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STABAT MATER

São Paulo – 2018


De Janaina Leite com dramaturgismo de Lara Duarte e Ramilla Souza1

Figuras

A PALESTRANTE grávida em azul celeste


PRÍAPO, o profissional, sempre de máscara
A MÃE com vestido vermelho

Uma mesa preparada para uma palestra: um microfone, uma plaquinha com o nome da
palestrante “Janaina Fontes Leite”, um copo d’água, um vaso de vidro cheio de
bijuterias e um facão. Uma tela de projeção com tripé. Um palco com uma barra de
pole dance. Um mancebo com algumas roupas masculinas, um chapéu e máscaras
brancas; uma pilha de colchões, um carretel grande com fios e fios desenrolados,
agulha. Piscando ao fundo, um letreiro em neon, com duas palavras em latim. A luz
fria de um ambiente de estúdio/palestra/céu se alterna com a luz rosa choque de
boate/inferninho.

Música animada durante a entrada da plateia. Na projeção, alternam-se homens que


dançam sem camisa usando um cabeção de festa infantil.

Prolegômenos – termo derivado de um particípio grego que significa “as coisas que


são ditas antes” - ou Abismo dentro do abismo

Corte seco na música.

PALESTRANTE –“Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher


revestida de sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas.
Estava grávida e gritava de dores, sentindo as angústias de dar à luz. (…)Ela deu à luz
um Filho, um menino, aquele que deve reger todas as nações pagãs com cetro de ferro.
(…) E, ao termo de seus dias, à Mulher foram dadas duas asas de grande águia, a fim de
1
O texto esteve entre os finalistas do Concurso Nascente 2018 da USP e foi escolhido, dentre mais de
200 textos, entre os três que serão encenados com apoio do Edital de Dramaturgia em pequenos formatos
do CCSP 2018.

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voar para o deserto, para o lugar de seu retiro, onde é alimentada por um tempo, dois
tempos e a metade de um tempo, fora do alcance da cabeça da Serpente.” Apocalipse
12, versículo 1.

A palestrante vai até um mancebo e veste um chapéu, um terno e uma máscara. Se


move lentamente pelo espaço em direção à plateia. A imagem hesita entre o
fantasmagórico e o patético.

PALESTRANTE (tirando a máscara) - Boa noite. Obrigada por terem vindo.

O que está acontecendo aqui, o que vai acontecer aqui vai, na verdade, re-acontecer. Já
aconteceu, em algum lugar, em algum tempo, antes, pouco tempo antes às vezes, mas
também muito, muito tempo antes, séculos eu diria.

Eu vou ter que começar falando de um outro espetáculo, um espetáculo anterior a este.
E esse é um movimento que vai ser preciso fazer algumas vezes hoje. Voltar. Retornar.

Bom, a primeira coisa para qual eu vou precisar retornar é essa cena que eu comecei
ainda há pouco quando eu vesti essa roupa, esse chapéu, essa máscara e caminhei até
vocês fazendo uma dancinha. Essa cena pertence a um espetáculo que eu fiz sobre meu
pai depois de 7 anos em processo de criação, que se chama “Conversas com meu pai”.

Eu não estava, portanto, fazendo essa cena. Eu estava mostrando ela, como quem dispõe
as peças de um quebra-cabeças, ou prega em um mural uma pista importante. É dessa
maneira que preciso que vocês olhem para isso aqui que eu estou começando a mostrar
agora.

No espetáculo, já vestida assim, eu ponho um disco em uma vitrola antiga e me movo


pelo cenário que é basicamente um monte de plantas e coisas velhas, intocadas, uma
espécie de cenário totem porque praticamente nada nesse amontoado de coisas era
usado. Uma dessas coisas era o facão. Ele não era visto pela plateia, não era
mencionado em nenhuma cena, mas era importante para mim saber que ele estava lá. O
facão.

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Eu passo por esse monte de coisas, mergulho em uma piscina com água fria e
encharcada, anuncio um trecho do Gênesis, versículo 21, que fala das duas filhas de Ló
que, frente a uma catástrofe provocada por Deus que praticamente dizimou toda a
humanidade, decidem embebedar e dormir com o próprio pai para gerar dele uma
descendência.

Dormir, aliás, é a figura de linguagem em muitos idiomas para “ter relação sexual, fazer
sexo”. Isso vai ser importante daqui a pouco.

(a música “Amor perfeito” de Roberto Carlos, começa a tocar).

Eu estou fazendo o caminho de volta a uma espécie de origem, o “onde tudo começou”.
Re-fazendo, na verdade. Porque de tempos em tempos essa origem é um lugar para onde
eu preciso voltar.

Essa música que está tocando, por exemplo, estava lá, na origem, depois entrou na peça
“Conversas com meu pai” em uma cena em que eu falo, cada vez mais alto, até ter a voz
completamente encoberta pelo volume ensurdecedor da canção, e retorna agora.

(crescente da música)

Talvez seja inevitável aqui um certo efeito estranho de uma coisa dentro da outra, como
aquelas bonecas russas ou como aquele quadro onde se vê uma mulher de verde com
um brinco grande na orelha esquerda onde pode-se ver uma mulher de verde com um
brinco grande na orelha esquerda (a música cessa) e assim infinitamente, compondo
uma narração em abismo. A última cena da peça, “Conversas com meu pai”, é a
seguinte:

Projeção da última cena da peça “Conversas Com Meu Pai”. No vídeo, uma mulher
jovem, de vestido vermelho em um cenário cheio de plantas. Uníssono da projeção com
a fala ao vivo.

PALESTRANTE - “Essa foi a primeira versão. E também depois dela eu achei que ela
não servia. E também depois dela eu achei que nada mais seria possível. Pela primeira

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vez eu achei que algo tivesse acabado ali. Acho que várias vezes durante o processo eu
quis achar que ele tivesse acabado, eu quis me ver livre disso tudo. Mas a gente não se
livra dessas coisas. A gente não está livre dessas coisas. A Liberdade é sempre
negociada. Ela é sempre uma condicional. Ultimamente eu voltei a ter sonhos com ele.
Eu quase escuto uma vozinha me dizendo: você devia parar de mexer nessas coisas.
Mas não é por isso que eu sonho. Sempre que eu sonho com ele, hoje eu sei, é um sinal.
Sempre que ele vem é porque alguma coisa dói em algum lugar. Talvez porque alguma
coisa doa em algum lugar que já doeu antes. Ele vem me avisar. ”

Projeção: ROMANCE FAMILIAR

PALESTRANTE – Alguém aqui já ouviu falar da teoria do romance familiar? Todo


mundo, cada um aqui carrega uma constelação incestuosa de personas sexuais que a
gente traz do berço à cova e que determina a quem e como amamos e odiamos. Todo
encontro, com amigo ou inimigo, todo choque com autoridade ou submissão a ela traz
os traços perversos do Romance Familiar. O amor, incluindo o sexo, é um teatro lotado.
Uma representação, uma atuação ritualística derivada de realidades passadas.

Eu achava que com aquele espetáculo eu tinha conseguido encerrar um ciclo, fechar o
livro do meu “romance”. Mas a gente “não se livra dessas coisas, a gente não está livre
dessas coisas”. E a certa altura, eu comecei a me dar conta que faltava uma peça, uma
personagem na trama do meu romance. Afinal, o incesto é uma situação onde há sempre
três pessoas e somente dois lugares.

Só que as coisas não fazem sentido exatamente na hora em que acontecem. O trauma
está sempre atrasado em relação ao fato que o desencadeou. Por exemplo, uma
menininha de três anos se aproveita de uma distração momentânea da mãe para enfiar
um ferro de lareira no pescoço da irmã menor de um ano. Na ocasião, não se notou
nenhuma reação mais evidente em nenhuma das duas. Curado o ferimento, que foi bem
grave, a vida seguiu normalmente. Mas alguns anos depois, a irmã mais velha, começou
a demonstrar surtos de ansiedade, vômitos repentinos, tremores, dores sem causa
aparente, medos paralisantes, vontade súbita de chorar. Já adolescente, depois de se
queimar acidentalmente com um ferro de passar roupa, ela teve os elementos

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necessários para entender a gravidade do que aconteceu antes. A isso dá-se o nome de
segundo tempo do trauma.

