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JÔ BILAC
Adaptação dramatúrgica: Luiz Otavio Carvalho
PERSONAGENS:
Dodô
Marcela
Laura
Cláudio
ESPAÇO:
–0–
[Tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Dodô olha o relógio, constata, tira o bloco de
notas, faz o sinal da cruz, coloca na cabeça um chapeuzinho ridículo no
formato de relógio indicando 12 e 45]
CLÁUDIO: Água.
DODÔ: Limão?
DODÔ: Ok.
[Cláudio retorna sua atenção à rosa em sua mão. Coloca a rosa de um lado da
mesa. O guardanapo do outro. Vai até a musicbox e seleciona uma música.
Um jazz. Volta à sua mesa]
[Laura entra. Óculos escuros, casacão preto. Senta-se em uma mesa. Cláudio,
atento, levanta a rosa em um aceno. Cláudio balança a rosa em vão. Laura
cata qualquer coisa em sua bolsa. Laura é incapaz de notar alguém. Dodô se
aproxima]
DODÔ: A senhora deseja algo?
[Laura acha seu celular na bolsa. Coloca-o em cima da mesa. O celular a atrai
como um imã]
MARCELA: Não, café, não. Eu quero um suco de laranja, por favor, sem
açucar.
DODÔ: Olha quando a senhora se decidir por algo é só chamar, ok? [vai
saindo]
MARCELA: Poxa. Então traz só a soda, por favor. E com gelo! Não, não! Sem
gelo... Não, não! Com gelo!... Não, não, desculpa, sem gelo
mesmo, estou meio resfriada.
[Dodô sai]
LAURA: Sou eu... Laura! [tempo] Escuta, você vem ou não vem? [tempo]
Perto, onde? [tempo] Escuta aqui, eu trago uma tempestade na
cabeça e meu espírito está prestes a chover! Tá tudo dilatando e
eu não suporto mais isso em mim, entende?... Não tem mais
espaço, não cabe mais! Eu não posso explodir com tudo isso!
[tempo] Escuta aqui, você vem ou não vem? [tempo] Tá... dez
minutos! Você tem dez minutos pra chegar aqui! Ou então... você
já sabe! [desliga]
[Tempo]
[Cláudio, hesitante em falar com Laura. Por fim, decide. Desiste. Levanta-se da
mesa, leva a rosa na mão. Cláudio, parado, olha para Laura]
CLÁUDIO: [volta em outro ritmo à mesa dela] Oi, é que meu nome é Cláudio,
e eu moro aqui perto, quer dizer, não tão perto, mas dá pra vir a
pé e eu até gosto de caminhar e tudo, mas hoje eu vim pra cá e
até encontrei com o velho Elias e ele dizia que...
CLÁUDIO: Como?
LAURA: Nada pessoal. É que estou esperando uma pessoa e ela já está
chegando, aliás, já deveria ter chegado. De qualquer forma, eu
não gostaria que ela me visse com alguém.
LAURA: Como posso ter te respondido alguma coisa que nem me foi
perguntada?
CLÁUDIO: Eu acho que a pessoa que você está esperando sou eu.
[Tempo]
CLÁUDIO: Entendi.
CLÁUDIO: Sim.
CLÁUDIO: Exatamente.
CLÁUDIO: Não... Eu não teria coragem... Fui me arriscar com você e...
LAURA: Uma rosa vermelha em botão! Não é uma coisa que qualquer
uma vai reparar.
LAURA: Olha, não me diz o que fazer, não, tá?! Eu detesto quando me
dizem o que eu devo fazer.
CLÁUDIO: Desculpe, mas acho que isso é um assunto que só diz respeito a
mim. Você não tem nada a ver com isso.
CLÁUDIO: Não acho que ela seja a mulher com quem marquei um encontro,
só isso.
LAURA: Busca do amor? Pelo amor de Deus! Isso é o que? Enredo pro
Carnaval de 2014? Um homem se prestando a essa situação...
LAURA: Não vê que isso pode ser uma brincadeira de alguém, até de uma
criança, mesmo. Fazendo você de palhaço com uma rosa na
mão!
CLÁUDIO: Eu não sei porque você está se incomodando tanto com isso. Sou
eu que vou fazer papel de palhaço, não é? Então, deixa eu fazer
papel de palhaço, adoro fazer papel de palhaço!
LAURA: Quer saber? Faz o seu papel de palhaço, é bem a sua cara,
Cláudio. Claudique, Cláudio! Claudique a caminho do seu elo
perdido em busca do seu grande amor! Claudique, Cláudio
clownesco! Clemência a Cláudio claustrofóbico...
