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A PESSOA HUMANA
COMEÇO DE CONVERSA:
Segundo o filósofo Kant, nossas três indagações fundamentais podem ser expressas na seguinte
formulação:
1. O que posso realmente saber? Nós podemos chegar a o conhecimento verdadeiro?
2. O que me permitido esperar? Nós podemos de forma legítima esperar algo além desta vida?
3. O que devo fazer? Nós podemos compreender o sentido maior da ação humana?
No fundo as três questões referem-se à grande questão fundamental: O QUE É O HOMEM? Nós
podemos compreender esse mistério antropológico? Quem somos nós, esse caniço frágil, finito e
contingente, mas inquieto, pensante, radicalmente aberto para a transcendência, sedento de infinito,
realização e felicidade, faminto de prazer, amor e eternidade?
Edward Guimarães
AS MENINAS-LOBO
Na Índia, onde os casos de meninos-lobo foram relativamente
numerosos, descobriram-se, em 1920, duas crianças, Amala e
Kamala, vivendo no meio de uma família de lobos. A primeira tinha
um ano e meio e veio a morrer um ano mais tarde. Kamala, de oito
anos de idade, viveu até 1929. Não tinham nada de humano e seu
comportamento era exatamente semelhante àquele de seus irmãos
lobos. Elas caminhavam de quatro patas apoiando-se sobre os
joelhos e cotovelos para os pequenos trajetos e sobre as mãos e os
pés para os trajetos longos e rápidos.
Eram incapazes de permanecer de pé. Só se alimentavam de
carne crua ou podre, comiam e bebiam como os animais, lançando a
cabeça para a frente e lambendo os líquidos. Na instituição onde
foram recolhidas, passavam o dia acabrunhadas e prostradas numa
sombra; eram ativas e ruidosas durante a noite, procurando fugir e uivando como lobos. Nunca
choraram ou riram.
Kamala viveu durante oito anos na instituição que a acolheu, humanizando-se lentamente. Ela
necessitou de seis anos para aprender a andar e pouco antes de morrer só tinha um vocabulário de
cinquenta palavras. Atitudes afetivas foram aparecendo aos poucos. Ela chorou pela primeira vez por
ocasião da morte de Amala e se apegou lentamente às pessoas que cuidaram dela e às outras
crianças com as quais conviveu. A sua inteligência permitiu-lhe comunicar-se com outros por gestos,
inicialmente, e depois por palavras de um vocabulário rudimentar, aprendendo a executar ordens
simples.
(B. Reymond, Le développement social de l'enfant et de l'adolescent, Bruxelas, Dessart, 1965, p.
12-14, apud C. Capaibo, Fenomenologia e ciências humanas, Rio de Janeiro, J. Ozon Ed., p. 25-
26.)
“O relato acima descreve um fato verídico e permite entender em que medida as características
humanas dependem do convívio social. Amala e Kamala, as meninas-loba da Índia, por terem sido
privadas do contato com outras pessoas, não conseguiram se humanizar: não aprenderam a se
comunicar através da fala, não foram ensinadas a usar determinados utensílios, não desenvolveram
processos de pensamento lógico...”
DAVIS, Cláudia; OLIVEIRA, Zilma de. Psicologia na educação. São Paulo: Cortez: 1990. p 16-
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I - NATUREZA E CULTURA
1 - Os animais vivem em harmonia com sua própria natureza. Isso significa que todo animal age
de acordo com as características da sua espécie. Os instintos animais são regidos por leis biológicas, de
modo que podemos prever as reações típicas de cada espécie.
“A programação biológica dos animais é completa, fechada, perfeita. Não há problemas não-
respondidos. E, por isso mesmo, ele não possui qualquer brecha para que alguma coisa nova seja
inventada. Os animais praticamente não possuem uma história, tal como a entendemos. Sua vida se
processa num mundo estruturalmente fechado. A aventura da liberdade não lhes é oferecida, mas não
recebem, em contrapartida, a maldição da neurose e o terror da angústia.”
Rubem Alves
2 - É evidente que existem grandes diferenças entre os animais conforme seu lugar na escala
zoológica: enquanto um inseto como a abelha constrói a colmeia e prepara o mel segundo padrões rígidos
típicos das ações instintivas, um mamífero, que é um animal superior, age também por instinto, mas
desenvolve outros comportamentos mais flexíveis e, portanto, menos previsíveis. Diante de situações
problemáticas, os animais superiores são capazes de encontrar soluções criativas porque fazem uso da
inteligência. Se um macaco está mobilizado pelo instinto da fome, ao encontrar a fruta fora do alcance
enfrenta uma situação problemática, que só pode ser resolvida com a capacidade de se adaptar às
novidades mediante recursos de improvisação. Também o cachorro faz uso da inteligência quando
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aprende a obedecer a ordens do seu dono e enfrenta desafios para realizar certas tarefas, como, por
exemplo, buscar a presa em uma caçada.