Em 2012, eu fiquei grávida do meu primeiro filho, em 2014, do segundo. Eu virei mãe.
E quase como em um efeito de golpe tardio, - como se a minha própria maternidade
fosse o contexto que faltava para eu ler o que se dera antes, muito tempo antes, séculos
eu diria - eu comecei a me perguntar onde estava, onde esteve a minha mãe, a “MÃE”
em todos esses anos. Um apagamento completo, quase grosseiro, hoje eu sei, mas que
eu nem sequer percebi.

E em 2017, eu encontrei um texto teórico que respondia indiretamente à minha


pergunta. Um texto chamado “Stabat Mater”, cuja a tradução é justamente, “estava a
mãe”. Stabat Mater é também o nome de um poema ou prece do século XII que começa
com as palavras “Stabat Mater dolorosa” ("estava a Mãe sofrendo"), e fala sobre o
sofrimento de Maria durante o calvário de Jesus.

Apesar de teórico, é um texto bastante curioso na sua estrutura porque ele vem dividido
em duas colunas, como se trouxesse a marca de uma cicatriz, de uma falha. De um lado,
a TEORIA. De outro, a DOR. A coluna da teoria eu dividi, propus um percurso que vai
da história de Maria, “A MÃE”, passando por uma mãe qualquer daí, eu, você, você
(apontando alguém da platéia), a minha mãe (aponta a mãe em cena), até chegar aos
filmes de terror e na pornografia. Pode parecer um percurso esdrúxulo, mas é o que vai
justificar o cenário terminar todo desmantelado e cheio de sangue no final.

A outra coluna, a da DOR, eu não dividi. Não dá. É mais um bololô mesmo. São coisas.
Pedaços de coisas. Eu vou encaixando conforme der. Talvez não dê muito. Daí vai ficar
sem encaixar mesmo.

O que importa é que tudo que eu venho fazendo desde então é a tentativa de produzir
algo, uma espécie de ato psicomágico - uma ação real que produza consequências
simbólicas ou uma ação simbólica que produza consequências reais, mas que devolva
cada uma dessas figuras às suas devidas posições.

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Por hora, é suficiente dizer que não foi sem espanto que, ao percorrer de volta o
labirinto minotáurico que foi o processo de “Conversas com meu pai”, eu me dei conta
dessa espécie de ato falho. Me dei conta que na sombra dessa tragédia incestuosa onde
protagonizavam, absolutos, pai e filha, ainda que denegada, foracluída, "a mãe lá
estava".

Ao fundo, uma lâmpada se acende sob a MÃE, sentada em uma cadeira, compenetrada
em sua ação de pentear infinitos fios de cabelo emaranhados.

Projeção: STABAT MATER

Áudio em off “Mãe Dolorosa:

Cantando “Pela Virgem dolorosa, nossa Mãe tão piedosa, perdoai-me meu Jesus,
perdoai-me meu Jesus.”

Elas cantavam que elas tinham aquele agudo que penetrava no céu, era lindo! E uma
vez que eu fui levar vocês três na missa comigo, imagina, eu não conseguia carregar
uma no colo, a outra na mão, a outra não sei o quê, aí eu fiquei sentada do lado de fora
da Igreja numa tristeza tão grande, que eu voltei pra casa, foi um vazio muito grande,
não dá pra mim ir mais, sabe? Eu chorava, chorava, chorava, por causa da minha vida
muito triste que eu achava, então eu chegava lá e meu choro era um lamento de, sei lá,
um pedido de socorro pra Igreja, imagina que alguém pode fazer alguma coisa, doce
ilusão, desculpa. Foi um tempo de...de...eu achei que fosse de perdão né, mas no fundo
eu sempre quis ouvir o pedido de perdão dele, ele nunca me pediu perdão. Porque ele
me fez eu sofrer muito, né?! Sofrer não, judiou, eu não tinha tempo de sofrer. Quando
ele tava bêbado, muito! Que ele ficava enchendo o saco e eu queria dormir ou os
vizinhos ou isso e aquilo, é feio falar? Eu cheguei a pegar um tal de Nilsin, uma coisa
assim, que três gotinhas apagava, eu tentei...ele dormindo, tentei pingar na boca dele,
várias vezes, nunca consegui, porque parece que é uma coisa... a hora que... e o medo
também de estar fazendo alguma coisa errada, que eu não sabia se podia misturar
alcool com tranquilizante, então eu nunca fiz. Percebi que eu não tinha raiva dele
quando eu fui cuidar dele quando ele teve câncer. Quantas descidas e subidas nessa
serra. Então eu não tinha raiva dele, mas eu tinha mágoa. Quando vocês saíram pra

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descansar um pouco de ficar lá no hospital, eu fiquei sozinha com ele no quarto. E ele
tava morrendo, eu ainda fiquei cantando pra ele aquelas músicas do Roberto que ele
gostava. “As flores do jardim da nossa casa morreram todas, a saudades de você não
sei o que…” Aí eu falava que eu perdoava ele, mas no fundo eu sei que eu não perdoei,
né?

A mãe ao fundo começa a cantarolar.

PALESTRANTE - Finalmente, é sobre ela, a Virgem Maria, que eu vim falar hoje
aqui. Aliás, eu preciso começar dizendo que “Virgem” é um erro de tradução. O
tradutor teria trocado o termo semítico que designa o estatuto de uma jovem não casada
pelo termo grego pathernos que especifica uma situação fisiológica e psicológica: a
virgindade.

Seja como for, a cristandade ocidental vai orquestrar esse “erro de tradução”, projetar
nele seus próprios fantasmas e produzir assim uma das construções imaginárias mais
poderosas de toda a história das civilizações: a fusão entre o feminino e o maternal, a
partir do protótipo de uma Virgem Mãe que concebeu dormindo e sem pecado.

Curioso o tema da imaculada conceição, dessa concepção sem sexo, ter se tornado tão
determinante, mesmo que mencionado não mais que duas ou três vezes na Bíblia.

Por exemplo, em Mateus, capítulo 1, versículo 20 “eis que em sonho lhe apareceu um
anjo do senhor, dizendo: José, filho de Davi, não temas receber Maria tua mulher
porque o que nela está gerado é do Espírito Santo”. E em Lucas, capítulo 1, versículo 34
“E disse Maria ao Anjo: Como se fará isto, visto que não conheço varão?”.

Essas breves alusões inauguram um imaginário sobre essa suposta virgem que vai se
alargando e se firmando ao longo dos séculos em favor de uma fecundação sem
sexualidade, de acordo com a qual uma mulher, sem a intervenção masculina, concebe
só com uma terceira pessoa, uma não-pessoa, o Espírito.

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Mas afora sua fecundação e morte que, não coincidentemente, perpassam o sono, o
dormir, a verdade é que os evangelhos pouco dizem a respeito da história de Maria.
Sabemos de Maria apenas por e para seu filho.

Afinal, “Stabat Mater”, no momento em que Jesus é açoitado, surrado e cuspido pela
multidão que zombava. Stabat Mater quando ele se recusa a beber o vinho misturado
com bile que os soldados lhe oferecem em uma esponja antes de lhe cravarem uma
coroa de espinhos na cabeça. Stabat Mater durante as seis horas que Cristo teria
resistido já com pés e pulsos pregados à cruz. Stabat Mater quando o dia ficou escuro,
um terremoto fez tremer a terra e o filho gritou aos céus, pouco antes de morrer,
“porque me abandonaste, Pai”?

Mas Stabat Mater. Ou, “estava a mãe”. Porque a mãe sempre está.

