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Fernando Pessoa – Ortónimo

A poesia do ortónimo é uma tentativa de resposta a várias inquietações que perturbam o


poeta. A realidade por si percecionada custa-lhe uma atitude de estranheza e,
consequentemente condu-lo a uma situação de negação face ao que as suas perceções lhe
transmitem.
Assim, Fernando Pessoa recusa o mundo sensível, privilegiando o mundo inteligível
(platónico), aquele a que ele não tem acesso.

Em Fernando Pessoa ortónimo, sem incluir a Mensagem, coexistem duas
vertentes: a tradicional e a modernista. Há poemas mais tradicionais com
influência da lírica de Garrett ou do sebastianismo e do saudosismo,
apresentando suavidade rítmica e musical, em versos geralmente curtos;
mas a maior parte abre caminho a experimentações modernistas com a procura da intelectual
ização das sensações e dos sentimentos.

Características Temáticas:
 Identidade perdida;
 Consciência do absurdo da existência;
 Dualidade sinceridade/fingimento, consciência/inconsciência, sonho/realidade;
 Oposição sentir/pensar, pensamento/vontade, esperança/desilusão;
 Anti sentimentalismo: intelectualização da emoção;
 Estados negativos: solidão, ceticismo, tédio, angústia, cansaço, desespero, frustração;
 Inquietação metafísica, dor de viver;
 Autoanálise.

 Características Estilísticas:
 Musicalidade: aliterações, transportes, ritmo, rimas, tom nasal (que conotam o
prolongamento da dor e do sofrimento);
 Verso geralmente curto (2 a 7 sílabas métricas);
 Predomínio da quadra e da quintilha (utilização de elementos formais tradicionais);
 Adjetivação expressiva;
 Linguagem simples mas muito expressiva (cheia de significados escondidos);
 Pontuação emotiva;
 Comparações, metáforas originais, oxímoros (vários paradoxos – pôr lado a lado duas
realidades completamente opostas);
 Uso de símbolos (por vezes tradicionais, como o rio, a água, o mar, a brisa, a fonte, as
rosas, o azul; ou modernos, como o andaime ou o cais);
 É fiel à tradição poética “lusitana” e não longe, muitas vezes, da quadra popular;
 Utilização de vários tempos verbais, cada um com o seu significado expressivo
consoante a situação.

Características Temáticas:
1. O fingimento artístico – Representação de uma dor imaginada;
Intelectualização das emoções; Dialética sonho/ realidade
O poema não traduz aquilo que o poeta sente, mas sim aquilo que imagina a partir do que
anteriormente sentiu. O poeta é pois um fingidor, que escreve uma emoção fingida, pensada,
por isso fruto da razão e da imaginação, e não a emoção sentida pelo coração, que apenas
chega ao poema transfigurada, na tal emoção trabalhada poeticamente, imaginada.
É a teoria que diz que aquilo que se escreve não é o que se sente mas o que se pensa que
se sente, logo, não se sente, só se pensa.

Na perspetiva de Fernando Pessoa, a arte poética resulta da intelectualização das


sensações, o que remete para a temática do fingimento poético. Isto significa que, para este
poeta, um poema é um produto intelectual e, por isso, não acontece no momento da emoção,
mas no momento da sua racionalização. Assim, ao não ser um resultado direto da emoção,
mas uma construção mental da mesma, a elaboração de um poema define-se como um
“fingimento”. Tal significa que o ato poético apenas pode comunicar uma dor fingida,
inventada, pois a dor real (sentida) continua apenas com o sujeito, que, através da sua
racionalização, a exprime através de palavras, construindo o poema.

Citações: “Eu simplesmente sinto/ Com a imaginação/ Não uso o coração.”;


“O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que
deveras sente.”

