Querido, você é magnífico! (Ela se joga no pescoço dele.)

Casa I:
A mulher – Parabéns! Quilos de ouro por um artigo tão pequeno, que merda!
O homem – Não julga sempre pelo exterior.

Casa III: Um casal no meio de muitos pacotes. Segundo melodrama: crise de sentimentos
maternos num pai de família:
O pai – Comprei tudo. Há muito tempo que eu desejava. Agora, estamos guarnecidos.
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A mãe – Você acha mesmo que está cheio de vantagens? Meu Deus, meu Deus, será que
têm qualidade suficiente?
O pai – Olha, está aqui, está escrito: “Com isso, dá para se fazer uma família frutificar
dentro de um buraco.”
A mãe – Cuidado com os reclames, René!
O pai (lírico) – Junto meus pedaços. São meus bens, devo juntar meu rebanho. Sou a mãe
dos meus filhinhos...
A mãe – René, o que você está dizendo? Virou maníaco.
O pai – Estou sentado no meio dos meus móveis e todos os meus objetos vêm beber.
Assiste, cara esposa, à formação de meu segundo corpo... Você entende, tenho a vida inteira
para me reconstituir. Alimento uma família numerosa: mulher, filhos e objetos de lar. Dou.
Estou coberto por uma abundância de seios... Fabrico moeda e meus filhinhos vêm comê-la.
É por isso que eu gostaria que se lembrassem de mim sob a forma de uma mãe porca.
A mãe – René, você está delirando! Você não tem vergonha de dizer isso?
O pai – Não. Tenho seios, Maria, juro a você. Estou coberto de seios.
O mãe – Da onde vem o teu leite?
O pai – Vem de lá onde trabalho: ganho setenta e cinco mil sobre a cruz... não sei muito
bem como. Carreguei minha paciência: a vida inteira, por vocês, eu me sacrifiquei...!
A mãe – O senhor está louco, vou bater no senhor, o senhor é uma verdadeira fêmea! Não
quero mais saber do senhor, nunca!
O pai – Não bata na vaca leiteira! (Ela pula no pescoço dele.)

Casa I:
A mulher – O que você fez hoje?
O homem – Hoje, ele me mandou fazer conservas, vendeu elas para mim, me fez comê-
las... Vingança!
A mulher – Pierrette, André, venham! O pai de vocês chegou. Ele vai lhes fazer justiça. Ela
vai buscar duas cabeças de crianças, macho e fêmea. O homem as pega e as segura com os
braços estendidos:
O homem (como um rei) – “Imagem ou buraco,
filho ou filha, venham cá
que eu lhes distribua o devido.
Imagem, pegue esse todo.
Quanto ao senhor, Buraco, pegue esse nada para aprender!
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Casa II e Casa III: desenlace comum aos melodramas:


Ela e A mãe – Olha o meu coração, olha canalha! (Elas empunham um jovem porco
cofrinho.) Vamos sangrá-lo! (O cofrinho, arremessado violentamente no chão, se parte.)
Ele e O pai – Querida, que maravilha, que guisado de dólares!
Os quatro – O futuro está garantido.

Breve noite: os empregados dormem. Boucot vigia. Senhora Boca cantarola um pouco.
Parlenda:
Senhora Boca – “O comércio é de cem francos,
Senhora, Senhora,
Meu cão pega e morde a lata.
Ele abre a sua lata: a couve foi vendida!
Pegue meu coração!”

Fim da primeira jornada.


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IV
Abertura da segunda jornada: Boucot agita sua matraca, os empregados se levantam com
dificuldade.

Boucot (escandido) – À máquina, à seis horas da manhã, à marcha! Seis horas, são seis
horas: vistam seus animais! (Falado:) Duro calçamento de barraco, hein? Tem que pastar!
(Cantado:) “Vamos, vamos, depressa, depressa!” (Os empregados retomam o trabalho.
Boucot os inspeciona:) Rápido! Andem filhinhos, vocês não estão numa vitrine! Silêncio, e
rápido! Trabalhem com o coração! Tem que tomar o freio nos dentes!... Esse aqui está gagá,
está bom para o sótão... Silêncio, silêncio, engolindo a saliva!... Mostra as tuas patas, teu
nariz! Tudo bem... Abatido: tomara que não vá nos cair doente!... Mais rápido, seu quebra-
nozinho, se você se arrastar, vai perder seu lugar!... Bravo Guillaume, foi bem na labuta:
chegue pra frente para ser alçado! Sua testa... obrigado! Vejam vocês todos que ficam
remanchando, o camarada de vocês levou a fita. Ele chegou lá, de tanto. Ele está feito.
Silêncio, silêncio! Me passem com toda urgência o mil oitocentos e cinqüenta e três! (Ele
pega o telefone e o sacode como um termômetro para conseguir a ligação.) Alô, alô, é do
Exporta? Alô, querida, é Boucot! (Longo discurso em inglês...) ... there is the market, take,
take, take. O sweet, sweet! Fechado. Sem falta. Daqui a dois minutos.

Ele desliga. Um empregado se aproxima:


C – Di... dir... dire... dir-etor, me des... me desculpe por ontem, não pude vir, eu estava
doeeente!
Boucot – Meu amigo tudo bem, entendi bem, hoje você já estará bem, pois se recuperou
bem. O que você teve?
C – La... la... la... la... la...
Boucot – Que crianção! Como é bobo!

Enquanto isso, Guillaume pegou escondido o telefone e tentou, em vão, obter uma ligação
sacudindo o aparelho como fez Boucot.
Guillaume – Senhor Bou...Boub...Boucot, o telefone está que...quebrado.

Boucot pega o aparelho, o sacode e consegue uma ligação imediatamente:


Boucot – Alô é do Exporta? Não, não. Nada de novo. Era só pra ver se o telefone estava
funcionando. (Ele desliga.) Deus do céu, vai ser preciso de novo dar uma sancionada! (Os
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empregados tremem e estendem suas fichas:) Tudo bem, tudo bem... o conjunto está
razoável... Silêncio! Ah, se vocês pudessem saber a solidão dos chefes!
Senhora Boca (aparecendo de repente atrás dos empregados) – Eles não sabem, eles não
sabem... Eles ninam suas bonecas de metal de noite, eles não vêem os fios...

Os empregados percebem a Senhora Boca e a vaiam.

Boucot – Boucot, Boucot, está ouvindo? É um sinal. De hostilidade. Não é um bom sinal. A
trupe se irrita. É a vida das capitais! Silêncio! (Vaias selvagens dos empregados.) Ah! Se
eles explodissem?... Esses corpos espremidos, eles vão explodir, se ficarem assim tão
travados! Se não forem purgados, vão ficar revoltados! Senhor, o que fazer, está muito
arriscado! Vamos Boucot, se há cara feia, des-tranca-os!
Vinte e quatro horas longe dos tornos!
Vou levar para o campo suas pessoas privadas e vou deixá-los se ex-primir nas relvas. Isso
vai acalmá-los. Quando for segunda-feira, eles vão ter recobrado o caminho do
estabelecimento, eles vão voltar a comer na minha mão.
Andem, andem, li-ber-da-de!
Aves, saiam das nassas!

Boucot os libera como galinhas e recobre o Ateliê com uma capa verde. Os empregados
liberados esbarram uns nos outros como pássaros. Os casais voltam a se formar
precipitadamente. Dois empregados, de quatro, correm, batem e morrem.
Senhora Boca – Essas saídas de carro são um verdadeiro massacre de bichanos.

Cena: apresentação e venda do mar. Boucot desenrola uma longa tela azul. Os
empregados, agrupados, olham.
Boucot (enfático) – Senhores, o mar!... Olhem pra isso, como é bonito: ele espelha, ele
brinca, ele galopa! Seria realmente uma pena se ele lhes escapasse.
Sua superfície é considerável,
água natural e irrefutável,
oferecemos a vocês a chance inestimável
de mergulhar nesse azul definitivo.
O acesso custa seis francos.
D – Ele é muito lindo, claro, mas eu fico assim com medo de não ser realmente seu
proprietário.
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A – Belo afogador. Ali na frente, não adianta, não dá para dizer patavina. Será que ainda
tem algum peixe?
Boucot – Forrado por debaixo da superfície.
C – Tem que se entrar numas de nadar.
Boucot – Entrada: seis francos.

Os empregados pegam seus bilhetes, colocam óculos escuros e se instalam à beira-mar.


Eles chegam progressivamente.
Primeiro casal:
O marido – Rápido, escolhe um local de onde se aproveite ao máximo o lugar!
A mulher – Onde, aproveite, ao máximo, Henri?
O marido – Por favor, querida, evita essas pausas, me poupa!... Aqui o lugar está bom.
Volto à estaca zero... Como adquirir nesse minuto de descanso uma intensidade máxima de
vida privada?

Outro casal:
O homem e a mulher – Levanta a pata! (Eles saúdam.) Ô mar, eu queria que você lavasse
minha cabeça! É hora de voltar e passear nosso cão!

Outra chegada. Dois homens travam conhecimento:


A – O mar não é rosa, claro... Mas pra falar francamente, eu o via mais redondo. Em todo
caso, eu não sabia que era plano...
B – Senhor, eu não o conheço, mas me permita dizer que o senhor é bem ingênuo e que
viajou muito pouco para um pombo.
A – E o senhor?
B – Dei minhas voltas...
A – Os que navegam me fazem sempre lembrar de um meu primo que andava daqui e dali...
Ele faleceu! (Rusga: os dois banhistas trocam de lugar.)

Um outro chegando: ele tira o seu figurino.


C – Adeus calçadas, vou me molhar! A vida é crua: gosto de colocar meu figurino de pele.
Um bom banho revigora o seu pêlo e faz sair a pessoa. Nasci em treze de abril, no signo de
Áries. E você, quais são suas características?
B – Eu, veja você... estendido, destendido, descalçado, na natureza, os olhos nos joelhos,
então o cérebro já é uma outra história, já que não se pensa mais tanto no batente... Você
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não teria um selo? (Ele começa a escrever um cartão postal em voz alta, os olhos fixados no
público:) “Querida Teresa, passo aqui alguns instantes breves demais de lazer aproveitável,
bem longe do tumulto e das penas de Paris. Estou deitado. As ondas sobem umas nas outras
e o mar mexe a sua barriga, sou aspirado, desarmado, sob a sua sombra: estou na água e
suas tetas. Ô natureza, abre o teu alforje! Então, ele me pega, me leva e fecha o seu círculo
branco. Sim querida Teresa. Vejo morrer por lá alguns gatos ou bichos, dar uns saltos de
animal por lá e cair, dançar e saltar no fundo, eles saem da água e brincam e depois caem no
fundo. Olhar em volta e cair. Talvez eles se agarrem entre as patas, já que eles agarram a
água entre as patas, já que eles caem na água... Uma centena pelo menos, talvez mais. São
pássaros. Talvez ele os mantenha agrupados. Na sua voz nem sempre aparecem peixes,
agrupados para morrer e eles se vão agrupados, saindo da garganta da rainha, eu diria talvez
imóvel e silenciosa, pois sempre se pode perguntar se alguma coisa saiu dali aonde ele vai.
Mas chego agora ao final do cartão e preciso te dizer adeus pois alguém acaba de me
chamar e já vai certamente ser a hora da comida. Pensei muito em você segunda-feira.
Ficaria realmente muito feliz se você passasse na tua prova de carteira de motorista. Você
pode me escrever pra cá. Mas anda logo, pois não vou ficar mais por muito tempo.”

Brusca aparição de Boucot no meio dos banhistas. Ele está nu mas ficou com o telefone:
Boucot – Alô Morgenstern?... Está tudo bem: estão ganhando forças. Vocês compraram as
ações Lustucru?... A 5%?... Até logo... Sim, sim, Orly às 19h30.

Conversa entre banhistas: projetos de combatentes


A – Dá pé por aqui! (Ele franze o nariz.) É agora ou nunca que a gente se faz uma cutia.
Entre sessenta e noventa e oito por cento vêm aqui para o ato... Olha essa menina passando:
eu bem que queria montar nela, ir lá dentro, abri-la e cair dentro.
B – Se você a furar demais, ela morre: isso não é lá muito social...
A – Você conhece o golpe da flauta? O grito da codorna? A emburrada? A tomada? O
trapézio? O corte? A orgulhosa? A revigorante? A morte da colomba?
C – Olha, sou um moderado: passei a minha vida toda em três faces que me bastam. Um: à
vaca. Dois: à cachorra. Três: à toupeira...
B – Se você a pega à vaca, ela urra como uma cachorra: se é à toupeira...

Surge Senhora Boca com acessórios de praia:


Senhora Boca – Quinze centavos, por favor, pelo colchão!
Ela se afasta... Um outro casal: vocação.
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A – O que há com você?


E – Nada. René, René!... Bandeira, bandeira!... Liberdade, liberdade! Chega, chega! Está
decidido, vou me exilar, partir sob as palmeiras, enxergar mais longe que a ponta do teu
nariz! Por exemplo, me engajar profundamente num movimento tropical!
A – Essas idéias, você só as está tendo porque está aqui. Se você estivesse lá, talvez lhe
agradasse estar aqui. Você está dizendo tudo isso principalmente porque você está de saco
cheio de fazer a minha sopa. Eu te entendo. Porque eu também, muitas vezes estou de saco
cheio de tomar a tua.
E – Mas é horrível, René, é todo o nosso amor que você está questionando... Querido, você
não devia estar brincando com o fogo do meu rabo!

Outros banhistas, mesmo projeto:


B – Se você a pega à vaca e ela periga te dar o golpe do cachorro, basta você preparar o
golpe da toupeira, fingindo fazer o da vaca.
C – Isso é muito difícil.
B – Não pra todo mundo... Eu gostaria de encontrar uma mulher absolutamente esférica...
C – Esférica? Você está louco! Redondinha ainda vá lá...

Breve passagem de Senhora Boca:


Senhora Boca – Por favor, seis e cinqüenta pelas barracas! (Ela se afasta.)
C – Está vendo esse terreno, ali?
D – Estou.
C – Ele pertence à nossa sociedade. Vão construir uma creche.

Entremez: lenta passagem de Senhora Boca como vendedora de souvenirs de praia


(esponjas, bolas, redes, estrelas do mar). Ela passa atrás dos empregados:
Senhora Boca – Vocês terão minhas esponjas por alguns centavos, alguns centavos! Vejam
minhas belas redes: animais do mar, presos na luz... (Os empregados parecem não ouvi-la.)
Eles dormem como vacas, estão debaixo! Viva a natureza, boa lavradora e achatadora de
trabalhos, viva a boa embranquecedora de cérebros! Obrigada areia. Debaixo de você, sol
voraz, tudo está apagado. Corpo dobrado, você não diz nada? “O sol branco comeu os meus
espíritos.” O animal cansado, no sol afastado, se dobra! Sol pesado, você devorou as suas
vozes. Veja a minha trupe de aves! Filhos de pele, durmam sobre as costas da terra!
Adormecidos, cantores marinhos não muito alegres! Vamos, mergulhe, para, louco, a
cabeça com o punho, na afogadora, a limpadora! Vamos, azuis! Cambalhota. Peguem no
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vedor! Ao gosto dágua nula, abram seus dentes rosas mais que imediatamente! Nenhum
nadador pesa muito pesado na minha balança, principalmente se eu o laçar. Filhos de entre
duas águas, percam aqui o passo, e até a sombra de seus pensamentos de lenço, nos belos
fundos. Ou nas folhas... Que tumba! Toca. Ele bebeu até a taça. Silêncio: os senhores estão
mergulhando! Queda dágua na calha. Me diga está molhando? Ô que banho! Que banho,
eles estão tomando, esses peixes!... Me diga, minha senhora, é sobre o cofre-couve, eles
ainda estão dentro dágua? Não, não, sob o degrau, chegam às pedras conversando. Nada de
olho pisca aqui, nada sob a manga, a não ser pássaro, o nó de suas cabeças laçadas, longe de
meu quadril. Me diga, minha senhora, eles não vão alçar vôo pelos fundos?
Pássaros marinhos, pássaros pintados, pássaros pretos, abram essa rosa no lugar dos
seus chapéus! Buracos, estendam seus pesados lenços de cabeça e mostrem-me, usados,
seus corações saídos!
Viva a náutica!
Durmam, belos olhos, tesouros de pele, nos meus casacos de pele de água, nos meus
braços de guardiã!
Veja, meu anjo, a sociedade é reta como o mar.
Ele mesmo na água, o sol se comeu: ele brinca fora da terra, mostra o seu corpo
àquela que o devorou.
Eis seis membros de população, dos quais três mulheres ornamentadas de três
babacas!
Lavo seus cérebros no mar,
coloco-os para nadar na água do meu chapéu.
Todas as suas rosas caem.
Na praia, colho muitas flores.
(Os empregados se mexem um pouco, começam a acordar.) Esponjas, esponjas,
redes, ouriços... estrelas do mar! Por alguns centavos, comprem esses souvenirs! (Ela joga
alguns e vai embora...)

Os empregados acordam:
A – Ei!
B – Quanto?
E – Um milhar.
A – Esses banhos, esses banhos...! Que momento!
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E – Não sei se você é como eu, mas quando vejo o que estou vendo, dá uma vontade de
tomar uma espécie de largo definitivo: pular dentro dágua, se abraçar, rolar com as duas
patas na alegria, se entregar no afogamento do afogamento!

A essas palavras, Boucot se levanta e a Senhora Boca aparece:


Senhora Boca – Cuidado! É perigoso deixá-los assim na beira da água! Ei Senhor Boucot, o
senhor não tem medo que eles o façam de verdade, que eles larguem os trabalhos e se
enfiem definitivamente no mar?
Boucot – É um risco a ser tomado. Não vou esconder que já me aconteceu de perder assim
oito de uma vez. No ano passado em Arcachon. É preciso soltá-los, sim, mas saber também
manter o interesse deles.
Senhora Boca – Rápido! Vamos organizar jogos, concursos de curiosidades, corridas de
velocidade, campeonatos de adivinhações, distribuição de brindes pro mais bonito!

Boucot passa a dirigir concursos de praia (bolas cheias, etc.):


Boucot – Quem tem o rabo maior?
Os empregados – Sou eu! Sou eu!
Boucot – Atenção: a bola mais cheia venceu!
C – Ganhou o quê?
Boucot – Um belo lote: uma ovelha viva.
Toma, pra você, vai queimar as patas aí! (Ele lança uma bola que os empregados
perseguem e batem cada vez com mais ferocidade.) Olha só, enquanto jogam, não se
enforcam!
Senhora Boca – Cuidado, estão se irritando! Cuidado, seria melhor que eles não
exagerassem e que, sob o pretexto do esporte, viessem quebrar a sua cara! São pássaros de
cativeiro, não se deve nunca assustá-los.

De fato, os empregados, nos seus jogos esportivos e guerreiros, esbarram em Boucot de


maneira cada vez mais perigosa.
Boucot – A senhora tem razão. Chega de brincadeira! “Vamos fechar, vamos fechar!”
Andem, vamos voltar pra casa!

Apito: os empregados se agrupam e vão embora andando de costas, agitando lenços, como
um coro de ópera.
Os empregados – “Adeus Natureza, adeus Estadia!”
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Tem um retardatário: a Senhora Boca o pega pelos pés e o faz andar “como carrinho de
mão”:
Senhora Boca – Anda, de volta ao lar! Esse banhista queria dos trilhos se afastar. Mas
cuidei bem dele. Ele é um pouco retardado.

Boucot tira a lona verde que cobria o Ateliê e recoloca cada um no seu lugar.
21

V
Os empregados enfiam os seus guarda-pós e retomam o trabalho, sem entusiasmo.
Primeira conversa:
E – Passa rápido. Tomara que as próximas cheguem logo!...
F - ... Quando?
E – As de vocês foram boas?
F – Breves... breves...! Que diferença entre aqui e por lá! Já estou cheia!
E – Calma, calma... Eu, veja você, consigo ter boa esperança. Veja se me acompanha; falta
ainda seis semanas até o final do ano, aí terei três dias. Depois oito semanas e terei um.
Depois de quatro semanas e meia, terei quatro só pra mim, quatro! Aí depois de dez
semanas, terei um dia inteiro (infelizmente breve demais!); depois vai faltar seis semanas
para o ano seguinte, quando terei três grandes dias.
F – Pois então, você pelo menos não tem do que se queixar! Eu só terei um dia, daqui a
onze anos.
E – Mas você ganha muitos francos, muito mais que eu! E daqui a quinze anos você terá
sete meses... Mas você terá então setenta e três anos! Bem feito!
Voz de Boucot – Silêncio! Parem com isso! Andem rápido!

Segunda conversa: um empregado vigia um telefone, um outro trabalha febrilmente.


O vigia – Que tédio mortal.
O agitado – Você tem sorte. O seu aparelho toca! (O vigia não se mexe.) Não conte comigo
para abri-lo!... Você está errado, pode ser do Senhor Boucot!
O vigia (atendendo logo) – Sim, sim, Lustucru, tomei nota. (Ele desliga.) Ainda tenho uma
mão livre, você quer que eu a enfie na sua cara?
O agitado (lhe estendendo uma folha de papel com orgulho) – Objetivamente, o que você
pensa dessa carimbada? (O outro arranca a folha e a carimba inteira.) Você enlouqueceu,
foi? Vou ter que começar tudo de novo!

Súbita aparição de Boucot:


Boucot – Vocês querem acabar com essas conversas? É um falatório sem fim, isso é
inadmissível! O rendimento vai cair. Silêncio, um pouco de silêncio, eu lhes peço, eu lhes
peço!

Terceira conversa, em voz baixa:


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E – Me diga uma coisa, eu não quero ser indiscreta, cada um com sua opinião privada, cada
um com seu cada qual, não tenho nada a ver com isso... Eu queria perguntar para você: você
se interessa por política?
A – A grande política?
B – Sim. Essa mesma.
A – Assim, oh eu, assado... enfim, como todo mundo. Veja bem, não acredito em milagre.
Ora! Não passam de homens... Veja você, na política, são apenas homens fazendo. Isso diz
tudo, não é?... Em tudo o que as pessoas dizem, tem muita ilusão.
B – Claro.
A – Então pô. Tem que ter cuidado. E também teria que saber, não é, todos esses políticos,
o que eles dizem em particular! Repare só que não estou atacando ninguém. Mas os
bastidores da política, sei muito bem o que é e prefiro não ver...
B – Ah não, realmente não tem nada de bonito pra se ver! Mas tem que se respeitar as
opiniões, mesmo divergentes.
A – O cidadão paga o pato, é assim em toda parte. Não dá pra se iludir. Porque, veja você,
hoje é tudo científico. É aí que está a jogada. É por isso que não dá pra acompanhar. Veja
por exemplo a ponte de Tancarville...
B – Com certeza... Não estamos gabaritados.

Intervenção brutal de Boucot:


Boucot – Mas eles não fazem merda nenhuma, não fazem merda nenhuma! É preciso
organizar uma grande semana nacional de luta contra a preguiça... Porque, vocês estão me
entendendo, meus caros colaboradores, acabo de receber uma carta de Roma: as produções
estrangeiras estão se tornando maiores que as nossas e vão nos pegar. Se não quisermos ser
absorvidos completamente crus, vai ser preciso trabalhar mais rápido para estimular a
economia... Não fui eu quem disse isso, são os experts! Olhem as folhas cifradas...