A lâmpada sobre a MÃE se apaga, ao mesmo tempo que o som de passos pesados toma
o espaço e um foco de luz revela os coturnos pretos que descem a escadaria ao fundo e
voltam a desaparecer na escuridão.

A fala da Palestrante será pontuada por imagens e palavras na projeção.

PALESTRANTE - A imagem de uma mulher fecundada durante o sono, sem prazer


mas também sem pecado, inconsciente, passiva, vai se tornar quase um lugar comum,
um tropo, seja nos contos de fada em que a princesa é visitada pelo príncipe, seja nos
filmes de terror, por monstros e demônios, geralmente enquanto ela dorme. Isso,
obviamente, não é coincidência.

Só pensar em um clássico como “O bebê de Rosemary”, por exemplo, fazendo com que
ela mesma gere em seu ventre o filho do monstro. Tanto faz se é Jesus no ano zero ou
Alien nos anos 90, o corpo da mãe é sempre receptáculo, intervalo, passagem.

Mas não só as mães, todas as donzelas e a maior parte das heroínas, são forjadas a partir
desse protótipo que se tornou a Virgem Maria. Por exemplo, nos Slasher movies dos
anos 80, e a repetição da figura feminina “Final Girl”. Geralmente vê-se uma mulher
correndo, ensanguentada, em uma estrada vazia, fugindo do monstro ou do assassino

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que a essa altura já matou todos os amigos dela, principalmente as amigas mais
arrojadas, que fazem sexo e se drogam e geralmente morrem em meio a cenas de sexo,
mutiladas, estripadas, desmembradas. Mas ela não. Ela não morre porque ela é virgem e
moralmente superior a todas as outras garotas do filme.

Mas curiosamente é ela quem apresenta uma estranha conexão com o monstro. É ela
quem primeiro pressente algo estranho, é ela quem sente quando ele está para atacar.
Eles estão ligados de certa forma.

Foco sobre a “palestrante-final girl” e a figura masculina, mascarada, no fundo da


cena, que surge e volta a desaparecer.

Em todos esses exemplos vai ser frequente a imagem do corpo da mulher indefeso,
passivo ou ainda aberto, exposto, dilacerado seja por dentro, por essa força, forma que
se aloja nela, seja por fora, por esses invasores dos quais os slashers são apenas um
exemplo.

Existem, no entando, significados menos óbvios para a degradação do corpo de


mulheres na cultura de massa não só nos filmes de terror, mas também na pornografia.

A representação da violência e a violência ela mesma, funcionariam como a


reencenação de um processo arcaico em que o corpo feminino, o corpo da mãe, que no
princípio era segurança e acolhimento, passa a ser também uma ameaça.

Áudios

Voz off 1 - Pode fala pra você o que rola na verdade? O cara vai lá, pisa na cabeça,
abre, enfia o braço, sufoca, puxa aqui a boca, sabe?

Voz off 2 - Você não pode enforcar a menina...tem menina que gosta, dar tapa, marcar
a cara...

Voz off 3 - Então eles gostavam de ver... a câmera dava um close na menina em várias
horas. Umas horas que dava o close era quando escorria uma lágrima e aquela
lágrima misturava com aquela base escura e a base escura escorria na pele branca.
Pra isso a menina geralmente tava fazendo gasming que é oral engasgando.

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PALESTRANTE – A agressividade se torna uma defesa possível diante do medo da
dependência, da fusão ou do retorno a esse ventre que em nossas memórias mais
primitivas, permanece como paraíso, mas também como tumba.

Os filmes de terror proporcionariam assim uma maneira da audiência reencenar com


segurança o processo de separação, expulsando e destruindo a figura materna, ao
mesmo tempo que promovem um apaziguamento das tensões ao encenar os impulsos
daquele primeiro slasher - ou esquartejador - que foi... o bebê!

Quebra.

PALESTRANTE – E aí pensando em tudo isso eu imaginei uma peça de teatro, essa


peça aqui, em que estaria em cena a filha, eu, a mãe, e aí eu pensei em chamar a minha
mãe real para fazer a peça comigo, que não é atriz, e que aceitou porque é minha mãe e
faz tudo por mim. E para compôr esse triângulo incestuoso, eu imaginei uma terceira
figura que respondia no roteiro original por “Príapo” ou “Michael Myers”. O primeiro
em referência ao deus grego da fertilidade, representado sempre com um grande pênis
ereto penetrando ninfas nos bosques e o segundo como uma citação ao primeiro slasher
dos filmes de terror que perseguia mulheres com sua máscara branca e seu facão.

Eu resolvi fazer um processo de casting para encontrar o ator que faria essa
personagem. Eu queria dizer que todos os participantes autorizaram o uso das imagens e
que os candidatos foram:

Projeção de vídeo documental com trechos do processo de casting para escolha do ator
que representaria “Príapo” ou “Michel Myers”. O casting foi feito apenas com atores
pornô.

Ator 1 – Meu nome é Paulo César Moreira. Tenho 34 anos.


Ator 2 - Tenho 40 anos.
Ator 3 - Tenho 28 anos. Comecei nesse mercado aí há 10 anos atrás.
Ator 4 - Eu comecei no pornô... deixa eu ver... 42... 22 anos atrás.

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Ator 1 - Vou fazer 17 anos agora, dia 20 de abril.
Ator 2 - Aí já fiz mais de 2.000 filmes... enfim, a carreira é isso. E amo pornô. A minha
mulher, porra, é atriz pornô.
Ator 4 - Eu tenho mais de 3.000 filmes.
Ator 2 - Aí eu comecei a focar e falei “quer saber? eu vou ser ator pornô, véio! é isso
aí... eu via o que os caras faziam com as minas nos filmes... meio na revolta no
começo... tudo que eu gosto de fazer mesmo e vou ser ator pornô e não tô nem aí.
Ator 5 - Não é fácil não... a cabeça não funciona... muito tenso. É totalmente diferente
do normal... assim do particular.
Voz off - Deixa eu te fazer uma pergunta: a sua mãe ela sabe?
Ator 1 - Ah sabe... a minha mãe me acha incrível.
Ator 2 - Eu não tava nem aí...tava na febre... o corpo cheio de hormônio... e era o que
eu gostava. Broxei as duas cenas! Com umas mulheres, fia, num iate... não, uma
escuna! Eu falei, “putz...será que eu sou viado?
Ator 1 - Eu nunca precisei... eu nunca tive problema com coisa de ereção. Eu sempre
consegui fazer 3, 4 cenas em um dia.
Ator 4 - Porque no pornô, o que que acontece... as atrizes não tem orgasmo.
Ator 5 - Homem ou funciona ou não funciona. A mulher se ela não funcionar ou não
tiver tesão nenhum, ela consegue fingir e vai ficar perfeita a cena.
Ator 2 – Olha, eu me preocupava muito com isso: “meu pau, meu pau, meu pau, fica
duro, fica duro, fica duro”. Hoje eu aprendi... aqui ó... isso aqui acontece sozinho...
aqui ó.
Ator 4 - A maioria das mulheres vem da prostituição, vem da necessidade. E aí você
tem histórias de meninas que vão gravar e tão ali fazendo uma cena extremamente
pesada, mas por que tem o aluguel atrasado. Cenas que a menina tá no meio, daí o
peito vaza leite.
Ator 5 -Agora o mundo lá fora é cruel. Para o homem é o pegador, é o cara que pega
todo mundo.. não é bem assim... e a mulher, eles vão atacar. Vão criticar até.
Principalmente se tiver filho.
Ator 6 – Tem muitas atrizes, por exemplo, que não fazem sexo oral. Tem outras que
falam “pode pôr o braço”... entendeu... então é muito relativo. Eu acho que já é mais
extremo né... você fala assim “vou colocar o braço no seu ânus”.
Ator 2 - Se eu gravar com vocês todas aqui, eu faço a cena em uma hora. Em uma hora
eu consigo fazer sexo com todas.

