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ESCOLA SECUNDÁRIA DE CAMÕES

FERNANDO PESSOA ORTÓNIMO

Considerações gerais

Fernando Pessoa conta e chora a insatisfação da alma humana. A sua precariedade, a sua limitação, a dor
de pensar, a fome de se ultrapassar, a tristeza, a dor da alma humana que se sente incapaz de construir e que,
comparando as possibilidades miseráveis com a ambição desmedida, desiste, adormece “num mar de sargaço” e
dissipa a vida no tédio.
Os remédios para esse mal são o sonho, a evasão pela viagem, o refúgio na infância, a crença num mundo
ideal e oculto, situado no passado. Todos estes remédios são tentativas frustradas porque o mal é a própria natureza
humana e o tempo a sua condição fatal. É uma poesia cheia de desesperos e de entusiasmos febris, de náusea,
tédios e angústias iluminados por uma inteligência lúcida – febre de absoluto e insatisfação do relativo.
Na poesia de Fernando Pessoa é constante o conflito entre o pensar e o sentir, que em boa parte revela a
dificuldade em conciliar o que idealiza com o que consegue realizar, com a sequente frustração que a consciência
de tudo isto implica. Revela-se aí um drama de personalidade que o leva à dispersão, em relação ao real e a si
mesmo. A dor de pensar traduz insatisfação e dúvida sobre a utilidade do pensamento.
Fernando Pessoa não consegue fruir instintivamente a vida por ser consciente e pela própria efemeridade.
Muitas vezes, a felicidade parece existir na ordem inversa do pensamento e da consciência. O pensamento racional
não se coaduna com verdadeiramente sentir sensitivamente.
O tempo, na poesia pessoana, é um fator de desagregação, porque tudo é efémero. Isso leva-o a desejar
ser criança de novo. Pessoa sente a nostalgia da criança que passou ao lado das alegrias e da ternura. Chora, por
isso, uma felicidade passada, para lá da infância.
Há uma nostalgia do bem perdido, do mundo fantástico da infância, único momento possível de felicidade.

FINGIMENTO POÉTICO

A poesia está não na dor experimentada ou sentida mas no fingimento dela, apesar do poeta partir da dor
real “a dor que deveras sente”. Não há arte sem imaginação, sem que o real seja imaginado de maneira a exprimir-
se artisticamente e ser concretizado em arte. Esta concretização opera na memória a dor inicial fazendo parecer a
dor imaginada mais autêntica do que a dor real. Podemos chegar à conclusão de que há três dores: a real (inicial),
a que o poeta imagina (finge) e a dor lida, ou seja, intelectualizada, que provém da interpretação do leitor. Os
poemas "Autopsicografia" e "Isto" instituem a verdadeira Arte Poética de Pessoa, iniciando uma aprendizagem do
não sentir, que sobrepõe o conhecimento racional ao afetivo
Para Fernando Pessoa, um poema, como a arte, "é um produto intelectual" e, por isso, não acontece "no
momento da emoção", mas resulta da sua recordação. A emoção precisa de "existir intelectualmente, o que só na
recordação é possível.
Vivendo sobretudo pela inteligência e imaginação, o discurso poético pessoano afirma-se a partir da
"aprendizagem de não sentir senão literariamente as "cousas"", ou seja, em fingir sentimentos, até mesmo os que
verdadeiramente vivenciamos. Pessoa parte da negação da ideia romântica do poeta como um confessor, como
alguém que se desnuda aos olhos do leitor, e filtra tudo através da inteligência. Em Pessoa tudo é inteligência e
todo o texto é produto da imaginação. No momento de produção literária/poética, o poeta finge sentimentos,
emoções, não deixando, no entanto, de haver verdade, só que essa verdade, essa sinceridade é artisticamente
trabalhada.
Há uma necessidade da intelectualização do sentimento para exprimir a arte. Ao não ser um produto direto
da emoção, mas uma construção mental, a elaboração do poema confunde-se com um "fingimento".
Na criação artística, o poeta parte da realidade mas só consegue, com autêntica sinceridade, representar
com palavras ou outros signos o "fingimento", que não é mais do que uma realidade nova, elaborada mentalmente
graças à conceção de novas relações significativas, que a distanciação do real lhe permitiu.
O fingimento não impede a sinceridade, apenas implica o trabalho de representar, de exprimir
intelectualmente as emoções ou o que quer representar. A dialética da sinceridade/fingimento liga-se à da
consciência/inconsciência e do sentir/pensar.

