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Mesa 1 - Marcela
Mesa 2 - Cláudio
Mesa 3 - Laura
Do começo
(Estamos num bar café, sem glamour, porém bem aconchegante. As muitas mesas vazias e uma
musicbox logo à frente, dão uma atmosfera decadente ao lugar. Uma máquina de bola de chiclete,
dessas que se coloca uma moeda. Dodô, o atendente, arrumando as mesas. Canta bem alto, ao som da
musicbox. Dodô traz em si a energia juvenil, dos rapazes de sua idade, contudo diluída num amargor
envelhecido pelo café. Entra Cláudio, uma figura mansa com uma rosa vermelha em botão na mão.)
Dodô (baixando o volume da musica, levemente puto da cara) Ainda não abrimos.
Dodô (Mostrando o menu com o nome do café bar) 12 e 45! O nome do nosso estabelecimento é 12 e
45!
Dodô Por que será que o nosso estabelecimento se chama 12 e 45? Há? Tem idéia? Ah! Porque abre
as 12 e 45!
Dodô (indo até o balcão, enquanto coloca o avental, muito puto da cara, tagarelando em resmungos)
Hoje o senhor resolveu mudar o nome do estabelecimento sem consultar o dono! É isso! (enquanto
arruma a mesa dele, colocando o menu, o guardanapo, açucareiro, essas coisas) Agora o novo nome é
12 e 30! Essa é boa mesmo. (Cláudio vai acompanhando com sua cara boba) Mas deve ser isso mesmo
que eu mereço, sabe? Nem um boa tarde cachorro, nem um obrigado escravo, nada! Porque afinal de
contas eu sou só um empregado morto de fome que deve mesmo agradecer o tempo todo pelos
farelos que jogam pra mim como se eu fosse um pombo! Porque no fundo no fundo, eu sou ate pior
que um pombo, porque um pombo não precisa ficar nessa espelunca servindo pessoas como o senhor
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que joga na cara da gente o tempo todo a nossa condição social! Que humilha com seu ar de
superioridade! Mas a vida é essa mesma, e eu sou mesmo menor que um pombo. Mas ainda são 12 e
38, e o senhor pode até se acomodar e esperar, pois, só irei servi-lo 12 e 45. (Senta-se com ele a mesa.
Claudio totalmente constrangido. Os dois permanecem em silêncio. Dodô vez e outra consulta seu
relógio de plástico no pulso. Evitam o olho no olho. Mas fica evidente o elo da relação absurda que
acabou de se estabelecer entre os dois. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Dodô olha o relógio
pela ultima vez, constata, tira o bloco de notas.Faz o sinal da cruz e por fim coloca na cabeça um
chapeuzinho ridículo num formato de relógio indicando 12:45. Natural.) O que o senhor vai querer?
Cláudio Água.
Dodô Limão?
Cláudio (reflete breve) Hum... Não, não, obrigado, por enquanto só a água mesmo.
Dodô Ok.
(Dodô sai. Cláudio, aliviado, retorna sua atenção a rosa em sua mão. Coloca a rosa de um lado da
mesa. O guardanapo do outro. Ansiedade. Expectativa. Idéia! Vai até a musicbox e seleciona uma
música. Demora na escolha. Mas por fim se decide por um jazz elegante. Volta feliz a sua mesa.).
(Entra Laura. Cláudio da um sobressalto, quase que imperceptível. Laura, uma figura muito trágica,
óculos escuros, casacão preto, muito pálida , logo senta-se solitária numa mesa no fundo do café.
Cláudio atento, curioso, levanta a rosa num aceno. Laura acende logo um cigarro, cata qualquer coisa
em sua bolsa. Cláudio balançando a rosa em vão, Laura parece estar com um furacão em cima de sua
cabeça, impossível de notar alguém. Dodô se aproxima, bem de ovo virado)
Laura (encara o garçom por detrás dos óculos escuros) Meu filho, eu já disse que não quero nada.
Cispa. Quando eu quiser alguma coisa eu te chamo.
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Dodô (saindo bem ofendido, resmungando) Ignorância. Agora veja... Isso aqui agora é praça publica. O
sujeito senta e relaxa. Eu sou mesmo menor que um pombo!
Laura (acha seu celular na bolsa. Coloca em cima da mesa. Fuma violenta. O celular a atrai como um
imã. Fica obvia a sua angustia. )
(entra Marcela no café. Novo sobressalto de Cláudio. Marcela, jovem com um olhar perdido e um jeito
frívolo, boca vermelha berrante. Senta-se no outro canto do café. )
Marcela Não, café não. Eu quero um suco de laranja, por favor, sem açúcar.
Marcela (desanima) Acerola... (reflete breve) O problema é que acerola sem açúcar fica azeda
demais...
Marcela Hum...(tempo) Não sei...(Procurando algo que a apeteça. Dodô suspira impaciente.).
Dodô Olha, quando a senhora se decidir por algo é só chamar, ok? (vai saindo)
Marcela Espera! Eu vou querer uma soda comum mesmo e um biscoito de nata com...
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Marcela Poxa. Então traz só a soda, por favor. E sem gelo! Não, não! Com gelo... Não, não! Sem gelo!
Nâo,não! Com gelo! Nâo, não, desculpa, sem gelo mesmo, estou meio resfriada...