3 - No entanto, a inteligência animal é concreta, porque, de certa maneira, acha-se presa à
experiência vivida. Por exemplo, se o macaco utilizar um bambu para alcançar a fruta, mesmo assim não
existirá esforço de aperfeiçoamento que se assemelhe ao processo cultural humano. Recentemente,
pesquisas realizadas no campo da etologia têm mostrado que alguns tipos de chimpanzés conseguem
fazer utensílios, e criam complexas organizações sociais baseadas em formas elaboradas de comunicação.
As conclusões dessas pesquisas tendem a atenuar a excessiva rigidez das antigas concepções sobre a
distinção entre instinto e inteligência e entre inteligência animal e humana, mas essas habilidades não
levam os animais superiores a ultrapassar o mundo natural, caminho esse exclusivo da aventura
humana. Só homem é transformador da natureza, e o resultado dessa transformação se chama
cultura. Eis aí a diferença fundamental entre o homem e os animais.
4 - Para produzir cultura, o homem precisa de inteligência abstrata e de linguagem simbólica.
Os símbolos são invenções humanas por meio das quais podemos lidar abstratamente com o mundo que
nos cerca. Depois de criados, entretanto, eles devem ser aceitos por todo o grupo e se tornam a convenção
que permite o diálogo e o entendimento do discurso do outro. Os símbolos permitem o distanciamento do
mundo concreto e a elaboração de ideias abstratas: com o signo “casa”, por exemplo, designamos não só
determinada casa, mas qualquer casa. Além disso, com a linguagem simbólica o homem não está apenas
presente no mundo, mas é capaz de representá-lo, isto é, o homem torna presente aquilo que está ausente.
A linguagem introduz o homem no tempo, porque permite que ele relembre o passado e antecipe o futuro
pelo pensamento. Ao fazer uso da linguagem simbólica, o homem torna possível o desenvolvimento do
trabalho e da técnica, enquanto forma sempre renovada de intervenção na natureza. Ao reproduzir as
técnicas já utilizadas pelos ancestrais e ao inventar outras novas - lembrando o passado e projetando o
futuro - o homem pratica uma ação dirigida por finalidades conscientes e pela qual se torna capaz de
transformar a realidade em que vive.
2 - Os dois casos extremos servem para ilustrar o processo comum pelo qual cada criança recebe a
tradição cultural, sempre mediada pelos outros homens, com os quais aprende os símbolos e torna-se
capaz de agir e compreender a própria experiência. A linguagem simbólica e o trabalho constituem,
assim, os parâmetros mais importantes para distinguir o homem dos animais. Não se pode dizer que o
homem tem instintos como os dos animais, pois a consciência que tem de si próprio e do mundo o
orienta, por exemplo, para o controle da sexualidade e da agressividade, submetidas de início a normas e
sanções da coletividade e posteriormente assumidas pelo próprio indivíduo. O homem foi expulso do
paraíso a partir do momento em que deixou de se instalar na natureza da mesma forma que os animais ou
as coisas. Assim, o comportamento humano passa a ser avaliado, acolhido ou condenado. Isso significa
que os atos referentes à vida humana são avaliados como bons ou maus, belos ou feios, pecaminosos ou
abençoados por Deus, e assim por diante.
3 - Essa análise é válida para qualquer outra ação humana: andar, dormir, alimentar-se, reproduzir-
se não são atividades puramente naturais, pois estão marcadas pela cultura e, posteriormente, pela crítica
que o homem faz à cultura. Ao definir o trabalho humano, assinalamos um binômio inseparável: o pensar
e o agir. Toda ação humana procede do pensamento, e todo pensamento é construído a partir da ação. A
capacidade de alterar a natureza por meio da ação consciente torna a situação humana muito
específica, por estar marcada pela ambiguidade e instabilidade.