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SONHO/REALIDADE

Insatisfeito com o presente e, devido à fragmentação, incapaz de atingir a felicidade tão desejada, Pessoa
sente que tudo é do outro lado - mesmo o próximo é sentido como longínquo -, e impelido pela sua
permanente inquietação, recorre ao sonho como fuga da realidade -é onde existem coisas impossíveis e memórias
de uma infância impossível-; mesmo estando consciente que os sonhos são dores , porque tem a consciência que
os sonha, e que não é com ilhas do fim do mundo,/(...)/ que cura a alma do seu mal profundo . O sonho nunca é,
para Fernando Pessoa, uma esperança projetada no futuro, situa-se antes num universo ideal, fora de toda
possibilidade, alheio às contingências do real, do humano; daí a distinção subtil que o poeta estabelece entre ilusão e
sonho: "Sem ilusões vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões". Este agudo sentimento
de perdido, de fracasso no sonho, é um estado habitual na angústia de Pessoa; mas em nada diminui ou atenua a
disponibilidade natural do sonhador, nem torna menos intensa a procura do sonho. Sempre ao lado da entrega ao
sonho, a consciência da sua fugacidade, da sua irrealidade, da dor no despertar iminente.

DOR DE PENSAR

Fernando pessoa sente-se condenado a ser lúcido, a ter de pensar, isto é, considera que o pensamento
provoca a dor, teoria que alicerça a temática da “dor de pensar”. Na sequência da mesma, o poeta inveja aqueles
que são inconscientes e que não se despertam para a atividade de pensar, como uma “pobre ceifeira”, que “canta
como se tivesse mais razões para cantar que a vida”, ou como “gato que brinca na rua” e apenas segue o seu
instinto.
Assim, o poeta inveja a felicidade alheia, porque esta é inatingível para ele, uma vez que é baseada em
princípios que sente nunca poder alcançar – a inconsciência, a irracionalidade –, uma vez que o pensamento é uma
atividade que se apodera de maneira persistente e implacável de Pessoa, provocando o sofrimento e condicionando
a sua felicidade. Impedido de ser feliz, devido à lucidez, procura a realização do paradoxo de ter uma consciência
inconsciente. O poeta deseja ser inconsciente, mas não abdica da sua consciência, pois ao apelar à ceifeira: “poder
ser tu, sendo eu!/ Ter a tua alegre inconsciência/ E a consciência disso!”, manifesta a sua vontade de conciliar ideias
inconciliáveis.
Em suma, a “dor de pensar” que o autor diz sentir, provém de uma intelectualização das sensações à qual
o poeta não pode escapar, como ser consciente e lúcido que é.

NOSTALGIA DA INFÂNCIA PERDIDA

Do mundo perdido da infância, Pessoa sente nostalgia. Um profundo desencanto e angústia acompanham o
sentido da brevidade da vida e da sua efemeridade, isto é, o tempo é para ele um fator de desagregação na medida
em que tudo é breve, tudo é efémero. O tempo apaga tudo. Ao mesmo tempo que gostava de ter a infância das
crianças que brincam, sente a saudade de uma ternura que lhe passou ao lado.
Frequentemente, para Fernando Pessoa, o passado é um sonho inútil, pois nada se concretizou, antes se
traduziu numa desilusão. Por isso, a constante descrença perante a vida real e de sonho. Daí, também, uma
nostalgia do bem perdido, do mundo fantástico da infância, único momento possível de felicidade.
Na realidade, este passado é como um refúgio para o presente, uma alegria na alma do poeta, ao tentar
recordar esse tempo em que era “o menino da sua mãe”. No entanto, esta não passa de um sonho, memória
perdida e remota, como o próprio refere no poema Quando as crianças brincam: “E toda aquela infância / Que não
tive me vem, / (…) Que não foi de ninguém”.
Insatisfeito com o presente e incapaz de o viver em plenitude, Pessoa refugia-se numa infância, regra
geral, desprovida de experiência biográfica e submetida a um processo de intelectualização.

FRAGMENTAÇÃO DO EU

A tendência constante para a intelectualização conduz Pessoa a um permanente processo de autoanálise.


A dúvida e indefinição relativamente à sua identidade, a angústia do autodesconhecimento - "Por isso,
alheio, vou lendo / Como páginas meu ser" - levam o ortónimo a ser incapaz de viver a vida, mergulhando no
tédio e angústia existenciais, no desalento e no ceticismo mais profundos.