(Dodô sai)
Laura (agarra o telefone. Disca violenta. Espera) Sou eu... Laura! (tempo) Escuta, você vem ou não
vem? (tempo) perto onde?(tempo) Escuta aqui, eu trago uma tempestade na cabeça e meu espirito
está prestes a chover!Ta tudo dilatando e eu não suporto mais isso em mim, entende?...Não tem mais
espaço , não cabe mais!Eu não posso explodir com tudo isso! (tempo) Escuta aqui, você vem ou não
vem? (tempo) Ta... Dez minutos! Você tem dez minutos pra chegar aqui! Ou então... Você já
sabe!(desliga).
(tempo)
(Do outro Lado, Cláudio hesitante em falar com Laura. Chega a ensaiar alguma coisa no canto de boca,
mas está muito tenso. Por fim decide. Desiste. Decide. Levanta da mesa, respira fundo, leva a rosa na
mão.)
Cláudio Não, quer dizer, era uma pergunta, mas não a que eu pretendia fazer, enfim... Ah deixa pra lá.
Cláudio (corre de sua mesa para a mesa de Laura) Oi, é que meu nome é Cláudio, e eu moro aqui
perto, quer dizer não tão perto, mas da pra vir à pé e eu até gosto de caminhar e tudo, mas hoje eu
vim pra cá e até encontrei com o velho Elias e ele dizia que...
Cláudio Como?
Laura Faz a pergunta de lá da sua mesa. Eu te disse que poderia perguntar, mas não permiti que se
sentasse na minha mesa.
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Laura Nada pessoal. É que estou esperando uma pessoa e ela já esta chegando, aliás já deveria ter
chegado. De qualquer forma eu não gostaria que ela me visse com alguém.
Laura Como posso ter te respondido por alguma coisa que nem me foi perguntada?
Cláudio Eu acho que a pessoa que você esta esperando sou eu.
(tempo)
Laura Muleta.
Laura Não é um encontro. Quer dizer, é um encontro, mas não é um encontro. Enfim.
Cláudio Entendi...
Laura Por um acaso eu te conheço de algum lugar? Você me pareceu tão familiar... Seu rosto... O jeito,
não sei...
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Cláudio O seu cabelo não nega mulata, confete e serpentina, samba, suor e cerveja....?
Laura Nada!
Laura Não...
Cláudio (já murchando) A gorduchinha dos Marinheiros...? Deitando e Rolando com o Diabo...? Defeito
maravilhoso...? Me leva que eu vou...? Pecado Original...? As cocotas do desterro...? Amor com amor
se paga...? Pão, pão, queijo, queijo? ...Nada?
Laura Nada.
Cláudio Não sei... Mas enfim, aquela gente toda, cantando junta. Uma beleza...Você não andava, era
carregado pela multidão. Ta lembrada?
Laura (num esforço mental) Acho que estou lembrando... O larguinho... Você com essa cara sua... Essa
voz...
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Laura: Eu também não, a vida tá uma loucura, "o excesso de gente nos impede de ver as pessoas..."
Claudio: Eu tenho muita saudade... Tenho saudade de muita coisa... A gente tão ingênuo... Mas tudo
era muito ingênuo, não era? Ingênuo demais... Não tinha maldade... As pessoas eram mais
espontâneas... Mais unidas... Tudo era menos perigoso.
Laura É.
Cláudio Uma coisa...Especial. Especial mesmo. O que é especial hoje? Nada. Nada mais é especial,
tudo é muito vazio...As pessoas,os pensamentos das coisas, as datas comemorativas...O natal! O que
era o natal? Natal era uma coisa fantástica. Falava em natal e algo se iluminava... Eu morria de medo
de morrer antes do natal e perder o natal. E hoje? O que virou o natal? Ninguém mais compra roupa
nova pra usar no natal. O natal é um feriado. Assim. Pronto e acabou.Uma tristeza que não cabe no
peito. Não tem mais a magia... Cadê a magia? Sumiu a magia... Você viu a magia?
Cláudio Então, foi tempo que o Natal era com magia e as coisas todas tinham magia.A magia da
simplicidade, a magia das pequenas coisas... Hoje a magia esta aonde? Hoje a magia esta no dinheiro,
na inimizade, na solidão das coisas...
Laura Péra, péra, péra... (lembrando. Lembrou.) Ih, rapaz, não é você não.
Cláudio O que?
Laura (se afastando dele, sentando-se no lado oposto) Desculpa, eu te confundi, não é você não. Eu
nunca te vi na vida.
Cláudio Oi?
Laura O Larguinho era das Flores. E a pessoa que eu pensei que era você, enfim, Ele morreu há três
anos, agora que eu lembrei...
Laura Mais era muito parecido com você... Por um minuto eu ate achei que fosse mesmo você, mas
enfim, não é.
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Laura Pois é.
Cláudio Entendi... Então, é isso ai... Acontece. (ri amarelo, voltando-se para sua rosa)
Cláudio Exatamente.
Cláudio (quase num murmúrio) Não sei... Pensei que pudesse ser...Mas acho muito jovem...
Cláudio Não... Eu não teria coragem...Fui me arriscar com você e você viu no que deu!
Laura Uma rosa vermelha em botão! Não é o tipo de coisa que uma jovem vá lembrar.
Laura Pergunte. Vamos, homem! Pergunte. Vai! Pergunta... O Maximo que você vai receber é um
não... Pergunta, homem! (se irritando com a inércia do outro) Olha, se você não perguntar eu
pergunto!!!
