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FERNANDO PESSOA

POESIA DO ORTÓNIMO

1. Contextualizalização histórico-literária
O fim do século XIX e o início do século XX europeu foram bastante conturbados com:
- O Ultimatum Inglês, com a obrigatoriredade da retirada das tropas portuguesas dos
territórios compreendidos entre Angola e Moçambique
- O regicídio
- A 1ª Guerra Mundial, em que Portugal participa como aliado da França e da Inglaterra
- Um período de grande agitação política, económica e social, que culmina com o golpe de
Estado, dando início à Ditadura Militar
- O Modernismo, a nível literário. Em Portugal a revista Orpheu foi o veículo transmissor
das ideias de um grupo de jovens, escritores e artistas, ideias essas recebidas com
desprezo por parte do público, pois questionavam os alicerces da burguesia.
- Os autores modernistas caracterizam-se pela sua diversidade estética e ideológica, pela
experimentação de diferentes correntes (as diversos ismos), diferentes linguagens
estéticas (Cubismo, Futurismo, …), pela sua irreverência face aos constrangimentos do
passado e a substituição do conceito de Belo da antiguidade clássica por uma estética
baseada na ideia de velocidade e na força da máquina.
Vida de Fernando Pessoa:

• Fernando Pessoa nasceu em 1888 e morreu em 1935, o que significa que viveu durante
uma monarquia, república e diitadura.
• Durante grande parte da sua infância viveu na África do Sul por isso dominava a língua
inglesa
• Escreveu os seus primeiros versos em inglês
• Volta para Portugal, onde viria a trabalhar como tradutor
• Estreou-se na revista “A Águia” com um artigo intitulado “A Nova Poesia Portuguesa”
• Participou na revista Orpheu, representante do modernismo em Portugal que espelha a
cultura portuguesa e as estéticas da vanguarda europeia
• Junta-se a Ruy Vaz e ambos publicam uma nova revista “Athena”

2. A Poesia do Ortónimo
2. 1 Temáticas de Pessoa
Fingimento Artístico
Para Pessoa, a criação poética consiste apenas na emoção intelectualizada, a que foi filtrada e
modulada pela razão, ou seja, as emoções são somente matéria poética “bruta” que devem ser,
primeiro, ficcionadas e imaginadas, e só depois transformadas em poesia.
O ponto de partida do poeta é a realidade, as emoções puras e espontâneas com origem no
“coração”, no entando este vai-se distanciando uma vez que, para ele, a verdadeira obra de arte
apenas é possível através da conciliação das oposições entre realidade e imaginação.
A poesia é fingimento, o poeta é um fingidor. Este é o conceito de criação poética. No poema não
estão presentes as emoções “reais” e puras, na verdade, o poeta transforma essas emoções
reais em emoções intelectualizadas com auxílio da razão . A criação poética assenta naquilo que
o poeta imagina a partir daquilo que já sentiu anteriormente.
A criação poética pode ser então resumida em 3 dores:

- Dor Real: Experiência emocional


- Dor Fingida: Intelectualização da experiência, filtragem da emoção espontânea
- Dor Lida: Interpretação Subjetiva dos leitores
O poeta sente algo, uma emoção real, pura e espontânea. Essa emoção, vivida no momento,
ainda não foi racionalizada, por isso o poeta antes de a converter em poesia terá que a
transformar e imaginá-la artisticamente. Dando origem á emoção racionalizada, a emoção que já
foi examinada pelo intelecto e pela razão. O poema irá basear-se nessa emoção, na emoção
racionalizada, e não na emoção pura e real que o poeta sentiu no momento. Assim o poeta cria
as imagens poéticas que irão ser alvo da interpretação dos leitores, a partir da sua
subjetividade, o leitor experiencia as emoções que o poema apresenta.