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Ator 4 - As cenas hardcore são mais pesadas. Tem sexo anal, oral, vaginal... puxão de
cabelo tapa na cara.
Ator 5 - Se tá sendo pedido é porque tem demanda. Tem quem curte assistir.
Ator 4 - E você? O que você gosta no pornô?

Em cena, ao fundo, a figura masculina se posiciona como a espera do resultado do


teste.

Projeção: VOCÊ ESTÁ PREPARADA PARA SER OUTRA PESSOA DEPOIS


DISSO? - ATOR PORNÔ

PALESTRANTE – Eu queria perguntar se alguém aqui já ouviu falar da ideia de


Parresía? Parresía significa a coragem da verdade. Mas a Parresía é ideia de verdade
muito cara aos gregos porque ela não se confunde com a verdade de um professor por
exemplo que está trazendo a verdade do saber, nem com a verdade de um sacerdote que
está mediando a verdade de Deus. A parresía tem a ver com o vínculo entre aquele que
diz e o quê ele diz. Ela não procura, portanto, o efeito sobre o outro. Não é uma
estratégia discursiva. É no máximo uma atitude. Por isso a ideia de risco. Onde há
verdadeiramente Parresía, não se fica impune ao pronunciá-la - ou realizá-la, porque ela
pode ser um ato.

Eu venho me perguntando sobre a diferença entre risco e efeito ou experiência e


representação. Menos sobre a diferença, mas mais sobre as consequências mesmo. E eu
me dei conta que diante do terror e do pornô, esses territórios onde a linguagem explode
deixando, literalmente, ver suas entranhas, se eu quisesse sair da representação, em
relação ao terror, eu teria que matar alguém ou ser morta. Então para esse espetáculo, eu
fiquei só com a pornografia mesmo.

E eu comecei a testar algumas coisas.

Por exemplo, posso te propor uma experiência? (para um homem da plateia). Eu vou te
ensinar a dar um tapa cênico. O efeito é bom? Resulta para o espectador?

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Mas, e para você? E para mim? Alguma consequência? (resposta). Nenhuma, parece.
Mas e se eu te pedir para me dar um tapa real? Você pode fazer isso por mim? Alguma
consequência? No meu pedido? Nessa ação? (resposta).

Ano passado, eu realizei um experimento que consistia em tentar dar conta de um


raciocínio teórico, fazer uma palestra, como essa que eu comecei agora há pouco sobre a
Virgem Maria, mas tendo antes tomado um remédio para dormir, este aqui, o
Flunitrazepan (toma o remédio). De forma a experimentar os efeitos do remédio no meu
corpo e na minha mente. E foi o que eu fiz.
Na época, já pensando sobre esse tema de um corpo passivo, um corpo que dorme, eu
encontrei na internet um tutorial de como preparar um Boa Noite Cinderela. Esse aqui:

Áudio encontrado no Youtube, no qual um homem ensina como preparar um sonífero


conhecido como Boa Noite, Cinderela.

“Nos primeiros 20 minutos, a pessoa vai te contar tudo. Nos próximos 60 minutos, ela
vai ficar completamente submissa a você. E em mais uma hora, ela vai apagar e não vai
lembrar de nada do que aconteceu e muito menos do que ela fez”

Mas para esse espetáculo aqui, diante do problema do efeito e do risco, da experiência
ou da representação, eu tive que fazer algumas escolhas. E optei, por exemplo, por não
tomar o remédio verdadeiro. Então, ele foi representado enquanto coisa por essa balinha
e vai ser representado enquanto efeito por essa gin e essa tônica que, por sua vez, estão
representando “água” nesse copo que, finalmente, representam, copo mais água, uma
situação reconhecível por todos que é “um copo d’água em uma mesa de conferência ou
palestra”.

Essa escolha tem perdas afinal vocês não vão ver uma pessoa desfalecendo em tempo
real em uma peça sem final em que vocês teriam que decidir decidir o que fazer com um
corpo inerte no meio da sala. Mas tem ganhos, já que isso vai me permitir concluir o
que eu vim fazer hoje aqui.

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Contar por exemplo que no dia daquele experimento em que eu fui, de forma um pouco
masoquista eu sei, cobaia de mim mesma, graças ao entorpecimento real, entre o sono e
a vigília, entre o consciente e o inconsciente, antes de pegar definitivamente no sono, eu
me lembrei – de novo, coisa dentro da coisa, abismo dentro do outro – de algo que eu
vou precisar retomar aqui com um pouco mais de detalhes:

(Passagem brusca para ambiente onírico)

27 de dezembro de 2006. Eu me perdi voltando de uma festa no centro da cidade. Estou


completamente sozinha numa rua escura, sem saber direito como sair dali. Eu vejo uma
porta pequena, um letreiro em neon em cima, com duas palavras em latim para as quais
eu não sei o significado. Passo pela porta, desço uma escadaria em espiral e me vejo em
uma boate que parece estar vazia.

O lugar é escuro, as paredes são pretas. Tem um show acontecendo. Percebo que é um
show pornô. São todos homens nus manipulando bonecos de madeira com paus
gigantes. Eu olho para trás e vejo meu pai. (Príapo assume o lugar do pai). Ele está
segurando um facão. Eu, preocupada, digo para ele largar o facão se não ele pode ser
agredido. Ele mostra que é um facão de mentira. Ele se senta numa mesa, sozinho. Eu
fico com pena dele porque eu sei que ele se sente só, muito só, e deve estar procurando
uma puta para transar. Eu quero ir embora, mas alguém, um homem que eu não
identifico e que em seguida desaparece, pede para que eu dance. Então eu subo no
tablado onde antes acontecia o show pornô e, somente para o meu pai, eu danço.

A figura de máscara do início, agora em sua versão feminina, caminha lentamente até
a plateia. Movimentação no pole dance, dança obscena, assistida por “Príapo pai”. A
palestrante cai do pole e é “salva” por Príapo. Penumbra. Ele deita a palestrante
sobre a mesa da palestra. Voz em off enquanto ele observa o corpo dela deitado:

PRÍAPO - Eu vou te examinar agora.

Príapo, com luvas brancas, tira a calça e calcinha dela. Da mesa, dois braços de ferro
são erguidos para sustentar as pernas da adormecida em posição ginecológica.

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PRÍAPO- 33
(silêncio)
PRÍAPO- Diga trinta e três, meu bem.
PALESTRANTE- Trinta e três.
PRÍAPO- Outra vez.
PALESTRANTE- Trinta e três.

Quebra brusca. Ela se ergue da mesa.

PALESTRANTE - Aí eu fui fazer uma sessão de Constelação Familiar porque foi o


que de mais próximo eu achei da teoria do romance familiar. Alguém aqui já participou
de uma, sabe como funciona? (respostas)
Eu fiquei impressionada logo no início porque o teatro ali era o pressuposto. O
constelador propôs que os participantes fechassem os olhos e visualizassem a seguinte
imagem – eu proponho isso a vocês também: Imaginem um teatro. Completamente
vazio. Você entra no teatro, sozinho. Vai até o palco. Do palco, você olha para a plateia.
Vazia. Aí você imagina, na primeira fileira, lado a lado, seu pai e sua mãe. Na segunda
fileira, logo atrás do seu pai, estão o pai e mãe dele, seus avós paternos. E logo atrás da
sua mãe, estão o pai e mãe dela, seus avós maternos. E na fileira seguinte, você imagina
seus bisavós, os maternos e os paternos. E assim, sucessivamente, geração após geração,
século após século, até ter o teatro lotado, você em cima do palco, olhando e sendo
olhado por aqueles que vieram antes de você.