Laura Olha, não me diz o que fazer, não ta?! Eu detesto quando me dizem o que eu devo fazer.
Cláudio Desculpe,mas acho que isso é um assunto que só diz respeito am mim. A senhora nâo tem
nada haver com isso.
Laura Ah, há poucos instantes eu poderia ser a resposta de todas as suas perguntas, a sua dama
misteriosa do carnaval, o seu segredo de amor, o feitiço de Áquila, agora ` - o que eu tenho haver com
isso!`
Cláudio Não acho que essa moça seja a mulher com quem marquei um encontro, só isso.
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Laura Ah! Sim! Eu tenho cara de desquitada deprimida que marca encontro às escuras, mas aquela
jovem esvoaçante e loura não.
Laura E o senhor é um ridículo! Sim porque um homem da sua idade se dispor a um encontro as
escuras só pode ser um ridículo carente!
Cláudio Se a busca do amor pra você é ridícula, talvez eu seja mesmo um ridículo carente!
Laura (rindo) Busca do amor?Pelo amor de Deus, meu senhor! Isso é o que? Enredo do carnaval de
86? Um homem velho se prestando a esse papel...
Laura Não vê que isso pode ser uma brincadeira de alguém, ate uma criança mesmo. Fazendo você de
palhaço com uma rosa na mão!
Cláudio Eu não sei por que a senhora esta se incomodando tanto com isso. Sou eu que vou fazer papel
de palhaço, não é? Então, deixa eu fazer papel de palhaço, adoro fazer papel de palhaço!
Laura Quer saber? Faz o seu papel de palhaço, é bem a sua cara, Cláudio. Um palhação bobo!E eu
aqui com pena de você! Eu sou mesmo uma idiota...Claudique Cláudio! Claudique a caminho do seu
elo perdido em busca do seu grande amor! (debochado, cantarolando enquanto fuma) Claudique...
Claudique Cláudio...Quase Quasimodo... Quase alguém... Claudique Cláudio clownesco! Clemência a
Cláudio claustrofobico... Claudique Cláudio, claudique...Clandestino claudicado de um clero de cloro!
Cláudio clownesco...!!!!
(silêncio)
(silêncio)
(silêncio)
Laura Desculpa...
(tempo)
Cláudio (vira-se para a outra mesa) Olá senhorita, desculpe incomodá-la, mas a jovem por um acaso
espera por alguém que traga uma rosa vermelha em botão?
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Marcela (tirando o fone dos ouvidos) Oi?
Claudio A senhorita espera por alguém que traga uma rosa vermelha em botâo?
Marcela Não... Espero por minha irmã, não sei se ela vai trazer uma rosa vermelha em botão... Por
que?
Marcela Imagina!
(tempo)
Cláudio Sim.
Laura Olha, vai ver aconteceu alguma coisa... Vai ver ela se atrasou por algum motivo...
Cláudio Toma. (entrega a rosa para Laura) Se ela aparecer você diz que eu esperei por ela, mas enfim,
tive que ir embora...(indo ate o balcão, puxa o dinheiro.) Pela a água.
Cláudio Deixa eu ver...(procura na carteira, nos bolsos) Não. Só tenho essa nota.
Laura E agora que você se vira, criatura! Ele esta pagando, o troco é um problema seu!
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Marcela Olha, eu não sou burguesa, eu também levo uma vida muito sacrificada, mas não acho que
isso justifique um comportamento tão mal educado!
Dodô E o que justifica a existencia das relações das coisas? Que tipo de valores você pode estabelecer
pra mim? Que contuda? BaseaDA em que? Comparado em que?
Laura Cala a boca você, seu bostinha! Você pensa o que? Problema é seu se tem esse emprego
merda! problema é seu se não tem o que comer, problema é seu se ninguém te olha como gente,
problema é seu se não tem tv a cabo!Eu também queria ter muita coisa, meu filho! Mas não dá! A
pessoa é para o que nasce e pronto acabou! Nasceu pra ser pombo, então vai cagar em cima de
estátua e não enche a minha paciencia!Agora dá o seu jeito e arruma esse troco!
Marcela Você começou com isso! Você sabe que tudo que jogamos para o universo volta com força
tripla pra cima da gente?
Dodô Eu sou fruto de uma sociedade injusta e desigual! Eu posso perfeitamente justificar meus atos
por minha condição humana!
Laura Cara feia pra mim é fome!Pega uma arma e invade uma escola, mas não enche meu saco!
Dodô Burgueses!
Cláudio (grita) Calma gente! (tempo) Eu tenho certeza que o... (olha no crachá dele) Dodô, não esta
tendo um bom dia hoje e deve haver uma razão pra isso, que não nos diz respeito... Todo ser humano
tem direito de acordar com o pe esquerdo... Essa troca de ofensa só faz piorar as coisas e eu acho que
não é a melhor maneira de resolver o problema levando isso em frente. (respira fundo) E eu tenho
certeza que o Dodô se esforçará um pouco mais para conseguir o meu troco, não é Dodô? E eu tenho
certeza que as senhoras presentes só falaram o que falaram por conta do calor do momento, pois no
fundo no fundo eu tenho certeza que são mulheres muito educadas e civilizadas... Agora podemos nos
sentar e esperar pelo troco.
(silencio)
(Dodô sai)
(Um fiapo de musica no fundo, Vindo da musicbox. O tempo parece estar parado. Suspenso.