"Autopsicografia”
“O poeta é um fingidor” - As emoções que o poeta transmite nos seus poemas não se tratam
das emoções puras que o poeta sentiu no momento, mas sim nas emoções
fingidas/intelectualizadas. O poema resulta daquilo que o poeta imagina a partir da emoção real
que sentiu. Ou seja, a dor real, para se elevar ao estatuto de arte terá que ser trabalhada e
imaginada através do intelecto expressada em linguagem poética.
“Finge tão completamente | Que chega a fingir que é dor | A dor que deveras sente” - A emoção
fingida e intelectualizada atinge um grau de perfeição tão elevada, que a “dor fingida” se afigura
mais real ao eu lírico do que a “dor real” que este deveras sentiu.
“E os que lêem o que escreve” - O poeta dirige-se aos leitores através de uma perifrase - “Na dor
lida sentem bem, | Não as duas que ele teve” - afirmando que estes ao lerem o poema não
sentem nem a dor real do poeta, nem a dor fingida, nem a dor real do leitor mas sim a dor lida
que é interpretada com base nas suas vivências e conhecimentos - “Mas só a que eles não têm”
Por fim Pessoa conclui o poema com uma metáfora, sistematizando a sua teoria da criação
poética. O “coração” associado às emoções reais é um “comboio de corda”, um brinquedo sem
autonomia, que entretem a razão, fornecendo-lhe matéria bruta para a criação poética.
Deste modo, podemos concluir que, a criação poética apenas é possível graças à interação entre
oposições: razão e sensibilidade. Uma vez que a poesia parte da realidade das emoções que por
sua vez é transformada em imagens poéticas através da intelectualização e imaginação das
emoções que o poeta realmente sentiu.

"Isto”
“Dizem que finjo ou minto | Tudo que escrevo” - Os dois primeiros versos comprovam que houve
possíveis reações perante o poema “Autopsicografia” onde é enunciado o verso “O poeta é um
fingidor”. No poema “Isto” Pessoa responde a esses leitores com um firme “Não.” seguido pelo
esclarecimento desse verso. No seu ponto de vista, o verbo “fingir” não se refere à falta de
honestidade do poeta mas sim à intelectualização das emoções. A criação poética apenas é
possível quando as emoções reais (matéria-prima) são examinadas e moduladas pela razão e
imaginadas artisticamente, dando origem às emoções fingidas e imaginadas com base naquilo
que o poeta realmente sentiu. A poesia é então constituída por emoções filtradas pela
inteligência e pela imaginação e que só depois são materializadas em escrita. O poeta afirma
que sente com a imaginação associando dois opostos (antítese) e evidenciando a importância
que a complementaridade entre o sentimentalismo e a razão tem para a poesia.
O sujeito poético vive num mundo que o insatisfaz mas tem consciência que existe uma
realidade perfeita: a da poesia. Afirma que as suas emoções sejam elas positivas ou negativas
(sonhos, vivências, anceios), ou seja, a realidade que experiencia é como um “terraço”
(comparação) que está situado sob algo ainda mais lindo, algo perfeito, que é a realidade
imaginada, isto é, a poesia, que é fruto da intelectualização e imaginação dessas emoções. O
terraço é então a divisória entre o mundo real e sensível e o mundo imaginário.
O sujeito poético explica que ao escrever poesia distancia-se da realidade (do mundo material,
das emoções) - “Por isso escrevo em meio | Do que não está ao pé” - pois acredita que a
verdadeira obra de arte e a perfeição encontra-se além da sua realidade e é apenas possível de
alcançar através do seu intelecto e imaginação.

A Dor de Pensar
Pessoa sente-se condenado a ser lúcido, a ter de pensar. Desejando, muitas vezes, a
inconsciência das coisas e seres comuns que agem como a “pobre ceifeira” ou que cumprem
apenas as leis do instinto como o “Gato que brinca na rua” - desejo de evasão.
Com uma inteligência analítica e imaginativa a interferir em toda a sua relação com o mundo, o
eu lírico tanto aceita a consciência como sente uma verdadeira dor de pensar, que se traduz na
insatisfação e dúvida sobre a utilidade do pensamento.
Tal consciência dá-lhe visão do que é negativo e sofrível na vida humano, impedindo que chegue
à felicidade. Assim, o sujeito poético procura a realização do paradoxo de ter uma consciência
inconsciente. No entanto, percebe que é impossível conciliar a consciência e a inconsciência.
Pessoa não consegue fruir instintivamente a vida por ser consciente e, por isso, sente-se
frustrado o que o leva ao drama de personalidade do ortónimo.
Desta forma, a intelectualização causa sofrimento e frustração, impossibilitando o sujeito
poético de alcançar a felicidade.