4 - A condição humana é de ambiguidade porque o ser do homem não pode ser reduzido a uma
compreensão simples, como a dos animais, sempre acomodados ao mundo natural e, portanto, idênticos a
si mesmos. O homem é o que a tradição cultural quer que ele seja e também a constante tentativa de
ruptura da tradição. Assim, a sociedade humana surge porque o homem é um ser capaz de criar
interdições, isto é, proibições, normas que definem o que pode e o que não pode ser feito. No entanto, o
homem é também um ser capaz de transgressão. Transgredir é desobedecer. Não nos referimos apenas à
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desobediência comum, mas àquela que rejeita as fórmulas antigas e ultrapassadas para instalar novas
normas, mais adequadas às necessidades humanas diante dos problemas colocados pelo existir. A
capacidade inventiva do homem tende a desalojá-lo do “já feito”, em busca daquilo que “ainda não
é". Portanto, o homem é um ser de ambiguidade em constante busca de si mesmo. E é por isso que o
homem é também um ser histórico, capaz de compreender o passado e projetar o futuro. Saber aliar
tradição e mudança, continuidade e ruptura, interdição e transgressão é um desafio constante na
construção de uma sociedade sadia.
1 - Costuma-se dar nome compreensível à singularidade do homem e da mulher: diz-se que o ser
humano, ao contrário das outras coisas que o circundam, é PESSOA. A filosofia grega, por dar
importância exclusiva ao universal, ao ideal e ao abstrato, para muitos autores, não conhecia o conceito de
pessoa, que acentua o singular, o indivíduo concreto, o rosto humano. O valor absoluto do indivíduo é um
dado da revelação cristã, enquanto compreende cada ser humano concretamente como filho de Deus. Para
Tomás de Aquino, “pessoa significa o que há de mais nobre no universo, isto é, o subsistente de natureza
racional”.
2 - Segundo Gabriel Marcel, a PESSOA HUMANA não pode ser estudada simplesmente com os
instrumentos da ciência, com a investigação objetiva. Não se trata de um problema, mas de um mistério.
Se nos aproximarmos dela meramente pela via científica, ela fica reduzida a um Ele, objeto ou coisa. Para
respeitar a sua personalidade e tratá-la como pessoa, é necessário aproximar-se dela como um TU. E isso
acontece pela via da interrogação reverente, do diálogo, da relação intersubjetiva, do amor entre iguais.
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2 - A pessoa possui ato próprio de ser, revela-se singular, individual, “irrepetível”, que não pode
ser violado ou anulado por outros. Mas tais características, de certa forma, pertencem também a cada
espécie de planta e de animal. Para ser pessoa é necessário ser "algo mais". Que significa, então, esse algo
mais, em virtude do qual o ser humano é pessoa e plantas e animais não?
3 - Porque somente ele mostra-se dotado de um modo de ser que supera nitidamente o das
plantas e dos animais. E isso porque, não obstante sua autonomia no ser, sua força individual, ele
conserva extrema abertura intencional (tanto no conhecer, quanto no querer) pela qual é capaz de toda
sorte de comunicação com as coisas, com os outros semelhantes, com Deus. Graças a tal abertura
fundamental, o ser humano se autotranscende sistematicamente em todas as direções.
4 - Escreve a respeito disso E. Barbotin: “em nível fenomenológico, o que distingue mais
profundamente as pessoas das coisas é a capacidade de comunicar-se por parte das primeiras e a
ausência dessa capacidade nas segundas”.
5 - Há características constitutivas do ser pessoa:
SINGULARIDADE
AUTONOMIA QUANTO AO SER
AUTOCONSCIÊNCIA
ABERTURA RADICAL
CAPACIDADE DE COMUNICAÇÃO
AUTOTRANSCENDÊNCIA
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FRAGMENTO 03: EM BUSCA DAS DIMENSÕES DA VIDA HUMANA
(MUNDIN, B. O homem, quem ele é, São Paulo: Paulus, 2001, Adaptação Edward Guimarães)
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HOMO FABER: O ser humano enquanto dotado de habilidades e competências singulares revela-
se criativo e pelo trabalho transforma o seu mundo, cria técnicas e as transforma em tecnologia. O
ser humano constrói a si mesmo à medida que transforma o mundo por suas próprias mãos.
HOMO LUDENS: O ser humano enquanto ser de sorriso, de sentimentos, revela-se ser lúdico,
criador de jogos e brincadeiras. Sente-se faminto de bom humor e de ócio para criar, restaurar as
forças e manter a lucidez.
HOMO RELIGIOSUS: O ser humano enquanto ser de desejo, de sonho, de utopia e de fantasia
revela-se criador de ritos, crenças e símbolos. Criador de arte, escultura, teatro, dança, música,
poesia... Revela-se carente de sentido último, radicalmente aberto à transcendência e à eternidade.
Tem consciência de ser finito, mas tem a pretensão de carregar o infinito e o dom da imortalidade.
Faz do horizonte a sua morada.
1 – Viver humanamente é sempre um desafio. Somos desafiados o tempo todo e a todo instante.