Ele estende uma folha para uma empregada que a lê com atenção:
E – Bem, bem... Mas me diga, Senhor Boucot, por que está assinado “A cabra do Senhor
Seguin”?1
Boucot – Deve ser um erro de digitação... Corrija, por favor, coloque... “O Marechal-
Observador dos Experts” (Ele faz com que a grande roda que está acima do Ateliê gire
mais rápido: o ritmo dos trabalhos se acelera.) Não posso fazer nada e vocês também não,

1
La chèvre de Monsieur Seguin de Alphonse Daudet, é um clássico da literatura francesa para todas as idades.
No caso de se querer adaptar para uma obra conhecida do público brasileiro, pode-se pensar em Meu pé de
laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos. (N.da.T.)
23

é uma decisão puramente técnica, infelizmente, é o progresso: a civilização moderna exige


muito de nós!
A – Claro, Senhor Boucot, claro... Não somos nós que vamos ter a pretensão de penetrar
nos segredos da Economia! Para isso, a gente está mais que mal colocado.

Todo mundo trabalha rápido e bem. Grande alegria do Senhor Boucot:


Boucot – Pronto! Eles estão com o ritmo certo de crescimento! Ô eu amo! Trabalhadores de
meus colhões, toquem de novo pra mim essa música antiga! Senhora Boca, eu queria
aumen-tar ainda o ritmo!
Senhora Boca – Eles agüentam firme, mas não puxe demais a corda: poderia ter, ao longo
do tempo, uma onda de descontentamento popular...
Boucot (arrasado) – O que fazer, desgraça desgraçada, o que fazer, quid faciam? Sou
materialmente o-bri-ga-do a aumentar o ritmo! Entenda, isso é em mim uma necessidade
profunda! Uma exigência do mais íntimo de mim mesmo! Se eu perco um grama, emagreço
e como os outros não param de se engordar fabricando, o menor grama perdido é um pé na
cova... Então, eles têm que acelerar...!
Senhora Boca – Se você quiser que eles aceitem acelerar muito, vai ter que aumentá-los um
pouco.
Boucot – De jeito nenhum. Não insista.
Senhora Boca – Só um pouquinho... Um centavo. Ah que porco, não quer soltar o seu
trocado!
Boucot – Ó Senhora Boca, não se poderia em vez disso tentar satisfazer as necessidades
espirituais deles? Organizar para eles entregas de buquês, desfiles-surpresas?... Ó Boquinha,
me ajuda, sou tão avaro! Certamente um dia vai haver um complô contra mim. Você
poderia descer no meio deles e subir de volta para me contar sobre o estado dos ânimos...
Senhora Boca – Não posso ir assim. Eles vão me reconhecer.
Boucot – Então, vamos fantasiá-la. (Ele fantasia a Senhora Boca em Senhor Estojo. Depois
ele desce no meio dos empregados e lhes faz um discurso:) Há-ah-há-ah-há! Ah a vida hoje
fica cada vez mais dura e tende a ser cada vez mais uma dura luta pela vida mas é preciso
lutar pela vida pois estamos em luta... Nossa v vvv v vácua nossa vida se torna acad evez a
cada vez mais rápida e cada vez mais brrrrr brrr br breve... Mas o que pode-se fazer? O que
se pode é que isso não impeça que se tem que ir depressa. Eu lhes peço simplesmente de
aceitar trabalhar um pouquinho mais rápido.
A vida moderna exige muito de nós. Pois bem, pode-se temer que alguns dentre vocês não
agüentem... Eu sei que vocês às vezes têm, deitados nas suas mesas, agarrados a suas
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bancadas, momentos de dúvida, tentações de movimentos de rebelião contra as sociedades...


Pois saibam que eu também tenho. (Para a Senhora Boca fantasiada:) Acho que toquei
num ponto sensível. (Aos empregados:) Pois bem, delego a vocês o Senhor Estojo, aqui
presente. Vocês vão confidenciar os seus impulsos, ele virá relatá-los para mim e eu tomarei
providências... Graças aos bons ofícios do Senhor Estojo, conheceremos nossas mútuas
temperaturas... Chega de ódio! Esqueçamos nossos conflitos: é preciso chegar a um total
entendimento, humano e específico!... Confiem nele, ele representa os interesses de vocês.
Senhora Boca-Estojo – Sim, caros camaradas, estejam certos que, aconteça o que acontecer,
estou do lado de vocês. Eu mesmo outrora trabalhei com as minhas mãos, foi sim! Minha
aparência é sóbria. O que prova que sou profundamente honesto... Mas sou sobretudo o
maior inimigo do Senhor Boucot, aqui presente. (Boucot aquiesce com a cabeça.) E o meu
único objetivo é suprimi-lo pouco a pouco e colocar vocês todos no seu lugar apoiando as
justas reivindicações de vocês, caro povo...
Boucot – Pois bem, se nós votássemos? Meus peõezinhos, vocês querem ser representados
por Estojo, ou simplesmente não serem representados?
Senhora Boca-Estojo – Só uma palavrinha, camaradas: vocês têm, eles têm, você tem, nós
temos, eu tenho... confiança!

Voto: algumas mãos se levantam entre as quais a de Boucot.


Boucot – Céus, bem que eu temia, vocês elegeram Estojo! Ah, a situação vai ficar difícil
para mim! Vocês caíram em boas mãos!... Querida, é terrível, estou com medo de não poder
mais tirar deles o máximo de lucro!
(Ele sai. Mas logo volta:)
Camaradas, estou arrasado, olhem o que está nos acontecendo: acabo de receber uma
ligação muito sarcástica de Berlim. É porque estamos atrasados: somos os penúltimos.
Respondi que eles não conheciam o galo gaulês, que a França não vai se deixar amolecer
por tão pouco e que nós todos iríamos dar uma guinada nacional, avante! É preciso levantar
a crina!
Ele vai até a roda e a faz girar muito mais rápido. O ritmo do trabalho se torna ultra
rápido... Depois ele foge, sem esperar as reações. Vendo ele fugir, os empregados começam
a se agitar perigosamente.
Senhora Boca-Estojo – Por favor, camaradas, por favor! Caminhemos calmamente rumo à
vitória! (Estojo passa por cada um dos empregados, escuta suas dolências e os apazigua:)
Vamos, nada de precipitação, um de cada vez... Você tem um peso no coração?... Calma,
vamos cuidar disso... Sim, claro... mas tente refletir um pouco, pense nos estragos!... A sua
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corda já esticou ao máximo? A minha também, sabia!... Olha só! Acessos de impaciência!...
Freqüentes?... Tenha paciência, tudo vai melhorar! Boucot vai certamente bater as botas,
um dia...

Brusca aparição do Senhor Boucot, fantasiado de galo gaulês:


Boucot – Rápido, rápido, mais uma volta na manivela: não se pode perder velocidade!
Vamos trabalhar e tudo ficará melhor! Amanhã é um novo dia e retomaremos a frente do
pelotão! Por enquanto, infelizmente, todos os preços vão aumentar... Culpa do estrangeiro,
que não pára de fazer complô, ele jurou que nos derrubaria. Ele quer a nossa plumagem!
Mas a expansão tem os dentes compridos, nós vamos aceitar o desafio, mostrar nossas
mangas e com quantos paus se faz uma canoa! Vamos acelerar, camaradas... ou renunciar à
vida! Avante!

Ele faz a roda girar ainda mais rápido e desaparece.


A – Ele rói as nossas vantagens, cacete!
F – Isso aqui é muito injusto. O ar é insalubre. A gente fica doente.
Senhora Boca-Estojo – Se há um perigo, é preciso avisar. Boucot tem que colocar um
cartaz. Ou então elevar as tarifas.
B – Isso está indo tão rápido que a cada segundo eu posso ser estrangulado. Então exijo ser
promulgado sub-executivo, e rápido!
C – Estou me gastando na labuta: toda noite eu recolho migalhas de carne na minha
bancada, e no chão montinhos de cérebro. Tem que me dar mais trocado!
Senhora Boca-Estojo – Infelizmente, que desgraça! Eles perdem panos inteiros deles
mesmos, quilos de pessoa... Tem que retribuir!
A – Senhor Boucot, na tua máquina de escritório, já tive um olho e quatro dedos cortados.
Senhora Boca-Estojo – Cuidado, camarada, por isso aí você já recebeu uma indenização.
A – É verdade... Quero outra!
Estojo e os Empregados (cantando) – “Chega, tenha dó, já estamos até o gogó!
Senhor Boucot, a coisa vai parar!
Vamos nos vender num preço máximo!
Senhor Boucot, o seu pescoço vamos cortar!”
Senhora Boca-Estojo – Ou então ele tem que dar um trocado, ele tem que lhes pagar uma
multa.

Nova aparição de Boucot:


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Boucot – O que significa essa algazarra de pássaros?


Senhora Boca-Estojo – Eu preveni: descontentamento popular.
E – É ele o mau exemplo que começou a reivindicar, ele tem que ser punido... Mas nós
também, nós queremos ser aumentados e melhor considerados.
Boucot – É uma lei quase geral nas tocas: quanto mais eles têm, mais eles querem. Tem uns
líderes aqui! Eles vão levar pauladas das minhas polícias.
Senhora Boca-Estojo – Nós exigimos trabalhar num ambiente mais agradável...
Poderíamos, por exemplo, retocar a pintura nos locais.
C – Senhor Boucot, queremos dinheiro!
Boucot – Me passem o dossiê Exporta, vou ver se é possível. (Ele consulta o dossiê muito
rapidamente.) Infelizmente, não, pobre França, não é possível... Vocês entendem, com essa
crise do dólar, realmente não podemos aumentar uns porcos tão porcos quanto vocês! Por
enquanto, realmente não é possível! Lamento de todo coração... Até logo, tenho que ir
comer. (Ele sai.)
Senhora Boca-Estojo – Evidentemente, se não lhe sobra nada, ele não pode lhes dar nada.
Sejamos realistas!

Brusca revolta solitária:


A – Chega, chega! Essa manipulação permanente não pode durar mais, é preciso lutar
contra o cachorro! Boucot, a gente vai abrir teus capitais e te esvaziar da tua propriedade,
isso vai florescer!
Senhora Boca-Estojo – Venha logo, Senhor Boucot, está tudo dando errado! Tem que soltar
algum trocado!

Boucot chega muito rápido, carregando uma bandeira:


Boucot – Que avidez!... Nesse povo aí, realmente, é o bicho que sai. Alto lá! Vocês não vão
me bater, vocês não vão me violentar...
C – Alto lá, seu bocó! Queremos grão, rápido!
Boucot – Vocês vão receber... duas colheradas na cabeça!
Senhora Boca-Estojo – Au-men-to, aumento!
Boucot – Hesito, não ouso, peso... é bem difícil, muito espinhoso... enfim que seja! (Ele
distribui grão. Um empregado recusa.) Você não está com sede?
A – Esse punhado não está bom.
Senhora Boca-Estojo – Está bom sim! Está bom, muito bom.
Boucot – Ei! A língua, os dentes não!
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Senhora Boca-Estojo – Agora que estamos aumentados, vamos pensar na emancipação:


“Ô Gambetta, Ô Barbusse!
Nos tirem de lá, nos tirem daqui!”

Boucot sobe calmamente até a sua casa e se entrega a uma grande crise de raiva:
Boucot – Cú de bico, Boucot! Tudo vai mal! Eu lhes dou isso e eles querem isso, dê-lhes
isso, eles vão querer isso e isso e isso e isso! Vocês não terão mais nada. Mas vocês falam
realmente qualquer besteira, vocês reclamam de qualquer um em qualquer lugar! Rápido,
rápido, o mundo está se estragando, não há mais consciência profissional, esse povo se
polui!

A Senhora Boca tira a sua fantasia de Estojo e se junta a seu marido:


Senhora Boca – Você viu?
Boucot – Onda de descontentamento popular. Espero que isso não se reproduza, deus do
céu!
Senhora Boca – Andam recriminando, andam recriminando.
Boucot - Espero que isso não se reproduza, deus do céu!
Senhora Boca – Andam se mexendo nos porões, andam murmurando... Se os carneiros
mostram os dentes, tem que se ter pulso firme. Senhor Boucot, acho que já não é sem tempo
que você os exprima...
Boucot - O que isso significa, Senhora Boca?
Senhora Boca – Que é preciso tomar medidas.
Boucot - Sim, sim, vamos nos medir! Esses mosquitos me fizeram perder grana e tempo...
Se eu os amarrasse? Se eu lhes cortasse as garras?
Senhora Boca – Calma, Boucot! “Não bata no lobo, coloque-o na escola.”
Boucot – O que isso significa?
Senhora Boca – Que é preciso segurá-los.
Boucot – Como?
Senhora Boca - Pela língua. Você deve tomar a palavra.
Boucot (aos empregados, com um megafone) – Comunicação: hoje à noite, às oito horas,
grande sessão de explicação! Vamos coçar seus espíritos!

Ele agita a sua matraca: os empregados fazem algumas compras e voltam para casa.
28

VI
Os empregados nas suas casa.
Casa I:
O homem – Com o dinheiro obtido graças ao Senhor Estojo, comprei isso aqui: emissor-
receptor! (Ele tira um telefone de um pacote.)
A mulher – Ih, bacana!
O homem – Tome, minha senhora, é para a senhora! (Ele lhe dá o telefone, corre até o
outro lado do cômodo e tampa os ouvidos.) Me telefona!
A mulher – És um babaca, só tem um! Se eu falar, quem vai me ouvir?
O homem – Não posso fazer nada, o par valia o dobro, comprarei o outro no ano que vem.
A mulher – Enquanto isso, não pode deixar pegar poeira: vamos cobrir!
O homem – Se a gente cobrir, não vai ouvir tocar... Silêncio! Podem nos chamar a qualquer
momento.
A mulher – Telefona para os vizinhos, telefona para os Cochet!
O homem – Não temos fio. Tudo bem! (Ele bate na parede.) Ei, ô do lado, tem um
chamado telefônico pra vocês!
A mulher – O que a gente vai dizer pra eles?
O homem – “Alô, alô, eu queria pedir, no final dos fins, que vocês fizessem um pouco
menos de barulho: a gente não consegue mais se ouvir por aqui! (Ele bate contra a parede.)
Acabem com isso, Cochet escrotos, vocês vão calar a boca? Se o telefone tocasse, a gente
nem ouviria tocar!”

Casa II:
O vizinho – Quem telefonou?
A vizinha – Os aí do lado, os Hurche.
O vizinho – A gente não conhece eles. O que eles disseram?
A vizinha – Não entendi: eles batiam contra a parede ao mesmo tempo.
O vizinho – Será que o barulho não vinha do aparelho?
A vizinha – Um aparelho novinho em folha, você está de brincadeira!
O vizinho – Novinho em folha, mas extremamente frágil: olha só! (Ele o deixa cair. O
aparelho se quebra.)

Na primeira Casa:
A mulher – Que barulho é esse? Telefona pra eles se calarem!
O homem (escutando no aparelho) – Eles não estão mais atendendo.
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A mulher - Telefona pra eles se calarem!


O homem (batendo contra a parede com o aparelho) – Silêncio! Silêncio! (O aparelho se
quebra.)

Nas duas Casas ao mesmo tempo, diante dos telefones quebrados:


A mulher e A vizinha – Olha o que você fez, olha só o que você fez! Terminou, está tudo
acabado...

Na primeira Casa:
A mulher (se debruçando sobre os cacos) – Ih que sorte: a parte receptora do aparelho
ainda está intacta!
O homem – De que adianta se não tem mais emissor?
A mulher – Nada disso, querido: mesmo modesto, um receptor é para nós mais do que
suficiente. Aliás, a gente não tinha nada para emitir.
O homem – E nossos votos?
A mulher – Estojo os transmitirá.
O homem – Está tudo quebrado. Como avisar?
A mulher – Basta você bater.
O homem (batendo) – Alô Estojo, presta atenção, aqui ora essa! Faço, aqui, o voto que
minha condição melhore de uma maneira fun-da-men-tal!

Ele bate contra a parede. Mas alguém, na coxia, bate ainda mais forte. Três grandes
batidas: a parede do fundo vem abaixo e se abre sobre um grande buraco negro.
Uma voz – “Atravessem essa escuridão, loucas cabeças de pássaros!”
O homem – Silêncio, miserável!... O que é isso?
A mulher – Não é nada. Um cabo solto. Quando você bateu, você deve ter derrubado a
grade de uma boca de ventilação.
O homem – É uma passagem. Vai dar uma olhada!
A mulher – Nunca exploramos esse lugar. Esse poço não anuncia nada que valha.
O homem – Ouro ou dragão, quem estiver do outro lado, responda! (Ele dá um passo à
frente.)
A mulher – Prudência: o buraco é imenso. Não vai entrando levianamente!
O homem – Manda o menino: se um bandido estiver lá do outro lado, ele não vai ousar
bater nesse inocente.
A mulher – Não, não, vou eu!
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Ela desaparece. O homem fica sozinho com o filho:


O homem – Se tua mãe não voltar, a gente vai ter que ficar juntos nós dois... Talvez o
cortejo não passe nunca mais por aqui.
A mulher volta:
A mulher – A parede do fundo parece oca. Ela dá para um outro quarto. De qualquer
maneira, ele deve estar ligado à entrada principal. Me pareceu ouvir vozes vindas do Bloco
B. Aliás o chão está úmido. O choque há pouco deve ter abalado um duto de água.
O homem – Vamos ter que assinalar tudo isso a alguém. Fecha! (Novas batidas muito
fortes: as paredes caem.) Silêncio, miserável!

Súbita luz: Boucot aparece ao fundo, sobre um praticável, com um nariz falso.
Os empregados (aliviados) – Ah, é o Senhor Boucot! (Eles se sentam.)
Boucot (dando uma de animador) – Então, coloquem-se pés assim, mãos assim, os olhos
bem fechados e a língua pra dentro. (Os empregados obedecem e se agrupam de dois em
dois, abraçados.) Quem quer correr e mostrar o seu saber?
C – Eu, eu quero mostrar o meu!
Boucot - Façam entrar o primeiro concorrente! (O empregado se junta a Boucot sobre o
praticável.) Categoria?
C – Corro no “Mundo amoroso”, do lado do coração. Quero ser interrogado sobre as
posições afetivas.
Boucot – Primeira pergunta: olhe para a imagem! (Ele lhe mostra o grupo de empregados,
sempre na mesma postura.) Do que se trata? O que eles estão fazendo? O que eles estão
fazendo?
C – Não, não, não estou vendo, não sei.
Boucot – Pois bem, caro concorrente, vou ler para você uma página de informações. Quanto
mais cedo você me fizer parar mais você vai ganhar. (Ele lê a “página de informações”.
Muito rápido, com o máximo de selvageria:) “Veja-os se agrupar de dois em dois, voltar pra
casa e comer os pés! Você está com a mão bem lá no fundo? Ei, pirados, olhem os buracos!
Anda cavalo três vezes saído: o vizinho tira a calça, e a vizinha? Tomba da cama, solidão,
tomba um e outro pra fora da cama, tomba, tomba, criança de chumbo.”
C – Não, não, não estou vendo, não sei, não sei mais o que isso quer dizer. Lamento, perdi,
não sei mais.
Boucot – Resposta, resposta!
C – Não sei... “Simpatia”?
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Boucot – Não, não. E olha que era fácil. Vou ler o resto: quando você não vir mais a
relação, bata no nariz. Mas se achá-la, você grita! Atenção, prova de cabeça e de rapidez.
Pronto? (Nova leitura:) “Aqui jaz acolá o grupo dos irritados cobiçando a minha lua no
fundo do buraco. Mas eles não acham o de dentro, então eles morrem diante, patas cruzadas
e gritando, e eu sempre lhes digo: não insiste Gregório, você só coloca ali um olho mesmo.
Chora na porta: não é por aí que você vai sair, classezinha!”
C – “Sodoma”!
Boucot – Errado. Inexato.
C – Eu queria continuar, tentar ainda a minha sorte.
Boucot – Atenção, é a ultimíssima vez! Contato! (Leitura:) “Belo abridor de corpo colocado
debaixo de pouco espaço se batendo, corre esbarrar nos meus cenários. Eu te lanço minhas
asas, eu estalo tua cabeça, eu subo teu corpo roliço, contra a noite esmagada. Em breve
passará Boucot o catador de penas. Ninhadas da noite, recolham seus capitais, contem suas
pedras. Gastem-se, filhos de ferro, vocês só parem pregos.”
C – É dramático. Não, não, lamento, perdi, não consigo fazer a relação. Não era bem um
assunto pra mim. Eu deveria ter estudado mais a reprodução. Tudo bem.

Fim do jogo: Boucot coroa com papel aquele que perdeu e lhe faz um sinal para voltar
para o seu domicílio. Os empregados aplaudem:
Os empregados – Ele perdeu! Que cara nulo!

Inebriado com o seu sucesso, Boucot dança. Os empregados batem o ritmo com as mãos. O
concorrente infeliz volta pra casa:
C (para sua mulher) – Vi, sim, Boucot, trocamos nossas visões. É um homem
excessivamente culto. Apesar dos seus encargos, ele tem muito carinho pelos seres.

Intervenção brutal da Senhora Boca junto a seu marido, sempre dançando:


Senhora Boca – Senhor Boucot, está perdendo a bola? A população toda espera suas
informações, o senhor deve falar daqui a dois minutos e não está pronto!
A senhora Boca tira o nariz falso de seu marido e o maquia: rosto enérgico e grave. Os
empregados assistem à maquiagem... Boucot começa seu discurso:
Boucot – Caros amigos, se estou entre vocês hoje à noite não é para abatê-los mas para ter
com vocês uma espécie de livre diálogo desencontrado. Vou responder a suas perguntas em
língua francesa. Foi possível observar, nesses últimos tempos, uma certa agitação nas tocas.
32

O que não anda bem? Digam? Alô, alô, respondam, meus serviços de informação os
escutam.

