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Fernando Pessoa: A teoria do fingimento artístico

Não há arte sem imaginação, sem que o real seja imaginado de maneira a exprimir-se
artisticamente. A “dor” constitui-se em objeto poético, concretiza-se em arte.

O poeta é, pois, um ser predestinado a brincar intelectualmente com as sensações, elevando-as ao


nível da arte poética, transformando-as num objeto artístico, que é o poema, também objeto de
fruição lúdica para os leitores.

A arte é intelectualização de sensações (da emoção, do sentimento) através da expressão. A


intelectualização é dada na, pela e mediante a própria expressão. Não há uma passagem imediata
da experiência à arte: sobre a dor experimentada exige-se a criação de uma dor representada
através da linguagem (elaborada mentalmente). O poema surge como produto da escrita das
emoções intelectualizadas (racionalizadas pelo poeta).

“O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto
mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a
outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer
tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele lendo-as sinta exatamente o que eu senti.”

Bernardo Soares

Observa Pessoa que (…) “a base de toda a arte é, não a insinceridade, mas sim uma sinceridade
traduzida”. Assim, o poeta “finge” emoções só imaginadas, “sentidas no intelecto”, artisticamente
sinceras, e “finge”, também, outras vezes, emoções que humanamente sentiu. No segundo caso
há ainda fingimento porque as emoções passam a ser forma, são filtradas, transpostas em função
da expressão poética – e dizer por palavras implica um processo de intelectualização. “A arte é a
intelectualização da sensação (sentimento)”

Jacinto do Prado Coelho, “Sobre as Ideias Estéticas de Fernando Pessoa” in A Letra e o


Leitor, Moraes Editores

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Autopsicografia

1ª estrofe

1º verso: ideia fundamental do poema enquanto texto programático da criação poética.

3 versos seguintes: confirmação dessa ideia

 A arte nasce da realidade (a dor sentida)

 A poesia consiste no fingimento dessa realidade (a dor fingida ou intelectualizada)

 A intelectualização da realidade tem de ser objetivada em texto (poema)

 A intelectualização é expressa de forma tão artística que parece mais autêntica do que a
realidade (“tão completamente que”)

2ª estrofe: explicitação da relação do leitor com a obra de arte

 O leitor não sente a dor real, pois essa pertence ao poeta/homem

 O leitor não sente a dor fingida, pois essa pertence ao poeta/criador artístico

 Ao ler o texto, o leitor não sente, pois, as duas dores do poeta nem a dor que ele tem

 O leitor apenas sente o que o objeto artístico lhe desperta: uma quarta dor (a dor que ele
constrói na leitura, enquanto ato intelectual)

 A obra é autónoma, quer em relação ao autor, quer em relação ao leitor

3ª estrofe: de carácter conclusivo (“E assim”), explica o papel do coração (sensações,


sentimentos, emoções) e da razão (inteligência, pensamento) na criação artística

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