[Tempo]
CLÁUDIO: Acabou?
[Tempo]
CLÁUDIO: Espera por alguém que traga uma rosa vermelha em botão?
MARCELA: Não... Espero por minha irmã, não sei se ela vai trazer uma rosa
vermelha em botão... Por quê?
MARCELA: Imagina!
[Tempo]
CLÁUDIO: Sim.
LAURA: Olha, vai ver aconteceu alguma coisa... Vai ver ela se atrasou por
algum motivo...
CLÁUDIO: Toma. [entrega a rosa para Laura] Se ela aparecer, você diz que
eu esperei por ela, mas, enfim, tive que ir embora... [indo até o
balcão, pega o dinheiro] Pela água.
MARCELA: Não.
DODÔ: E agora?
MARCELA: Olha, eu não sou burguesa e acho que isso não justifica um
comportamento tão mal-educado!
LAURA: Cala a boca você, seu bostinha/ sua bostinha! Você pensa o quê?
Problema é seu se tem esse emprego de merda! Problema é seu
se não tem o que comer, problema é seu se ninguém te olha
como gente, problema é seu se não tem TV a cabo!
MARCELA: Eu também queria ter muita coisa, meu/minha filho(a)! Mas não
dá! Nasceu pra ser pombo(a), então vai cagar em cima de estátua
e não enche a nossa paciência! Agora dá o seu jeito e arruma
esse troco!
MARCELA: Você começou com isso! Você sabe que tudo que jogamos para o
universo volta com força tripla pra cima da gente?
LAURA: Cara feia pra mim é fome! Pega uma arma e invade uma escola,
mas não enche meu saco!
–1–
CLÁUDIO: [grita] Calma, gente! [tempo] Eu tenho certeza que o(a) moço(a)
aqui não está tendo um bom dia hoje e deve haver uma razão pra
isso, que não nos diz respeito... Todo ser humano tem direito de
acordar com o pé esquerdo... [tempo] Tenho certeza de que ele(a)
se esforçará um pouco mais para conseguir o meu troco, não é
mesmo?
[SILÊNCIO]
[Dodô SAI]
[O tempo parece estar parado. Suspenso. Permanece assim até que se ouve
uma freada brusca de um carro do lado de fora do café-bar. Expectativa. Entra
Dodô]
[Tempo]
DODÔ: Sim. Ela estava vindo pra cá, daí, por causa da pressa na hora de
atravessar a rua, essa daqui da frente, tropeçou e caiu. Só que
pro azar dela vinha vindo na outra direção um carro em disparada,
nem deu tempo da coitada se levantar, o carro até tentou frear,
mas já estava muito em cima... Só deu pra ver os olhos dela,
assim, como a letra “O”... Esbugalhados... [tempo] Eu acho que
vai precisar de uma pá pra descolar a cabeça dela do asfalto.
DODÔ: Não. [vai saindo, vê a rosa vermelha] Ah, ela trazia uma rosa
vermelha em botão na mão. Morreu agarrada na rosa. [para
Cláudio] Seu troco. [sai]
[Tempo]
CLÁUDIO: Eu a matei!
MARCELA: Tadinho, o pior é que com a cabeça dela esmagada nem dá pra
saber se ela era bonita ou não...
CLÁUDIO: Tudo bem, tudo bem... Afinal quem acaba de morrer é uma
estranha... Dela nem sei o nome, nem a cor ou a idade, ou
qualquer informação que possa dar o mínimo de humanidade a
ela.
[Tempo]
LAURA: Criatura, você não ouviu ele dizer que essa mulher era
completamente estranha a ele?
MARCELA: Olha, eu li, numa revista asiática, que morrem mais de vinte
pessoas por minuto no mundo. Gente, isso é muito assustador!
Eu fico chocada! Eu sei que pra morrer basta estar vivo. Eu
mesma, eu tenho a morte como uma coisa muito clara na minha
cabeça, eu sou uma pessoa espiritualizada e tudo o mais, mas,
gente, na hora H é que a verdadeira reação se manifesta,
porque...
CLÁUDIO: O quê?
MARCELA: Vai, dança com ela. Vai te fazer bem, a sua cara não está nada
boa! E aposto que já faz um tempão que você não dança!
[Começam a dançar]
LAURA: Você é tão gentil... E você chora... Eu acho lindo quando alguém
chora, principalmente um homem. Quando eu vi você chorando,
eu falei pra mim mesma, fodeu! Esse cara chora... Esse cara vai
mudar a minha vida... Eu tenho que cuidar desse cara... [tempo]
Eu acho que eu te amo...
LAURA: Laura.
