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O Fingimento poético

Para Fernando Pessoa, um poema “é um produto intelectual” e, por isso, não acontece
“no momento da emoção”, mas resulta da sua recordação. A emoção precisa de “existir
intelectualmente”, o que só na recordação é possível. Há uma necessidade da intelectualização
do sentimento para exprimir a arte. Ao não ser um produto direto da emoção, mas uma
construção mental, a elaboração do poema confunde-se com um “fingimento”.
Não há propriamente uma rejeição da “sinceridade de sentimentos” do “eu”
individualizado e real do poeta, mas interessa-lhe a capacidade do eu poético em estabelecer
novas relações do Ser com o Mundo e de dizer o que efetiva e intelectualmente sente. O
fingimento apenas implica o trabalho de representar, de exprimir intelectualmente as
emoções ou o que quer representar.
A crítica da sinceridade ou teoria do fingimento está bem patente na dialética da
sinceridade/fingimento que se liga à da consciência/inconsciência e do sentir/pensar e que
leva Pessoa a afirmar que “fingir é conhecer-se”. O poeta considera que a criação artística
implica a conceção de novas relações significativas, graças à distanciação que faz do real, o que
pode ser entendido como ato de fingimento ou de mentira. Artisticamente, considera que a
mentira “é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois assim como nos servimos de
palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir
os mais íntimos e subtis movimentos da emoção e do pensamento (que as palavras
forçosamente não poderão nunca traduzir), assim nos servimos da mentira e da ficção para
nos entendermos uns com os outros, o que com a verdade, própria e intransmissível, se nunca
poderia fazer” (in Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, de Bernardo Soares).
A poesia do ortónimo revela a despersonalização do poeta fingidor que fala e que se
identifica com a própria criação, como impõe a modernidade. O poeta recorre à ironia para
pôr tudo em causa, inclusive a própria sinceridade que, com o fingimento, possibilita a
construção da arte. Fingir é inventar, elaborar mentalmente conceitos que exprimem as
emoções ou o que quer comunicar.

In Preparação para Exame Nacional -2006, Porto Editora


A dor de pensar

Fernando Pessoa sente-se condenado a ser lúcido, a ter de pensar. Gostava, muitas
vezes, de ter a inconsciência das coisas ou de seres comuns que agem como uma pobre
ceifeira ou que cumprem apenas as leis do instinto como o gato que brinca na rua.
Com uma inteligência analítica e imaginativa a interferir em toda a sua relação com o
mundo e com a vida, o “eu” lírico tanto aceita a consciência como sente uma verdadeira dor
de pensar, que traduz insatisfação e dúvida sobre a utilidade do pensamento. Impedido de ser
feliz, devido à lucidez, procura a realização do paradoxo de ter uma consciência inconsciente.
Mas, ao pensar sobre o pensamento, percebe o vazio que não permite conciliar a consciência e
a inconsciência. O pensamento racional não se coaduna com verdadeiramente sentir
sensitivamente.
Fernando Pessoa não consegue fruir instintivamente a vida por ser consciente e pela
própria efemeridade. Muitas vezes, a felicidade parece existir na ordem inversa do
pensamento e da consciência. Diz ele no Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, que “Para
se ser feliz é preciso saber-se que se é feliz. Não há felicidade em dormir sem sonhos, senão
somente em se despertar sabendo que se dormiu sem sonhos. A felicidade está fora da
felicidade”. E acrescenta: “Não há felicidade senão com conhecimento. Mas o conhecimento
da felicidade é infeliz; porque conhecer-se feliz é conhecer-se passando pela felicidade, e
tendo, logo já, que deixá-la atrás. Saber é matar, na felicidade como em tudo. Não saber,
porém, é não existir”.

In Preparação para Exame Nacional -2006, Porto Editora


A nostalgia da infância

Do mundo perdido da infância, Pessoa sente a nostalgia. Ele, que foi “criança contente
de nada” e que em adolescente aspirou a tudo, experimenta agora a desagregação do tempo e
de tudo. Um profundo desencanto e a angústia acompanham o sentido da brevidade da vida e
da passagem dos dias. Ao mesmo tempo que gostava de ter a infância das crianças que
brincam, sente a saudade de uma ternura que lhe passou ao lado. Busca múltiplas emoções e
abraça sonhos impossíveis, mas acaba “sem alegria nem aspiração”. Tenta manter vivo o
“enigma” e a “visão” do que foi, restando-lhe a inquietação, a solidão e a ansiedade.
Pessoa, através do semi-heterónimo Bernardo Soares, no Livro do Desassossego,
afirma que “O meu passado é tudo quanto não consegui ser.” Por isso, nada lhe apetece
repetir nem sequer relembrar. O passado pesa “como a realidade de nada” e o futuro “como a
possibilidade de tudo”. O tempo é para ele um fator de desagregação na medida em que tudo
é breve, tudo é efémero. O tempo apaga tudo. “Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem
este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa, e o que vir será por olhos recompostos,
cheios de uma nova visão”.

In Preparação para Exame Nacional -2006, Porto Editora

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