"Ela canta, pobre ceifeira”


As 3 primeiras estrofes constituem a 1ª parte do poema onde encontramos a descrição da
ceifeira e do seu canto. O sujeito poético vislumbra uma ceifeira que canta alegremente e
espontâneamente, mesmo sendo pobre e viúva - “Ela canta, pobre ceifeira” e “De alegre e
anónima viuvez”.
Essa imagem por um lado alegra o sujeito poético devido à felicidade da mesma e ao seu alegre
canto, por outro lado entristece-o - “Ouvi-la alegra e entristece” - pois sabe que se ela tivesse
consciência do seu mundo, não encontraria motivos para cantar - “E canta como se tivesse
|Mais razões p’ra cantar que a vida”.
No entanto o poeta observa “curvas” na sua voz - “Ondula como um canto de ave” - que por um
lado poderá referir-se à suavidade do seu canto, e por outro às dificuldades da sua vida. Essas
adversidades são por exemplo, a sua viuvez e o seu trabalho árduo mal remunerado. Então
mesmo com essas adversidades como pode a ceifeira cantar alegremente? Porque ela não
reflete sobre a sua vida, porque é inconsciente da sua vida o que justifica a sua felicidade -
“Alegre inconsciência”
As restantes 3 estrofes constituem a 2ª parte do poema onde o sujeito poético reflete o que a
situação da ceifeira provoca em si mesmo.
A racionalidade do sujeito poético está na sua incapacidade de apenas sentir, - “O que em mim
sente ‘está pensando” - o que revela um contraste entre ele e a ceifeira: ela é feliz porque é
inconsciente e ele é infeliz porque é inconsciente.
Esta constatação leva-o a desejar que a ceifeira derrame dentro dele a sua voz, ou seja, a sua
felicidade inconsciente - “Derrama no meu coração | A tua incerta voz ondeando!”. Por outro
lado, também deseja transformar-se nela mas ao mesmo tempo manter a sua própria
consciência , ou seja, deseja conciliar a inconsciência e a consciência - “Ter a tua alegre
consciência, | E a consciência disso!” - o que se trata de um paradoxo impossível.
Compreendendo que o seu grande desejo não é possível o “eu” lírico frustrado entrega-se aos
responsáveis pela felicidade da ceifeira: o céu, o campo, a canção esperando que estes o levem
e entrem dentro dele - “Ó céu! Ó campo! Ó canção!”. Sabendo que o seu caso não tem solução
que não consegue não pensar e não ser consciente, procura então um anestésico para a sua dor
de pensar: o aniquilamento.

"Gato que brincas na rua”


O sujeito poético interpela um gato e conclui que este é feliz porque é inconsciente e irracional.
“Gato que brincas na rua | Como se fosse na cama” (Comparação) - Sugere que o gato age no
exterior e no contacto com os outros com a mesma naturalidade de quando brinca na cama, na
sua intimidade. Enfatizando o à vontade e o conforto que o gato tem na rua visto que este não
tem qualquer noção do perigo e da negatividade do mundo devido à sua inconsciência e
irracionalidade. Esta circunstância coloca-nos então na presença de um animal feliz, tranquilo,
indiferente e despreocupado por ser irracional.
“Invejo a sorte que é tua” - O sujeito poético inveja a sorte do gato, a sorte de ser um ser
irracional, inconsciente dos perigos, não questionando o seu próprio destino pelo simples facto
de este não pensar que é o que lhe permite ser feliz.
O gato rege-se pelos seus “instintos gerais”, depende exclusivamente dos seus sentidos e vive
ao sabor do destino sem intervenção da razão “bom servo das leis fatais”. Essas características
são o que o permitem ser feliz, “És feliz porque és assim” inconsciente, instintivo e cujo sentir
predomina sobre o pensar (ao contrário do sujeito poético) não tendo consciência daquilo que
sente.
O sujeito poético não esconde a sua inveja perante a sorte do gato, ou seja, inveja a sua
irracionalidade, inconsciência e da sua vida sem preocupações. No entanto o sujeito afirma que
a situação do gato nem “sorte se chama” porque são apenas as leis da natureza que o permitem
ser inconscientemente feliz. Pelo contrário o sujeito poético é conscientemente feliz visto que é
um ser dominado pelo pensamento e racionalização, constantemente em busca do
autoconhecimento e transformando todas as suas sensações em pensamentos. Por ser assim
sente-se angústiado, infeliz e frustrado por ter noção que não consegue abolir o seu
pensamento.
“Eu vejo-me e estou sem mim, | Conheço-me e não sou eu”

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