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O que é o ser humano?

Dos instintos à cultura

Prof. Paulo Gubert


Amala e Kamala

Conta-se que por volta de 1920 foram encontradas na Índia

duas meninas que teriam crescido entre lobos. Essas crianças


não possuíam quaisquer das características humanas: não
choravam, não riam e, sobretudo, não falavam. Seu processo
de humanização só teve início quando passaram a participar
do convívio humano.
Helen Keller

Um fato notável, porém, ocorreu nos Estados Unidos com Helen Keller (1880-1968),
nascida cega e surda e que portanto não aprendera a falar. Desse modo, permaneceu
praticamente excluída do processo de humanização até a idade de 7 anos, quando seus
pais contrataram a professora Anne Sullivan. Essa mulher admirável conduziu Helen ao
mundo humano das significações, de início pelo sentido do tato. Começou por dedilhar
sinais nas mãos da menina, relacionando-os com os objetos, sem saber de início se a
criança percebia a relação entre sinal e coisas.

Até um dia, ao bombearem a água de um poço, que Helen deu o passo definitivo na
direção da linguagem. Em sua autobiografia, ela relata:
... minha professora colocou minha mão sob o jorro.

À medida que o fluxo gelado escorria em minha mão, ela soletrou na outra a palavra
água, primeiro devagarzinho e depois mais depressa. Fiquei quieta; toda a minha
atenção concentrava-se no movimento de seus dedos. De repente senti uma nebulosa
consciência de algo como que esquecido — uma impressão de retorno do pensamento; e
de alguma forma o mistério da linguagem me foi revelado. Soube então que á-g-u-a
significava a maravilhosa coisa fria que deslizava pela minha mão. [...] Saí do poço
ansiosa por aprender. Tudo tinha um nome, e cada nome dava origem a um novo
pensamento. Ao voltarmos para casa, todo objeto que eu tocava parecia vibrar, cheio de
vida. Isso se dava porque eu via tudo com a nova e estranha visão que se me
apresentara.
No mesmo dia Helen
associou inúmeras outras
“palavras” com objetos.
Depois, com o tempo,
aprendeu a falar, a ler e a
escrever. Tornou-se uma
escritora e conferencista
conhecida mundialmente.
Esses relatos nos propõem uma pergunta inicial: seria a

linguagem o elemento que caracteriza fundamentalmente a


cultura humana e que distingue o ser humano do animal?
O comportamento animal
Muitas vezes nos surpreendemos com as semelhanças entre os
humanos e os animais, principalmente com aqueles que se
encontram nos níveis mais altos da escala zoológica de
desenvolvimento, como macacos e cães.

Tal como eles, temos inteligência, demonstramos amor e ódio,


sentimos prazer, dor e sofrimento, expressamos alegria, tristeza e
desejos, além de tantas outras características comuns que
descobrimos no convívio com os animais.
Por isso mesmo, indagamos: “Será que meu
cachorro pensa?”. E se pensa, em que o
“pensamento” dele se distingue do meu? Os ratos
são estrategistas?

1.1 Cão cantor...


1.2 Rato 007...
1.3 Gato goleiro...
A ação por instinto
Se os animais superiores são inteligentes, o mesmo não acontece
com os insetos — porque eles agem principalmente por reflexos e
instintos.