Permanece assim, ate que se ouve uma freada brusca de um carro do lado de fora do café.
Instintivamente todos olham para a porta de vaivém. Vozerio do lado de fora. Expectativa. Um ate se
precipita a se levantar da mesa e de fato levanta, mas volta a sentar logo depois. Entra Dodô. Todos
acompanham seu trajeto com o olhar. Dodô cata uma moeda na carteira, coloca na maquina de
chiclete, gira a manivela e a bola cai. Todos atônitos. Dodô mastiga a bola de chiclete
despreocupadamente, volta-se para sair.).
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Laura (finalmente) Espera,rapaz! (ele estanca. Todos numa aflição muda) O que aconteceu?
(Perplexidade, pavor)
Dodô Eu não falo com vocês. Relações cortadas! Hoje é o dia de le revolucion!(tira o avental e o
chapeuzinho)
Dodô Sim. (faz toda uma presepada) Ela estava vindo pra cá , daí por causa da pressa na hora de
atravessar a rua, essa daqui da frente, tropeçou e caiu, só que pro azar dela veio vindo na outra
direção um carro em disparada, nem deu tempo da coitada se levantar, o carro ate tentou frear, mas
já estava muito em cima... Só deu pra ver os olhos dela, assim, como a letra O... Esbugalhados...
(silencio. Todos envolvidissimos pela narrativa. Ele, blasé, continua.) Eu acho que vai precisar de uma
pa pra descolar a cabeça dela do asfalto.
Dodô Não. (vai saindo, vê a rosa vermelha em uma das mesas. ) Ah, ela trazia uma rosa vermelha em
botão na mão. Morreu agarrada na rosa. (para Claudio) Seu troco. (sai assobiando)
Cláudio Era ela! Era ela! Eu a atrai para a morte! (chora feito criança, jogado no chão)
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Cláudio Não...Não...
Laura Sim, um encontro às escuras, então, ele ta achando que essa mulher que morreu pode ser ela...
Marcela Tadinho, o pior é que com a cabeça dela esmagada nem da pra saber se ela foi bonita ou
não...
Marcela Desculpe.
Cláudio Tudo bem, tudo bem, eu devo desculpas. Acho que me descontrolei... Eu não costumo ser
uma pessoa descontrolada... Eu não sei o que me deu. Me desculpem.(se recompondo) Afinal de
contas quem acaba de morrer é uma estranha, completamente estranha... Dela nem sei o nome, nem
a cor ou idade, ou qualquer informação que possa dar o mínimo de humanidade a ela. Dela a única
coisa que sei é que agora esta morta. Totalmente.(ri triste) Humanamente morta.
(tempo)
Marcela Oi, meu nome é Marcela e eu só queria dizer que no que precisar, pode contar comigo! Pode
mesmo! Eu já perdi um amigo muito querido uma vez e eu sei o quanto é doloroso, mas se tem uma
coisa na vida que a gente...
Laura Criatura, você não ouviu ele dizer que essa mulher era completamente estranha a ele.
Cláudio Uma pessoa acaba de morrer e esse tipo de coisa acontece o tempo todo. Por favor, eu não
gostaria de falar mais nisso.
Marcela Ah, isso é verdade, o que tem de gente morrendo hoje não esta no gibi! E olha que eu li
numa revista asiática, que morrem mais de vinte pessoas por minuto no mundo. Gente, isso é muito
assustador! Eu fico chocada! Eu sei que pra morrer, basta estar vivo, mas por mais que tentemos nos
convencer é sempre muito complicado. Eu mesma, eu tenho a morte como uma coisa muito clara na
minha cabeça, eu sou uma pessoa espiritualizada e tudo mais, mas gente, na hora h é que a verdadeira
reação se manifesta, porque do contrario...
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Marcela (num murmurinho magoado) Ta bom, mas não precisava gritar também. Era só falar. Falava e
eu parava...
Marcela (animadora) Vai, Dança com ela. Vai te fazer bem, a sua cara não esta nada boa! E aposto que
já faz um século que você não dança! (coloca uma música para os dois na musicbox)
Laura Não era esculhambação, seu bobo... Acho que eu estava querendo chamar sua atenção...
Laura Digamos que eu não seja uma mulher com boas maneiras...(ri)
Cláudio (ainda consternado) Mas acho que poderíamos ter começado de maneira diferente...
Laura Eu não costumo ser uma pessoa descontrolada... Eu não sei o que me deu... Acho que foi a sua
presença... Desculpe...
Laura Não sei... Você é tão gentil... Tão atencioso... Cavalheiro... E Você chora...Eu acho lindo quando
alguém chora, principalmente homem. Chora como se tivesse botando a alma pra fora.Quando eu vi
você chorando eu falei pra mim mesma, fudeu! Esse cara chora... Esse cara vai mudar a minha vida...
Eu tenho que cuidar desse cara... Escuta, a ultima vez que eu chorei foi trancada dentro de uma cabine
de um banheiro publico, e eu colocava as minhas mãos dentro da boca e apertava a minha língua pra
que ninguém me ouvisse... Mas era uma bobagem... É que às vezes a minha dor é fingida, mas finge
tão bem que chega a doer... às vezes eu respiro muito mais forte do que realmente posso aguentar...
Eu acho que eu te amo...
Laura - Laura.