Um empregado se levanta:
B – Minha mulher e eu, nós nos perguntamos muito, do ponto de vista da remuneração... do
funcionamento geral das finanças. Nós queríamos saber: qual é a natureza exata de suas
moedas? Diga, Senhor Boucot, como é que o preço sobe, onde e por quê?
Boucot – É bem delicado. É bem delicado manter o equilíbrio da balança do ágio entre a
taxa, a porcentagem, as cargas suntuárias, os extratos efetivos, os créditos notórios, os
valores parciais, o curso fiduciário, o tamanho real, o salário legal. A finança não é em nada
acessível ao não especialista que corre grande risco de queimar os pêlos. Estão satisfeitos
com minha resposta?
B – Sim, Senhor Boucot, mas a questão do lucro ainda me persegue.
Boucot – Certo! mas vou logo prevenindo, serei mais técnico. Veja se me acompanha.
Pronto? Considerando um valor V e seu superávit S, sob a intervenção (inelutável,
infelizmente!) do fator tempo, ela vai engendrar uma taxa hipotética T, a qual, se
superpondo a ela mesma segundo as leis de Finck, acaba mais cedo ou mais tarde gerando
um lucro L, convertido em duas partes gêmeas: massa salarial e investimentos produtivos.
A taxa de crescimento está assegurada desde que a soma dos juros capitalizados não exceda
a taxa real do balanço dos encargos. Tal é o princípio do equilíbrio.
C – Mas Senhor Boucot, de onde vem o ouro? De onde vem o ouro, afinal? Para onde vão
os lucros?
Senhora Boca – Questões baixas... Problema difícil de tocar... Nada bonito, nada
interessante. Se a gente passasse logo o filme? Vocês querem que eu mostre meu rabo?
C – Não, não! De onde vem o ouro afinal? De onde vem o ouro afinal?
Boucot – É um longuíssimo e belíssimo milagre...
A – Ora senhor Boucot, o ouro não vem das cegonhas!
Boucot – Não... O ouro vem de Nova York... depois ele passa pela Bolsa, onde é elevado,
alçado e porcentado... depois ele passa pelo canal dos Bancos, se lasca um pouco... depois
inunda o mercado, inunda vocês...
E – E antes de Nova York?
Senhora Boca – Antes de Nova York...? É um dos segredos mais bonitos do meu jardim!...
Aliás, o ouro verdadeiro é o que vem do Amor e quem sabe amar sabe que o homem vale
ouro e que vocês, vocês são ouro.
D – E quem possui o ouro?
33

Boucot – O verdadeiro ouro, só Deus o possui.


A – Pois eu vou lhes dizer: o ouro ceva o seu gordo monopólio! É Boucot que pasta nas
suas costas e que leva tudo pro seu bolso!
Boucot – Chega mais perto!... Você não entende nada, pobre peão! Ele fala, mas é um
aluado: nem sabe fazer uma divisão! É um asno em todos os planos... Quanto custa o trigo
espanhol?... Você não sabe. Quanto ganha um turco?... Você não sabe! Onde nasceu
Lecanuet?2
A – Em... em... em... em... Bordéus!
Boucot – Errado. Reprovado, volta pra tua toca! Você nada sabe das sociedades, você só
sabe reclamar de verdade, só consegue ver a ponta do teu nariz de araque!
A – Eu vejo mesmo é a ponta do teu, Senhor Boucot!
Boucot – Olhem só, esse aí gostaria de tudo derrubar mas nem sabe contar! Da sua cabeça
se solta uma fumaça espessa. Ah, vocês têm diante de vocês um belo espetinho de
vagabundos!... Você não pode fazer nada, você não sabe a linguagem...
A – Nesse dia, Boucot, muitas coisas deverão estourar, mas começarei primeiro arrastando
contra as pedras tua cabeça e os ossos da tua cabeça.
Boucot – Mas você está afundando no ódio, você está afundando no ódio... Cale-se ou eu
lhe retiro as orelhas!... Há outras perguntas?
C – Ahahaha! Ele teve sua palavra belamente cortada!
F – Babaquinha, voltou pro seu devido lugar!
Boucot – Há outras perguntas?

Uma empregada se levanta:


E – Senhor Boucot, que coisa terrível, não ouso mais fazer a minha...
Boucot – Então, sente-se!
E – Mas eu queria fazê-la assim mesmo.
Boucot – Então, faça!
E – Vou lhe dizer por alto, nas linhas gerais... Senhor Boucot, é simples: sou uma
cozinheira e eu gostaria de dirigir o Estado.
Boucot – Primeiramente você já pesou bem todas as vantagens de ser apenas um simples
peão que as preocupações não devoram?
E – Se as preocupações não me devoram, Senhor Boucot, é que o senhor me comeu
diretamente.

2
Jean Lecanuet foi por duas vezes ministro da justiça nos anos 1970, quando Jacques Chirac era primeiro
ministro da França. (N.da T.)
34

Boucot – Você acha mesmo que eu a como, minha filha? Talvez você se considere um
animal e eu um animal maior?... Mas a sociedade vai pegar você, porque ela é ainda maior
que você... Você segura a minha cabeça entre as suas mãos, mas eu seguro as suas mãos e
você está no meu papo. Ou seja, filhinha, o Estado é grande demais para você. Nem vale a
pena se agitar... Mas se você continuar recriminando, você vai fazer a firma capitular! E se
a firma capitular, não haverá mais dólar pra ninguém, o curso das altas ruirá, e vocês junto!
Hoje, veja você, é preciso olhar as coisas de frente... e compreender bem que vocês estão
definitivamente debaixo dos meus lençóis. (Eu vou lhes confessar que me acontece de me
sentir eu mesmo tomado num sistema de conjunturas tão complexo, que por pouco eu me
perguntaria quem as puxa...) Então, fiquem nos seus galhos! Ou vocês vão cair nos buracos!
D – Ele tem razão. Cada um com sua tarefa. Ele é especialista, afinal de contas! Não dá pra
se ter todas as capacidades. Vamos assegurar nossas retaguardas!
E – Ah Senhor Boucot, isso é terrível! Eis que agora já estou eu de novo cheio de
perguntas! Faça alguma coisa!
Boucot – Caro povo, vocês são bem simpáticos, mas vocês são todos tapados e ultra-
fechados... Vocês gostariam de fazer a firma girar, mas vocês nem sabem como é que ela
gira vocês fazendo vocês girarem em volta das outras firmas que giram em volta de vocês!
E a concorrência internacional, então? E as investidas japonesas? E o plano Müller?
Lembrem-se dos Croqués de dezoito e do fim trágico da República de Biarritz! Lembrem-se
que juntos é que metemos o Príncipe abaixo! (Aplausos.) Se vocês fossem com um pouco
mais de freqüência à universidade, vocês seriam menos burros! (Aplausos.) Ninguém é
senhor dos acontecimentos, mas todo mundo pode tomar ali um belo de um lugar!
B – É verdade. Os babacas têm mesmo é que morrer!

Fim do discurso do Senhor Boucot. Aplausos. Boucot se vira pra sua mulher, ansioso:
Boucot – Embromei eles o bastante?
Senhora Boca – Foi muito bom, você foi muito bem. Está muito bom.
F – Ele calou nosso bico!
E – Quase.
Boucot (aos empregados) – Mais alguma coisa?
B – Senhor Boucot, estamos com fome.
Boucot – Como vocês podem estar com fome, já que vocês estão com a barriga cheia?
B – Certo.
C – Pare Senhor Bocó, a gente não viu todas as perguntas!
Boucot – Claro que não!
35

C – Se eu lhe disser... o que significa “explorar”?


Ele desembucha essa palavra com contorções. Boucot responde, muito à vontade:
Boucot – Significava raspar uma cuia sem queixa, plantar um campo para fazê-lo frutificar,
espremer um ovo e se paramentar com a casca ou fazer a carroça do boi ser puxada: não
significa mais nada.
C – Melhor!... Alguns diziam que você explorava... Mentira, já que ele nos paga e nos
poupa a preocupação de nos dirigir!
D – Quem foi que pediu?
Boucot – Ninguém já que é a minha missão. Sou um guia de homens: empurro vocês com
meu pé. É normal.
E – E o pé? A gente bem que gostaria de saber que tipo de relações existe entre o guia e sua
trupe...
Boucot – Muito limpas, muito educadas, com a intermediação de pessoas.
F – Nada a dizer. O quadro está impecável.
Boucot – Outras perguntas?
A – Sim. Eu queria saber como é que a Bolsa funciona? O que é a Bolsa? O que significa
exatamente Bolsa?
Boucot – Qual delas você tem em mente? O que designa Bolsa?
A – Justamente, a gente não sabe. Se a gente diz Bolsa, é que a gente está falando da Bolsa.
Boucot – Vocês sabem muito bem Senhores que há duas, uma das quais não se pode
nomear. Da qual estão falando?
A – Da que está na raiz. Das duas!
Boucot – Então só tem uma resposta: trabalha para constituir uma bolsa de moedas. Na
sociedade, vejam vocês, cada um está bem amparado pelo fundo: mas para ganhar um
pouco é preciso ter um pouco na cabeça. Pois o grande abate o pequeno.
B – Senhor Boucot, qual a diferença que há entre um grande e um pequeno cérebro?
Boucot – É simples: na minha cabeça há muito saber.
B – Por isso. Senhor Boucot me desculpe, seria preciso ver lá dentro, me desculpe...!
Ele se aproxima, ameaçador. Boucot lhe corta imediatamente a palavra:
Boucot – Você quer que eu lhe explique o funcionamento da Bolsa?
A – O senhor está nos azucrinando com essa sua Bolsa; e em primeiro lugar o senhor vai
distribuir ela pra gente imediatamente!
Senhora Boucot – Eu me pergunto por quanto tempo um homem pode falar sem sua cabeça.
Essas línguas que não param de estalar me irritam, me irritam!
36

B – Senhor Boucot, por favor, queira por favor distribuir tudo imediatamente e abrir a sua
Bolsa pra nós.
Boucot – Não posso distribuir para vocês já que é a minha. Não estou pedindo a de vocês.
B – Ah Senhor Boucot, o senhor se faz de rei da palavra, mas eu sou o rei dos ouvidos,
cuidado! O senhor pode até dirigir os negócios, mas o senhor não vai me impedir nunca de
agitar minhas coxas!
Boucot – Pois claro! Se você tem um investimento você tem todo interesse em fazê-lo
frutificar: pegue um quadrado, instale ali uma mulher, rache-lhe o ventre e façam uns
filhos!
E – Quem vai sangrar para alimentá-los? Nós. Quem vai comê-los? O senhor.
Boucot – Nunca comi pessoa alguma. Vocês estão loucos?
B – Em todo caso, mulher e filhinhos, eu os pegarei e os levarei para passear de automóvel,
debaixo do nariz do bocó!
F – Cuidado, não pode ter acidentes!
Boucot – Um acidente de trânsito, o que é isso?
A – Eu sei.
C – Eu!
A e C voluntários, dirigem e batem.
Boucot – Pois bem, quem ganhou?
C – Ninguém. Cada um de nós perdeu uma roda.
A – Ah esse babaca, eu bem que teria atropelado ele! Sinto muito não ter matado você.
Boucot – Chega de dirigir! Agora é preciso pagar os carros.
A – Mas estão quebrados!
Boucot – Foram vocês que quebraram. Têm que me pagar.
Os empregados pagam Boucot.
C – Minha bolsa está vazia agora. O que isso tudo quer dizer?
Boucot – Mmmm...
C – Parem, não soprem mais! Parem de me levantar a questão da língua!
Boucot – Estou feliz por você me fazer essa pergunta, eu queria justamente ensinar a língua
a vocês.
C – Sim, sim, no final agora, nós queríamos saber o que é a língua e aonde ela vai? De onde
vem a língua e aonde ela vai? A língua, será que é essa que me sai do buraco ou essa que
me sai do buraco? Será que é essa que me sai do buraco ou será que é essa que me sai do
buraco? Ela não quer que eu me cale. Senhor Boucot, por favor afinal, o que quer de mim a
minha língua aqui que me trava?
37

Boucot – Ela quer enganar você.


C – Socorro, minha língua quer me falar!
Boucot – Falar? Ei seus loucos, vocês não podem falar, vocês não sabem a língua!
D – E essa que nós temos na boca, talvez? Não é uma língua esse troço que nós temos
dentro?
Boucot – Não. É um pau. É preciso escondê-lo e se calar. Porque vocês não são cultivados,
vocês não têm nada na boca.
F – E o senhor, o que o senhor tem ali? Nenhuma língua também não?
Boucot – Tenho uma sim. Ganhei de tanto ir à escola. Já vocês, vocês têm dentro um pau.
E – O que é pau?
Boucot – É tudo o que não deve sair.
A – Então tem que se esconder a língua.
Boucot – Exatamente. E engoli-la. A cabeça de vocês se sairá melhor.
A – Pronto, Senhor Boucot, engoli meu picão e sinto já minha cabeça arejar. O troço está
enrolado quatro vezes sobre si mesmo e se cala.
B – Céus não consigo! Ela continua se agitando e eu falo! Ó tenho de tagarelar: socorro
meu pau quer me falar!
Boucot – O que ele disse?
B – Não ouvi. Mas eu disse pra ele: sua cobra suja de braguilha, fica querendo se levantar
quando não deve, mas eu te boto pra dentro e te fecho em cima dos dentes do meu punho!
Eu engulo sete vezes e enfio no mais profundo da minha cavidade a minha língua
embolsada... Desculpem! Meu pau ainda trava, estou descascando um pouco os termos...
Boucot – Não é nada. É porque você é jovem e ainda não elegeu o seu buraco.
Depois de um silêncio muito longo:
D – No final das contas... Sempre a palavra você nos corta, a liberdade não é lá muito
respeitada.
Boucot – Oh!... Quem quer vir à tribuna?
O empregado C se junta a Boucot sobre o pequeno palco.
Boucot – Nome?
C –Antoine Boulet.
Boucot – Categoria? Assunto?
C – É sobre as condições de trabalho.
Boucot – Prossiga...
C (orador) – “O tratamento não é justo, o trabalho não é justo, a divisão também não.
Muitas coisas têm que ser mudadas de imediato. Primeiro nós desejamos ser aumentados,
38

mas isso não é suficiente.”... Pois bem, o que o senhor tem a responder a tudo isso? O que
pensa de tudo isso, Senhor Boucot? Responda!
Boucot – Sinto muito, realmente sinto muito: em cinqüenta e sete palavras, você cometeu
dezessete erros de ortografia... Você sabia, seu cabra esfolado, que não se coloca um ^ em
tem quando está no singular, que imediato só tem um M e que aumentados fica mesmo com
o O quando se o coloca?... Mas não era você mesmo que há pouco falava de
C.O.L.H.A.O.til?
Senhora Boca – Isso mesmo, quem não sabe falar, que cale a boca!
Ela faz os empregados aplaudirem no ritmo.
Boucot – Tem um próximo?
Um outro vem para a tribuna:
A – “Nossas condições de existência, materiais e morais, fisiológicas e psicológicas...”
Boucot – Não dê uma de cisne quando você é apenas um rato! (Gargalhadas dos
empregados.) Continue!
A – Não sei mais: o senhor me cortou... Basicamente, o que eu queria dizer é que nós
trabalhamos muito por coisa nenhuma. O senhor dá uma de coletor: cuidado com o dia em
que os pastados tomarão o bastão.
Boucot – Quem é pastado?
A – Eu. Se a minha boca está torta, é por causa disso.
Boucot – Quem se sentir lesado, que fique deitado!
Aplausos.
A – Chega, chega!
Boucot – Chega de quê?
A – Aqui os cliportadôs, aqui os briquebaliôs, os reclamôs, aqui os pastadôs, aqui os
tapiôs!...
Boucot – Aqui Boucot.
Ele o retira.
A – Eu queria acrescentar que o senhor é um guarda-corpo e uma espécie de esgoto.
Boucot – Bravo! O próximo!
Outro orador:
E – “Juventude deve se passar, velhice deve logo chegar, logo deve falecer, clipe-clape,
vida deve morrer... Não devemos nós então por demais inflar e passar vida pequena
depressa feita? Não, pois...”
Senhora Boca – Stop! Lembre-se que a gente entra na vida por um buraquinho.
E – E por onde a gente sai?
39

Boucot – Ninguém sabe. Mas não se esqueçam nunca que é de quatro que se trepa melhor.
Obrigado, vocês foram muito bem...
O orador seguinte:
F – “Caros caramadas... caros camanadas...”
Senhora Boca – Já teve algum distúrbio mental?
Ela lhe indica a saída. Um novo orador se apresenta:
B – Mister Boco, não estou mais com toda minha língua, então vou falar com os dentes!...
Boucot – Pois bem? Abre o teu funil, seu materialista malvado!
Ele escancara a sua boca. Ela fica bloqueada.
E – O que ele disse?
Boucot – Nada. Vejam para onde vocês vão quando lhes soltam a rédea! Já já ele mostrará
seu fundo... Falando dos dentes, eles rebaixam o homem ao nível do cú.
Um silêncio. Depois Boucot vai desbloquear a mandíbula do orador: o empregado
descarrega logo gesticulando:
B – “Panzani! Raticídio! Eu Luzinho exijo Rapid Dama Renault do Trique-Traque com
Solex Instamático! Senão te Pronchar meu Robust ou engolir três tubos de Aspirina
efervescente depressa! Esso, Esso! Basta de Dramamine Veja Lux Pax Pic!... Milliats-
Irmãos, Irmãos-Lissac, levantem e abotinem ele com seus calçados André!”
Um grande silêncio. Depois ele é encestado de pancadas.
Senhora Boca – Pois bem, seu cérebro já retomou seu lugar? Já reencontrou o francês?
B – Sim.
Boucot – Você está absolutamente certo de sabê-lo?
B – Sim, sim, eu sei o vocabulário francês: com à lá cada um nada onde me pois então o
qual algum de cada porque ora contra dentro muito... Muito puco pé pelo pá pivô porco
pantalona pau pombo truque ali eu mim nós te o vós meu lhe teu si disse disseram.
Boucot – Ele é bom. Nada a acrescentar?
B – Não.
Um espectador aplaude:
A – Ela é craque!
Um empregado se levanta, furioso e vai falar com o público:


Fnac! Raticídio! Eu Carrefour exijo Rapid Dama Renault do Trique-Traque com
Rolex Instamático! Senão te Peugeot meu Robust ou engolir três tubos de Aspirina
efervescente depressa! Esso, Esso! Basta de Dramamine Veja Lux Pax Ajax!... Danone,
L’Oréal, Leroy-Merlin, levantem e abotinem ele com seus calçados André!” (N.da T.)
40

C - Oustral pô, se él fá o crú: ni quer nad uvir, ni quer se axpliqui! Nus pudem log nad
intindir. Má di mim a culp? Ni querê gustá, sataná marcanti? Di pô, tudo trová seu plá! jaeu
prafar furir mi buraco, invés de tão boba criancice! Sis franguinhos n’têm mais a línga no
mei do bruaco, agora... Em vez de brochar, que se escaravelhem as plantas ! Io me lo lixo!
Boucot – Você aí! Ei, limpador de chaminé, venha se explicar!
C - Nem por um pio!
Ele acaba sucumbindo e sobe à tribuna:
C – “Meu sinhô o Boucot, noss já tam chêi di tramar pru seus binhos e de só colher
rodinhas e doenças. Noss quríamu ir mais dentro dágua e ali fico mais tempu. Noss quríamu
rebatar casas grandes com vistas e saídas no andar. Noss vida si passá si mordê i crupi e
pegá i mosqui, issento qui si dora su fuce, i né justo, dio du cé! Então si vai nu dar pataca e
logo! Mossa kirimidas e mossa lhes riclamo 624. Num é mui, per uma vida tota passá no
chum! II povi ban ni zi dar, nada de Diu! 624, por favir! Si voss quir nad uvir, noss ni quir
nass uvir tambô! Risponda!... Noss quríamo assi que stope de comprar nossa pele e de noss
fare bricar objetos pra nos empurrar pregos que nos devolvem para nos empurrar objetos.
Compranda Sinhô Bocú, noss vida, fora diss tud, enfi ol quiú, enfi ol quiú!”
Boucot – Entendi nada, lamento! Você tem um defeito de pronúncia?
C – Isso não, Bocú... Sei dizer, mas não tenho tanto vocabulário.
Boucot – Podemos ajudar você. Quais são os termos que lhe fazem falta?
C – Pois então, quando é por assim dizer a minha pele que estou vendendo para o senhor,
como é que se chama?
Boucot – Recruting.
C – Recruting, bom. E quando eu te dou de novo meu dinheiro para tentar recuperar os
objetos que fabriquei?
Boucot – Marketing.
C – E quando você faz a gente aumentar o ritmo?
Boucot – Vitaliting!
C – E quando você nos coloca aqui e ali, enquanto que eu queria ir ali e aqui?
Boucot – Holding, planing.
C – E se eu cair, de tanto quê?
Boucot – Jumping.
C – E quando você enche os seus bolsos?
Boucot – Prosperiting.
C – E quando os meus se esvaziam?
41

Boucot – Conjoncturing, concurrencing, imponderability!... Agora vai você já que está


sabendo a língua!
C – Um segundo Senhor Boucot.
Boucot – Alguma coisa errada?
C – É o meu faling. Não entendo mais nada de nada. O que é que isso queria dizer mesmo?
Queria dizer quem? Senhor Bocú, será que a gente pode pegar o seu vocabulário sem as
suas opiniões?
Boucot – Claro! Se você não está de acordo, basta falar ao contrário ou dizer qualquer
besteira! O que você queria dizer há pouco?
C – Estava nas minhas costas. Eu queria dizer que pra mim é sempre marketing, recruting-
jumping, vitaliting e imponderability; enquanto que para o senhor é automaticamente
prosperiting. Ainda não consigo tirar isso da minha cabeça; está vendo do que estou
falando?
Boucot – Nem um pouco. Você não está sendo claro. Você enumera os termos sem
assimilá-los. E depois, o que você está dizendo está completamente errado. Como é qe você
pode julgar você mesmo o seu estado, se você não se vê? Eu que o vejo bem daqui, posso
lhe dizer que você está com a cara ótima. Não é verdade, minha senhora, que estão
prósperos?
Senhora Boca – Diabo que sim, nossos trabalhadores engordaram!
Boucot – Doutor, estatísticas!
Doutor – “Eles ganham dois quilos a cada seis anos.”
A – Bom.
Senhora Boca – Quanto a nós, saibam vocês, a gente não tem lá muito luxo! Vocês estariam
enganados se nos julgassem por nossas caras... De qualquer maneira, não é um dólar a mais
que lhes trará qualquer coisa que seja. Não se esqueçam que muitas vezes se perde a vida
querendo ganhá-la.
F – Sim.
C (falando na tribuna, com um grande sorriso) – Estou cansading e abestalhading, mas meu
nervosing é uma prova de vitaliting e de prosperiting! É culpa da conjoncturing-tecnicising-
industriality!... Quando as coisas não andam bem, penso no planeta da lua.
B - E então?
C – Chegamos lá!
B – Claro... Irei talvez eu mesmo um dia, se eu não tivesse esse danado desse câncer.
Olhem para as minhas mãos: elas caem. Minha cabeça já está cheia de poeira.
42

C – Não é nada. É a trabalhose. Não se pode fazer nada. Não se preocupe. Deixa rolar.
Relaxe... Esqueça...
Boucot - Alguém... teria... alguma coisa... a dizer?
Os empregados – Não.
Senhora Boca – Pois bem, agora, como vocês ficaram bem comportados, vamos passar para
vocês um filme artístico!
Os empregados – Sim, sim, arejem nossas cabeças! (Aplausos.)

Cinema: sempre do alto de seu palquinho, o Sr. e a Senhora Boucot representam para os
seus empregados uma ceninha de filme:
Senhora Boca – Querido, tenho uns escrúpulos: me diga, você não vai me deixar?
Boucot – Não, meu amor, não. Mas esse tal de Roland me preocupa: ele está sempre entre
nós. Sinto você a cada dia tão diferente.
Senhora Boca – Foi você que mudou: você já não é mais o mesmo.
Boucot – Nada disso, nada disso. Me dê a sua boca!
Senhora Boca – Ah, para fazer o ato, ele está sempre ali! Você não entenderá nunca que,
para mim, o equilíbrio físico não é nada sem a segurança moral!
Boucot – Oh perdão, perdão!
Senhora Boca – Pára com essa chantagem odiosa!
Boucot – Ah não, eu não mereço isso mesmo!
Senhora Boca – Vem, vamos embora! Vamos recomeçar do zero!
Fim do filme. Exclamações de espectadores:
D - Que elegância!
E – Duas horas
de vida interior
cultivam
o coração animal.