[Música. Dançam]
FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM
–2–
CLÁUDIO: [grita] Calma, gente! [tempo] Eu tenho certeza que o(a) moço(a)
aqui não está tendo um bom dia hoje e deve haver uma razão pra
isso, que não nos diz respeito... Todo ser humano tem direito de
acordar com o pé esquerdo... [tempo] Tenho certeza de que ele(a)
se esforçará um pouco mais para conseguir o meu troco, não é
mesmo?
[SILÊNCIO]
[Dodô SAI]
[O tempo parece estar parado. Suspenso. Permanece assim até que se ouve
uma freada brusca de um carro do lado de fora do café-bar. Expectativa. Entra
Dodô]
[Tempo]
MARCELA: Deixa de ser amargo(a), não custa nada falar o que aconteceu lá
fora!
MARCELA: Cara, você sabia que tudo que a gente faz o universo joga com
força tripla de volta pra gente?
[Tempo]
[Dodô indica]
MARCELA: Você não acha que ela teve alguma coisa a ver com isso?
MARCELA: O(A) garçom/garçonete falou com todas as letras que viu o carro
à espreita da vítima...
CLÁUDIO: Pelo amor de Deus, ela estava aqui o tempo todo conosco...
MARCELA: Ela planejou tudo isso, foi a mandante do crime e com certeza nos
usará como testemunhas de sua falsa inocência... Atrai sua vítima
num falso telefonema e deixa tudo arquitetado com seu cúmplice,
decerto um amante ou uma amante, sim! Ela planejou tudo, o
crime perfeito, sem nenhuma pista, afinal de contas, ela será
inocentada, claro, estava tomando um café com três pessoas
como testemunhas! Tudo resolvido com um simples telefonema:
[tira um DVD da bolsa] Disque M para matar.
CLÁUDIO: E se fosse ela a assassina, você acha que ela ia ter essa crise
agora?
MARCELA: Você vai me ajudar. Eu olho na bolsa dela e vejo o telefone, deve
ter o número da vítima gravado na última chamada. Porque você
ouviu bem que ela ameaçava alguém ao telefone. E o morto
usava uma muleta e ela disse a você que esperava por alguém
que usava uma muleta! Tudo se encaixa!
MARCELA: Por isso mesmo! Não sabemos o que ela seria capaz de fazer! Já
pensou se ela desconfia de alguma coisa e decide nos matar...
MARCELA: Tudo bem, tudo bem. Afinal de contas, quem acaba de ser
assassinado é um estranho, um zé-ninguém, um indigente, um
fósforo queimado, perfume evaporado, a sapucaia do cocô!...
Dele, a única coisa que sabemos é que agora está morto.
Humanamente morto!
CLÁUDIO: O quê?
MARCELA: [para Laura] O meu amigo está tímido, mas ele gostaria de tirá-la
para dançar... Dança com ele.
CLÁUDIO: O quê?
MARCELA: Dança com ele! Ele é muito tímido, mas adoraria que você
aceitasse o convite... Ele estava conversando aqui comigo,
pedindo uma ajudinha... Sabe como é... Inseguro! Mas eu falei pra
ele que tinha certeza de que você não iria se opor, já que não tem
nada de mais, é só uma dancinha pra distrair a mente!
CLÁUDIO: Você não chora!... Eu acho lindo quando alguém não chora,
principalmente mulher. Porque se tem uma coisa irritante nesse
mundo é mulher chorona... Quando eu vi você, eu falei pra mim
mesmo, caramba, essa mulher vai mudar a minha vida...
LAURA: Sério?
CLÁUDIO: Sério...
[Marcela anota o número. Coloca algo na bebida que servirá a Laura. Cláudio
fica espantado]
[Laura se vira. Dá de cara com Marcela adulterando sua bebida. Cláudio lhe
tasca um beijo e impede o flagrante]
LAURA: Laura.
[Marcela empurra a bebida goela abaixo de Laura. Suspense. Música alta. Mais
suspense. A música intensifica o clima. Expectativa. Laura tonteia e cai]
FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM
–3–
CLÁUDIO: [grita] Calma, gente! [tempo] Eu tenho certeza que o(a) moço(a)
aqui não está tendo um bom dia hoje e deve haver uma razão pra
isso, que não nos diz respeito... Todo ser humano tem direito de
acordar com o pé esquerdo... [tempo] Tenho certeza de que ele(a)
se esforçará um pouco mais para conseguir o meu troco, não é
mesmo?