A ação instintiva é regida por leis biológicas, idênticas na espécie e


invariáveis de indivíduo para indivíduo. A rigidez do instinto dá a
ilusão de perfeição, já que o animal executa certos atos com extrema
habilidade.
Não há quem não tenha observado com atenção e pasmo o “trabalho”
paciente da aranha tecendo a teia. Todavia, esses atos não se renovam
— não têm história —, portanto, permanecem os mesmos ao longo do
tempo, salvo no que se refere às modificações decorrentes da evolução
das espécies e das mutações genéticas. Ainda que ocorram essas
alterações, elas continuam valendo para os descendentes, por
transmissão hereditária.
A vespa “fabrica” a célula onde deposita
o ovo; junto dele coloca insetos, dos quais
a larva, ao nascer, irá se alimentar. Se
retirarmos os insetos e o ovo, mesmo
assim a vespa dará prosseguimento às
etapas seguintes, até o fechamento
adequado da célula, ainda que vazia. Esse
comportamento é “cego” porque não leva
em conta a finalidade da “fabricação” da
célula, ou seja, a preservação do ovo e da
futura larva.
Os atos instintivos ignoram a finalidade da própria ação. Em contrapartida,
o ato humano voluntário é consciente da finalidade, isto é, o ato existe
antes como pensamento, como possibilidade, e a execução resulta da
escolha de meios necessários para atingir os fins propostos. Quando há
interferências externas no processo, os planos são modificados para se
adequarem à nova situação.
O uso da inteligência
Ao contrário da rigidez dos reflexos e dos instintos, a inteligência dá
uma resposta ao problema ou à situação
nova de maneira improvisada e criativa. Esse tipo de comportamento
é compartilhado por seres humanos e animais superiores.
Experimento de Wolfgang Köhler nas Ilhas Canárias, com uma colônia de
chimpanzés, por volta de 1910: o animal faminto não conseguia alcançar
as bananas penduradas no alto da jaula. Depois de um tempo, o
chimpanzé resolveu o problema ao puxar um caixote
para alcançar a fruta. Segundo Köhler, a solução encontrada pelo
chimpanzé não foi imediata, mas ocorreu no momento em que o animal
teve um insight. A visão global lhe permitiu estabelecer
a relação entre o caixote e a fruta: esses dois elementos, antes
separados e independentes, passaram a fazer parte de uma totalidade.
A inteligência distingue-se do instinto pela flexibilidade, pois
as respostas variam de acordo com a situação e também de
animal para animal.

Portanto, os comportamentos descritos não se comparam à


resposta instintiva, de simples reflexo, por tratar-se de atos
de inteligência, de invenção.
A linguagem
Os animais também têm um certo tipo de linguagem.
Por exemplo, por meio de uma dança as abelhas indicam umas às
outras onde acharam néctar.

Ninguém pode negar que o cachorro expressa emoção por sons que
nos permitem identificar medo, dor, prazer. Quando abana o rabo ou
rosna, entendemos o que isso significa; e quando lhe dizemos
“vamos passear”, ele nos aguarda alegremente junto à porta.
1.4 O cachorro fala Português?
Nós também
conseguimos
entender
rapidamente a
linguagem dos
cachorros, mesmo
que não falemos
“cachorrês”!
Mesmo que identifiquemos nas respostas dadas pelos animais
associações semelhantes às realizadas por humanos, trata-se
de uma linguagem rudimentar, que não alcança o nível de
elaboração simbólica de que somos capazes.
Linguagem simbólica: quando a significação é regida por
convenção. Os textos escritos são o maior exemplo de
símbolos, mas há outros, por ex.:
Como só o ser humano é capaz de estabelecer
signos arbitrários, regidos por convenções sociais,
dizemos que o mundo humano é simbólico.
Durante a leitura de um
bom livro, quem nunca
experimentou um
sentimento que foi
brilhantemente
representado, pelo autor,
simplesmente pelo bom
uso das palavras?
A linguagem humana intervém como forma abstrata que nos
distancia da experiência vivida e nos permite reorganizá-la em
outro contexto, dando-lhe novo sentido. É pela palavra que
nos situamos no tempo, para lembrar o que ocorreu no
passado e antecipar o futuro pelo pensamento.
O agir humano: a cultura
O mundo que resulta do pensar e do agir humanos não pode
ser chamado de natural, pois se encontra modificado e
ampliado por nós. Portanto, as diferenças entre ser humano e
animal não são apenas de grau, porque, enquanto o animal
permanece mergulhado na natureza, nós somos capazes
de transformá-la em cultura. Geralmente, esta transformação
ocorre por meio do trabalho.
Em antropologia, cultura significa tudo o que o ser humano produz
ao construir sua existência: as práticas, as teorias, as instituições, os
valores materiais e espirituais. Se o contato com o mundo é
intermediado pelo símbolo, a cultura é o conjunto de símbolos
elaborados por um povo.
Dada a infinita possibilidade humana de simbolizar, as
culturas são múltiplas. Variam as formas de pensar, de agir,
de valorar; são diferentes as expressões artísticas e os modos
de interpretação do mundo, tais como o mito, o senso
comum, a filosofia ou a ciência.
Tradição e ruptura
O mundo cultural é um sistema de significados já
estabelecidos por outros, de modo que, ao nascer,
a criança encontra-se diante de valores já dados.
A língua que aprendemos, a maneira de se alimentar, o
jeito de se sentar, andar, correr, brincar, o tom da voz nas
conversas, as relações familiares; tudo, enfim, se acha
codificado.