Na constelação familiar você precisa levar uma questão. E eu perguntei: onde estava a
minha mãe durante todos estes anos em que eu apaguei ela do meu romance. Daí
acontece uma espécie de jogo de tabuleiro, de mover de peças, em que as pessoas
presentes, sem saberem nada da sua história, começam encenar o seu romance. E você
escolhe, dentre os presentes, as pessoas que vão fazer os protagonistas. E essa escolha já
significa. Eu escolhi um homem para fazer o meu pai. E coloquei ele aqui ( convida
alguém da plateia e o posiciona no espaço). E escolhi entre as mulheres presentes, uma
mulher para fazer a minha mãe. E posicionei ela aqui (faz a ação). E escolhe alguém
para representar você mesma inclusive. E posiciona no espaço também. Todas essas
escolhas já determinam muita coisa. Eu me coloquei aqui, entre os dois. Nessa hora, o

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constelador me perguntou se eu tive muito problema de ouvido na infância. Eu disse
que sim. Que eu fiquei, inclusive, parcialmente surda por causa disso. E ele disse que,
geralmente, quando o filho se posiciona, dessa maneira, entre os pais, acontece o quê?
“problema de ouvido”! E o resto foi tudo muito impressionante. E isso para a minha
total surpresa, já que minha ida a essa sessão já era parte disso aqui, era pesquisa de
campo. Então eu achei que eu tinha absoluto controle da situação. Tava até meio
culpada de estar ali meio que “enganando” as pessoas. Mas eu fui tomada por aquela
situação. Porque a questão da verdade, não é se ela existe ou não, o que importa é que
ela age. É como naquela cena famosa de Hamlet. Hamlet encomenda uma apresentação
de teatro para ser vista pela mãe e pelo padrasto de forma que eles vissem seu próprio
crime encenados diante deles e fossem tomados por uma súbita reação.
Daí as figuras começam a se mover por conta própria. A mulher que fazia minha mãe
foi indo cada vez mais para o fundo, para fora do jogo, mais ou menos como a minha
mãe está a esta altura da história (aponta a mãe ao fundo da cena). O “pai” puxava todo
o foco para ele. Ou eu dava todo o foco para ele, é outra maneira de ver. O constelador
me perguntou se ele tinha algum vício. Eu disse que sim. O constelador começou a
colocar coisas nas mãos dele. Ele perguntou “Só bebida?”. Eu disse que não. E ele
perguntou “Ele cometeu algum crime?”. Eu disse que sim (ação colocando mais coisas
do cenário ou plateia nas mãos da pessoa do público). Daí o constelador disse “eu vou
entrar como o pai dele, o seu avô e se posicionou atrás do cara que fazia o meu pai,
colocando a mão nas costas dele. Quando o cara virou e viu o constelador, ele
simplesmente desabou a chorar. O constelador perguntou se eles tinham questões mal
resolvidas. E eu contei que meu avô era pastor evangélico e expulsou meu pai de casa
aos 14 anos de idade.

Lá pelas tantas, meu pai já estava morto, o constelador me disse para eu me despedir do
meu pai, o que foi muito penoso para meu e olhar na direção da minha mãe. Mas eu não
vi minha mãe, eu vi minha vó Ana, que eu não conheci e morreu aos 40 e poucos anos
igual Maria. Ou seja, eu ainda não fui capaz de ver a minha mãe, eu precise pular uma
geração. Ele me disse para ir até ela e dar um abraço. Então o constelador me disse que
eu deveria procurar saber da história das mulheres da minha família.

Então o que resta talvez seja isso, rearranjar, reposicionar, (devolvendo as pessoas e
objetos às suas posições na platéia). Não só as pessoas, mas também as coisas. Esse

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vaso, por exemplo, que eu vou quebrar ao fim dessa explicação. Ele está aqui por conta
de uma situação. Eu estava discutindo violentamente com o meu ex-marido, na cozinha.
Meu filho pequeno ia de um lado para o outro pedindo para gente parar. Eu não parava
até perder o controle e espatifar o vaso contra o chão. Eu continuava gritando, meu filho
continuava chorando, cada vez mais alto. Eu não parava, não parava, até perceber as
marcas de sangue no chão.

(quebra o vaso que se espatifa espalhando um monte de colares, brincos, pulseiras e


anéis no chão)

Já essas bijuterias...Eu estava em um velório, mas não sei de quem e isso não parece ser
muito importante. Sei, não sei por quê eu sei, mas eu sei que tudo ali tem a ver com a
minha mãe.

Eu olho para o chão e ele está repleto de bijuterias. Muitas. Eu noto que eu estou
descalça e fico com medo de furar o pé. Percebo várias mulheres da minha família,
minhas tias principalmente. Elas estão de sapato. Uma espécie de romaria está se
formando para ir até o lugar onde está o morto, ou a morta. Para que eu não machuque
meu pé, a minha irmã mais velha começa a me mostrar o jeito que as mulheres
caminhavam antes. Era mais ou menos assim

(Mostra um jeito de andar com os pés em semi ponta. A luz em contra desenha a
sombra de uma figura estranha que tenta caminhar por sobre as bijuterias)

Parece uma espécie de penitência mas é também uma imagem meio satânica como
aqueles bodes com as pernas arqueadas. Nessa hora vejo o rosto da minha mãe, como
um close de cinema. E ela está quase chorando (Close no rosto da mãe à beira das
lágrimas. O rosto dela ocupa toda a projeção). Em um momento seguinte, eu estou
fazendo um mapa, um mapa para sair dali. Para ela sair dali. Eu não sei explicar
falando, mas eu sei explicar pelo desenho. Cogito ir com ela mas um homem, que eu
não identifico, e que em seguida desaparece, pede para que eu volte. Faço todo o
caminho de volta. A pé.

(Tempo)

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E tem o facão. O facão é mais complicado porque ele apareceu, sumiu, voltou a
reaparecer em outro contexto, depois eu descobri que ele nunca existiu no primeiro
contexto e que eu simplesmente inventei, daí recontextualizei ele uns anos para frente.
Então não foi só um segundo tempo do trauma, mas um terceiro, um quarto, um quinto,
porque nunca se sabe quantos contextos são necessários para se fazer um trauma.

Palestrante vai até à mãe.

PALESTRANTE - Já desenterrou, mãe, o facão?


MÃE – (faz que não com a cabeça)
PALESTRANTE - Quer contar você a história do facão?
MÃE - (faz que não com a cabeça)

(A filha se deita no colo da mãe enquanto a mãe canta uma música de ninar ou
religiosa)

PALESTRANTE – Mãe, eu vou te fazer algumas perguntas. Está confortável?

Black out.

Vê-se projetado apenas o texto a seguir que corre rapidamente, frase a frase:

DATA DA OCORRÊNCIA: 18/08/1997 HORA:06:45


A fim de proceder retrato falado, encaminho a vossa Senhoria Janaina Fontes Leite, a
qual foi vítima de TENTATIVA DE ESTUPRO nesta data, conforme Boletim de
Ocorrência no 216/97, registrado por esta distrital.

Comparece nesta Unidade Policial a vítima acima qualificada, juntamente com sua
genitora, noticiando à Autoridade que foi abordada no local dos fatos pelo indivíduo
acima descrito, que mediante ameaça de um facão pressionado contra seu pescoço, a
obrigou a lhe acompanhar até um terreno baldio. O meliante a imobilizou por trás,
colocando a mão por dentro de sua calcinha e introduziu por completo o dedo na sua
região genital. Em seguida ao tentar se despir, pretendendo manter conjunção carnal

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com a vítima a soltou por ter aparecido uma senhora nas proximidades. A vítima é
virgem e esclarece que não houve sexo oral e anal, e a mesma foi encaminhada para
exame de corpo de delito, reconhecimento fotográfico junto ao SIC e retrato falado....

Foco sobre a mãe que conta sua versão da história.