Lançar do lençol: Sr. e Senhora Boucot pegam uma cortina grande e a estendem sobre os
empregados adormecidos.
Senhora Boca – Aqui jaz, debaixo, os olhos: cabra e cão não reconhecem mais ali seus
filhotes. Eles dormem todos já. Belo caçador, você já caçou todas as moscas!
Boucot – Sim, sim. Não há mais zumbido: as papilas eu já as soprei, com um passar de asa
na caixa de prego.
Senhora Boca – Seu discurso estava notavelmente dosado: o senhor semeou os espíritos.
43

Boucot – Vamos beber a isso!


Ele abre uma garrafa de champanhe. A senhora Boca coloca nele um lobo preto. Boucot
brinca com um leque.
Boucot – Que noite esplêndida, que brisa suave!
Ligeira embriaguez de Boucot:
Boucot – Sopro os seus pensamentos, fecho os olhos de cortinas. Bocas fechadas, venham
beber no meu ouvido: sou a rainha guardiã das moitas.
Essa ninhada dorme sob a minha sombra.
Esses corpos me levam nas suas costas,
de sombra aninhada, sob a minha sombra de pássaro.
Caminho sobre as suas vozes, durmam sob meus estandartes!
Me dêem suas colheitas.
Belas crianças curvadas,
Eu as colho nos meus prados:
Abram suas mãos de rosas desse passo!
Eles dormem na minha casa. São minhas flores. Os pássaros
Do meu jardim.
Querida, aceite esse buquê de cabeças,
enfeite-se com suas plumas!
Levante-se na noite, nua, aberta, vestida com os seus
frutos!
A senhora Boca se desenrola, se enfeita com casacos de pele, desdobra seu corpo. Noite.
Fim da segunda jornada.
44

VII
Trevas. Boucot percorre o teatro com uma lanterna e ilumina um primeiro empregado, com
a vassoura na mão. Primeira estação:

A – Di... Va... Dii-ááá, váá... Diabo de vassoura!

Boucot continua seu caminho e ilumina um outro empregado com um capacete de


telefonista e segurando dois aparelhos na mão. Segunda estação:

B – Ei, pare! Já tenho duas listas para ouvir, não posso responder com as duas mãos!... De
tanto me causar preocupação, vocês vão acabar me fazendo pegar um galho! Minha calçada
já está pequena demais para as minhas patas... Fique quieta minha alma, daqui a dois
comprimentos você planta a tua barraca... Admirem meu belo esforço ou me taxem de
moinho, vocês não vão me impedir de, daqui a um ano, estar um pouco mais longinho!...
Aliás, quem o faria em meu lugar? Senão por que eu tenho orelhas, eu pergunto a vocês?...
Alô, alô, vou passar para o telescópio dos gêmeos (para eles, deve ser difícil trabalhar nas
condições!) um segundo! tenho já dois pedaços pra juntar, então evitem por favor de me
apresentar um terceiro imediatamente, multiplicação tem limites!... Quando chegar o dia de
entrar em contato com a vida, vão tocar, de uma vez por todas: o lobo virá em pessoa dar a
resposta, ele dirá: “Se eu me chamar, digam que não estamos.”... Então será uma maneira
como outra qualquer de administrar na tropa de todos os olhos a prova do meu savoir-faire
estrondoso!... Principalmente se eu vier a desaparecer. Senão-senão!... Senhoras, Senhores,
vocês entendem que estou com a doença? (Falando no primeiro aparelho): Alô, alô, eis
aqui todas as minhas informações: as camisas sobem, o preço dos calçados sobe e já
ultrapassa de uma cabeça o das luvas, a calça aumenta, só a corda fica num preço acessível!
(No outro:) Sim, sim, sim, houve uma grande explicação, ele lhe perdoou tudo, ele lhe
jurava que sim, então ele lhe passou uma borracha... (Para Boucot:) Me diga, Senhor Do
Boucot, e as minhas condecorações, vão chegar?... Fui prisioneiro de guerra, meu cunhado
foi deportado, minha mulher está invalidada no trabalho a 67%, meu filho foi queimado,
minha cunhada estourou. Estou amargo. Talvez as condecorações?
Boucot – Me diga, Hurche, você não passou o aspirador hoje de manhã?
B – Aspirador?... Faltou tempo... aspirador. Faltou.

Intervenção apaixonada do empregado da vassoura:


45

A – Seu Voucot, eu queria custamente ir pê-lo bara lhe denunciar Hurche: eu o vi com o seu
jornal, ele pensa em se fazer molhar a mão e sonha de lhe enrolar um pecúlio de tostões.
Sinceramente. Aspiro em seguir carreira na denúncia.

Boucot, entre os dois larápios, inverte os dois acessórios; ele pega o telefone de B e dá a A,
pega a vassoura de A e dá a B:
B (telefonista derrotado recebendo a vassoura) – Di...va... Dii-ââbo... Diabo de destino!
A (ex-varredor promovido a telefonista) – Alô, alô, Senhor Boucot, estão chamando das
ilhas Canárias!... Ei, pare, todas ao mesmo tempo não! Parem, não se sabe mais por onde
me começar! Ele diz esquerda, ela diz direita: se vocês colocarem um terceiro, a gente vai
acabar não sabendo mais!... Basta, basta, a seiscentos e vinte e três não está respondendo
mais!
Boucot – Emburrada?
A – São os reumatismos. Cada vez que vai chover, meu pé range.
Boucot – É a nervose. Você deveria ir ao médico. Talvez você vá morrer.
A – Talvez, mas sozinho não! Luc-Paul, meu primo, sucumbiu ontem à noite ao seu
engarrafamento.
Boucot – Meu Deus, que horror! Quais foram suas últimas palavras?
A – Olha, tudo aconteceu tão depressa, o senhor sabe... Ele cuspiu tudo de uma vez e foi
embora.
Boucot – Era um ser insubstituível. Quem o substitui agora?
A – Ninguém, claro... Enquanto isso contratamos um macaco.

A essa palavra, os empregados fazem caretas. Boucot agita sua matraca. Os empregados se
limpam, tomam uma fisionomia serena, apagam rugas e caretas. Cortejo: Boucot e sua
mulher passam no meio dos empregados, recolhendo os objetos fabricados e distribuindo
alguns grãos.

B – Ele recolhe meus trabalhos.


A – Tomara que ele... Quê! Tão poucas migalhas por um dia!
Boucot – Silêncio, coração usado, pegue seus caroços! Quando se pega tão pouco espaço, a
hora passa, quando se pesa tão pouco peso... Estimem-se felizes. Comam seu número.
D (em voz baixa) – Ganhei um número de cinzas... E você, qual você tem?
E – Poeira, poeira... continuo não tendo a parte do leão.
C – Mais um que só dá direito a pouco... a sorte me larga, por onde se sai?
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Ele procura a saída.

Senhora Boca – Não parta com as mãos vazias!

Ela dispõe rapidamente os objetos no chão.

C – Esplêndida vitrine! (Recuando) Pena tão depressa amadurecer! Eis agora já o fim, eis-
me aqui na forca. Eu não tinha condições!

Ele se enforca e morre.

Senhora Boca – De toda minha vida de comerciante nunca vi cliente mais burro dar
exemplo tão feio!
Os Empregados – Ele descompensou!

Movimento em direção ao desaparecido. A Senhora Boca os detém:

Senhora Boca – Parem! Por aí não! Aqui a saída! Aproveitem os nossos pássaros!
Os Empregados – Quais? Quais? Ah, Senhor Boucot, estamos tontos, estaríamos bem
precisados de um par de calças!

Os Boucot vasculham rapidamente as vitrines.

Senhora Boca – Não temos mais... Vocês querem umas facas?


Os Empregados – Queremos sim!
B – Senhor Boucot, me venda uma faca!
Boucot – Para que tipo de pescoço?
B – Ainda não sei.
Boucot – É uma faca afiada, cuidado!
F – Outra pra mim!
Boucot – Você teve sorte, é a última.

Todas as facas são vendidas. Os empregados voltam pra casa. Boucot e sua mulher ficam
sozinhos:
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Boucot – Fiz bons negócios: vendi pra eles todas as minhas facas!
Senhora Boca – Você ficou sem nenhuma... Eles não vão saber usar, espero! (Boucot
treme.) Boucot, você está com medo?
Boucot – Não, estou com frio. Céus, não é que o medo está me pegando pelo pescoço!
Estou com medo que eles me guilhotinem e suprimam minhas liberdades... que eles percam
o pumo e nos requisitem a pessoal!
Senhora Boca – Meu Deus, que horror, me deixem pelo menos meu ânus!
Boucot – Não Senhora, não, o amor, isso não, eles não vão poder tocar nisso!
Senhora Boca – Sabe querido, se viesse a acontecer uma desgraça a nossas intimidades, eu
prefiro bater as botas! Ó tenho medo de não aproveitar ao máximo e de ver todas as nossas
penas voando em fumaça!
Boucot – Calma, meu anjo... Não é nada, é humano, é ligado ao tempo que foge... É aí que
o instinto de propriedade se aninha... Vamos falar com eles, vamos explicar pra eles, eu vou
dizer a eles: “Como assim? Vocês não vão me violentar? Eu? Enérgico partidário da paz nas
sociedades?... Evitemos as violências... Façamos comércio. O que aprecio na vida são as
trocas humanas, de buraco a buraco... os diálogos, os contatos... Vamos, vamos, guardem
suas facas!”

Nervoso nos lares. Um casal:


A – Sempre nada no prato! Nós vamos explodir!
D – Larga essa faca, você vai cortar os olhos! (Ela pega a faca.)
A – Me devolve, vou tomar muito cuidado! Por favor, um segundo, só pra cortar uma orelha
sua...
D – Você devia era sangrar a primeira que nos ultrapassar. Não nada disso! Você devia
mesmo era enfiá-la no pescoço do Boucot!
A – Não gosto dos dramas. Tenho muito medo das polícias.
D – Criança boba e idiota, passa a vida debaixo da marmita!...
A – Boucot é muito alto.
D – Vocês são muitos...

O homem se levanta e se dirige aos outros empregados. Arenga:


A – Irmãs! Amanhã ao meio dia, está acertado, Boucot será ex-ter-mi-na-do!
Aplausos dos empregados.
B – Sim mas prudência...! Todas essas facas são extremamente suspeitas... Isso está me
cheirando é a uma terrível manobra.
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E – E se a gente esperasse uns quinze dias... É cedo. Vamos agüentar até a volta ao trabalho
dos políticos.
C – É cedo. O tempo não está maduro. Boucot desaparecendo, novas tarefas nos aguardam.
Os responsáveis não foram prevenidos, a situação está muito embolada, não vamos arriscar
meter um pé no buraco... Não se mexam mais, esperem! Escondam suas facas debaixo dos
travesseiros!
A (em voz baixa) – Um instante!... Faço um brinde ao desaparecimento do boco! (Aplausos
abafados.) Talvez amanhã!
Os empregados se deitam e dormem. Numa elevação, aconchegados um contra o outro, o
Senhor e a Senhora Boucot tremem:
Boucot e Senhora Boca (os dois) – “Querido, há três dias, não durmo mais, tenho medo da
noite da faca!”
Senhora Boca – Eles têm facas, mas não vão saber usá-las, espero... Deus, que horror!
Longo grito. Ela mostra para Boucot um empregado, sonhador, que se levantou, um lençol
na cabeça e uma faca na mão.
Boucot – Só um sonâmbulo!... Não há risco de ele nos ferir.
Senhora Boca – Ó sonâmbulo!... O que lhe ordena o seu cú?
Boucot – Mil trapaças!
O sonâmbulo estende o braço, levanta a sua faca de papelão.
Boucot – Eis que ele sobe o punho em riste, içando seu quê mais alto que si. Ele eleva uma
palavra: esse prego se acha pontudo, caramba! Pulga em posição sentada se achando um
ogro em estado, eleito ou rei, pensando passar o seu pescoço dois pés acima da trupe!
Sombra de macaco, você tem um belo de um pescoço de sorte, não o deixe cair no alçapão!
Procura no chão o teu pescoço de sombra de nada de pé, escolhe certo, ele ainda está de pé!
Sim! Talha a tua parte, sonhador tão brilhante, que só vê nele, só fogo, cuidado, vocês vão,
pegar uma tumba, cara pessoa dentro! Andem o corpo no coração da questão! Bravo
pedaço, mais um número de braço! Bela carnagem de papel. Não escute Senhora, ele é
bobo, ele comeu flauta! Príncipe Bússola, indique pra nós o saco do gato por favor!
Senhora Boca – Não dá pra ver os fios. Por onde ele está preso?
Boucot – Pelas solas, na tábua que está debaixo. Homem de madeira em repouso esperando
as visitas.
Senhora Boca – A hospitalidade desse buraco deve ser recompensada... Obrigada Bravo,
você foi eleito, ganhou o número. Ele o levará direto à sua cabeça: siga esse entalhe ali na
tábua a ambulância no final o espera... Juro, juro, esse sonho-oco me exaspera: se for um
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flutuador, me pergunto se ele vai durar; se ele falar, me pergunto o que o leva.
Desapareça!... Ô Boucot, estou com medo: se ele chegasse a penetrar nos segredos!
Boucot - Ele só penetra mesmo corpos com espada de papelão, só chega a morder seus
órgãos de uva.
Senhora Boca – Aprecio a arte de todo especialista em papel oco.
Boucot – Vamos! Mais! Mostra pano! Dá um espetáculo para a senhora, mostra o teu cú
mascarado!... Mais, Senhor, por favor, saia, faça ressoar sob o seu pé a tábua!... Acabado,
obrigado, pronto!... Bravo por esse panorama esplêndido sobre as lutas de bolso. E obrigado
mais uma vez pela visita ao porão.
Senhora Boca – Que porão?
Boucot – Paciência, interrogue a sua casca, ele vai responder... Veja: ele está contando o
buraco dele.
Senhora Boca – Esse pensamento vazio de sentido se exaspera de tanto se quebrar a cabeça
com sua faca de quê.
Boucot – Senhora, é uma colher, não é uma faca que ele lança! Olha ele estirando a língua:
no primeiro pano que ele acha, ele mergulha de cabeça, rasga a sua pele e tira a sua frase,
uma boneca no dedo!... Andem os batentes!
Senhora Boca – Essa máscara me exaspera, espero que ele vá voltar pro vestiário!... Chega
escarlate, dobre as suas patas!... Criança de três ou quatro pregos, passe pela porta, volte nos
lençóis! (O sonâmbulo volta a se deitar.) Céus, que sorte, ele obedece! Cuidado, Boucot,
eles ainda estão com as facas!
Boucot – Estou com medo. Acorda eles!
Senhora Boca – É meia noite, muito cedo.
Boucot – Acorda eles! A segurança está em jogo!

A Senhora Boca agita a matraca: os empregados se levantam e se preparam para retomar


o trabalho.
A (o sonâmbulo) – Olha, que curioso, ainda está de noite... Sonhei que eu participava de um
monumento erguido à resistência passiva.
Compra de volta das facas. Nessa cena, Boucot utiliza um megafone, enquanto que sua
mulher, afastada, dá uns apartes em ecos super agudos.
Boucot – Alô, alô, vendi a vocês as facas por seis francos, pois bem agora eu as compro
todas de volta por seis francos e vinte e cinco!
Senhora Boca – Ô da bola, larga os moles, ó o pão!
Boucot – Seis francos e trinta!
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C – Seis francos e trinta, seis francos e trinta, tem que meditar!


Senhora Boca – Meditabunde!
B – Se a gente vender pra ele dez facas a seis francos e trinta, a gente vai poder comprar de
volta onze por seis francos...
A – É, mas se ele nos compra de volta por seis francos e trinta, ele certamente não vai nos
vender de volta por seis francos... Ele tem que viver!... Não, não, Senhor Boucot, não vai
dar. A gente fica com nossas facas.
Boucot – Seis francos e trinta e três! E de brinde, eu lhes dou uma pena de galinha
verdadeira!
Senhora Boca - Lampiões do telhado, trata-se de uma mina, eu lhes dua uma pina de louca
sob a mesa.
Depois de um momento de hesitação, os empregados revendem suas facas e voltam pra
casa.
Boucot – Cuidado vocês aí, o dinheiro pode deperecer! Se eu fosse vocês, com o dinheiro
ganho na venda das facas eu comprava ostras.
Senhora Boca – Estendam os bicos, é a época!
D – Não temos mais nada para abri-las...
Boucot – São ostras preparadas, já cozidas. É por isso que custam um pouco mais caro...
E – Elas são sólidas, pelo menos? É material sério?
Boucot – Nossa! Nada a temer! É um investimento definitivo: os seus netos ainda vão
quebrar ali os seus dentes!
Senhora Boca – Na maré baixa, tenho certeza, pardal rima com profundeza.
F – Deixa... agora não. A gente leva no Natal...
Boucot – Ah, pode ser que elas aumentem... Olhe essa aqui, empresto a você um minuto
sem compromisso! (Ele passa uma ostra enorme para um empregado.)
Senhora Boca – Olha a imagem, o porco se prega ali ao se levantar.
A – Elas são majestosas! (Boucot estende a mão para retomá-la, mas o empregado não
consegue mais se desfazer dela:) Vamos ficar com elas! A gente vai levar, a gente guarda e
quando elas valerem mais caro, a gente come!
Senhora Boca – Anjo, se você se enquadrar, não se preocupe se seu seio desfalecer.

Os empregados compram as ostras e voltam pra casa.


Boucot – Essas ostras, vocês não vão comê-las sozinhas! Vocês precisam de maçã. Isso não
se faz, comer ostra sem maçã.
B – Quanto é?
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Boucot – Mil francos por grama!


Senhora Boca – Empastela o flanco dele!
B – Muito caro. Vamos economizar um ano ou dois...
E - É, mas durante esse tempo as ostras vão perecer... Não se pode comer ostra sem maçã,
mas também não se pode engolir ostra podre.
Boucot – Nós temos o prazer de lhes anunciar que para as maçãs, há facilidades de
pagamento: doze francos por semana durante trinta anos.
E – E a gente leva as maçãs imediatamente?
Boucot – Uma maçã imediatamente e o resto do quilo daqui a trinta anos.
A – Mas a gente vai ter setenta e sete anos, não teremos mais dentes!
Boucot – Então me dêem mais vinte e cinco francos, paguem três francos todas as quintas-
feiras e daqui a trinta anos, junto com o quilo, vocês receberão uma esplêndida dentadura!
Senhora Boca – Espanador, olha o buquê!
C – De uma maneira global, acho que se trata de um investimento sólido. Tinham me dito
aliás que essa loja era muito lucrativa...
Senhora Boca – Limpem essa estaca e essa barriga, estou saindo da mesa do pingüim.
A – Note bem que até agora, continuamos só com uma maçã. Não vamos comer doze ostras
com uma única maçã! E daqui a trinta anos, quando teremos o quilo e a dentadura, há muita
chance de que as ostras já estejam fodidas...
Boucot – Então, se puder ajudar vocês, me devolvam as ostras: eu as coloco pra gelar
durante trinta anos... Mas serei obrigado a ficar com as maçãs, pelas despesas da geladeira!
Senhora Boca – Para repintar de alguma maneira o camarim do galo.
Boucot retoma todas as mercadorias, os empregados não têm mais nada.
E – Compramos maçãs, mas não veremos nunca nem a sua cor.
B – Cala a boca! O negócio não é tão mau: ele coloca as ostras por trinta anos na
geladeira... Quando ele nos devolver, talvez elas tenham feito uns filhotes.
F – Evidentemente, por enquanto não temos nada... Mas quando a gente tiver setenta e sete
anos, a gente vai receber doze ostras e uma dentadura.
Senhora Boca – Contra setenta ratos, quem vai tapar o vazamento do sótão?
Boucot – O lucro é copioso.
Fim da venda. Boucot agita a sua matraca: volta ao trabalho. Comentário de um
empregado:
A (para seu vizinho) – Você reparou como... mas eu não estou enganado! Foi você mesmo,
outro dia, que me tratou de hipócrita!... Minha mulher está completamente louca, você sabe
o que ela pretende? Ela pretende sustentar que hipócrita vem de hipo, cavalo, e de crita,
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escrita. A gente diria que alguém é hipócrita quando ele teria uma escrita de cavalo. Um
cavalo não sabe escrever. Logo ele mente. É incrível. Seus olhos são de uma brancura
assassina! Você quer que eu lhe exponha algumas noções às quais minha mulher se apega
muito?...
Boucot – Silêncio! Vamos manipular.
Trevas. Boucot aponta a sua lanterna para o empregado que acaba de falar. Este voltou
para o seu lugar no Ateliê e continua o seu discurso ao mesmo tempo em que manipula:
A – Fiz muito mal em tentar. Devia ter engatilhado ele direto. E lançado assim pra ele: “Eu
me chamo Pique, e você? Hirque, talvez?” Teria sido uma fórmula de lhe cortar o flanco...
Por ora, mil cães! derrota total. Tomara que ele não vá começar a correr que eu tenho a
mínima menor cara de estomo por sua pose...! De qualquer maneira, amanhã, vou agir:
assim que ele fraquejar, coloco-lhe os pontos nos Us, sem parêntese e em bom passo!... Ao
breve! Ao breve! Labore sempre pobre-e! Minais ao alto! Devastem os treves! Labirâmides!
Fim dos túneis! Labirâmides de barro!
Boucot – Vai tocar?
A – Ao breve, ao breve!
Senhora Boca – Molhem os nervos, a dose foi ultrapassada! Rápido, aos jogos metê-los!
Boucot – Alto lá a todos, que cessem! Vou lhes dar a hora da pausa. Pássaros, pássaros!
Fim dos labores, retomem os amores!
Trevas. Breve lazer: Boucot aponta a sua lanterna para um empregado que está brincando
com uma enorme bola preta. O empregado examina a bola de muito perto, faz ela girar,
comenta, decifra a bola como se fosse uma grade de palavras cruzadas:
B – Lazer! Oba, depressa! Em que ponto parei? Ah é! Desembaralhar os fios... Ramsés,
Jasão, trespassam na vertical. Eis que no horizonte, onze letras... onze desmoronam e rolam
na garganta do pombo... achei! Robespierre! Era ele. Os onze são bem esses: os pássaros-
de-todas-as-gaiolas não-perigam-sair nesse-espelho... A cruz está cheia. Que alguém venha
e vire a minha página! Oba, aqui, encontrei! Deus do céu, caras quebradas, ataque, Reims,
Santo Etienne, Raúl de Brinhac! Vai passar apertado, tomara que... ai minha cabeça! Bingo,
mais um! é pra mim! Ô louca escapada!... Depressa um pouco de mansidão, obrigado...
Rex, Pipo II. O primeiro ainda não! Basta, já, bebi tudo. Depressa, ler o resto, no verso.
Ataco a próxima: música!...
Boucot – Ó céus, que chegue logo a hora! Acabou, retome o seu galo!
Fim do lazer. Trevas. Boucot aponta de novo a sua lanterna para o primeiro empregado,
sempre manipulando:
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A – Fossa dos ursos; entrada e saída, luzes de porrinha!... Todo lazer cai. Toda luz é fogo de
palha. Durante muito tempo pensei evitar o fim. Mas no final todo lazer cai. Não faz mal: a
criança seguinte sobreviverá! Ela sairá da tumba, é preciso, estou dizendo. Eu mesmo, se eu
sobreviver, não vou parar no caminho, esperarei o fim, direi: que venha a hora, que soe a
hora! que ela venha e que ela caia! Quando chegar a hora da minha morte, não terei medo,
direi: “Realmente, realizei tarefas mínimas... mas não foi por minha culpa.” Quantas
mordidas daqui ali? Quantas vezes ainda mexer as minhas patas? Mil?... Meninas, vejam:
nesses lugares amaldiçoados, rola a seis milhões de lágrimas-segundo. Que chegue a hora,
que caia a hora, que ela caia!... Quem agita, aqui, para quem, que mãos? Esplêndida
existência: como preço por cada esforço meritório, obtenho, uma mordida que me avança
com um passo rumo à saída. Todos os sinos podem muito bem tocar! Minha detestável
posição de belo badalo elevado, não varia, de um centímetro! (Ouve-se um revoar de sinos.)
Céus... esperança, esperança! A criança vai sobreviver!... Ele vive, ele vive! Eis o orifício,
eis o horizonte!
Amanhece. Aparição no horizonte: a Senhora Boca e uma empregada monologam, cada
uma numa extremidade do teatro. As palavras de uma cobrem as da outra:
D – Unha pelo avesso, polegar pelo lado direito, ponto!
Senhora Boca – Eu queria que ele viesse, e que ele me trepasse, pimba!
D – Dobre um pouco o pouco de nada!
Senhora Boca – Um pouco do meu sob pouco do seu!
D – Canto, jato, toque o quê!
Senhora Boca – Rei, entre, toque meu cantinho!
Fraternização e troca de receitas: elas se aproximam e vão andando de braços dados,
empurrando um carrinho de criança.
Senhora Boca e D – Lindo, lindo, qual é sua receita?
Senhora Boca e D – Um raminho de nada, só uma pitadinha, um jogo de bico!
Senhora Boca e D – Você o amamenta?
Senhora Boca e D – Daqui a pouco ele vai pra escola, vai seguir seu rumo...
Senhora Boca – Olha só os seus dentinhos já de lobo!
D – Veja só os seus dentinhos já de glogo!
Senhora Boca – Veja só o seu lote já de pequeno bracinho dado!
D – Veja só o seu lote já de bracinho dado!
Jogo de cena com o carrinho.
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VIII
Ruptura. Troca-se a disposição dos elementos cênicos. Única ligação entre o antigo e o
novo dispositivo: o carrinho de bebê. Um casal olha para dentro dele. No meio das
tempestades.