(musica)
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fim
(Ouvem uma freada brusca de um carro do lado de fora do café. Instintivamente todos olham para a
porta de vaivém. Vozerio do lado de fora. Expectativa. Entra Dodô. Todos acompanham seu trajeto
com o olhar. O Dodô cata uma moeda na carteira, coloca na maquina de chiclete, gira a manivela e a
bola cai. Todos atônitos. O Dodô mastiga a bola de chiclete despreocupadamente, volta-se para sair. )
Laura (finalmente) Espera! (ele estanca. Todos numa aflição muda) O que aconteceu?
(Perplexidade, pavor)
Dodô Não falo mais com vocês! Relações cortadas! O escravo pede arrêgo!(para Claúdio) Seu
troco!(tirando o avental e o chapeuzinho)
Marcela: Deixa de ser amargo, não custa nada falar o que aconteceu lá fora!
Dodô: Vai lá fora E pergunta, ora veja! Agora eu sou obituário ambulante!
Marcela: Cara, você sabia que tudo que a gente faz o universo joga com força tripla pra gente?
Dodô: (misterioso) Um assassinato. A vítima atravessava a rua com certa dificuldade, porque usava
muleta e foi atropelada propisitalmente...Quando é assim, coisa boa é que a figura não fez!
Laura: (estarrecida)
Dodô: (mais misterioso) Não, o carro saiu em disparada e mesmo se tivesse visto ninguém teria visto.
Enfim, ta tudo perdido, mesmo!
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Laura ... Com licença.
Marcela (sussurra atenta à porta do banheiro) Você ouviu o que o garçom acabou de falar?
Marcela Você não acha que ela teve Alguma coisa haver com isso?
Marcela O Dodô falou com todas as letras que viu o carro na espreita da vitima...
Cláudio Pelo amor de Deus, ela estava aqui o tempo todo conosco...
Marcela (tira um livro da bolsa) "A mulher diabólica", capaz de tudo para atingir seus objetivos mais
cruéis!
Claudio hum... Nunca li, não gosto muito da Agatha Christie... Ela é muito FANTASIOSA.
Marcela Ela planejou tudo isso, foi a mandante do crime e com certeza nos usará como testemunhas
de sua falsa inocência...Atrai sua vitima num falso telefonema e deixa tudo aqruitetado com seu
cumplice, de certo um amante ou uma amante , sim! Ela planeja tudo, o crime perfeito, sem nenhuma
pista, afinal de contas ela estará inocentada, claro, estava tomando um café com tres pessoas como
testemunhas! Tudo resolvido com um simples telefonema: (tira um dvd da bolsa) "Disque M para
matar".
Cláudio E se fosse ela a assassina, você acha que ela ia ter essa crise até agora?
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Marcela Pode ate estar arrependida,vai ver era o marido velho e rico, porém paternal e com uns traços
de Jesus de Nazaré. É fácil matar, dificil é se conviver com a culpa.(tira de sua bolsa um programa da
peça "Macbeth") Lady Macbeth, corroída pela culpa e a ambição, chega a loucura com uma mancha
maldita vermelha do sangue de sua vitima, nas mãos. Por mais que as lave, jamais voltaram a
imaculação! A gente precisa descobrir a verdade, um inocente com muleta acaba de ser assassinado,
não podemos fechar os olhos diante disso!
Marcela Você vai me ajudar, eu olho na bolsa dela e vejo o telefone, deve ter o numero da vitima
gravado na ultima chamada. Porque você ouviu bem que ela ameaçava alguém no telefone, há poucos
instantes atrás. E o morto usava muletas e ela disse a você que esperava por alguém que usava
muletas!Tudo se encaixa!
Marcela Por isso mesmo. Não sabemos do que ela seria capaz de fazer! Já pensou se ela desconfia de
alguma coisa e decidi nos matar...
Marcela É nossa obrigação desmascarar essa mulher e resolver o crime! Se ela for realmente
culpada, não sairá desse café impune! Você precisa me ajudar!
Marcela Tudo bem, tudo bem, eu é que devo desculpas. (entre os dentes) Afinal de contas quem
acaba de ser assassinado é um estranho, completamente estranho, um zé ninguém , um indigente, um
fósforo queimado, perfume evaporado, a sapucaia do cocô!... Dele a única coisa que sabemos é que
agora esta morto. Totalmente. Humanamente morto!
Cláudio (rápido) Nada de mais... É que ela marcou um encontro com uma mulher desconhecida aqui...
Laura Ah, um encontro às escuras! (indo ate o bar e procurando algo de forte para beber)
Cláudio (trêmulo) Sim, um encontro às escuras, então, ela ta achando que essa pessoa que morreu
pode ser a mulher que ela esperava...
Cláudio O que?
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Marcela (para Laura) Senhora, o meu amigo está tímido, mas ele gostaria de tirá-la para dançar...
Dança com ele.
Marcela Dança com ele! Ele É muito tímido, mas adoraria que a senhora aceitasse o convite... Ele
estava conversando aqui comigo, pedindo uma ajudinha...Sabe como é... Inseguro! Mas eu falei pra ele
que tinha certeza que a senhora não iria se opor, já que não tem nada demais é só uma dancinha pra
distrair a mente! (sinaliza para Cláudio)
Marcela Imagina, estamos todos impressionados com o que acabou de acontecer, precisamos
relaxar... (vai empurrando Laura para Cláudio) Dancem enquanto eu preparo algo para beber, eu já fui
garçonete, sabia? Sei fazer milagres no bar! (animadora) Vai, Dança com ele.Vai te fazer bem, a sua
cara não esta nada boa! E aposto que já faz um século que você não dança!