[SILÊNCIO]
[Dodô SAI]
[O tempo parece estar parado. Suspenso. Permanece assim até que se ouve
uma freada brusca de um carro do lado de fora do café-bar. Expectativa. Entra
Dodô]
[Tempo]
DODÔ: Foi horrível, eu vi tudo! Ela estava vindo pra cá, o sinal fechou, ela
se decidiu a atravessar a rua e foi nessa hora que veio um carro e
passou por cima dela numa violência de cavalo. Cantou pneu e
sumiu na fumaça! [tempo] A cabeça dela ficou amassada, vão
precisar de uma pá pra descolar do asfalto.
[Dodô paralisado(a)]
LAURA: Pega um copo d’água pra ele(a), criatura, o(a) garoto(a) parece
que viu assombração.
MARCELA: Mas é assim mesmo. A gente tem que saber conviver com isso.
CLÁUDIO: Verdade!
MARCELA: Eu sei que pra morrer basta estar vivo, mas por mais que
tentemos nos convencer é sempre muito complicado.
CLÁUDIO: Eu tenho a morte como uma coisa muito clara na minha cabeça,
eu sou uma pessoa espiritualizada...
CLÁUDIO: Oi?
CLÁUDIO: Fala daí, eu te escuto, eu tô num papo legal aqui com a...
MARCELA: Marcela.
CLÁUDIO: Um minutinho, vou ver o que ela quer e já volto, ok? [Para Laura]
O que você quer, sua maluca? Sua doida! Você adora dar show,
né? Você quer ibope! Ibope!
CLÁUDIO: O quê?
LAURA: Era ela! Cláudio, era ela! Você não viu como o(a) rapaz/moça
ficou chocado(a) ao ver essa moça? Ele(a) teve a nítida sensação
de estar vendo a mesma garota que acabou de morrer. Só pode
ser a irmã dela.
CLÁUDIO: Não fala besteira!
LAURA: [tira um livro da bolsa] O corpo fala! Eu sou muito boa em leituras
corporais! [tempo] Você não acha muita coincidência essa garota
estar esperando pela irmã e uma mulher idêntica a ela ter
acabado de morrer quando estava vindo pra cá?
LAURA: Sim, um encontro às escuras, ele tá achando que ela não vem
mais e...
CLÁUDIO: É.
MARCELA: Tadinho, o pior é que você não vai saber se ela é bonita ou não...
LAURA: Querida, o Cláudio tem uma coisa que ele gostaria de te dizer...
CLÁUDIO: O quê?
CLÁUDIO: Bem, você vai precisar ser forte nesse momento. Na verdade,
muito forte. Eu diria até que muito muito forte mesmo. Além do
forte, até! Muito, muito, muito, forte. Fortíssima ao extremo, forte
radical, forte demais, forte ao infinito, forte extravagante, forte chá
de boldo, forte...
LAURA: Cláudio...
CLÁUDIO: Eu só acho que nessas horas o sentimento fala mais alto que o
pragmatismo.
CLÁUDIO: Então por que você não se encarregou de falar com ela no meu
lugar?
CLÁUDIO: Não, você não fala porque você é uma covarde, se faz de forte,
mas no fundo, no fundo é uma covarde. Projeta nos outros aquilo
que é incapaz de realizar sozinha.
LAURA: Covarde?! Ha! Isso vindo de você parece até uma piada!
CLÁUDIO: Então porque você não vira e conta tudo pra ela?
CLÁUDIO: Ah, e você, você transborda sucesso por todos os poros! Só não
consigo entender por que se agarra desesperada em qualquer
estranho que te dê mais de quinze segundos de atenção!
LAURA: Você não sabe nada da minha vida, não sabe da missa o terço,
do limão a metade! Acho que você perdeu uma boa chance de...
CLÁUDIO: Por que você não pega essa chance e enfia no cu?!
LAURA: Finalmente eu vejo que corre sangue nessas veias e não suco de
laranja!
CLÁUDIO: Sabe o que é isso? Isso é falta de homem! Falta de um pau bem
grosso no meio das suas pernas!
LAURA: Então você acha que os problemas de uma mulher podem ser
resolvidos com um pau bem grosso no meio das pernas?
CLÁUDIO: Sim!
LAURA: É você que quer um pau bem grosso no meio do seu cu, seu filho
da puta!
MARCELA: O quê?
[Silêncio sepulcral]
[Tempo]
[Tempo]
LAURA: Agora?
CLÁUDIO: Agora.
[Tempo]
LAURA: Sim.
CLÁUDIO: Sim?...
LAURA: Sim.
LAURA: Laura.
FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM
–4–
[Pouco Tempo]
Blecaute.
FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM
FIM FIM FIM FIM FIM FIM FIM