A – Aqui em círculo... o suor da minha testa seca. Ao abrigo dos ratos... Degusto uma bela
de uma fatia.
D – Não fuma tão perto do berço!
A – O que é que tem? Mais cedo ou mais tarde, tudo parte, em fumaça... Ele também, vai
ser preciso que ele pare e coma o cabo depois da colher.
D – Muitas lágrimas ainda, infelizmente... um danado de um pacote de lágrimas espera por
ele... (Ele se aproxima do carrinho.)
A – O que você está fazendo?
D – Estou virando ele pra que ele deite sobre o flanco.
A – Cuidado, pela alça não, a vida é frágil!
D (ela beija a criança) – Caro monumento da cavidade do meu tronco!
A – Você quer dizer do meu...!
D – Cale-se encrenqueiro!... Que felicidade, já estamos partindo em fumaça. Ele ficará, ó
estou enternecida com esse flanco de pássaro... Pensar que nós chupamos talvez nossa
última...
A – Não fala assim tão alto desse buraco maldito!
D – Mas por quê?
A – Tudo sobe. A vida aumenta. Estou segurando o timão. Não se toca nunca o fundo.
D – Defende a tua pele! Não desespera, não dramatiza! Um tubo de pasta de dente, mesmo
vazio, sempre dá pra tirar algo de dentro, de tanto tentar. Realmente, na natureza, o grande
come o pequeno. Lamento tanto quanto você esse rapto. Mas nada impede o pequeno de
entrar menos que si! Ora você não está assim tão mal postado. Pensa que tem gente pra
quem não se fornece nem a calça... Pára de fumar, eu te peço, você vai fazer ele pegar o
crancho!...
A se vira e se dirige de repente diretamente ao público:
A – Senhoras, Senhores... antes, eu teria que lhes contar a história completa do meu
casamento. Antes de desposar essa mulher aqui, eu já tinha encontrado uma outra. Rosa. Há
várias semanas nós comíamos todo dia na mesma mesa, o acaso tinha nos colocado na
mesma fileira. Um belo dia, ao mesmo tempo em que eu manipulava ao alegre som das
bigornas, eu me engano e pego a sua...
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Ele começa a fazer a cena com a empregada F. Os dois se posicionam no novo dispositivo,
muito simplificado: uma mesa coberta por uma toalha descendo até o chão, uma espécie de
palquinho de marionetes (o que vai facilitar depois a aparição e o desaparecimento dos
objetos.). Sentados à mesa, de frente para o público (só se vê as suas cabeças e as suas
mãos), eles seguram cada um um sapato e batem:
A – Perdão, não teria eu, por acaso, pego a sua?
F – Bem que eu achei, não estava ousando lhe dizer... Olha, se preferir a minha...
A – Não, não, por favor, não valeria a pena... Pelo pouco tempo que vou passar por aqui!
Você está me vendo aqui, mas estarei rapidamente em outro lugar: consegui uma vaga na
entrega. De onde eu poderei facilmente solicitar uma na dobragem. Uma vez dobrador, mais
dois degraus e chego no controle! E ficando ali dez anos, com um pouco de sorte, termino
Amarrotador Geral!... Cortar reto, mirar espertamente numa vaga, me dar uma pilha, depois,
acabou, a gente fecha e eu me forneço tudo em dobro! (Senhor, me perdoe, menti o tempo
todo!)
F – Me tome, me carregue! Sonho em levar uma vida afetiva! Estou com pressa de deixar
esse lugar!
Eles param de bater. Silêncio profundo. Durante toda essa cena, o empregado B (Verdet)
está de pé, do lado da mesa. Boucot, não muito longe, numa elevação:
Boucot – Verdet, o que está acontecendo?
B – Crise na produção, patrão. Não tem mais matéria prima. Estamos rateando.
Boucot – Fuga de mina de pena de trapo de porto de morro de pouco! Que fazer, que fazer?
Voz do Doutor – Estique o ouvido para a escuta! (Breve silêncio.)
C (em casa, lendo o jornal, com uma voz quase inaudível) – Olha só, o papel está na sua
cotação mais baixa.
Boucot – Krapon, vá comprar pra mim duzentas toneladas!
C obedece: ele vai buscar uma pilha de jornais e a coloca sobre a mesa de manipulação.
Ele parece reconhecer a empregada F:
C – Mas é... mas então, você está!...
Boucot – Silêncio, vamos manipular!
Ele bate e C desmaia. Na mesa, A e F começam a rasgar os jornais, ao mesmo tempo em
que continuam conversando:
F – Quanto mais vejo você, mais sua personalidade me fascina!
A – (Sua vadia!) Uma viagem de tochas é sempre arriscado... (Ela quer pegar a minha
metade!)... É preciso pensar se os farrapos combinam...
Os jornais rasgados por A e F se amontoam. Crise de Boucot:
56

Boucot – Verdet! Verdet !


B – Sim, patrão.
Boucot – O que é isso? Essas migalhas, essas tiras, esses pedaços?
B – Papel, patrão.
Boucot – Faça escoar! Escoa isso tudo!
B – Aonde, patrão?
Boucot – Aonde você quiser, venda tudo!
Voz da Senhora Boca – Cuidado, a sua cotação está baixíssima!
F para A – Por que está hesitando?
Voz da Senhora Boca – Preste atenção, o dia está raiando e a noite já está caindo!
Boucot – Desvalorizemos!
Voz da Senhora Boca – Impossível! Eles vão dizer mais uma vez que você não é realmente
social!
Boucot – O que fazer, o que fazer?
Voz da Senhora Boca – Nomeie um bocó e lhe declare a guerra!
F – Então, vamos formar um casal afinal?
Boucot – Doutor, tudo está se destruindo, não sabemos mais o que estamos produzindo!
Tudo anda atravessado, é preciso dar marcha à ré! O que fazer?
O Doutor aparece:
O Doutor – É preciso fazer um teste, um estudo de mercado. (Ele se aproxima de A e lhe dá
uma folha de jornal:) Você, você trabalhou bem, pegue isso... Observe, Senhor Boucot, as
reações desse homem!...
O empregado A, com o jornal na mão, deixa a mesa de fabricação. Boucot, sua mulher e o
Doutor o observam.
A – Obrigado pelo prêmio!... Não sei muito o que pensar dessa garota. (Ele lê o jornal:) O
que está anunciado?... Libra: “Você vai estabelecer um lar.”... Péssimo, é do mês passado!...
E se eu o tivesse lido quinze dias atrás?... Suponha que um dia um assassino na véspera de
um crime se depare com o seu horóscopo caduco...? De que lhe adianta?... Vamos, vamos,
ele só presta para as borboletas! (Ele joga o jornal:) Pra trás, velha tocha! Folhas ocas, asas
enganosas, voltem para os subsolos e recubram as vidraças! Chega, já estamos cheios de
vocês... Não é como meu pai: ele, quando achava um: “Depressa uma olhada na foto dos
ganhadores da semana!”... Até o dia em que ele cai, até o dia da sua queda. Traidoras, suas
patas o deixaram na mão: adeus focinho, jorrem grilos fiéis! Em migalhas foi preciso pegá-
lo. Pensem: a torre tinha pelo menos cem metros: ele caiu como chumbo. (Ele pega o jornal
e faz um chapéu de papel.) “Pois bem, murmurava eu juntando ele, agora é a minha vez de
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ser rei.” Devotamente eu me preparava para recolher os seus restos, mas uma voz gritou por
cima da barreira: “Ei, arrivista, você o mete sem tê-lo tido?” Era a minha mãe mais uma vez
escondida atrás da porta com o Senechal. Em quinze segundos ela me informou que eu
tinha um irmão mais velho de reserva, alimentado à minha revelia durante vinte anos nos
seus sótãos. Era necessário então que eu renunciasse, esperasse ainda talvez cem anos para
usar o chapéu legítimo... Eu tinha seis anos, eu me submeti; me consolaram com uma bola e
uma coroa de papel. Eles aproveitaram a minha extrema juventude e na própria noite dos
súbitos funerais do meu pai, eles executaram todos os meus partidários. Essa garota quis se
casar com meu título! (Cantado:) “Jovem ainda perdi minha coroa, o que me importa o seu
anel no dedo!”
Ele colocou um chapéu de papel na cabeça e dança. Boucot arranca o seu chapéu, bate
nele e ele morre. Grito de D, sua primeira mulher, que ficou sozinha com o carrinho:
D – Longe!
Boucot pega o chapéu do defunto e o passa pra B (Verdet):
Boucot – Me faça um estudo desse protótipo!
B – Pronto, aqui estão os mapas!
Boucot – Lance a produção!
F – Senhor Boucot, Gregório Luis acaba de morrer. Posso ficar no lugar dele?
Boucot – Claro, claro.
F se instala no lugar de seu ex-noivo e começa a dobrar os jornais fazendo deles chapéus.
Grito de D:
D – Gregório!
Os Boucot fazem uma rápida oração fúnebre para A:
Boucot – “Não importa o que acontecer, guardarei para sempre viva dentro de mim, a
lembrança desse cão duro na flor, vítima do mal-estar economíaco.”
Senhora Boca – “Ó o teu silêncio! Estou ferida, de não mais ouvir gritar, a tua cabeça de
alfinete. O túmulo é violento quando ali se entra com tudo. Derramo toneladas de flores
sobre esses quatro ferros de costas.”
Fim da história de A. Novo grito de D, sua primeira mulher, sempre perto do carrinho:
D – Partiu como fumaça!... Mais ninguém em vista. Será que era um sonho? (Ela volta para
o carrinho e o esvazia: não tem nada dentro.) Sua teimosinha boba, mais uma vez a
enganar-se? Merda, merda, merda, continuo com quatorze anos.
Último rumor da oração fúnebre:
Senhora Boca – “Peão de marfim, desça ao buraco negro sem fim!”
Monólogo:
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D – Toca, toca, cançãozinha! “Meu marido morreu, pobre menina você o perdeu!”... Esse
grito que ele dá em sua mortalha, eu o lançava nos meus cueiros: no dia de minha saída, me
expuseram às máscaras reunidas. Meu pai chorava: “Sou um padre”, ele disse. Com um
dedo levantado, ele designou a minha haste ausente. A multidão se aglomerava nas portas
do templo. Nevava. Me levaram pelos esgotos. Preta, eu achava estar ainda ensangüentada,
eu urrava: “O quê, o quê, deixar tão cedo o belo Issudum!” Depois foi a saída dos canais: eu
me lembro das estrias, das asas feridas do turbante. As migalhas do tique-taque, espaçadas,
depois todos os ziguezagues: a estrada dava uma danada de uma serpenteada nos recifes.
Caleches, penachos, pastagens. Depois a fumaça dos mosquetes, as margens do Aubrac. Em
breve, as flechas de Crecy. Eu tinha dois anos, eu era ignara: tiveram que me inscrever num
estabelecimento. Seis anos passados, entrei pra oitava. Fui eleita ali primeira da
recuperação; numa noite de junho, trepei nos louros e recebi sobre o palco o beijo breve de
um bigodudo grandalhão... A guerra que estourou nos surpreendeu em Châlons. Depois os
anos voaram, ah como a realidade é amarga: tive que agüentar o horrível espetáculo de meu
pai envelhecendo a olhos vistos. Seu fim foi particularmente horroroso: filha feliz em
segredo, me tiraram do buraco: eu tive que tocar com o dedo a tábua onde nada cresce.
Pensei morrer... Assim passaram julho, março, abril e todas as estações. Nós tínhamos
comido todas as provisões do inverno. Eu tinha doze anos: todos os meus primos me
tratavam de maçã verde. Eu, sempre empoleirada no alto das árvores, eu tinha pressa em
ativar a chegada dos climas. Desde então, treze tempestades passaram. A última data de
ontem. Tudo isso nos leva a hoje. Em que dia do mês estamos? Estamos pelo menos em
doze de março. Eu o digo, eu o provo: vejam a página no meu caderno da escola: a doze
está em branco para a data de hoje. Ontem onze. Vejam a cruz e as seis letras em iniciais:
M.P.L.S.A.N. Minhas Primeiras Lágrimas Sobre A Neve. Ontem! Voem, vermelhos
pássaros de março! Há oito dias, ao sair da escola, não sei muito bem por que, brinco
sozinha de estátua: num montão de neve, me deixo cair, fico um tempo, depois levanto,
abandonando na neve, cavada, a estátua delicada do meu corpo. Ontem já havia nesse
monte oito corpos de menina, oito estátuas, todas minhas! Decidi imprimir ali mais
profundamente a minha nona e última: me joguei de costas, me deixei cair em cruz, mais
uma vez, como uma dama que desmaia. Imóvel, no berço, na neve, na minha tumba, dez
minutos, fiquei no interior de minha própria estátua. No final eu não sentia mais o frio, eu
não sentia mais a mordida. Mas o sino tocou, eu me levantei, oh tinha passado pelo menos
uns bons quinze minutos! Eu me levanto, Senhoras Senhores, me viro e olho pro monte:
Senhoras Senhores, havia sangue na neve, na minha estátua! A minha nona era a minha
primeira manchada de vermelho! No dia dos meus treze anos! Então eu gritei por toda
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parte, rápido, orgulhosa, louca de alegria! “Está tudo pronto para a chegada do esposo!” Oh,
eu tenho que contar pra uma amiguinha!...
Ela corre até a mesa de manipulação, se junta a F que continua trabalhando ali, se senta e
começa, ela também, a fabricar chapéus de papel:
D – Sabe, acabo de ter as minhas primeiras lágrimas. Na neve. Espero minhas bodas para
dentro em breve... E você, continua tendo alguém em vista?
F – Não mais, por enquanto, ele faleceu. Meu Luis.
D – Me desculpa. Pra você, a viuvez deve ser um estado terrível.
F – É um terrível estado. Mas pra você deve ser formidável.
D – É.
Voz da Senhora Boca – Estou muito feliz: estamos produzindo muitos chapéus.
D – Eu desconheço o meu noivo. Você chora o seu morto.
F – Socorro estou revendo os detalhes da partida! Luis, Luis! A alma no bico. A mão
segurando a alça, a última palavra que ele jogou: “Cuidado cum pontudo, cuidado cum
pontudo!” A crina, a pele molhada, o pão branco urrando trancado! O horror do tremor
final, depois nada mais... O negro berço. As pastilhas do cadafalso, o círculo com colunas,
os cordões do arco, a superfície das águas, o fundo furado do barco! Luis nos seus
estrados... Nesse ano, o tempo estava lindo: pássaros ficaram até a chegada do inverno.
Luis, Luis, tão depressa aparecer, desaparecer!
Boucot – Silêncio e rápido, fabriquem!
D – Ele te largou, eu espero por ele... Irmã bússola, você chora aos prantos desparafusada,
eu me preparo para a felicidade máxima. Para ele, com ele, para sempre, somos duas
sombras puxando as cordas do batente vertical: a positiva e a negativa. Nós nos
encontramos as duas aqui, depois de o ter cruzado: você viúva, das tuas lembranças a única
a sustentar o castelo; eu, aberta, inclinada sobre o meu futuro majestoso, esperando o
pássaro raro que me leva longe da beira. As duas sozinhas, folhas, felizes, decapitadas, à
beira do mesmo canal vertente, uma no levante, a outra no poente!
Boucot – Rápido e silêncio!
F (cantado) – “Como um pássaro ele atravessou nossos céus gêmeos!”
D – Não chora. Pensa no seu fim feliz. Ele te largou, eu espero por ele. Lancemos,
abraçadas, lancemos o mesmo refrão!
“Nunca a menor hesitação-ão
vai o-ofuscar o destino!
Sigamos o mesmo caminho
andando e nos dando a mão!”
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B (Verdet) – Quem canta aqui o quê? Silêncio!


F – Era o meu futuro cunhado. Nervoso! Ele já tem um bocado de responsabilidades. Sabe
como foi que ele começou?...
O empregado B (Verdet) pega uma pilha de chapéus na mesa de fabricação e o leva até
Boucot:
B – Senhor Boucot, o céu nos agracia com seus dons!
Boucot – Rápido vender!
Boucot agita a sua matraca e joga um punhado de confetes: os empregados deixam o
trabalho. A Senhora Boca abre a loja. Venda de chapéus:
D – Bom dia minha senhora, é para os anéis de minhas bodas, eu queria uma cauda, um
cálice...
Senhora Boca – Lamento, não temos mais, por falta de prêmio, por falta de taxa... Mas nós
acabamos de receber lindos artigos de papel. (Ela mostra os chapéus.)
F – Senhora, eu queria um crepe para o meu luto. Algo de sinistro.
Senhora Boca – Por que não experimenta esse modelo calculado para a sua cabeça?
Os dois empregados – Não não, Senhora Boucot, não estamos precisando de chapéu, não
por enquanto.
Os empregados voltam pra casa. Grande crise de Boucot diante da pilha intacta:
Senhora Boca – Nada escoou!
Boucot – Nadinha, nadinha?... Estoque nojento, você vai se vender, sim, ou eu vou te
vender, estoquezinho d’invendidos! Ah Senhora, tudo anda mal, meus mercados vão se
obstruir, vou me encardir e vou explodir!
Senhora Boca – Doutor, por favor, venda imediatamente esses artigos! Os estoques estão se
empilhando e meu marido corre pro enfarto!
Boucot – Miocardi-fractibus! Doutor, me tire das patas desse roedor!
F (sozinha em casa) – Ó meu coração, que solidão! Cortar sua sopa sozinha, que tristeza!
Senhora Boca – Meu marido está sendo devorado, relaxe-o! Diga a meu marido de relaxar,
ele está sendo devorado!
D (sozinha em casa) – Ele virá em breve e compartilhará minha vida, com certeza...
Doutor – Calma, não é nada grave, é uma pequena crise de superprodução. Se os chapéus
não forem vendidos, com o tempo, o senhor vai morrer.
Boucot – Doutor, não quero.
F (sozinha) – Num treze de julho, foi num treze de julho que ele me mostrou sua pata! Me
lembro bem da sua maneira tão singular de bater nas gamelas! O tumulto, as cores da
flâmula, o assalto do badalo ardoroso nos meus sinos! Ó meu coração...
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Doutor – Prepare-se, vou examinar o seu ânus.