(ela quase cola um no outro, corre para a musicbox e coloca uma musica qualquer. Os dois dançam.
Ele, desconcertado, sorri amarelo. Enquanto dança com Laura, faz de tudo para que ela não perceba
que Marcela procura em sua bolsa o seu celular)
Cláudio (evidentemente tenso) Não posso convidar uma mulher para dançar comigo?
Cláudio Não era esculhambação, sua boba... Acho que eu estava querendo chamar sua atenção...
Cláudio Digamos que eu não seja um Homem com boas maneiras...(ri amarelo)
(Marcela acha o telefone, comemora sinalizando para Cláudio. Agora ela procura o numero da ultima
chamada e procura papel e caneta para anotá-lo, sinaliza novamente pedindo mais tempo)
Cláudio E Você não chora!...Eu acho lindo quando alguém não chora, principalmente mulher. (ri
nervoso) Porque se tem uma coisa mais irritante nesse mundo é mulher chorona... É chato mesmo!Eu
tive uma namorada, Lindsay, ela chorava muito. Fiquei traumatizado. Enfim, Quando eu vi você eu
falei pra mim mesmo, caramba, essa mulher vai mudar a minha vida...
Cláudio Sério...
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Cláudio Essas coisas não se explicam...Acontecem...
(Marcela anotou o numero, faz um novo sinal para Cláudio, esta colocando algo na bebida que servirá
a Laura, ele reage na mesma hora com um olhar espantado)
Cláudio Não, não É o caso! É que às vezes a minha dor é fingida, mas finge tão bem que chega a
doer... (ri tenso)
Laura (estranhando o estado do outro) Você está se sentindo bem? To te achando tão esquisito... Acho
melhor voltarmos aos nossos lugares... (quando vai virar-se e dar de cara com Marcela adulterando
sua bebida, Cláudio lhe tasca um beijo desesperado e impede o flagrante).
Marcela Um brinde ao amor!As possibilidades de amar!!! Pra você!!! Qual é mesmo seu nome?
Laura Laura.
(Suspense. Musica alta. Mais suspense. A musica intensifica o clima. Expectativa. Em poucos
minutos Laura tonteia e cai. Cláudio e Marcela se olham em cumplicidade perplexa).
Fim
( Ouvem uma freada brusca de um carro do lado de fora do café. Instintivamente todos olham para a
porta de vaivém. Vozerio do lado de fora. Expectativa.)
(Perplexidade, pavor)
Claudio É possivel...
Marcela Eu também ouvi direitinho um carro atropelar alguém, juro... Ouvi até o osso ser
quebrado...ouvi sim...
(silêncio reflexivo)
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Claudio: Podemos ir lá ver...
Laura Não sei...ele saiu daqui tão transtornado... Não voltou até agora...
(um certo desconforto entre todos que fingem falsa naturalidade,sem energia emocional)
Marcela (quase num sopro) Que horror, gente... Será? Sabe que eu nunca conheci um pré defunto
antes... Quer dizer, em teoria, Todos nós somos meio pré defunto, claro... Mas um assim, tão pré... Tão
expresso... Mal conheci e já morreu... Que horror... O ser humano não vale nada mesmo...
Laura Ah, isso é verdade, o que tem de gente morrendo hoje não esta no gibi! E olha que eu li numa
revista asiática, que morrem mais de vinte pessoas por minuto no mundo.
Marcela Mentira!
Laura Verdade.
Cláudio Eu tenho a morte como uma coisa muito clara na minha cabeça, eu sou uma pessoa
espiritualizada (tira do bolso de seu paletó um livro) "Violetas na janela".
Laura Mas é na hora h que a verdadeira reação se manifesta, aí ninguém sabe ao certo o que vai
sentir...
Cláudio Câncer.
Cláudio Eu sei o quanto é doloroso, mas se tem uma coisa na vida que a gente não sabe lidar direito é
com a morte...
Cláudio Um horror...
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Marcela E esse menino, hein, gente? Imagine o desespero desse garoto...
Cláudio Ah, mas essas coisas nunca da pra saber direito o por que, não é?
Laura Quantos e quantos jovens como ele são massacrados por dia e nos como burgueses ainda
sustentamos esse ciclo de exploração...
Cláudio A mídia é isso mesmo...E o povo é o que? O povo é o resultado disso tudo.
(silêcio reflexivo)
Marcela (numa idéia lenta) Gente, se o garçom morreu, quem vai trazer a conta?...
(breve silencio)
(os três entreolham-se, tentam conter, disfarçam, seguram, mas acabam explodindo em gargalhadas)
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Marcela Deixa de ser chata! Vai te fazer bem, a sua cara não esta nada boa! E aposto que já faz um
século que você não dança! Dança comigo... (tempo) Dança...
Cláudio (do bar já mexendo nas bebidas e se servindo) Vai, Dança com ela!
(As duas dançam uma música animadinha. O espírito de liberdade toma os três que zoneiam todo o
café, bebem, cantam alto, como ratos na ausência do gato).
Marcela (em voz alta para ser ouvida) Você faz o que?
Laura Há?
Marcela(rindo) Que ótimo! Eu adoraria não fazer nada!!!! (dançando) Eu sou professora de inglês.