Todos os dias, antes das 7hs da manhã, eu levava a Janaína pra escola até passar uma
trilha na mata. Daí ela continuava sozinha e eu voltava pra casa.
Naquele dia, já no portão, o pai dela me pediu pra passar uma calça jeans pra ele
(naquele tempo, além de passar, tinha que fazer o vinco).
Voltei preocupada porque era muito perigoso e pedi pra ela atravessar a trilha junto
com umas senhoras que faziam caminhada.
Nessa trilha, passaram perto dela as senhoras e também uma moça que  fazia sempre
esse caminho.  Também cruzou com elas um cara estranho.
Quando a  moça ia falar bom dia pros os guardas da guarita de um Spa, após uns
300mts, ela teve um pressentimento e voltou correndo. Quando virou a curva, o cara
estava arrastando a Jana com um facão na mão contra o pescoço dela e  com a outra
enfiada por dentro da calça dela que já estava toda arrebentada...  e os cadernos todos
esparramados. Ela desesperada com a cena começou a gritar:  “meniiiina, porque
você não vem? Tô te esperando!!! ...”. O cara soltou a Jana que ficou caída e
fugiu...apontando o dedo, como querendo dizer que ia matá-la. Ela acudiu e levou a
Jana para a guarita. De lá, ligaram pra casa e fui pra lá, depois na delegacia e no
Hospital Univeristário. No HU, dois médicos a examinaram  e um deles, quando 
passou o algodão na vagina dela e saiu cheio de  sangue, ficou muito revoltado e
enquanto olhava para o algodão, pra mim e pra Jana dizia: “menina, você vai
continuar a fazer tudo o que você fazia até hoje, se tiver que andar sozinha de dia ou de
noite, atravessar uma rua deserta. Não deixe que nada disso mude a sua vida.” Logo
depois uma enfermeira que estava lá,  disse que a filha dele, desde que foi estuprada,
nunca mais foi a mesma...Depois, ainda tivemos que ir no IML, fazer exame de corpo
delito.  Lá tinha um caso muito pior que o dela...

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Nota: A partir de 2009, doze anos depois do caso, o artigo 213 do código penal já não
mais enquadraria a situação como “tentativa” mas como “estupro”.

Penumbra. Atmosfera de terror. Uma figura de cabelos longos se move de joelhos e


mãos no chão, procura algo por entre as bijuterias espalhadas. Ouvimos apenas o som
de um anel sendo raspado contra o piso enquanto a figura se move. Finalmente, ela
encontra o que procura. Se ergue lentamente. Vê-se que é a Palestrante, quase não
vemos o rosto coberto pelos cabelos. Afasta a blusa para a esquerda e crava a ponta do
brinco no peito deixando correr uma gota de sangue. O vermelho toma a tela de
projeção. E todo o espaço. A palestrante sai.

A Mãe, finalmente, ocupa o centro. Foco único.

A MÃE: Demorei 50 anos para encontrar e aceitar a fonte do meu infortúnio. Devo
suportar uma misoginia feroz que não assumo sem culpa, porque em quase todas as
mulheres reconheço traços daquela que me criou e daquela que gerei. Nelas, patológico,
no resto das outras mulheres, o que as unifica, o que as faz pertencerem a um gênero: a
desconfiança, a tagarelice, a malícia, a mentira e a absoluta falta de nobreza,
intrometidas, mal humoradas, venenosas e rasteiras, sempre tensas, ansiosas, torpes,
desmemoriadas, horrivelmente suscetíveis, tão teimosas que ninguém pode resistir, e a
maioria das vezes incapazes, e dispostas a jogar a culpa em qualquer um antes de
admitirem sua incapacidade, sempre convencidas de terem razão e de saber tudo para
compensar sua verdadeira falta de inteligência. Encarar o comumente feminino produz
em mim verdadeiro asco. E mesmo assim não pude evitar dar à luz o meu duplo
transtornado. Comprovo meu horror, ao perceber, não sei se por genética ou por
imitação, que você odeia as mesmas coisas, se enfurece com as mesmas coisas e,
embora eu resista, acabo por me reconhecer em uma retardada mental. Minha filha olha
para o mobiliário que escolhi para exibir todos os seus prêmios e sente vontade de
vomitar. As mães convertem suas filhas em suas gêmeas feias, estúpidas e exaustas,
para se sentirem orgulhosas de si mesmas, para justificar suas vidas patéticas. Uma
mulher depois de parir já não tem mais nada, as mães amassam as suas filhas com o pior
de si mesmas para que a história volte a se repetir. A história não, o ciclo.

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O que você parece não entender é que a natureza só se importa com a espécie, jamais
com os indivíduos: as humilhantes dimensões desse fato biológico você tenta afastar
com seus pequenos gritos de independência. Todo mês, para você e para mim, é uma
nova derrota da vontade.
Enquanto todos os bebês não nascerem de jarras de vidro, não cessará o combate entre
mãe e filho. A contribuição masculina à procriação é momentânea e transitória. A
mulher grávida é diabolicamente completa. Não precisa de nada, nem ninguém. A
franqueza da pornografia criada pelo homem, da qual você burramente ignora as
verdadeiras razões, é que ela almeja tornar visível o que é invisível. Ele se pergunta:
Que aparência terá aí dentro? Você goza? É mesmo meu filho? Quem foi de fato meu
pai?

O que você ainda não entendeu, na sua ânsia tacanha de revisão feminista da história, é
que a Grande Mãe é Virgem não porque ela é uma coitada como você mas porque
independe de homens, porque é simbolicamente impenetrável. Sendo assim se torna um
templo e todo totem incita seu tabu. O estuprador é no fundo, um cultuador às avessas
ou um vingador. Tudo o que é grande no Ocidente veio da disputa com a natureza.

E mais uma correção eu preciso fazer nessa sua genealogia de uma mulherzinha dentro
da outra onde você colocou, a si mesma, como centro de tudo. Sinto em te dizer mas
não é assim. Você é a matrioska maior e dentro de você stabat a seguinte, a trioska, e
dentro de vocês stabat a próxima, a oska e, finalmente, como centro de tudo e fim de
todas as coisas está o Ka, o menino Jesus, ele sim o centro, que não procria e por não
poder gerar fundou uma nova religião apelando para o pai sem querer saber o que havia
entre ele e sua mãe. Mas ainda assim, Stabat Mater.

E porque Stabat Mater, em tudo, e por tudo, tenho que voltar e explicar a você. Você
podia ter tido a decência de ter me deixado lá, no meu lugar, no lugar onde eu estava.
Caio em uma exaustão que dificilmente posso abandonar se não for pensando ao fim, no
dia em que uma das duas morra, no dia em que eu te mate ou que você me mate.

“VOCÊ ACEITARIA FAZER UMA CENA DE SEXO COMIGO DIRIGIDO


PELA MINHA MÃE?”

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Projeção de vídeo documental com as respostas para a pergunta acima dadas pelos
atores pornô no momento do casting.

Ator 1 - Depende. Depende de você. É igual a outra cena de sexo. Depende de você.

Ator 2 - Sim. Tudo bem pra sua mãe?

Ator 3 - Sim. Com você dirigida pela sua mãe?...Sim. Sem problema nenhum...Dirigida
pela sua mãe e não junto com a sua mãe? Sim...

Ator 4 - Sim...Pela sua mãe???

Ator 5 - Sim.

Ator 6 - Tá louco! Aí que é delícia. Tá de brincadeira, bebê? Cadê a mamãe? Não tá


aí...Traga ela, por favor. Será uma honra.

Ator 7 - Normal. Eu não sei o que o projeto traz, qual seria sua personagem. Você não
vai vir de freira, toda de burca?

Ator 1 - De repente você pode fazer uma peça que te traumatiza. Entendeu? Eu não
posso opinar mas eu faria.

Ator 7 - Você já deve ser atriz convencional? Então como é migrar uma atriz desse
departamento para fazer uma experimentação como essa...

Ator 6 - Falando aqui na realidade, eu fui o primeiro ator brasileiro, já gravei duas
vezes com mãe e filha de verdade. Só colocar “ator pornô grava primeira cena com
mãe filha”, “brasileiras”...

Foco sobre a mesa da palestra que se converte em mesa de maquiagem/stúdio. Mãe e


filha como se diante de um espelho. Príapo Cristo se une a elas. Bebem juntos,
enquanto se enfeitam com os colares e pulseiras. Refazem imagens religiosas célebres.