2. A dor de pensar - Intelectualização das emoções; Dialética consciência/


inconsciência; inveja e desejo de inconsciência
Fernando Pessoa sente-se condenado a ser lúcido, a ter de pensar, isto é, considera que o
pensamento provoca a dor, teoria que baseia a temática da “dor de pensar”. Na sequência da
mesma, o poeta inveja aqueles que são inconscientes e que não se despertam para a
atividade de pensar.
Assim, o poeta inveja a felicidade alheia, porque esta é inatingível para ele, uma vez que é
baseada em princípios que sente nunca poder alcançar – a inconsciência, a irracionalidade –,
uma vez que o pensamento é uma atividade que se apodera de maneira persistente e
implacável de Pessoa, provocando o sofrimento e condicionando a sua felicidade. Impedido
de ser feliz, devido à lucidez, procura a realização do paradoxo de ter uma consciência
inconsciente. O poeta deseja ser inconsciente mas ter a consciência de que o é.
Em suma, a “dor de pensar” que o autor diz sentir, provém de uma intelectualização das
sensações, a qual é inevitável para o poeta.

Citações: “Escuto, e passou…”;


“Ah, poder ser tu, sendo eu!/ Ter a tua alegre inconsciência/ E a consciência disso! (…)”

3. A fragmentação do “eu” - Introspeção e autoanálise – Estranheza e


desconhecimento do “eu”; Fragmentação Interior – Drama da identidade perdida
O sujeito poético assume-se como uma espécie de palco por onde desfilam diversas
personagens, distintas e contraditórias. Incapaz de se manter dentro dos limites de si próprio,
o sujeito poético procura observar o seu “eu”, ou seja, conhecer-se a si próprio, o que leva à
fragmentação e à consciência de que é capaz de viver apenas o presente.
Questiona a sinceridade das emoções escritas nos seus textos, porque não sente hoje da
mesma forma que sentiu no passado, pois as emoções, ao serem escritas e lidas, são
intelectualizadas (“não sei quantas almas tenho”).

4. Sonho/ Realidade
Refúgio e evasão
Tédio existencial (desalento e angústia)

5. A nostalgia da infância –Tempo de pureza, felicidade, unidade; Saudade


intelectual e literariamente trabalhada
Do mundo perdido da infância, Pessoa sente nostalgia. Um profundo desencanto e angústia
acompanham o sentido da brevidade da vida e da sua efemeridade, isto é, o tempo é para ele
um fator de desagregação na medida em que tudo é breve, tudo é efémero. O tempo apaga
tudo. Ao mesmo tempo que gostava de ter a infância das crianças que brincam, sente a
saudade de uma ternura que lhe passou ao lado.
Frequentemente, para Fernando Pessoa, o passado é um sonho inútil, pois nada se
concretizou, antes se traduziu numa desilusão. Por isso, o constante descrença perante a
vida real e de sonho. Daí, também, uma nostalgia do bem perdido, do mundo fantástico da
infância, único momento possível de felicidade.
Poemas Analisados em Aula:

“Autopsicografia”

Título – Conhece-te a ti próprio com a escrita


Este poema insere-se no Binómio Sentir/Pensar.

Na perspetiva de Fernando Pessoa, o artista, e especialmente o poeta, é um fingidor, no


sentido em que o ato de escrever não é um ato direto e imediato.
A dor, as emoções que são descritas no poema não foram as sentidas pelo poeta no
momento em questão, foram conceções intelectuais feitas através da análise da situação
vivida. Ou seja, a poesia resulta da memória, da recordação e da sua reprodução racional,
coerente e inteligente. Por isso, F. Pessoa afirma que o poeta finge todos os sentimentos que
transpõe para o papel porque, no momento em que escreve, ele já não está a sentir o que
sentiu no instante a que se refere na poesia.
Podemos, então distinguir 3 dores: a dor sentida pelo poeta no momento em que acontece
algo, a dor fingida pelo poeta quando se recorda do momento em que sofreu a dor sentida e a
reproduz como texto, e a dor lida pelo leitor quando analisa o poema e interioriza as palavras
do poeta.
É importante frisar que «fingimento» utiliza-se num sentido de representar, é uma tentativa de
transfigurar o que se sente naquilo que se escreve, utilizando paralelamente a imaginação e a
intelectualidade. Fingir é inventar, criando conceitos que exprimam as emoções o melhor
possível.
Ao poeta cabe-lhe «sentir com a imaginação», ou seja, transformar a vivência real numa obra
de arte, usufruindo da imaginação e o pensamento. As emoções são despersonalizadas e a
sinceridade espontânea dá lugar à sinceridade intelectual.