Boucot – O que é isso? (Ele pula nos braços da sua mulher.) Ah Doutor, me salve, vou cair,
estou muito angustiado, estão me ameaçando de uma fuga definitiva em migalhas de todos
os meus capitéis!
Senhora Boca – Vamos Boucot, recomponha-se! Você está torto, dá pra ver a sua mecha!
Se aprume, o obstáculo não vai se devorar sozinho!
D (sozinha) – Incessantemente eu o imagino, com o garfo levantado, inundado, sorridente...
eu lhe direi: “Isabelle... não, Luis! Luis, você quer mais?”
Doutor – Urine.
Boucot – Não posso mais.
Doutor – Volte a ter confiança em si mesmo.
Boucot – Não posso mais, estou velho demais, pequeno demais!
F (sozinha) – Até nos menores instantes da vida, ele tinha uma presença terrível!
Doutor – Pratica esporte?
Boucot – Não o bastante, não o bastante, não o bastante, não o bastante!
Doutor – O senhor devia tentar o karatê. (Demonstração.) É marcial. Quebra a vontade
adversa. É para a elite responsável. Nunca esqueça que seus adversários têm os dentes
compridos!
Boucot – Mas... Os meus não são curtos! Não é minha Senhora? (Ele gesticula.)
F (sozinha) – Eu, nua, pobre viúva, negra. Abaixo os pangarés!
Doutor – Veja só, já está muito melhor, o senhor é jovem e ambicioso, impaciente para
devorar a vida com seus belos dentes!
D (sozinha) – Ah que o tempo corra, que ele venha!
Boucot – Exato. Graças ao senhor, dei a volta por cima, estou revigorado, vou quebrá-los!
Onde estão eles que eu os arrebente?... Vamos escoar os chapéus! Vou lançar uma
campanha nacional!
F (sozinho) – Provavelmente... a gente nunca mais vai se ver...
Boucot se prepara para o seu discurso: a Senhora Boca o maquia e coloca um grande
chapéu de papel na sua cabeça. As três pancadas de Molière: nas casas, todos os
empregados se voltam para Boucot.
B – Silêncio, vocês aí, se vocês ficarem falando o tempo todo não vai dar para ouvir!
Discurso de Boucot. Em todos os tons. Primeiro muito calmo
Boucot – “Senhoras Senhores não vou esconder que estamos atualmente numa crise que não
é sem remédio será necessário insistir pois vocês podem muito bem me tirar dela sem muito
estrago para nossa economia comprando mais chapéus pros nossos lucros... Meu avô era
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proletário, me lembro ainda do cheiro do seu traje azul quando ele o mergulhava na sopa;
nesses terríveis invernos de outrora! Os tempos mudaram, vocês sabiam que esse ano o
chapéu está muito na moda? Senhora Boca, por favor! (A Senhora Boca entra, deixa o seu
vestido cair e foge.) Se vocês não comprarem, seremos a última das economias. (Volta da
Senhora Boca:) Oh, como a senhora está abatida! Ela não está nada bem. (Ele lhe dá um
chapéu de papel: ela toma imediatamente uma pose viril.) Veja o indivíduo furar, agir,
decidir! Um vasto panorama social se abre pra ele! Vocês, cabeças descobertas, cabeças de
sapos, o que estão esperando?... Ovelhas raspadas, você vai ficar com esse seu cú nu?...
Tenho o dever de anunciar a vocês que de agora em diante a nossa empresa está condenada
a ganhar dinheiro ou desaparecer. E vocês junto!... Em toda a história os animais circulam
se passando a mão sem nada na cabeça, só o homem, Senhoras, ornamenta o seu topo!...
Essa bandagem é ideal, arremata o seu corpo, pense naqueles que não a podem ter!...
Coloque-se aqui, isso aqui, como ele aqui: nem bem foi lubrificado, anjo sob a capa já tinha
virado, empurrou três portas ou duas e saiu todo tinindo, com o nariz dentro reluzindo mais
alto que três pés graças à testa no fundo da sua casa de acolchoados!... Andem seus pirados,
conto com vocês, enquadrem seus buracos! Bem depressa. Obrigado. Todos ao mesmo
tempo. Escoem essas tampas, escoem essas tampas!”
Fim do discurso. Ele se vira para a sua mulher, na coxia:
Boucot – Ah, já sei, cala a boca, fui mal, não direto o bastante, não cordial o bastante!...
Senhora Boca – Não, não. Saiu muito bom. Você levou muito bem. Só no final, talvez...
Boucot sobe logo de novo no palco, bate o pé no chão e urra, como conclusão:
Boucot – “Contemporâneos do futuro!”
Breve grito do empregado C, invisível:
C – Fogo pastorinha!
Os empregados comentam o discurso de Boucot. Em casa, A e D em volta do carrinho de
neném, como no início do quadro:
D – Quer saber de uma coisa?... Isso se aplica direitinho nuns caras como vocês que
esperam sempre até o último dia pra cobrir a careca. Agarra essa ocasião: compra logo um
pra dar um trato na pose!
A – Pôs em quê? Pôs em rabo da vida do rato. Pôs em rabo da popa. Que rato? Pôs em rabo
do bicho, pôs em rabo do pescoço. TEU pescoço. Secção!... Se você acha que dá pra ver por
debaixo das cartas!
D – O que você está rosnando!
A – Nada, nada estou bebendo.
D – Toma aqui uma boa sopa de papel.
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A – A que preço? Sopa: chapéu. Por que que ele não nos engarrafa logo diretamente, pra
facilitar?... A gente está ali, tranqüilo, fumando debaixo da escada, enquanto isso, o tempo
vai indo, crucial, e passa por debaixo... Realmente, coisas passam por debaixo... Tramóia.
D – Silêncio, estão te observando.
Ela sai com a sopeira. A fica só, por um instante, com o prato vazio... Uma outra mulher
(F) chega e lhe traz a mesma sopeira:
F – Toma, bebe. Está sonhando com o quê, rei da casa?
A – Com nada. Com pouco. Com o fim. Com o abrigo. Com nossos ossos. Com o lobo e o
carneiro. Estou pensando nas chances mínimas do carneiro. Melhor procurar um centavo
num bilhão por umas penas.
Ele desfalece em cima do prato.
F – Ei Brigneau, não vai morrer? Não vai morrer, Brigneau?
Numa outra casa: monólogo de um solteiro.
C – Fogo seus pastores! O outro aí com seu chapelão, ele pode ficar falando que nada me
escapa! As causas são claras, essa noite deu pra ver, eles se perfilaram: três luas no céu
negro, por trupe levavam os bicos pro caldo. Sem que ninguém desconfiasse de nada,
exceto os da seita. Escondido com meus dois últimos pombos, eu podia até entoar a trompa,
os presságios estavam se realizando, os urubus escrotos piavam ao passar, carimbavam seus
territórios; vacas de madeira eram por toda parte instaladas. Empoleirado no alto de um pé
de ameixa, eu avistei minha irmã, gritei pra que ela fugisse e escapasse! Sem que ela me
ouvisse. Por causa do barulho das águas já negras. Eu gritei pra que ela fugisse! Torta de
tanto rir e apontando pra mim, eis que ela grita: “Jesus-Maria, um fantasiado!” Impossível
convencer ela: tinham me obrigado a alugar um figurino de barão de ópera. Depois foi tudo
muito breve. Fui encontrado agarrado aos lençóis, os três quartos do peitoral destruído...
Chega o dia... Há vinte anos, minha irmã está na cova. Melhor assim. Minha vez de falar
agora, de agora em diante vão ter que me escutar. (Narração ao público:) Meu nome é
Krapon. Compreendam Senhoras Senhores a seqüência estranha de meus últimos
acontecimentos: minha queda, vocês bem podem adivinhar, não tinha me desesperado por
completo; mas ela tinha definitivamente aniquilado em mim qualquer esperança de partilhar
meu pão com Rosa, cujo comportamento em relação a mim tinha sido odioso, vocês
puderam constatar... Sem querer justamente procurar em outro lugar, eu comecei a
freqüentar as festas de feira. Um dia, pouco tempo depois do final do meu resguardo,
conheci essa mulher, cujo nome não importa, mas que eu sempre secretamente apelidei de
Bernadette von Parabum. Num carrossel, totalmente por acaso. Exatamente, num “Trem
Fantasma”... Esse se chamava “O Reino de Netuno”. Nós tínhamos nos sentado, por acaso,
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no mesmo carrinho e tínhamos percorrido juntos, sozinhos sobre os trilhos, o “Reino de


Netuno”. Na saída do percurso, ela puxou espontaneamente a conversa. Eu tenho que fazer
a ressalva que nessa época o país tinha uma crise econômica terrível, é o que explica sem
dúvida o fato que desde nosso primeiro encontro Bernadette e eu queimássemos
deliberadamente as etapas e tivéssemos pressa, cada um no seu forte interior, de atingir o
objetivo comum. O tempo urgia, acontecimentos podiam a todo instante se suceder...
Bernadette teve uma maneira muito dela de me abordar... Não se esqueçam que mal
acabamos de sair do carrinho...
Ele começa a fazer a cena com D:
D – Com seres como você, seria vão esperar qualquer coisa. Em que ficou pensando durante
o percurso?
C – Vou lhe explicar... Queira se sentar... (Eles se sentam.) Tenho muito temor de gravidez.
Você sabe, Boucot me deu uma tremenda de uma porrada, tenho medo de não chegar a
termo.
D – Que importa?... Vamos entrar no jogo! Eu sempre fui fascinada pelos convalescentes...
Ele vale a pena, e você merece que te tirem o chapéu...
C – Não pronuncie essa palavra!
D – Pena!
C – Não, a outra!
D – Chapéu?
C – Hããããããããh!
Tarde demais: Boucot reaparece no seu poleiro, cantando e dançando:
Boucot – Caspitalichalupiasso, chaluminatissalipiô, caspitalimo, chapiasse, capitalissão! Me
diga, Brusquet, vamos colocando esses chapéus?... Doutor Gerânium, como está vendo o
fim da crise?
Voz do Doutor – Bem próximo. Todo mudo tem que entrar numa, todo mundo tem que
entrar numa!
Boucot – Caspitalichalupiasso, chalumina...
Boucot tem a palavra bruscamente cortada por C que tenta desesperadamente continuar a
sua história até o fim:
C – Bernadette!
D – Eu me chamo Rosa, não dê uma de inocente!
C – Mas então Bernadette, se você é Rosa, lembre-se dos nossos dias de felicidade! Pela
última vez, eu te suplico, talvez ainda seja tempo, lembre-se!... Esses barulhos, essas casas,
esses postes; essas noites, essas veredas, essas tochas! O silêncio do parlatório, o refeitório
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deserto. A queda da faia, os curiosos encarniçados, os traços na clareira, a tomada do Rude,


o urso enluvado do príncipe içando o seu grito no estandarte do focinho, a maneira do fiel
Mousquet, a quadra real galopando nossas roqueiras, o sobressalto das crinas corajosas, o
chapéu, o último lance vindo de cima, o quadril em lágrimas que ele abraçou batendo nas
costas! As trompas mugidas, o fim dos combates, a fuga de bicicleta, nossa chegada
sangrenta na beira do cenotáfio! A morte de Criquet. Nossas lembranças comuns,
Bernadette e todas as etapas do Trem Frantasma!
D – Recomeça, não ouvi nada. Tem muita zoeira aqui.
Boucot reaparece no pequeno palco com sua mulher, os dois em figurino de comédia,
amarelo e verde.
Senhora Boca – Senhor Boucot, o ouvido se faz de mouco, puxe as orelhas! Vamos, vamos,
pensem na novecentésima octogésima sexta fórmula!
Boucot - O quê, quê, quê, quê?
Senhora Boca – Voe nas suas penas, acabemos logo com isso!
Boucot – Quer dizer, quer dizer?
Senhora Boca – Quer dizer, pela honra, Senhor Bocó, o senhor não tem a menor astúcia...
Basta você soprar nas penas deles!
C (continuando a sua conversa com D) – Não podemos nos separar assim, não podemos
nos separar assim!
Boucot – Oh, a idéia é bela, horrível, muito boa! Atenção Senhoras, sob os conselhos da
Senhora Boca vou colocar produto dentro das sopas, vocês vão assistir à queda!
Senhora Boca – Aonde você quer chegar, Bocó?
Boucot – Nas sopas, pó para fazer os cabelos caírem; quando eles se virem com as cabeças
nuas, eles virão comprar os meus chapéus!
D (para C) – Sou casada!
Senhora Boca – Stop. Preveja o que virá depois: o que fazer com todos esses fios?
Voz do Doutor – Fios? Acumular, mortos ou vivos!
Boucot – Vivos? Chispa, tê-los vendidos!
D (para C) – Eis o meu marido... (A aparece e se junta a eles.) Não vejo a hora de Deus me
livrar dele!
Senhora Boca – Ô a idéia é suntuosa, magnífica. (Ela chora.)
Os Boucot deixam o palquinho e tiram os seus figurinos de comédia. Breve passagem de F
(a viúva), lá no fundo do teatro:
F – Gregório, Gregório, onde está você?
Boucot (para sua mulher, ainda às lágrimas) – Melancólica?
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Senhora Boca – Um pêlo. Penso, remoída, à vida curta, às tosas de outono ceifando os tufos
com facilidade.
Boucot – Eles não tinham a energia, eles não tinham o peso. Na luta pela vida,
naturalmente, algumas penas são perdidas.
D (apresentando C a seu marido A) – Nós nos encontramos, totalmente por acaso, nesse
Trem Fantasma.
C – Prazer.
Senhora Boca – O que você vai fazer, Bocó, com um cesto cheio de madeixas? Eles não vão
querer mais agora que eles têm chapéus. De que serve até uma tonelada de penas, quando
não se tem mais a trupe a quem vender?
Boucot – Senhora, não pense sempre no dia depois de amanhã, mas olhe antes para esse
lindo amanhecer...
A, C e D apertam as mãos uns dos outros. A Senhora Boca se aproxima:
Senhora Boca – Querem tomar alguma coisa?
A – É a minha rodada. É a minha alvorada.
A Senhora Boca lhes serve a bebida envenenada preparada por seu marido. Eles bebem...
perdem imediatamente as suas perucas, se levantam e saem de costas, heróicos.
Testamentos:
C – A seco...! Talvez eu vá para o hospital, venham me visitar. Se eu ficar por lá, venham
me buscar, caso necessário. Sinto um pouco de tristeza pensando na minha cabeça que
mereceria algo muito melhor do que quatro ou três curtos goles... Sem dúvida eles vão
conseguir em breve prolongar as doses, duplicar as vidas e dar mais grãos... Eu não verei
isso. É duro descer pro buraco, justo quando a coisa melhora.
D (ao seu marido, admirando a partida heróica de C) – Henri deu provas de uma coragem
esplêndida! Ele não pia. Ele deixa a trupe sem piar.
A – O cão que se senta só no seu rabo não tem nenhum mérito por deixar seu lugar! (Ele se
levanta:) Eu estou deixando vários hectares, choro... não jogue a pedra em mim se tenho os
olhos cheios dágua!
D – Essa atitude não te engrandece René, muito pelo contrário! (Ela se levanta e vai pra
perto de C.) Adeus, não tenho remorsos!
A – Isso! Segue o cachorro que você merece! Eu não serei nunca o teu!
D (já longe) – Então você vai ser o seu próprio! (Ela canta:) “Nunca a menor hesitação-ão,
vai o-ofuscar o destino! Sigamos o mesmo caminho, andando e nos dando a mão!”
A partir de “vai ofuscar o destino”, A e C se juntam a ela. Os três chegam em coro diante
de Boucot:
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Boucot – Senhores?
Ele vende chapéus para eles. Partida de outro trio (E, F e B):
B – Adeus bezerros, vacas, porcos, ninhadas! Adeus, caras velhas rosas de outono!
E – Quem é esse desconhecido que vem soluçar nos nossos ombros?
B – Adeus, adeus!
F – Nós não temos tempo, nós também estamos de partida!
B – Simone, você não está me reconhecendo? Adeus, não tenho mais pele! (Ele sai de
costas, rodopiando, com as duas mulheres. Para Boucot:) O que o senhor teria para mim?
Boucot – Como?
B – Pêlo. Estou me sentindo descoberto. Ou então uma tampa de papel. Perdi todos os
cabelos da cabeça! Foi o vento que deve ter passado por cima.
Boucot – Para você, esse deve ser um momento muito duro.
Boucot vende para eles os últimos chapéus.
F e E – Ah, isso não é nada cor-de-rosa!
Senhora Boca – A vida não é rosa pra ninguém, Senhora.
B – É nossa sina. Enfim, quando já se tem a sorte de poder a cada manhã colocar as duas
patas pra fora da cama, já não dá pra se queixar! Contanto que se tenha ainda a força de
pular pra fora da cama com as suas patas.
Boucot – Ei, não esqueça o seu prego!
Ele estende um chapéu para o empregado B, que o estava esquecendo.
B – Que pena, as abas não são exatamente largas o suficiente. E o cano é muito estreito. Eu
devia ter uma cabeça menor! A gente acaba se habituando, é bem verdade...
Boucot – Crise muito bem reabsorvida. Estamos guarnecidos. E agora?
Senhora Boca (extra-lúcida) – Já estou vendo desabrochar nos rostos a comovente
expressão da falta a ganhar: as pessoas virão com a barriga vazia comer na nossa mão.
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IX
Ruptura: nova disposição dos elementos cênicos. A um sinal de Boucot, os empregados
desmontam o cenário, limpam o palco. Os Boucot desaparecem. Forte ventania: o espaço
todo é percorrido pelo vento, grande deslocamento de ar. Fim de baile.

C – A primavera chegou. Que merda, o vento já soprou todas as folhas!


A – Meu velho coração de mocinha já está enferrujando: ouço-o dizer cripe-crope...
Lenços! Lenços!
E – Onde você colocou os seus cabelos?
B – Devo tê-los esquecido em algum lugar... Sonhei que eu via numa bola de vidro que era
o Boucot que tomava eles de mim. Isso não me espanta. Pois o tempo nos afasta muito
rapidamente do macaco. De passagem, ele me puxa pela manga, eu sinto, a hora de pagar o
resgate está chegando. Então eu vou morrer... Que pena!... Justo um ou dois dias antes de
ter visto em espetáculo eu despertando num sonho de mundo crucialmente melhor...
Perfeitamente! Lá longe...
C – A nós, o que interessava, hé-hé-hé!... era saber por onde e como você entrou ali!
B – Lá longe, em todo caso, a população era muito menos agressiva. Não tinha mais
ninguém da sua espécie! Entre habitantes, tudo ia bem, a gente já tinha praticamente
acabado de se esfolar.
C – Se a gente não se lutava mais, era porque não tinha mais nada pra dividir. Não deviam
sobrar mais muitos produtos!
B – Sim, tinha sim, mas com uma diferença de uso tal que tudo pertencia a vocês e que você
tinha praticamente tudo o que ele precisava! (O outro dá uma risadinha.) Cale-se, pobre
umbigo!... Era como uma espécie de pomar ou antes de jardim de estar, passageiramente
povoado, tudo ali florescia, sem problema, num ambiente cordial de camaradagem
honesta... Uma espécie de vasto espaço livre, quadrilátero, quase novo, extremamente
diferente de nossas calçadas atuais... (Lágrimas.)
D – Henri, não desespere! Confie na evolução lenta! (Para os outros:) Ajudem ele, não
estão vendo que ele está desfalecendo!
C – Pior pra ele! Eu não sei. O mundo progride tão depressa. É preciso descansar muito
para seguir. Para seguir, é preciso um esforço terrível.
D – Explica, Artaban!
C – Me permitam lembrar a vocês de Jó no seu estrume: os olhos fixados na planície, ele
ignorava ele mesmo que ele estava fumando a sua última...
69

F – Mil e uma noites! já estou cheia: me acompanhe, moro aqui do lado, na rua das
Lentilhas, número dezesseis.
A – Ele! Ela! Revólver!
D – O sol está descendo... Uma bebida! Uma bebida!
A – Taverneiro das trevas, nos chafurde uma tontura!
D – Duas taças! Duas garrafas de corrosivo!
A (cantado) – “Suco bom da trepadeira, belo dom de Baco!”
E – Lambam com menos barulho!
A – Tampo danado!... Rápido, oba, salta rolha!... Lá fora a ventania está forte: o dia está
ficando mais curto a olhos vistos.
C - ...O inverno era terrível. Tropas saíam dos bosques. Cavavam sob a muralha... Lado a
lado, nossos Anciãos resistiram o dia inteiro... mas deu um vento, apagou-lhes a vela...
Então eles se aconchegaram. Até a manhã onde foram encontrados gelados... Dá pra ver
ainda as marcas na descida da ponte... Fim de carnaval. (Riso. Lento:) Penardeiro,
Penardeira se arrependeram logo de ter deixado o seu buraco. (No ouvido:) No final, a alma
se estende, para a sua toca. (Lágrimas.) No Contentin, departamento de Íris! (Ele chora no
ombro de seu vizinho. Depois se recompõe:) O quê, o quê? Não vai largar! A gente se
defende, segue as ladeiras aqui embaixo... Socorro! Todo mundo! Ouçam! Eu aqui presente,
vinte anos a fio, segurei firme na minha dívida; e as garras ultra-apertadas no meu pouco.
Depois, tudo se desamarrou...
O vizinho o empurra, quer pegar o seu chapéu:
B – Cai fora! Cai fora! Cuidado com o eclipse!
C – Está empurrando? Ei, possuído?
B – Cuidado com a tua bunda, pálido garoto daqui de baixo!
C – Presta atenção! Pra quem me liga, eu mostro o nulo... e molho a bilha nele!... Anda,
anda, vê se circula, simples conselho!...
A (sozinho no bar) – Silêncio, seus tortos! Chega de estrago, parem com os bris!... Ó! os
amores... levanta esse copo de espuma, estendido, evita qualquer sacudida, evita que o dia
venha e te represe... levanto a todos esse último antes do eclipse!... Um trago, não vale
nunca a pena se privar, aqui embaixo. Liquidação!...
C – Vocês estavam falando de ir ao cú um pouco antes... sim mas aonde? Sim, mas
aonde?...
Silêncio profundo. De repente o empregado B arranca o seu chapéu:
B – Parem! Parem tudo! Alto lá a todos! O quê, o quê, sempre morrer? Chegou de
gravidade, o inimigo exagerou: abaixo os Boucot!
70

D – Exatamente!
Revolta: todos se erguem, lançam seus chapéus.
C – Buraco Sagradú, vai ter que dar um basta! No baile dos bocos, somos sempre
derradeiros. Vamos pôr um termo aos seus procedimentos. Abaixo os Boucot!
B – Companheiros, vamos prestar o juramento de colocar um fim nisso. Que aqueles que
querem se juntar dêem um passo à frente e levantem a mão. (Batidas na porta são ouvidas.)
Silêncio! Prestemos o juramento de lutar lado a lado. (Novas batidas na porta.)
Voz de Boucot (atrás da porta) – Irmãos, irmãos, abram!
A – Quem está aí?
Abrem a porta: os Boucot entram, disfarçados (roupas parecidas com as dos empregados,
só que com mais penas). Eles puxam uma carroça.
Boucot – Somos uns pobres atores expulsos do Egito.
Senhora Boca – É aqui o baile?...
E – São os Boucot!... Desapareçam, vocês foram desmascarados!
Boucot – Não, não, nós não somos os Boucot.
F – Vocês são os Boucot, vocês estão nos pregando uma peça.
Senhora Boca – Não, não. Os Boucot, nós os cruzamos no caminho, não foi querido? A
senhora estava com um chapéu bem grande, o homem uma bolsa.
D - ... De lucros, provavelmente... Não há dúvida, eram eles. Mas vocês, o que estão
fazendo aqui?
Boucot – Passamos de baile em baile... Propomos umas atrações.
B – Não é o momento para isso, o baile aqui já acabou! Irmãos, eles querem nos distrair do
projeto sombrio. Desconfiem. Prestemos o juramento... Vocês, saiam daqui. Prestemos o
juramento.
Boucot – Somos uns ambulantes. Apresentamos nossas atrações, somos ou não somos
livres?
B – Eles querem nos distrair do projeto sombrio... Fora!
A – Seja liberal Bobby, deixa esse canto pra eles... Mas vocês, Senhores viajantes, não
tentem se infiltrar!
Boucot – Não, não. Juramos sobre nossas sacolas.
Os Boucot se instalam num canto, no outro os empregados preparam a revolta:
C – Antes de fazer mil balanços, tratemos de ver quantos somos.
B – Seis. Vai dar pra mudar. Os Boucot, até a última contagem, eram só dois.
D – E o Doutor?
E – Ele está aqui.
71

O Doutor surge no meio dos empregados:


O Doutor – Ah Senhoras, está claro, fui enganado, me encaixo do lado de vocês!
A – Chega de deslizes. Temos que nos organizar. Em milhares de lugares, somos milhões a
não engolir... os causadores e os responsáveis... por esse reino sombrio... do casal Bocó...
C - ... Casal Bocó do qual nós vamos pronunciar imediatamente o fim e a queda!
O Doutor – Ao trabalho: vamos repetir o plano das construções e das destruições!
Enquanto os empregados, ajudados pelo Doutor, preparam o levante, de um lado; os
Boucot-Ambulantes descarregam a carroça e constroem uma espécie de Loteria de feira,
do outro lado. A primeira atração: os Boucot berram os seus anúncios diante da praça
vazia:
Senhora Boca – Olha a rifa, rifa!
Os Boucot (em dupla) – Senhoras Senhores, formem um círculo, vejam a roda e os seus
raios! Aqui todo número que se tira oferece uma fatia, forcem a sorte, todo eixo tem seu
êxito. Semana das asas cortadas, eleve o seu tronco! Eleve o seu tronco, é a semana das asas
cortadas. Aproveite, faça a sua escolha, vamos largar a primeira mosca! Todos vocês,
mesmo dotados de dois pés mínimos, mesmo com os olhos no lenço sempre aninhados, é
sobre vocês, talvez, que a roda, num golpe certeiro, vai girar os seus raios! Ei, você que
passa, fixa essa hélice içada ao alto, girando livre, que vai, sem dúvida, essa noite, tirar o
teu número e pregá-lo bem acima da trupe!
B – Esses viajantes são barulhentos demais. Façam eles se calarem!
F (se aproximando da loteria) – Vocês querem fazer menos barulho por favor, vocês estão
nos impedindo de levar adiante nosso projeto sombrio.
Senhora Boca – Peguem seus bônus, seis francos a dúzia, três francos cada! Todo mundo
tem as suas chances no zodíaco. Ei, você, compra o que vai te fazer num pulo deixar a
perspectiva comum!
F (baixinho) – Qual é o prêmio?
Senhora Boca – O prêmio é essa boneca imitada da vida. Veja o estilo! Na semana passada,
teve alguns ganhadores. Pena que não estejam mais aqui. Eles mostrariam a você todas as
suas flores. Se ainda sobrar.
F – E se por acaso eu só saísse em segundo?
Boucot – Cada segundo leva um desses macacos com pele sintética.
F – Pêlo mais magro!... Vamos sair desse lugar...
Senhora Boca – Só se ele agarrar de passagem esse porta-charuto de alumínio, essa esfinge
folheada, essa lanterna frontal toda poderosa!... Admire o trabalho e o tempo dedicado pelo
artista para reduzir no vidro esse modelo vivo de escarpim! (Enquanto F compra um bilhete
72

escondido e volta a se juntar ao grupo dos empregados, D se aproxima da Loteria.)