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Mãe, sobre o palco de pole dance:

Boa noite. Meu nome é Amália. Vocês já sabem que eu não sou atriz. Só tô aqui dando
uma forcinha pra minha filha. A única vez que eu tive em um palco foi quando eu tinha
uns vinte anos, no teatro da igreja. A peça chamava “O seu amanhã será pior”. A
única fala que eu tinha era assim “Quando a morte dará cabo desta vida inútil e me
levará daqui deste buraco, onde nem os ratos querem morar?”. Era só isso. E na
minha vida, quando eu repetia essa frase...depois que casei, tive as filhas...quase como
uma terapia...Essa música que tá tocando, é uma música da minha infância que minha
mãe botava pra gente ouvir numa vitrolinha. Eu nunca aprendi direito mas eu vou
tentar cantar pra vocês.

Projeção: MARIA SPECIOSA

Não só a versão dolorosa, pobre e humilde de Maria chegou até nós, mas, também sua
versão speciosa, que significa bela, abundante, luxuosa. Maria, ao contrário de Jesus e
dos apóstolos, é a única a ostentar símbolos de riqueza e poder, como o manto, as jóias e
a coroa.

Porque Maria, também teve sua recompensa. A versão Speciosa é, justamente, o prêmio
de consolação à tamanha entrega. Diante de todas as outras mulheres, a Mãe é alçada ao
posto de rainha. Ela, e apenas ela, digna de amor. As outras, apenas satisfações
transitórias. Afinal, “Amor só de mãe”.

De tal forma que a cabeça baixa da mãe diante do filho não exclui também um orgulho
incomensurável: “Façam dele um Deus se quiserem, isso continua sendo natural porque
ELE saiu de mim”.

Diante do amor, desse amor sem bordas que liga a mãe ao filho, o resto das relações
humanas explode como um simulacro flagrante. Versões rebaixadas, mas que tentam
reproduzir em seu núcleo profundo a imagem de uma pietá.

Príapo tira a mãe para dançar.

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Diante disso, é de se esperar, que a devoção e o sacrifício materno sejam apenas um
preço irrisório a pagar.

Mas, àquela que tudo dá, tudo devemos. Um amor que é também uma placa de chumbo
numa corrente de ouro adornando cada pescoço.

Projeção do diálogo de whatsapp com o ator pornô ao saber da notícia que passou no
teste.

Atriz - Boas notícia! Queria marcar um café com você/

Ator - Bom dia! Meu, vai me matar do coração. Kkk falaaaaaa!

Atriz – Vamo marcar que eu te explico tudo. Mas o convite é esse. Pra você fazer a

peça e tal.

Ator – Aceito tudo. Vai ser incrível. Quando você quer marcar? Nossa, melhor maneira

de acordar. (Gif) Obrigado!!! Meu maior desafio. (GIF) Tô tonto KKKK. Vc realmente

vai transar na sua peça? 

Ator – Até o papa vai ver essa peça.

Atriz (à pergunta “Vc realmente vai transar na sua peça?) – Não sabemos. Muito chão

ainda. Primeiro, vamos “transar” no vídeo. E te peço pra manter sigilo de tudo por

enquanto.

Ator – Não sei se pra vc ajuda, vai querer ir pro sexo direto ou vai querer um ensaio,

assim vc me mostra seus caminhos e fica mais fácil para o dia do vídeo, não queria

errar contigo nesse sentido.

Atriz – É menos óbvio do que parece. E eu realmente coloco “transar” entre aspas.

Porque é um programa performativo. Um laboratório. Mas eu vou te explicar tudo isso.

Ator – Kkk. Desculpa! Entendi, tu vai fazer um fake? Simular a parte do sexo? 

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Atriz (respondendo a “Entendi, tu vai fazer um fake? Simular a parte do sexo?”) – Não

tem nada simulado. É de verdade.

Ator (respondendo a “Não tem nada simulado. É de verdade.”) – Uau! (GIF) Amei!

Atriz – Mas preciso te explicar os termos do que eu considero de verdade. E você

também o que você considera de verdade. Vamos ajustando.

Ator – Sim! Esse é o medo. Os meus limites. Vc não imagina como é a parte da ereção.

Atriz – Veremos tudo isso. Não imagino mesmo! 

Ator – Se eu tiver tesão de verdade em você vai te incomodar?

Atriz – Nem um pouco.

Ator – Regra número 1. Para o ator homem é. Ele precisa do pau dele muito firme. Ele

precisa da receita do bolo dele.

Atriz – Tudo vai ser mais estranho do que vc está acostumado. É importante que seja

novo pra você também. Se não fica fácil.

Ator – Mais do que está sendo? Kkk. Já está sendo. Obrigado! 

Atriz – Eu que agradeço.

Mudança de luz. A mãe arrasta a palestrante sobre a cadeira de rodinhas pelo espaço.
Príapo, O VERBO, de costas.

O VERBO (em off): Relaxe. Respire profundamente. Dentro de você existe um túnel.
Caminhe por ele. Você está cada vez mais relaxada. Não resista ao sono. Durma.
Permita que este túnel te leve para o antes. Você está caminhando para o antes. Siga
minha voz. Só existe a minha voz. Agora, você irá caminhar até o momento que precisa
retomar. Quem é você?
MARIA: Maria.
O VERBO: Maria de que?
MARIA: Maria de Nazaré.
O VERBO: Nazaré é nome de família ou procedência?

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MARIA: Não sei dizer.
O VERBO: Tudo bem. Onde você está, Maria?
MARIA: No meu quarto.
O VERBO: E o que você está fazendo?
MARIA: Estou dormindo.
O VERBO: Só dormindo?
MARIA: Sim.
O VERBO: Não tem nada mais que você esteja fazendo, Maria?
MARIA: Não.
O VERBO: Tudo bem. Vamos retomar a questão anterior. Qual o seu nome?
MARIA: Maria Imaculada.
O VERBO: Imaculada é nome de família ou situação fisiológica?
MARIA: Não sei dizer.
O VERBO: Maria, eu gostaria de lembrá-la que recebo por hora. Preciso da sua
colaboração para que esta sessão funcione.
MARIA: Tudo bem.
O VERBO: Você é fisiologicamente "Imaculada"?
MARIA: É o que dizem?
O VERBO: É ou não é?
MARIA: Sim, sou sim.
O VERBO: Quantos anos você tem?
MARIA: 14
O VERBO: O que te traz até aqui?
MARIA: Um bebê
O VERBO: Um bebê? Que bebê? Onde ele está?
MARIA: Na barriga
O VERBO: Você não acabou de me dizer que é virgem, Maria?
MARIA: Sim, eu sou sim.
O VERBO: Então, como esse bebê surgiu na sua "barriga"?
MARIA: Eu não sei
O VERBO: Como não sabe? Nenhuma lembrança? Nada?
MARIA: Eu só sei que estava dormindo. E, quando acordei, estava grávida.
O VERBO: Você tem namorado?
MARIA: Sou casada.