Número 3 (Totalidade):
 3 estrofes (isomórficas)
 3 vezes verbo “fingir”
 3 partes constituintes do título
 3 partes constituem o poema

“Isto”

Fernando Pessoa vive em constante conflito interior. Tendo consciência de que é um homem
racional de mais, ele deseja arduamente pensar menos, ser mais inconsciente, aproveitar a
vida sem questionar. Mas, como na realidade tem uma necessidade permanente de se
questionar, de pensar, de intelectualizar toda e qualquer situação, ele sente-se frustrado.
Podemos, então, falar de uma dualidade inconsciência/consciência e sentir/pensar.
Pessoa inveja o gato porque o gato é feliz na sua ingenuidade, respondendo simplesmente a
instintos.
Pessoa inveja uma ceifeira simples porque ela canta só porque lhe apetece, alegremente.
Ele nunca conseguirá ter estas reações de abstração para com o pensamento porque
insatisfação e a dúvida acerca da importância da racionalidade são constantes. O que ele
deseja é ser inconsciente, tendo consciência disso. Como isso é muito inconcebível, cada vez
a dor de pensar é maior.  
Este texto surge na sequência de Autopsicografia e confirma a ideia de que tudo o que o
poeta escreve se baseia na racionalização das emoções. Tudo é fruto do pensamento, da
imaginação. Este pensamento é metamorficamente encarado pelo sujeito como um “terraço”
que se sobrepõe e tapa o que é verdadeiramente lindo – o sentimento. Conclui dizendo que a
sua escrita fica incompleta por ser desprovida do sentimento do qual ele está livre. A
realidade que o poeta expressa é apenas a aparência da essência.

Nota:
O discurso é feito na 1ª pessoa (defesa de uma tese), o que pode indicar que este poema é
uma reação a criticas que possam ter sido feitas ao poema “Autopsicografia”.

“Ela canta, pobre ceifeira”

Diferenças Poeta/Ceifeira
Ceifeira Poeta
Sente Pensa
Inconsciente Consciente
Feliz Infeliz
O que ele quer ser mas não é O que ele é mas não quer ser

O sujeito poético deseja ser como a ceifeira, ser inconsciente e ter consciência disso (o que é
impossível).
O apelo final do poeta é querer morrer.
Céu – simboliza a paz/infinito
Campo – é vasto, calmo, tranquilo
Canção - feliz
O poeta pede a morte ao céu, campo e canção porque só isso lhe dará o fim da consciência.

Divisão do Poema:
 1ª parte – três estrofes iniciais em que, de um modo geral, se descreve o canto da
ceifeira; primordialmente interessado em descrever a exterioridade;
O poeta apela (num apelo impossível) para que a ceifeira continue a cantar, mesmo
sem razão, para que o canto derramando entre no seu coração.

 2ª parte – as restantes estrofes, em que se apresentam os efeitos da audição desse


canto na subjetividade do poeta. Procura traduzir as suas próprias emoções
desencadeadas na sua interioridade pelo canto da ceifeira, apesar da sua
inconsciência.
Verificada a impossibilidade de ser inconscientemente alegre, como a ceifeira, sem
perder a lucidez, porque “a ciência pesa”, pede ao céu, ao campo e á canção que
entrem por ele dentro, disponham da sua alma como sombra e o levem.

“Gato que brincas na rua”


O sujeito poético aborda a temática da Dor de Pensar e o binómio consciência/inconsciência,
invejando o gato pela inconsciência e por ser feliz devido a essa mesma falta de consciência.
Ele inveja o destino do gato porque apesar de o ter não tem consciência de que o tem. Sente-
se infeliz e tem uma angústia existencial por estar preso ao pensamento.
O gato representa algo do nosso quotidiano, algo popular. 
É um animal feliz porque está a brincar. 
A sua "sorte" é invejada, pois o facto de ser inconsciente faz com que viva intensamente cada
momento, podendo assim brincar na rua como se na cama estivesse. 
Ao ser inconsciente, como animal irracional aceita acriticamente todas as situações e segue
apenas os seus instintos naturais. 
É autêntico pois "sente só o que sente" e não racionaliza nenhuma das suas atitudes,
podendo assim ser feliz.
Por ser inconsciente e viver segundo os seus instintos, o gato é feliz. 
Apesar de ser "o nada", o gato é-o plenamente e isso causa inveja no poeta que ambiciona a
simples felicidade que existe quando se vive plenamente as coisas sem pensar. 
O poeta tem a plena consciência de que é infeliz por não poder deixar de pensar e por isso
não consegue atingir a felicidade tão desejada.