Cuidado, olhem para o relógio: todos os prêmios, essa noite, vão desaparecer! (D
desfalece.) Coragem, coragem, nem tudo está perdido! (D volta a se levantar, pega um
bilhete e volta pra perto do grupo... E e B dão um passo em direção à Loteria.) Depressa,
depressa! Dois minutos ainda e nós dobramos! Daqui a dois minutos nós redobramos, todos
os braços da rosa! Quatro bilhetes ainda! (E e B pegam dois e voltam pra perto do grupo.)
Dois ainda, só dois, dois somente!... Ei, você aí, entre nesse moinho onde o vento te
convida! Ei, você, um dos dois... sim você! entre e vá, talvez, mudar aqui teu interior,
deixar a fila e te empoleirar, numa volta do trapézio, no topo do número, que eu lanço,
correr o seu círculo, longe dos caixões!!!
Ela vai acionar a roda... A e C pegam os dois últimos bilhetes e voltam pra perto do grupo.
Os Boucot – Atenção, abram as esperanças, cuidado com a fuga dos números, vai girar,
cuidado com a roda, a hora gira, estendam com toda força os seus buracos, toda cor está
virando branco!
Eles acionam a roda da Loteria...
Boucot – Saiu o Um.
C – Pé de marmita! Por Plutão! Nada me agracia. Nem sombra d’Um.
Boucot – Lamentamos. Azar. Mil lamentos. Era o número do banco. Tem que refazer.
A – Por Saturno, eu teria jurado! A dois dedos do herói. Eu tinha o Dois e foi o Um que
correu... É sim, sua asa me roçou sim, faltou um dedinho para a sorte me tocar: vejam o
rastro do seu sulco!... Fadas cicatrizes! A desgraça está convosco, viajantes! Me devolvam a
minha parte!
Ele se aproxima de Boucot, ameaçador.
Boucot – Ah-ah, pequeno engano, pequeno engano... a gente leu mal, tomou o Um pelo
Dois... Você, o Dois, você é o primeiro da rifa: coloque esse Um.
Ele lança pra ele uma camisa com o n° 1, o empregado a veste imediatamente:
A – Irmãos, lamento por vocês... até nova ordem. Cabe a mim vestir o título! (Murmúrio do
grupo.) Onde está o meu prêmio?
Boucot – É um bônus de entrada. Você ganhador, suba. Queira subir. Você é rei. Você vai
ver Vênus.
Os empregados – Ele ganhou, ele vai ver Vênus.
A trepa até o alto da barraca onde o espera, empoleirada lá em cima, a Senhora Boca.
Senhora Boca – Venha a mim, belo eleito, a chance o tocou! Orgulhoso Ursus, a força viva
triunfa em você, corra o trajeto e trepe os andares!
Ele consegue. Ela o enforca. Ele grita:
73

A – Pare! Que coisa... é o fim de um mundo!


Senhora Boca – Vamos continuar. Colocamos à venda o prêmio do falecido.
Os empregados se precipitam sobre a Rifa para jogar de novo... Mas um deles os adverte:
B – Alto lál bocas! E as lutas? Vigilância! O tempo está se perdendo. Basta Senhores os
Viajantes, voltem para seus covis, vocês estão nos impedindo de alimentar nosso projeto.
D – Que eles se calem agora e que cessem as suas atividades extremamente estranhas!
Judas, Lambert, vigiem eles!
Dois guardas (B e C) vão até os Boucot e imobilizam as suas mãos. O grupo dos
empregados volta a se constituir:
E – Irmãos, ao trabalho! Unidade! Mordidas duplas!
Doutor – Depressa, sem demora, vamos examinar os possíveis!
Senhora Boca (lendo a mão do seu guarda) – Céus, há na sua palma um bocado de riscos.
C – Ah é mesmo?
Senhora Boca - Você vai cair numa noite amarga, mas não desesperance da alvorada, uma
outra o espera: sol esplêndido!... Céus, vejo fevereiro: só terá um pálido raio. Não renuncie.
Por enquanto, o hospital o espera.
C – Sorte inconstante, para onde me leva?
B – E eu Senhora, sairei da sombra?
Senhora Boca – Nessas espirais... vejo no horizonte o seu cônjuge vestido de preto.
O empregado olha dentro da mão:
B – Onde? Onde?
A Senhora Boca, livre, vai embora:
Senhora Boca – À esquerda. Debaixo da dobra. Abre o olho.
Os Boucot penetram dentro do grupo de empregados. A Senhora Boca desaparece. Grande
confusão:
A – Expulsem eles, estão se infiltrando! Era previsível, a gente bem que falou, a gente
avisou, escreveu!
F – Onde?
Boucot (sempre disfarçado) – Certamente não no “Fraterno”. Talvez na página de trás de
seu casaco!... Em todo caso, nós não!
A – E os setecentos e quarenta e sete sujeitos recolhidos na estação Tolbiac, não foram
vocês talvez?
B – Irmãos, eu lhes peço, me escutem: por trupes inteiras as ocasiões nos escorrem entre os
dedos. Chega de voltas, perdemos horas em massa e os Boucot apertam o passo! Vamos
saltar o obstáculo! Exterminar os erros!
74

Doutor – Enfim, enfim. Estamos de acordo sobre alguns pontos. Sobre outros muito menos,
cada opinião é razoável, que me sirvam uma soda! Vamos abrir um centro de estudo, mal
ou bem somos todos doentes mentais, é preciso ir buscar a enfermeira, acabo de fazer uma
alusão, vamos praticar a escolha.
Boucot – No voto!
Algumas mãos se levantam.
Doutor – Dezoito, vinte e um, vinte e cinco: abaixo os Boucot!
C – Lutemos, lutemos!
Boucot – Peço a palavra.
Doutor – Vinte e seis, vinte e sete: aceito!
Boucot – Obrigado... Irmãos, escutem o testemunho de um desfavorecido...
E – Quem é esse indivíduo?
Boucot – Gustavo Tavernier... (Arenga:) Bem colocado pra nada saber por ouvir dizer,
triturado pelos Boucot, atolado em taxas e pressionado, passei trinta anos, no coração dos
girais, aprendendo diretamente e sem desvios que não somente quanto mais você dá a ele e
mais ele tira de você, mas também que quanto mais você pede a ele e menos ele te entrega!
Ele se ajeita todo de lado, só me deixa o meu pouco!... Basta, basta, miséria sempiterna!
Paguei demais, o copo está cheio, é preciso agir!... Espera um pouco que ele decida nos
descontar de novo a taxa das Seguradoras, não é a minha pena que eu vou pegar para
balbuciar uma reclamação lida a jato e jogada no lixo pelos empregadinhos, é o meu
trabuco, direto: desço na rua e apareço no Centro de Hospedagem. Então ali, barka chuia,
espero a noite cair. Aí eu tiro o trabuco, arrombo a porta e apago rapidinho uns doze ou
quinze crioulos sem que ninguém nem note. Entendeu? Pela sede. Segundo ponto. Outro
exemplo: há exatamente um ano, voltando da sepultura de meus Pais e Mães, eu me vi
sozinho no interior do nosso lar. Pela única janela da casa, lancei um olhar maquinal para
fora: vista sinistra sobre um terreno inutilizável onde tínhamos o costume, entre outros
destroços, de sepultar num montículo os velhos trajes dos nossos defuntos. Ora, nessa noite
aí, avistei uma mancha branca, anormal, no alto do túmulo. Saí e me aproximei dele: era
uma touca que pertenceu a minha mãe e que eu tinha eu mesmo enterrado ali dois dias
antes. Eu a afundei com o pé e passei adiante... No dia seguinte, na mesma hora, a touca
voltou ainda à superfície. Voltei para a afundar... E seguiu assim, durante três dias... Eu fui
ver um padre e expliquei a ele que ela não queria descer, que ela subia sempre de volta.
Soube por ele então que minha mãe tinha falecido sem receber a comunhão e me entregou
um pedaço de pão bento. Já em casa, seguindo os conselhos do padre, esperei a noite,
peguei a touca, enrolei o pão dentro dela e a enterrei com ele, no monte. Desde então ela lá
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ficou, não aparecendo nunca mais. Ora, coisa estranha, eu lembrei então que foi nesse
mesmo monte que, criança, tentando voar, como muitos outros nessa idade, eu caí virando e
fiz esse corte profundo aqui: olhem a marca!... Então ó confusão, eu rolei no chão, os pés
pra frente, presa de um imenso cansaço, ó escuridão total!...
F – Que catástrofe...
C – Então, batendo nos vidros, os Antigos viram as trupes, saindo dos bosques, e todas as
fendas do zodíaco se abriram!... Fim do lanche de pássaros. Nossa-Senhora dos Climas dê-
nos dias melhores!...
D – Sem muita esperança de nos encontrarmos vivos, pois os tempos correm, os projetos
afundam... Ele mergulhou nosso projeto!
A – Provisoriamente!... Faço esse brinde ao desgarrado, aos dias sem aurora! Noite
provisória, passe sobre nós! Secante vã, sepulte nossas cabeças de pouco!...
Boucot – Irmãos, está tarde, uma volta triunfal dos Boucot é improvável, vamos descansar
um pouco...
Ele distribui vestidos pretos. Os empregados os vestem e adormecem... Noite.
Voz da Senhora Boca (ao longe) – “Venham, venham, almas cativas!”
Segunda atração: do fundo do teatro chega, toda branca, pendurada em pernas de pau, a
Senhora Boca, disfarçada de Cartaz. O empregado A, sonâmbulo vítima da aparição, se
levanta:
A – Céus, essa voz, esse fantasma em minhas cortinas... Rosa em cartaz, vai embora!
Forquilha, como ela está maltrapilha: lambe esse painel laqueado, plantado no meu
ganhador! Pára: põe o bumbum desse pássaro de cordas na mira! Volta pra fora, falsa
presença! Salve Miss Zabôô! Sofia Paladium! Wanda Monpolka! Rosa Fumetto! Candy
Capitol! Prima Symphony! Bonita Super! Diana Westminster! Vicky Toboggan!... Salve,
habitantes da pista!
Senhora Boca – Salve, lençol sombrio!
Canto do Cartaz, no ritmo do passo vacilante das pernas de pau:
Salve a todos! Salve a vocês todos, seus invejosos! Senhores vejam a minha roda e a
minha boca no topo!
Rosa com a aba achatada de meus painéis, escancara o teu coração sob os anéis por
mim plantados, no verso de seus lençóis que assombra assaz, mordaz, minha face sombria e
pálida.
Vocês, lâminas, hastes de toda altura, pedestres errantes fora dos rebentos, guardem
seus cálices e tomem cuidado com a vara de meu escorrimento!
Bebo, caros corações... Pálidos secantes, abram seus corações à aba!
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Passo mais alta que todas vocês, cabeças sonhadoras estendidas.


Eis a rainha, vocês que passam, estendam o pescoço, que eu os guie, aonde eu
quiserEis a rainha das moitas, pássaros das cidades, levantem o cílio, rumo a meu. Pássaros,
caiam no painel de meu corpo sistematicamente ampliado mas mantido
rosa. Meu corpo, cai, jamais.
Aqui, um ao outro batido,
achate o seu rim, aqui,
corpo contra um outro aqui,
venha se bater, corpo daqui,
você quer morder meu rim?
A – Que rim?
Senhora Boca - Será que trago o meu rabo como uma rainha? Aqui! Venha se enfiar no
flanco laqueado de meu. Eu sou a rainha de papel, vem, anda, eu sou a rainha de pé: nos
quatro cantos eu me abro a todos os bicos.
A – Que bicos?
Senhora Boca – Para os seus bicos!... E falo à cidade, no ouvido do papagaio.
A – Que papagaio?
Senhora Boca – Minha nossa! Minha nossa!... Quem está andando aí embaixo? Um
levantador de cueca?
A – Que cueca?
Senhora Boca – Minha nossa, minha nossa... silêncio homenzinho baixo! Estou expondo
rasamente, sempre só uma face, abro uma pele no topo. Daqui, lisa, rasa, pele desenrolada,
empoleirada bem no alto pra que não toquem no meu querido! ofereço a imagem às oito
cores da rosa: de branco-couve a rosa-murcha, de branco-rainha a rosa-tronco, seguro a
pose no muro, uma ou duas coxas cruzadas.
A – Oh Senhora!
Senhora Boca – Embaixo, de supetão, às lágrimas, perdidos, estendem o bico – os belos
olhos tapados – alguns pássaros sonhadores, sonhando em pintar em mim alguns bigodes ou
pêlos... (Estou me referindo assim a certos pedestres da espécie buraco e do gênero turma
do Buracoduto, silêncio!) Muitos gostariam de entrar na minha fuça. Vocês que passam,
lembrem-se que vocês só podem, e olhem lá, me inscrever embaixo uma flecha plantada...
Então aproveitem, pedestres, já que vão desenhar o seu sexo, coloque nele uma asinhazinha,
ou duas barbatanas! Obrigada.
A – Muito de belíssimo papel... Mas pra pastar sempre tão pouco.
77

Senhora Boca – Come tanto quanto te agradar esse belo corpo de olhar. Se está com fome
eis a minha pele a ti oferecida em pintura. Vai! Já estou sentindo dentro, teu dente de
alfinete, no deserto.
A – A senhora não é lógica!
Senhora Boca – Sou sim! Belos olhos cacheados, procure aqui nem rim nem risco (abro o
coração apertado, paro ali com doçura) mas a cabeça guardiã de suas frontes.
Cheia, aqui em cima, num branco alto, espalho meu poente. Crianças belas, vejam a
pose que assumo no planante. Senhores, venham! Eu lhes darei alguma coisa. Comprem
isso aqui... ou aquilo ali. Nesse pacote, tem pra mais de um punhado. Tome, compre sim,
isso aqui. Tem alguma coisa dentro.
Ela se imobilizou. Ela carrega um pacote numa mão e está com a outra aberta. A a encara.
Boucot aparece:
Boucot – Quarenta-e-sete-e-cinqüenta.
A – Quem? O que houve?
Boucot – Vamos, vamos! Ele vai comprar ou o quê?
A – Minuto: estou abrindo o bico.
Enquanto A continua encarando o Cartaz, o empregado C, novo sonâmbulo, se levanta:
C – Doutor, a Dama de outrora que me raspou a cabeça me mostra seu nu no cartaz. O que
devo fazer?
Voz do Doutor – Compre alguma coisa dela.
Durante a fala que segue, C atravessa lentamente o palco, passa na frente do Cartaz,
deposita dinheiro na mão direita estendida e pega o pacote que lhe estende a mão
esquerda:
C – Senhora Boca, rainha dos tornos, você está se mostrando sem teus casacos de pele e
toda crua no cartaz...
Quando eu a vejo, esqueço os pêlos que perdi... Nem sei mais aliás quem tirou eles
de mim... Foi a natureza, acho, ela é moderna e não quer mais todo esse matagal, essa
cabeleira e essa tosa onde a poeira se aloja.
Me sinto melhor desde que meu crânio está liso: o vento passa por cima sem
arranhar ninguém e desliza... Ele atravessa você, sem te fazer cair, aqui embaixo.
Aliás que importância, já que minha vida já passou toda agora...? Exit!
Ele desaparece. O outro empregado continua ao pé do cartaz:
Senhora Boca – Sem embalagem, você não irá longe.
A – Não Senhora, pra acabar não estou com fome.
78

Senhora Boca (tentadora) – “Durante muito tempo eu tirava o meu corpo da água do banho
de espuma...”
A (louco de desejo) – Alma de minha lâmina, S.O.S, onde está você?
Senhora Boca - “Espuma, lis, lótus...” Ventríloquo!
A – A mim, alças, pensamentos! (Ele dança.)
Senhora Boca – Esquilo louco na gaiola de seu tronco. Chega, roca!
A – Senhora, se enlouqueci, é devido a si!
Senhora Boca – Ó o galã se insurge! Como estou tocada...
A – Senhora de meus arroubos, estou no olho da rua, abra-me o cofre!
Senhora Boca – Estaria falando, Senhor, de minha crina de baixo?
A – Exatamente.
Senhora Boca – Senhor, não estou aqui para isso, aconselho simplesmente que faça uma
compra: veja esse artigo industrial. (Ela agita o pacote.) Venha, meu coração, pelo prazer,
pegue esse pedaço de rei.
A – Eu a quero sem detalhe!
Senhora Boca – Abra os olhos, veja o meu tamanho colossal: sou alta demais para um
homem tão baixo. Leve isso, menor que eu, por envio delegado. Ele é de meu corpo o
pedaço melhor eu te garanto.
A – O que tem dentro?
Senhora Boca – Surpresa, surpresa...
A – Levo!
Boucot – O quê?
A – Isso que se vê. Esse pedaço de quê... Em espiral!
Boucot – Quarenta-e-nove-e-cinqüenta!
A – Não, não, aqui, grátis! (Ele late.) Exigimos! Belo objeto, vogue no meu lábio...! Ande,
ande, venda ele pra mim nos detalhes!
Boucot (tirando o pacote) – Tome! (Ele olha dentro da mão estendida do empregado:)
Céus, que desgraça! você não tem muita sorte, você não tem dinheiro bastante.
A – Eu quero que venha pra mim: me dê um trocado!
Senhora Boca – Dance pra mim!
Boucot – Vamos, vamos, dance para a Senhora...
O empregado dá alguns passos de valsa esportiva. Depois da dança, Boucot lhe remete três
grãos. O empregado os devolve a Boucot que lhe dá em troca um pacote menor que o do
Cartaz.
A – Não, não, aqui, grátis! (Ele late.)
79

Boucot – Impossível!
A – Então me dê dois desses se preciso de dois para estar no fim.
Boucot – Se você quiser o dobro, tem que dançar em dobro... (O empregado dança...) Mais
um pouco!
Ele dança ainda. Cada vez mais rápido.
Senhora Boca – Cuidado, você vai morrer!
Fim da dança.
A – Ai.
Boucot – O quê?
A – Claque! Cuidado com a vida por ali! (Ele toca no seu coração rindo.) É o métier.
(Boucot lhe dá os seus três grãos.) Obrigada Senhora.
Senhora Boca – Aproxime-se... Que sorte, você ganhou o topo dos seus sonhos!...
Setecentos-e-sessenta-e-quatro francos. (Ela troca o pacote contra o punhado de grãos.)
Toma, lobo doméstico! (Céus! No olhar que me lançou, vejo tripas e bofes!) Obrigada.
O empregado com seu pacote fica um momento imóvel, encarando a Senhora Boca que
desce das pernas de pau e vai embora.
Boucot – Pois bem, pronto... Suma, nobre urubu. O ato está concluído. Cada um leva a
metade.
A – Sim, sim, eu paguei, é meu. (Ele sai com seu pacote. Vai e vem:) Você, eu te peguei.
Mas não tenho mais minhas moedas. Tudo bem. Normal. Nada contra nada. Para obter isso,
é preciso mesmo deixar aquilo. Muitas vezes é preciso perder isso para ter aquilo. Onde
isso? Se você o quiser, você tem que dar aquilo ou isso. Àquele que diria “Eu quero isso e
aquilo”, eu digo: “Lamento, isso não é possível. Olha pra mim: entre aquilo e isso, eu
escolhi isso. No meu lugar alguém teria feito a mesma coisa.” Muitas vezes o tempo se
gasta nisso por aquilo e de fato gastei numa compra mas numa compra a gente se gasta, é
obrigatório... Eu almejava aquilo ou isso? Nem sei mais. Devia ser esse aqui, já que me
devolveram ele. Será que eu queria comprar isso ou vender aquilo? Isso ou aquilo? (Para o
objeto:) Você, eu te tive por bom preço. O.K. Vamos voltar pra casa. Esse babaca desse
objeto não pensa em nada, claro. De fato, ele não está com a palavra, esse babaca. Eu o
amo. Me diga, a gente vai resistir? Sou um babaca mesmo. Talvez não tão babaca, se eu
valho o preço desse objeto tão lindo? Não? (Ele cai. O dia voltou. Fim da travessia. Ele se
aproxima dos empregados adormecidos e os acorda:) Ei... ei... velhos companheiros! É a
hora do pássaro do horizonte! Ei... ei!
F – Enfim.
B – Enfim, não temos mais moeda: vamos ter que recolocar a coleira.
80

Cada um se prepara para retomar o trabalho.