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Insatisfeito com o presente e incapaz de o viver em plenitude, porque a fragmentação se instalou, Pessoa
anseia por vivências, estados de ilusão, sonhos que possibilitem "coisas impossíveis".
O desejo de viajar, de ser o que não é, reflete a sua insatisfação permanente. Mesmo aquilo que está
próximo é sentido como longínquo.
A fragmentação do “eu” de Fernando Pessoa resulta da constante procura de resposta para o enigma do ser,
aliada à perda de identidade.
Na verdade, Pessoa vê-se confrontado com a sua pluralidade, ou seja, com diferentes “eus”, sem saber
quem é nem se realmente existe. Contudo, a negação do “eu” como um todo, leva-nos à forma como os heterónimos
foram criados, que nos demonstra a angústia da procura pelo desvendo da vida e da morte, da perfeição e da
tristeza, da humanidade e da divindade. Por vezes, o próprio "eu" lírico contradiz-se, tentando entender o seu
desajustamento, a exemplo no verso “Multipliquei-me, para me sentir”.
Em suma, Pessoa apresenta um diálogo múltiplo e descentrado, sendo que a sua despersonalização se trata
do desaparecimento do “eu” para fazer surgir a persona, isto é, a máscara.

TÉDIO EXISTENCIAL

A dúvida e a indefinição (identidade), a angústia do autoconhecimento (“vou lendo… meu ser”) levam Pessoa
a ser incapaz de viver a vida. Consequência: tédio e angústia existenciais, desalento e ceticismo.
A interrogação filosófica incessante acerca do mistério da vida, e por consequente do seu próprio ser, leva-
-o a um estado de melancolia, de desalento, de um profundo ceticismo e de angústia e tédio existenciais por saber
que esta é irrespondível e torna-se incapaz de viver a vida, acrescentando-lhe ainda a solidão interior.

Síntese das temáticas:

• Teoria do fingimento poético; sentir/pensar; consciência/inconsciência;


• Intelectualização dos sentimentos → teoria do fingimento
• Nostalgia da infância – único momento possível de felicidade plena; evocação da infância como símbolo de uma
felicidade mítica, imaginaria e perdida (tempo onírico).
• Fragmentação do “eu”; despersonalização; sensação de estranheza, alheamento e desconhecimento em relação
a si próprio; indefinição da sua identidade.
• Interseção da realidade objetiva com a realidade mentalmente construída; dicotomia sonho/realidade →
incapacidade de conciliar o que deseja ou idealiza com o que realiza;
• Dor de pensar → adesão à teoria de que a lucidez, racionalidade e consciência são um entrave à felicidade
plena.
• O tédio, a angústia existencial, a solidão interior, a melancolia.
• Teoria do fingimento artístico → dialética sinceridade/fingimento; o fingimento artístico não impede a
sinceridade, apenas implica exprimir intelectualmente as emoções ou o que se quer representar; o poema é
um produto intelectual resultante das emoções vividas; criar poesia → conversão das emoções vividas para as
emoções fingidas/pensadas.
• Problemática da efemeridade do tempo → o tempo é um fator de desagregação na medida em que tudo é breve,
tudo é efémero. O tempo apaga tudo.
• Supremacia da razão sobre as emoções no ato de criação poética → processo de intelectualização das emoções.
• Submissão relativamente ao ato de pensar → sente-se condenado a ser consciente, lúcido, a ter de pensar.
• Necessidade de evasão da realidade → refúgio no sonho, na música, na noite (que o permitem ascender a uma
realidade onírica, a única capaz de lhe proporcionar felicidade).

Principais Características Formais e Estilísticas


. Musicalidade: aliterações, transportes, ritmo, rimas, tom nasal (que conotam o prolongamento da dor e do
sofrimento).
. Verso geralmente curto (uso das redondilhas).
. Predomínio da quadra e da quintilha (utilização de elementos formais tradicionais).
. Adjetivação expressiva.
. Linguagem simples mas muito expressiva (cheia de significados escondidos).
. Pontuação emotiva.
. Comparações, metáforas originais, oximoros (pôr lado a lado duas realidades completamente inconciliáveis).
. É fiel à tradição poética “lusitana” e não longe, muitas vezes, da quadra popular.
. Utilização de vários tempos verbais, cada um com o seu significado expressivo consoante a situação.

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