Laura Legal.
Laura O que?
Laura Ah...
Marcela Eu sou duraça! Não tenho grana pra nada! Moro num conjugado com minha irmã. Por isso
não é difícil pra eu me colocar no lugar desse garçom...
Laura Ah!
Marcela Eu sei que é um saco agüentar mau humor dos outros o dia inteiro, se eu continuasse sendo
garçonete , já fui garçonete!, eu também acabaria dando um tiro na minha cabeça ou sei lá, me
atirando na frente de um carro!Porque pra mim, foi isso o que aconteceu: ele nâo aguentou a pressâo.
LauraPor que?
Marcela Por que já fui baby sitter, secretaria, telefonista, dançarina...Tudo é muito estressante...
22
Marcela Eu já fui dançarina!
Laura Eu também.
Marcela Serio?
Marcela Dançava numa boate aqui perto... Uma merda, mas pagavam bem...
Marcela Não tava dando pra conciliar com os estudos...E eu sempre quis ser professora de inglês,
então daí...enfim! Mas como eu ia dizendo, eu sei que ser garçonete não é das melhores coisas pra ser
na vida... Você vai ficando invisível, e vai dando um desespero por dentro, uma sensação estranha,
uma coisa horrível, menina...
Marcela Oi?
Marcela O que?
Marcela Ah! (tomando um tom abstrato, evocativo, quase que como trasportada. Sussura num
microfone.) Às vezes antes de dormir, eu fico olhando da janela do meu conjugado, eu moro no oitavo
andar sabe?
Marcela (ainda quase sussurrada) Daí eu vejo uns garotinhos de rua, eles andam tudo em bando e
sabe de uma coisa?
Marcela Eles parecem ratinhos... Ratinhos marrons, carecas... Eles vasculham o lixo que nem ratos,
juro pra você! É uma coisa estranhíssima...São tantos e tão carecas, e tão magros...estranhissimo...
Marcela Aquelas crianças pretinhas parecem ratos, daí eu fiquei pensando, será que eu sou burguesa
e não sei? Eu tenho pavor de ratos... Será que elas passam doenças... As crianças ? Aí eu desisti de me
jogar...
Laura Laura!
(musica alta)
fim
23
4
(Batida de carro)
Dôdo: (trágico) Ela estava vindo pra cá , o sinal fechou, ela se decidiu a atravessar a rua e foi nessa
hora, que veio um carro e passou por cima dela numa violência de cavalo. Cantou pneu e sumiu na
fumaça! (tempo) A cabeça dela ficou amassada, vão precisar de uma pa pra descolar do asfalto.
(Dôdo petrificado)
Laura Pega um copo dágua pra ele, criatura, o garoto parece que viu assombração.
Marcela Ah, mas é assim mesmo. A gente tem que saber conviver com isso. O ser humano está
fadado!
Cláudio Ah, isso é verdade, o que tem de gente morrendo hoje não esta no gibi! E olha que eu li numa
revista asiática, que morrem mais de vinte pessoas por minuto no mundo.
Marcela Mentira!
Cláudio Verdade.
Marcela Eu sei que pra morrer, basta estar vivo, mas por mais que tentemos nos convencer é sempre
muito complicado.
Cláudio Isso é, eu mesmo, eu tenho a morte como uma coisa muito clara na minha cabeça, eu sou uma
pessoa espiritualizada...
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Laura (numa falsa calma) Cláudio...Chega aqui rapidinho...
Cláudio Oi?
Laura (do outro lado, mais enérgica) Chega aqui, rapidinho, por favor...
Cláudio Fala daí eu te escuto, eu to num papo legal aqui com a...
Marcela Marcela.
Cláudio (amável para Marcela) Um minutinho, vou ver o que ela quer e já volto, ok?... (vira-se para
Laura já transformado de raiva) O que você quer, sua maluca? Sua doida! Você adora dar show, ne? É
isso que você gosta! Você quer ibope! Ibope!
Cláudio O que?
Laura A mulher que acaba de morrer, era a irmã dela. (olha para Marcela que se maquia
distraidamente)
Laura Era ela, Cláudio, era ela! Você nâo viu como o rapaz ficou chocado ao ver essa moça? Ele teve a
nítida sensação de estar vendo a mesma garota que acabou de morrer.Só pode ser a irmã dela.
Laura (tira um livro da bolsa) "O corpo fala"! Eu sou muito boa em leituras corporais! E além do mais,
lembra quando você perguntou se ela estava esperando por alguém, o que ela te respondeu...?
Laura Exatamente! Você não acha muita coincidência essa garota estar esperando pela irmã e uma
mulher idêntica a ela acabar de morrer quando estava vindo pra cá?
Laura Você vai me ajudar, eu não tenho cara de dar essa noticia sozinha a ela. E a coitada não pode
ficar aqui esperando pela irmã que não vai chegar nunca.
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Cláudio (agudo) E o que você quer que eu faça?
Laura Se ela for realmente irmã da morta, imagina ela se deparando com o cadáver desfigurado aqui
na porta! A criatura é capaz de ter um ataque cardíaco se for hipertensa! Ela não sairá desse café sem
saber de toda a verdade!
Laura Bobagem... É que ele marcou um encontro com uma mulher desconhecida aqui...
Laura Sim, um encontro às escuras, ele ta achando que ela não vem mais e tal...
Cláudio É.