81

X
Luz sobre o Ateliê, reconstruído ao contrário. Tudo está parado. O empregado A está no
topo de um mastro, bem no alto do teatro. Ele faz umas vocalises, imóvel. Todos olham
para ele.
Senhora Boca – Quem içou ele?
C – Silêncio, deixem esse pescoço falar!
Senhora Boca – Com os gritos estridentes que ele está soltando...
Doutor – Bandeira, queira descer, queira juntar os seus pés!
Novas vocalises de A.
Boucot (surgindo) – Lupas ensacadas dos dois lábios, que bordoada é essa? Urso, que olho
comprido é esse, sempre lamber? O que você quer, caro culaburador?
Jato de confetes. Ele desaparece.
Senhora Boca - Com os gritos estridentes que ele está soltando...
C – Silêncio, deixem esse pescoço falar! (Ao empregado pendurado lá em cima no mastro.)
Ei, você! Da onde vem esse buraco no seu coração?
A – O vermelho da bandeira me furou... E você, de onde vem esse teu buraco?... Silêncio,
pássaros!... Ouçam de onde eu peguei essa rosa!
A polícia atirava, os camaradas davam prova de uma coragem esplêndida. A gente
hasteou a bandeira. Eu ia morrer. Uma salva crepitou, iluminando a praça. Eu afastei as
cortinas: o outro estava subindo ali nu, puxando sempre os seus hinos; depois com um salto
içou ao estandarte o seu grito de pavor e caiu! Umas damas inclinadas em cima dos
arcabouços gritavam “dez centavos pelas belas maneiras!” Atiraram de novo, a sombra nos
sobrevoou. Eu quis me jogar nos braços de Louise... um traço preto nos separou.
Quando voltei a mim, eu vi Lavran, com a pança aberta, estendido no prado; Vrenlá,
sombra rival, jazendo a seu lado. O ouro se derramava, Lavran morreu sem grito. Mas o
outro me pegou: ele se levantou, virou o seu quadril nas minhas costas e me pregou sua
palheta batente de caniço! Cantando ele liberou cantado meu quadril mordaz de rosa! Do
buraco que ele fez eu não sei nada, nem do estouro. A pedra veio ricochetear e me matou.
Pelo buraco, a alma escapa, em pegadas brancas, pelas lausas do telhado. O primeiro golpe
me reergueu. O vermelho do segundo me fez perder o sentido, a cabeça no branco dos
lençóis. Os olhos viravam, veio o terceiro que me acertou: ele desamarrou o nó, içado no
estandarte do lençol, e eu caí ensangüentada, branca ainda sob as asas... Um corpo gemendo
me galopou. Eu vi uma última vez a praça vazia, as glórias, o vermelho desfalecido da
bandeira...
82

Era doze de novembro de 1953, em Carlet, na Charente-Maritime. Praça Ariel-Uri.


Veja aqui o rastro desse batizado que o fogo me deu.
Ele mostra o seu pescoço e gira em volta do mastro. Depois de ter feito uma volta
completa, ele reaparece, urrando:
Chega! Fim das lanternas! Abaixo os bocós! Fim dos ábacos!
Voz de Boucot – Buraco de bandeira reclamão, desce!
A – Abaixo os bocós! Viva a luta!
Voz de Boucot – Um S em viva, no outro dois T!
A – Viva a luta...
Senhora Boca – Vira tua flauta, ô Laban, viva a queda de gol, suas rodas correm pra que
viva o meu pescoço, tomara, tomara que meu pescoço viva, cala a boca, cala a boca, vira a
queda de blú!
A (com esforço) – Viva a luta de luta!... Viva a gola da taça! Viva a flauta da braçada!...
Viva a gluba de base!... Abaixo as rodas! Viva a glube de gluba!
Senhora Boca – O seu nariz caiu fora das saídas, ou o quê?... Recolha as suas flautas, o seu
nariz caiu.
A – Chega, chega! Soam as trupes, no fim dos pregos! Levantemos nossos pescoços!
Doutor – Não lhe dê ouvidos!
A – Levantemos o pescoço!
Doutor – Não se dê ouvidos, vocês se escutam demais, sofrem em sonho, vivem sobretudo
uma terrível tragédia do ânus, isso tem que ser dito, isso tem que ser dito!
A – Levantemos nossos pescoços!
Boucot (surgindo) – Vivo... findo... desapareça... vamos recolher... mascarem, mascarem,
risquem as máscaras... acabou por hoje, vocês podem se picar... fim dos grupos, virem no
bosque, passem... devolvam os quê, enfiem os si, tragam os isso, vocês podem voltar pra
casa, ao trabalho, ao trabalho! (Ele desaparece.)
A – Quê, quê, quê!
Voz de Boucot – Cabeças, desçam!
C (apontando pra A) – Esse pescoço queria falar! Deixem ele! E eu? Onde está o meu bico?
Voz de Boucot – Silêncio, afundem, tomem mais uma taça!
C – Sim mas... esse pescoço queria falar!
Senhora Boca – Exatamente. Ele tem razão. Se ele quer que ele faça, ele tem que falar! Li-
ber-da-de!
Voz de Boucot – Que ele se atire! Que o exprimam.
83

Senhora Boca – Se debruce, que a gente ouça você! Mas sobretudo, cuidado para não
engatar suas pernas, para não se atrapalhar, para não se enganar de quê, para não entravar o
engate, cuidado! Ó o isso, está indo pro telhado!
Boucot aparece. Para os empregados:
Boucot – Senhoras, Senhores, deixem ele, tenho plenamente confiança no bom senso
popular de vocês!... Tomem nota, entretanto, desse curativo que ele traz, aqui. (Ele joga um
chapéu pra ele. A o coloca: o chapéu desce até os seus olhos.)
Doutor – Visto.
Senhora Boca – Estamos ouvindo. Lance os seus quê, que a gente possa explicar!
Os Boucot e o Doutor desaparecem no meio dos empregados. A, lá no alto, se dirige aos
seus camaradas agrupados embaixo do mastro. Ele arranca o seu chapéu e o lança.
Arenga:
A – Assa! Oisse! Usse! Oieça! Assaz! Iça! Içu! A vida está mal organizada. Vamos exigir o
fim das tramóias imediatamente. Stop. Alto lá! Ascoltem o que eu depeno lhes dizer, minas
de bocas. Nós, trupes do Boco, decidimos nos assemblar a fim de desmontar a sua tona para
que vocês desapareçam e que nós aspareçamos; vamos decidir aqui, desde imediatamente,
de nos aspra até a última bluta contra qualquer rabo e de fazer cessar de imediato toda
condição de louco e de lhes desembolotar o rabo!... Todos os peões reunidos são o bastante
para sair da gaiola de bocó!... De fato, sem dúvida vai ser preciso não hesitar em quebrar
alguns plegos e em se ligar contra as popas, de fato vai ser preciso quebrar alguns plegos.
Será o pescoço da Senhora ou o do Senhor que eu vou cortar primeiro, confesso que não sei
ainda... Não sei ainda pois ele embaralha sem parar o alfabeto de meus buracos me
escorregando incessantemente e por debaixo, de cima para de fora e de dentro para debaixo!
Chega. Felizmente isso não pode mais durar, pois ele não percebeu que eu no meu foro eu o
reconheci muito bem e vi se fazer muitas vezes por aquele que queria se fazer passar por
meus traseiros, então, todos os buracos abertos e até se eu cair três vezes dentro, sei ainda
muito bem que os encerra! Vamos, vamos, Senhoras e Senhores, vocês deixam de ignorar
quem está em cima e quem está embaixo?... É o bocó que segura o alfabeto, isso é muito
evidente... Vai se levantar tudo ao mesmo tempo, meu foro me diz e estou bem com pressa
desse momento. Eis o que me diz o meu foro: que você esteja dentro ou fora, chega de jogar
com a minha bola agora, ela já não está rolando mais mesmo.
Voz da Senhora Boca – O que não está rolando? É você, é...
A – Dubo! De abuso! De pé! De inícios! De pé! Eleitos! Abaixo os lotes! Está na hora!
Chega de subreptício! Todas as direções! É absolutamente necessário revirar os onde que se
fazem passar sem razão por uns por e os entroncar junto, soar os novos, atribuir os diantes e
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os fortificar! Vigiar os erros, circundar os melhores, prever os alguns e verificar todos os de,
acabar com os preços mercantes, encorajar as grandes correntes! Algo esquecido? Sim.
Encorajemos o isso a perseverar, despachemos os faltosos e elejamos a nós todos,
inteirinhos, em seu lugar, para a melhor partilha e frutificação do onde e do quê!
Voz da Senhora Boca – É bem vasto... muito, muito vasto...
A – A quem sorri do meu enguiço de vocábulos, eu digo: ainda sei o bastante para dizer
onde está o Norte e onde o Sul!... O novo mundo não vai demorar a chegar. Daqui já vejo
muitas das chamas!
Voz da Senhora Boca – Belo voltofágico bem lá no alto, estamos ouvindo: continue seus
contos...
A – Chega de contar estoco, exigimos o todo! Por que miniatura e onde? As patas se
multiplicam para quem? Para onde vai o resto, quem puxa os fins e aí quem é que vai lá?
Nós não. Fim, já rolamos demais sob esses somente de já que!... Os agora seguram a barra,
eis do qual que chega com dois bons cada um em volta de si! Que importa ficou atrás,
pegou o lugar de na frente, Deus! eis que em volta se levanta e dá a volta nisso! Não se
deixe levar por esse enfim de mina que o engana todo!... Ah Senhores, eu juro, tudo isso
não está muito longe! Nós ainda podemos salvar a vida de com, se colocarmos um freio
perto de certo cada... Vocês entenderam quem estou nomeando?
Os Boucot e o Doutor aparecem, grosseiramente travestidos de empregados. Eles vão ficar
com essa fantasia até o final da cena.
Boucot – Sim, sim. Você está nomeando qualquer coisa.
Doutor – Sendo bem camarada, a gente é obrigado a te dizer que você está citando qualquer
um.
Senhora Boca – Filho, se cubra, você está com a cabeça lascada.
Boucot – Louco pendurado no mastro, muito cuidado! Não é por aí a saída. Resposta!
Doutor – Quietos. Vocês morderam o canto da sua toalha. Sabido. Doidão se põe no alto e
dá uma de surdo.
Senhora Boca – Querido chega volta, volta querido chega desce, fica embaixo da tua, chega
volta! (Aos outros:) Ó estou muito envergonhada, fiz tudo o que eu pude para trazê-lo de
volta ao lar, não estou entendendo mais, ele era tão bem educado, eu sempre trouxe a sua
boca nos trinques. Eu lhes peço, queiram desculpá-lo por subir no quê, a gente fica se
perguntando por quê.
Doutor – Não é absolutamente por sua culpa, Senhora... Atenção, primeiro argumento:
ejecte ou será ferido!
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A – Grade de telha! Estou dizendo a vocês que é o bode, o pai Boca, que bloqueia os lábios;
então tem que cessar, quebrar os lambos!
Boucot – Lábio-lambo!... Veja caro badalo, você só tem o sentido de onde o vento o leva,
os seus sons só têm a rima ali onde o vento os empurra; deixa a sua cima, e volte pra fila
retomar seus assentos, reencontrar os seus debaixo.
A – Mas estou lhe dizendo que há provas de base que os debaixo estão nas toalhas onde
perdi o fio!...
Doutor – Chega. Pilha de palavras! Nos devolva o sentido, imediatamente!
A – Eu o soava para vocês há apenas dez segundos. Onde ele está? Por favor, olhem pra
mim, na minha boca!
Boucot – Aproxime que a gente o explore!... Céus! você não tem um dedo d’alma e é
somente uma casca, sem muito homem dentro. Bem que eu achava... Senhores, não
procurem o homem nesse maluco sem dedo, não tem sequer uma polegada ali dentro. Um
homem anda com a alma no dedo, ele anda de braço com um buraco, não dentro... Não é
como você, não é assim que anda um homem... Porque você não tem uma polegada de
coração.
A – Tudo bem, mas por dois segundos eu estava a ponto de tê-los ainda todos eles na manga
há cinco minutos. Vocês entendem, eu pensei seguir o outro pela uma que me persegue,
mas ela escapava sempre na frente e eu corria sempre atrás dos meus rastros!
Senhora Boca – Belo furador de espirais, você devia estar trancado. Ele pode se enforcar!
Doutor – Pior pra ele! Caras assim tão pouco realistas, a sociedade pode muito bem
prescindir deles... Anda Bernard, volta, não dá uma de babaca, não deixa os amigos, anda
volta, vamos fazer uma partida de boliche!...
A – Boliche oblíquo não corre nenhum risco, fica no seu nicho!
Senhora Boca – Estão ouvindo o pássaro desbundado? Ele multiplica as conchas e deixa
sensivelmente os rastros: vigiem ele!
A – Máscara! À nassa, à nassa!
Doutor – O que ele está enfiando? Se continuar assim, vão colocá-lo no ar.
A – Eixo de bode, se pendure embaixo! Pra mim, está fora de cogitação! “O mundo se
levanta, o mundo se levanta!”
Boucot e Doutor – Anda, pára de babaquice, fica na tua natureza Bob... Vai às damas, não
te mete com os bovinos, faz como nós: deseja um ovinho. Quem quer mais que um ovo,
nunca nada obterá... Vira a página, deixa o bovino, pega o ovinho... Bernard Bernard, sou
teu cordão, não trepa mais alto que o teu rabo, traz teus desejos pra casca!
A – Soluçar, embolsa aqui teu jato a trincar!
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Senhora Boca – O que ele pôs no ar?


Boucot – Principalmente o seu poleiro... Ele deve sofrer dos quadris, ou das patas de trás...
Que desgraça ver isso! Em pleno período realista!
A – Bom dia Senhores.
Senhora Boca – Bom dia Docinho. Bravo Senhor barrilzinho, mais uma jogada!
A – Bom dia Senhores, bom dia Senhores.
Senhora Boca – Bela planta de pé. A plumagem é decorativa. Gosto principalmente do seu
canto. Responde flautim!
Doutor – Por favor, entoe alguma coisa!
A - ...
Boucot – Esse urubu não tem nada na barriga.
Senhora Boca – Que ele mostre o seu quadril, que ele arreie a sua calça, que a gente saiba!
A - ...
Doutor – Nos dê prazer ou a gente te coloca na massa! “Andem fantoches, andem
fantoches!”... Nada a fazer, esses países estão esvaziados de habitantes.
A – Vistas as condições, vou entoar pra vocês um refrão.
Senhora Boca – Sim, sim, que ele nos glose alguma coisa do tórax!
A - ...
Boucot – O canto da alvorada está vindo?... A ambulância está vindo?
A – De que é preciso cantar?
Os Boucot e Doutor – Nos apalpe, nos fale de nós!
A - ... (Ele assobia como um pássaro.)
Boucot – Ele quer nos fazer perder a alça! Aonde vai dar essa sessão de maluco, em nada!
Pare! Continue!
A - ...
Doutor – Ei, ô da bandeira, se você quiser que eu te enxugue, me sacode meu cofrinho e
torce a tua fuça!
A - ...
Senhora Boca – Pescoço silencioso, faça um sinal, pisque, acabe de se calar; pássaro
enganador, veja nossos corações no alvo!
Boucot – Pronuncie a abertura! Senão eu chamo por nada e digo ao cão de lhe dar o ah.
Senhora Boca – Anda, rosna, levanta os cetins! Iça os seus onde dentre os mortos!
A (muito depressa) – “Leonardo chumbo charmoso pendurado no seu fio de amêndoa dizia
o quanto estão firmes eu me pergunto. O outro, ourives na matéria, soltava no estandarte
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seu grito de pavor: demora Ninive, sem reprimenda, quantas pratas são? A firmeza perdida,
restou o fio, a sombra amante e rara, a parte do leão. Como se chama a fêmea do leopardo?”
Boucot, a Senhora Boca e o Doutor aplaudem.
Senhora Boca – Outra! (A aplaude) Recomece do zero!
A – Com quantas palavras?
Senhora Boca – Nove e cinco.
A – “Senhoras Senhores, saído de fumaça...”
Doutor – Atenção, todo gato que sairá de si será defenestrado!
A – “Senhoras Senhores, nem bem saído de fumaça...”
Boucot – Stop. Mostra o teu bico... e segura firme nessa espada de nada!
Doutor – Que pé!
Senhora Boca – Use a sua língua estirada e agitada!
A – “Saído de fumaça...”
Senhora Boca – Minuto, por favor: nós gostaríamos de ver o seu corpo. Onde ele está?
A – Aqui.
Senhora Boca – Mostre mais e levante pra nós imediatamente alguma coisa sua!
A – Pare! Já não sei mais muito bem em que face sopro o meu louco!
Senhora Boca – Então retome dos inícios! O que quer dizer e em primeiro lugar da onde
você vem, pra onde você quer ir, nos dê exemplos!
A – Aonde? Passo. Vamos ao passo. Mas é preciso não dar nenhum passo em cima de nós.
Preciso nenhum braço. Está indo, está indo. Vai passar.
Boucot – Stop! Atenção, não perca o fio, diga na sua cabeça: “o que é que é essa mosca?”
A – Essa mosca é...
Boucot – E o fio?
A – O fio é...
Boucot – Estamos lhe perguntando o que é que é essa mosca que fia na tua manga.
A – Que mosca?
Boucot – Bravo. E a moral? Arranque uma flor pra você!
A – Stop! Pronto! Está quente, está quente... Eu queria dizer, desde o início, está pronto, eu
queria dizer, está quente, está quente, minha boca queimada, perdida na estrada, vou achar.
Ela está entre isso aqui. Esperem três segundos!
Senhora Boca – Criança de ferro, no fio, procurando jogar seus pregos bem nas faces da
bola. Cuidado: quem sobe aqui de uma polegada, cai de uma braçada!
A – Sinta-se beijada!
Senhora Boca – Ó o sexo! Pisoteie isso imediatamente!
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A – Camaradas, basta, quero falar do bocó, me ajudem a sair do fundo do troço!


Doutor – Ah o prego! Dessa vez, ele se desossou pra valer! Me diga, cabeça-de-pau, está
indo bem a meia-corrida?
A – Desculpe! Tive dor nas cordas. Minuto! Vamos zarpar!
Ele toma impulso, faz alguns gestos...
Senhora Boca – A sua representação não está exata: recue de uma polegada e se anuncie!
A – Aqui?
Doutor – Nada disso!... Faça primeiro uma façanha com o seu corpo!
A – Escutem! Escutem todos!
Ele dança.
Boucot – É uma dança ligeira!
Senhora Boca – Ó que bela arte! Ele pergunta tudo com os pés.
Boucot – Tem aí uma espécie de veio popular, tem nele uma espécie de saúde!
Doutor – Que virtuosidade nesse jogo de rabo! Quando se pensa que ele diz tudo isso com a
sua anca! O que ele está dizendo?
Senhora Boca – Ele está exprimindo uma multidão de pés! Parece uma rainha andando
sobre rãs ou então a rainha das rãs percorrendo um tapete de frangos, duas rodas
aprendendo a viver numa rotina ou a Avareza passando num céu de pato!... O que ele está
dizendo?
Boucot – Nada. Ele diz por exemplo “Atenção beterrabas””, “Pedestres atravessem”.
Senhora Boca – Senhor engula as suas observações: acaba sendo deprimente para os
artistas!
Boucot – Obrigado caro amigo por esse divertimento realmente majestoso!
A (triste ginástica, executada de cabeça pra baixo) – “Belo acrobata, acre e surrado, vai ser
preciso, pagar teu devido, senão você falha, por falta de pata, e você se lasca, no meio da
pista.”... Ó já sinto chegarem as flores, caiam em prantos!
Doutor – Pirou, sifão? Então, Paulão, carburando com a neblina? Pirou. Você acredita no
que está dizendo?... Ei, Paulão?
A – No que acabei de dizer?...
Boucot – Anda! Chega! Que o neutralizem! Deixe o ramo portador!
A – Sim, sim... mas antes, por favor, me diga da onde ia minha língua?
Senhora Boca – Quem não sabe cala.
A – Mas eu estava sempre correndo atrás!
Doutor – De quem? Atrás de quem?
A – O quê. Fala, me leva sempre a quebrar minha brisa: é esse o erro!
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Doutor – Desculpe, realmente aí, não sei.


A – Bravo! Você ganhou, me pergunto agora conforme que música vou dançar.
Doutor – Bravo!... Explique esse gesto!
A – Que gesto?
Doutor – Esse que você acaba de fazer entrar na sombra.
A – Desculpe, são meus verdadeiros pés, ignoro o nome deles: meu corpo em cima se
levanta para ouvir minhas duas orelhas; minha língua sozinha no centro fala também da
minha cabeça às vezes que não ouve mais o que ela diz.
Senhora Boca – Então você se parece muito com o cachorro.
A – E vocês, Espíritos, o que querem?
Doutor – A gente quer de você que, cabeça ou pé no final, me deixe dizer que vocês não
vão nada mais além do breve.
Senhora Boca – É breve... Tirem os mastros dele! Primeiro, quem o autoriza a bater? Nunca
pássaro tão forte desbundou!
Doutor – Teve sim! Já vi, no ano passado, um boi dizer mesmas coisas em mesmas
circunstâncias... O menor gesto desse babaca suscita furacões e comentários: eu também, se
me içassem, me olhariam, observariam meus dedos do pé... Vamos ficar no grosso da trupe,
se a gente não quiser que nos cortem o topete. Senhoras, Senhores, não esperem que eu
levante a sua roda!
A - ...
Boucot – Outros pensamentos mais? Depressa daqui a cinco minutos vão tirar o seu
curativo, outros pensamentos?
A – Onde.
Senhora Boca – Desculpe, não acompanhei bem o pé da sua frase, onde estava a intenção?
A – Onde.
Boucot – Além de bola, a gente parece estar num azulo de clibes!... Me diga, seu torto, você
sacode para dar vista sobre tronco?
A faz alguns movimentos, assume umas poses.
Senhora Boca – Ó o telégrafo, o que é que ele lança no último topo do poste? Joga qualquer
coisa! Olha pra ele lá no alto, puxar o vento da boca e ter muita dificuldade pra assoar o seu
buraco!... O que está representando?
Doutor – A Melancolia.
Boucot – Ou uma pilha de nervos.
Doutor – Nada! Ou um ponto, avaliando seu comprimento.
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A – Vocês querem me deixar sim? Vocês estão cortando as minhas asas sob os pés!...
Cuidado: vou começar a morrer.
Senhora Boca – Saia... Saia, saia... Gato maquiado sem razão, você não é do grupo!
A – Se estou dizendo que foi o pai Bucú que me mandou embora, que eu só subi aqui pra
dizer a vocês que só peço pra voltar e ir direto pro pau!
Senhora Boca - Renuncie, ainda é tempo, no pau você não verá nem puic!...
A – Achei!
Boucot – Cuidado com a continuação...
A – Irmãos ratos, vamos nos juntar contra os gatos!
Doutor – Rato você! Eu sou gato, eu também, nas minhas horas...
A – Irmãos gatos, vamos exterminar os ratos!
Boucot – Nós somos todos os mesmos ratos, melhor matar os urubus!
A – Senhoras Senhores, eu estava só avançando uma pena assim, não é nada muito sério!
Senhora Boca – Pára, pára! Senão, senão!...
Boucot – Sereia desça! Deixe a arena e volte pra casa!
A – Outrem mora no meu relógio, se você me tira minha rampa pra onde irei?
Boucot – Reintegre o seu domicílio!
A – Onde ele está? Onde ele está?
Doutor – Aqui, ora essa, nesse lugar.
A – Magnífico! Obrigado! (Descendo do mastro:) Estou no fim das minhas penas. Alguma
besta queria me pôr dentro, você me reergueu no sentido do vento.
Enquanto ele volta pro seu lugar, Boucot, a Senhora Boca e o Doutor tiram seus disfarces
de empregados.
Boucot – O gato já desceu do telhado?... (Mudando de voz para dar a resposta:) Já sim.
A Senhora Boca e o Doutor puxam rapidamente as cortinas.
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