1.5 Mesma palavra, línguas diferentes...


Até na emoção, que nos parece uma manifestação tão
espontânea, ficamos à mercê de regras que educam a
nossa expressão desde a infância. Exemplo: Homem
não chora!
Todas as diferenças existentes no comportamento
modelado em sociedade resultam da maneira
pela qual nela foram organizadas as relações entre
os indivíduos.
Como fica, então, a individualidade diante do peso da herança social?

Se o processo de humanização se faz por meio das relações pessoais,


será dos impasses e confrontos surgidos nessas relações que nos
tornamos conscientes de nós mesmos.
Ao mesmo tempo
que nos
reconhecemos
como seres
sociais, também
somos pessoas,
temos uma
individualidade
que nos distingue
dos demais.

1.6 Sobre a necessidade


de reconhecimento.
A cultura como construção
humana
Por mais que adestremos os animais superiores e os façamos se aproximar de
comportamentos semelhantes aos humanos, eles jamais conseguirão transpor
o limite que separa a natureza da cultura.

Esse limiar encontra-se: 1. na linguagem simbólica; 2. na ação criativa e


intencional; 3. na imaginação capaz de efetuar transformações inesperadas.

A cultura é um processo que caracteriza o ser humano como ser de mutação,


de projeto, que se faz à medida que transcende, que ultrapassa a própria
experiência. Ex.: Guinness Book.
Enfim, é evidente que essa condição de certo modo fragiliza o ser
humano, pois não se encontra, como os animais, em harmonia
com a natureza. Ao mesmo tempo, o que seria mera fragilidade
transforma-se justamente em sua força, a característica humana
mais nobre: a capacidade de produzir sua própria história e de se
tornar sujeito de seus atos.
Bibliografia Básica

BARUFFA, Giovanni. Nas fronteiras da prática médica e da antropologia. Pelotas: Educat, 2013.

HELMAN, Cecil. Cultura, saúde e doenças. 5 ed Porto Alegre: Artmed, 2009.

VAZ, Henrique de Lima. Antropologia filosófica. São Paulo: Loyola, 2014.

Bibliografia Complementar

ARDUINI, Juvenal. Antropologia. 3.ed São Paulo: Paulus, 2004.

GALANTINO, N. Dizer homem hoje: novos caminhos da antropologia filosófica. São Paulo: Paulus, 2003.

KAMMER, Marcos. Discutindo a ideologia: filosofia e ética. Pelotas: EDUCAT, 2004.

RABUSKE, Elvino. Antropologia filosófica: um estudo sistemático. Petrópolis: Vozes, 1986.

SCHELER, Max. Visão filosófica do mundo. São Paulo: Perspectiva, 1986.

STEIN, Ernildo. Nas proximidades da antropologia. Ijui: UNIIJUI, 2003.

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