 Podemos, em suma, afirmar que o sujeito poético inveja o gato por três razões:
1.ª) Tem "instintos gerais" e sente só o que sente, ou seja, não pensa sobre o que está a
sentir, limita-se a sentir;
2.ª) É "um bom servo das leis fatais", isto é, não tenta contrariar as etapas inevitáveis da
existência: nascimento, crescimento e morte;
3.ª) "Todo o nada que és é teu", ou seja, ao contrário do sujeito poético, o gato não pensa,
não se questiona.
     Assim, esta dor de pensar que o tortura leva-o a desejar ser inconsciente como a ceifeira e
como o gato, que não pensam.

“Não sei se é sonho, se realidade”

O poeta começa por reforçar o seu sentimento nas duas primeiras linhas, expressando nas
duas o mesmo: a dúvida quanto à possibilidade de atingir a felicidade terrena. A Ilha sonhada
por Pessoa será aquela ilha dos sonhos, já descrita por Camões – a Ilha dos Amores, onde
reside escondido o Paraíso terrestre. A vida jovem e o amor são o que Pessoa considera os
melhores objetivos: a juventude eterna (a imortalidade ou negação da morte) e o amor (a
negação da solidão humana).  
A dúvida subsiste, no entanto Pessoa sabe-a de um só desejo íntimo. Essas paisagens
distantes são provavelmente só “palmares inexistentes, / Áleas longínquas sem poder ser”, ou
seja, campos de palmeiras (Oásis), ilusões, avenidas grandiosas mas enganadoras.  
A felicidade é ainda um talvez. Mas um talvez soturno, porque se adivinha que seja um talvez
que degenere em impossibilidade.  
Isto porque o sonho degenera quando se sonha. A terra da felicidade é apenas terra da
felicidade enquanto imaginada, e “já sonhada se desvirtua”, ou seja, mesmo o sonho perde a
sua essência quando passa a ser sonhado – torna-se quase real, e a realidade mata os
sonhos mais altos. A terra imaginada, ao luar, sofre afinal dos mesmos males da realidade
vivida no presente – “sente-se o frio de haver luar (...) / O mal não cessa, não dura o bem”. 
Pessoa finalmente aceita que o talvez é um não. E é com um não que concluí o seu
pensamento: “Não é com ilhas do fim do mundo, / Nem com palmares de sonho ou não, / Que
cura a alma do seu mal profundo, / Que o bem nos entra no coração”. Espantosamente aqui
parece que Pessoa assume a futilidade de sonhar, de idealizar a vida, o mesmo é dizer que
Pessoa aceita a futilidade de não aceitar a vida como ela é. 

Em suma, este poema reflete o binómio sonho/realidade; a evasão; a angústia existencial. O


sujeito poético numa ilha a sua felicidade e no final conclui que é dentro de cada um que está
a felicidade.
“Ó sino da minha aldeia”

Mostra-nos os sentimentos do poeta, recorda a sua infância como um bem perdido, sente
saudades da aldeia onde nasceu e cresceu.
Sino é símbolo da passagem do tempo (dolorosa); pouca expectativa em relação ao futuro;
inconformismo, solidão, ansiedade, nostalgia da infância; musicalidade- aliteração.
Sino que toca dentro da alma, é um toque que lembra a Pessoa memórias de infância,
portanto um toque que não o deixa indiferente, como qualquer outro toque de outra igreja.
Aldeia é aqui sinónimo do espaço onde Pessoa nasceu e cresceu, sendo representado como
uma pequena aldeia que se insere numa grande cidade, o seu espaço íntimo dentro do
espaço que pertence a todos, fazendo assim uma metáfora para anterioridade do poeta.
Está presente a felicidade do passado em oposição à dor e ao sofrimento do presente.

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