Marcela Tadinho, o pior é que com você não vai saber se ela É bonita ou não...
Laura Querida, o Cláudio tem uma coisa que ele gostaria de lhe dizer...
Cláudio (Pigarreia. Suspira profundo. Solene) Bem, você vai precisar ser forte nesse momento. Na
verdade, muito forte. Eu diria até que, muito forte mesmo. Além do forte, até! Muito, muito, muito
forte. Fortíssima ao extremo, forte radical, forte demais, forte ao infinito, forte extragrande, forte chá
de boldo, forte...
Marcela (num sorriso tenso) Ai gente... O que foi? Estou ficando nervosa...
Cláudio (ainda solene) Bem, acontece que nesses momentos é preciso manter a força... Ser forte
gente grande, forte café de vó, forte...
Cláudio (entre os dentes) Calma, essas coisas não podem ser ditas assim!
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Marcela (mais tensa ainda) Que coisas?
Cláudio Eu não estou enrolando, só acho que esse não é o tipo de coisa que se diz assim na lata! Tem
que ter toda uma preparação!
Laura Pelo amor de deus! Que preparação! Você chega aqui e diz, não tem nada demais!
Cláudio Eu só acho que nessas horas o sentimento fala mais alto que o pragmatismo.
Laura Você tem problemas em ser direto com as pessoas, isso sim.
Cláudio Ah, então por que você não se encarregou de falar com ela no meu lugar?
Laura Por que você é homem e nessas horas é bom que seja um homem, tem toda essa babaquice
freudiana que determina essa relação!
Cláudio Não, você não fala porque você é covarde, se faz de forte, mas no fundo, no fundo é uma
covardona. Projeta nos outros aquilo que é incapaz de realizar sozinha.
Marcela (amarela, num fiapo de voz) To passando mal, gente... ai meu deus, to passando mal...
Laura Covarde?! Há! Isso vindo de você parece até uma piada!
Cláudio Então por que você não vira e conta tudo pra ela?
Laura Por que estou te dando a grande chance da sua vida! A chance de exercer um papel de
importância, de ser alguém com alguma coisa há dizer de verdade, alguma coisa importante! E não só
um idiota esperando por alguém que não vai chegar! Estou fazendo de você um alguém inesquecível
pra essa garota! Mas você não sabe lidar com as boas chances da vida e por isso tem esse ar de
fracassado!
Cláudio Ah, e você com certeza deve ter triunfado! Sim, estou vendo na sua cara o triunfo! Você
transborda sucesso por todos os poros! Só não consigo entender por que se agarra desesperada em
qualquer estranho que te dê mais de quinze segundos de atenção!
Laura Você não sabe nada da minha vida, não sabe da missa um terço, do limão a metade e eu acho
que perdeu uma boa chance de calar sua boca!
Cláudio E porque você não pega essa chance e enfia no seu cu?! Por que eu estou de saco cheio de
suas grosserias e de seus achismos!
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Laura Ah, finalmente, eu vejo que corre sangue nessas veias e não suco de laranja!
Cláudio Sabe o que é isso? Isso é falta de homem! Falta de um pau bem grosso no meio das suas
pernas!
Laura Então você acha que os problemas de uma mulher podem ser resolvidos com um pau bem
grosso no meio das pernas?
Laura Pois eu acho que é você que deseja um pau bem grosso no meio do seu cu, seu filho da puta!
Marcela O que?
Cláudio Olha, meu nome é Cláudio e eu só queria dizer que no que precisar, pode contar comigo!
Pode mesmo! Eu já perdi um amigo muito querido uma vez, eu sei o quanto é doloroso, mas se tem
uma coisa na vida que a gente...
Laura (séria) é que o garçom... Enfim... A moça que morreu lá fora era idêntica a você, ele ficou muito
espantado quando te viu... E como você disse que esperava sua irmã, bem, não sei, eu pensei que
talvez pudesse ser coincidência demais e é isso. A sua irmã está morta.
Marcela (Fica em silencio por alguns instantes. Em seguida vai tentando controlar uma vontade
irresistível de rir. Tentando, tentando. Por fim explode em uma gargalhada satânica. Laura e Cláudio
surpresos com a reação são incapazes de qualquer comentário. Marcela transformada berra o mais
alto que pode) Bem feito!!!!!!!!!!!!!! Bem feito!!!!!!!! (gargalhando) Bem feito!!!!!!!!! (rola no chão de
tanto rir, completamente descontrolada) Bem feito!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!(sai do
bar gritando)
(silêncio)
(tempo)
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Cláudio (de longe) Desculpa.
Laura Oi?
Cláudio Desculpa. Eu não queria ter dito aquilo... De verdade... Eu não acho que você precise de um...
Enfim... E eu também nunca bateria em você. Eu nuca bateria em ninguém, na verdade... Desculpe.
Laura Tudo bem, eu é que te devo desculpas. Acho que me descontrolei... Eu não costumo ser uma
pessoa descontrolada... Eu não sei o que me deu. Eu também não acho que você precise de um... Bem,
me desculpe. Eu não tenho sido legal com você...
(tempo)
Laura Agora?
Claudio Agora.
(tempo)
Laura Sim.
Cláudio Sim?...
Laura Sim.
Cláudio Sim...
Laura Laura.
Fim
Dodô (Apocalíptico, com Marcela desacordada em seus braços) Alguém acaba de morrer lá fora!
Black-out Fim
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