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O VERBO: Casada com quem?
MARIA: O nome dele é José.
O VERBO: Então, José é o pai deste bebê.
MARIA: Não. Nós nunca tivemos... nunca fizemos nada...
O VERBO: Então, você traiu o seu marido.
MARIA: Não, nunca. Eu sou virgem. Já te disse.
O VERBO: Como assim, Maria? Em todos os meus anos como profissional eu nunca vi
um caso assim.
MARIA: Eu não sei o que dizer.
O VERBO: Vamos tentar mais um pouco. Respire profundamente. Você está num túnel.
No fim deste túnel tem uma luz. Vá em direção a luz. Caminhe até ela. Quando você
chegar no fim do túnel, vai visualizar o momento em que seu filho foi concebido.
Caminhe, Maria. Caminhe. Onde você está?
MARIA: No meu quarto.
O VERBO: E o que você está fazendo?
MARIA: Dormindo.
O VERBO: Meu Deus, vai recomeçar... Maria, você tem que estar fazendo alguma
coisa. Não dá pra conceber um filho dormindo.
MARIA: Eu não sei. Está tudo muito escuro.
O VERBO: Tente enxergar. Quem está aí com você?
MARIA: Eu não consigo.
O VERBO: Consegue. Vai, Maria. Você vai ver. Tente. Abra os olhos. Você vai ver o
pai do seu filho.
MARIA: Eu não consigo, eu não consigo.
O VERBO: Consegue. Vai. Ele está na sua frente. Você vai ver.
MARIA: Eu não consigo
Maria desaba em um choro convulsivo, escondendo o rosto.
O VERBO: É isso! É isso! As lágrimas! Mostre as lágrimas! Dá um close no rosto dela.
Mais perto... Isso... Corta! Parabéns por hoje, Maria. Amanhã, a gente tenta mais um
pouco. Você vai se lembrar. Fique tranquila.

Maria não pára de chorar. Soluça.

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A imagem do rosto cheio de lágrimas funde-se com imagens projetadas em câmera
lenta, indefinidas. Nota-se que se trata da palestrante em trabalho de parto. Mas toda a
edição segue distorcida. O parto acontece de trás para frente e o bebê retorna para a
vagina da mãe. O parto retoma sua ordem natural, o bebê vai para os braços da mãe.
Lágrimas, agora de júbilo, de Maria/Palestrante diante de seu bebê.

Em cena, a palestrante amarra uma ponta de um cordão em sua cintura e a outra na


barra de pole dance.

Eu estou em um jardim de uma construção medieval. Faz sol. Meu filho de três anos
está em pé em cima de um parapeito. Lá em baixo, há uns 12 metros de altura, corre um
rio. Um rio largo, de correnteza forte. Mas eu não vejo que ele tá lá, de pé sobre a
mureta. Eu tô com a cabeça baixa, procurando uma música qualquer no celular. Ele
segue sobre o muro, olhando a água, inconsciente do perigo que corre. Eu encontro a
música que procurava e sigo com a cabeça baixa, inconsciente do perigo que ele corre.
Se eu cortar ou relaxar a corda, meu filho cai.

Música. Movimentação com o cordão tensionado. Vai em direção à plateia, sempre


presa pelo cordão.

Na hora, quando um casalzinho que namorava apoiado no parapeito me olhou,


apavorados, apontando a direção onde meu filho estava, a única coisa que eu fiz
foi...sorrir. E andei tranquilamente em direção a ele, como quem tivesse total controle
da situação. Ele me olhou de volta, sorrindo. Eu cheguei perto e peguei ele nos braços.
Comentei algo com o casal, “que era importante manter a calma para que a criança não
se assustasse e caísse”. Mas o que aconteceu foi que eu tive muita vergonha de ser
flagrada na minha irresponsabilidade, de estar com a cara enfiada no celular enquanto
meu filho corria o risco de se afogar e ser levado pelo rio sem que eu nem ao menos eu
me desse conta. Porque eu nem imaginava que ele alcançava a altura da mureta. Mas eu
não pensei em nada disso na hora. Fiquei apenas com vergonha e tentei disfarçar a
minha... falha.

Mas umas semanas depois, eu comecei a ter surtos de ansiedade, vômitos repentinos,
tremores, dores sem causa aparente, medos paralisantes, vontade súbita de chorar.

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Demorou a passar não só uma culpa enorme, mas um medo assombroso de que ele
tivesse morrido, desaparecido tragado por aquele rio enorme. E de nada adiantava dizer
“mas deu tudo certo, até pela sua calma ‘falsa’ e constrangida”. Não adiantava. Uma dor
de estômago e um travamento no maxilar, faziam voltar, o terror daquele momento que,
no entanto, eu só semanas depois. Entendi algo sobre a maternidade, se a corda afrouxa,
é a mãe que cai.

A palestrante traz a mãe sobre a mesa como um altar de sacrifícios.

PALESTRANTE - Era uma vez, Maria. A que concebeu dormindo em uma noite sem
sonhos. Maria nunca sentiu o que havia entrado em si. Também não se assustou ao
saber da concepção. Deitou-se aos pés do anjo murmurando “Vença-me, por favor,
vença-me. Eu unicamente desejo ser vencida. Eu não tenho orgulho. Eu coloquei o meu
orgulho aos teus pés”. Deus se recusou a habitar a vagina de Maria, mas não a deixou
sem riquezas, espalhando sua imagem branca pelo coração do mundo. Rainha coroada,
seus olhos azuis, sempre azuis. Quando falo de Maria, não sei se lembro de sua riqueza
ou do momento em que ela se curvou diante do Senhor. Ou ainda, de quando pensou em
fugir. Seu filho chorando na manjedoura, decidiu ficar. Mil vezes recompensada. As
mães são sempre recompensadas. As mães são sempre recompensadas.

A palestrante puxa o facão de baixo da pilha de colchões e ergue contra o pescoço da


mãe.

Black out.

Projeção em vídeo de uma cena de sexo explícito entre a palestrante e o ator pornô
selecionado. Aos poucos, alguns estranhamentos, a cena interrompida, algum
descompasso entre os performers se revela.

A palestrante entra em cena. Em off, o ator pornô diz:

Oi Janaina, boa noite! Deixa eu te falar, cheguei em casa aqui, sabe? Respirei fundo e
acho que depois daquele diálogo nosso um pouquinho mais alterado na cozinha, acho
que é melhor eu abrir a vaga, deixar a oportunidade pra quem consiga falar mais a sua

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língua e tal… Eu sei que vai dar tudo certo e se você precisar de alguma força aí, de
algum detalhe, mas acho que é melhor assim, né? Depois daquele diálogo nosso lá
mais acalorado, é como você falou né, você não tinha nem entendido, aí você subiu um
tom, acho que talvez eu não consiga me expressar o suficiente e pra que seu trabalho
não decorra de uma maneira...esquiva do que seria bom, acho que eu prefiro deixar a
vaga pra outro. Se quiser pode usar a imagem aí, eu autorizo.

PALESTRANTE (apontando a cena de sexo pausada na projeção) – Essa cena tinha


sido escrita para ser o final. O tal ato psicomágico, um rearranjo das posições. Onde
essa mãe decapitada acordava essa filha princesa de um sono secular e ela, finalmente,
consciente, desperta, escolhia, agia. E era também uma profanação lúdica desse
território já tão mapeado que é o pornô. Eu, uma atriz “convencional”. Foi isso, mas
também muitas outras coisas e eu precisaria de mais tempo, talvez outra peça para falar
disso. Essa situação a qual ele se refere no áudio, aconteceu cinco minutos antes de
gravar a cena. O que alterou completamente o que eu tinha pensado que poderia ser essa
experiência. Mas foi importante que tenha sido muito diferente do que eu idealizei
porque eu me dei conta que depois de TUDO eu estava prestes a cometer o MESMO
erro.

(chama a mãe de volta ao palco)

O ato psicomágico estava acontecendo em outro lugar. Durante todo o processo, eu


achei que a qualquer momento minha mãe fosse sair, desistir. Primeiro que ela não fosse
aceitar o convite. E depois, quando ela foi vendo, o que ia ser isso aqui, como ia ser. Eu
achei que, talvez, eu tivesse pedido demais, esperado demais dela.

Mas qual não foi minha surpresa quando ele partiu e ela FICOU.

Eu compreendi que aqui, não se tratava ainda de um passo adiante. Compreendi que o
que a gente está fazendo aqui, o que eu estou fazendo aqui é voltar, retornar. Então
agora, vai ser preciso fazer ainda um retorno. Mais um. Um último, espero.

Projeção de vídeo documental mostrando o ensaio para a cena de sexo com a mãe
presente e diversas situações em que ela ESTÁ.

30
Projeção: STABAT MATER

(Que explode imenso em neon no espaço)

FIM.

31

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