Provavelmente você já parou para pensar em qual é o sentido da vida, se vale a pena viver e como dar
sentido a ela. Já pensou que viver é um mistério? Será que é por isso que é tão gostoso? É isso, desafio
constante. Estamos envoltos em um mistério: o mistério da vida!
2 – Daí, desde os mais simples mortais até cientistas, intelectuais e místicos procuram dar
respostas que satisfaçam suas perplexidades ante o ato do viver. Há várias maneiras de responder a essas
indagações, pois o ser humano é composto de várias dimensões e as respostas podem ser dadas por
ângulos diferentes. Mas há algum conceito que unifica essas dimensões fundamentais do ser
humano?
CONCEITO DE PESSOA
3 – Há uma unidade essencial na existência humana. Enquanto corpo, este aparece ao mundo,
se exterioriza, demarca seu jeito de estar no mundo de forma objetiva, ou seja, ele é ele sem as suas
relações. É sua dimensão de objetividade. Esse momento é marcado, primeiramente, pela não
reciprocidade e pela indiferença em relação ao outro. Entretanto, o psiquismo humano não fica no
isolamento corporal. Ele convida para a relação intersubjetiva. Ou seja, a exterioridade do outro é
assumida como um existir-com ou ser-com. Emerge um espaço intencional que demarca a relação e o
outro passa a ser reconhecido na interioridade do sujeito. O corpo não fica mais isolado e busca,
agora, reciprocidades. Pela comunicação interpessoal processa-se um reconhecimento mútuo das
existências e os sujeitos se sentem corresponsáveis. Parece até magia, mas não é. É existência humana.
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Há uma atração recíproca e afetuosa entre os sujeitos que querem construir história. Porém, é verdade
também que essa atração nem sempre é em vista do desenvolvimento recíproco e, por isso, emergem as
violências. Essas duas dimensões não completam o ser humano. Ele sente falta de mais. A
exterioridade e a interioridade o estimulam a ir além, a transcender a sua existência. O ser-no-mundo e
o ser-com-os-outros provocam-no a avançar para além dos limites da sua história. A
transcendência provoca aprofundamento do ser e releituras na maneira do viver humano, insistindo na
construção do sentido e, ainda, apontando para a dimensão do mistério que envolve e ultrapassa a vida,
buscando sua expressão maior no Absoluto.
4 – Podemos dizer que a unidade radical entre as três dimensões é articulada pela noção de
pessoa. Em sua origem grega pessoa vem de prosopon, que significa “rosto” e designava a máscara
de teatro. Os estóicos utilizavam esse termo para indicar os papéis ou as funções que os homens e a
mulheres deveriam cumprir em suas vidas. Em sua origem latina, pessoa vem de persona, que significa
“soar através”, termo utilizado para designar a máscara que os atores utilizavam, representando o
papel que desempenhavam no teatro e, ainda, possibilitando ecoar o som da máscara para todo o
ambiente. A origem etimológica aponta para uma semelhança no sentido do termo, tanto em grego
quanto em latim. Podemos dizer, portanto, que prosopon ou persona era a máscara usada nas peças de
teatro, colocada sobre o rosto e diante dos olhos. Assim, indicava os papéis desempenhados pelos homens
e mulheres, a princípio no teatro e, depois, no palco da vida, no espaço social.
5 – Posteriormente, esse termo será assumido pela teologia cristã na tentativa de
compreender a relação interna da Trindade divina: existe um só Deus em três pessoas, Pai-Filho-
Espírito Santo. Porém, com o surgimento do que foi qualificado como heresia modalista, essas ‘pessoas’
foram compreendidas como ‘modos’ (máscaras) de Deus se manifestar na história humana. Houve a
necessidade de buscar novo termo para articular essa relação trinitária e o escolhido foi hipóstasis, que
significa “suporte”, “subsistência”, pois um existe e subsiste na e em relação com o outro. Além da
linguagem teológica, o termo pessoa também será foco de debate da linguagem filosófica, jurídica,
linguística, gramatical e, mais tarde, psicológica, sociológica e política. Dessa complexa história do
termo, iremos assumir o recorte proposto pela antropologia filosófica.1
6 – Neste horizonte, “a categoria de pessoa se apresenta, tanto na sua procedência histórica como
nas suas exigências teóricas, como a mais apta a exprimir toda a riqueza inteligível que se adensa nesse
estágio, o mais elevado, da auto-afirmação do sujeito”. 2 Ser autônomo é a grande busca e
característica de todo e qualquer sujeito. Enquanto o indivíduo demarca a exterioridade corporal e
a pessoa a interioridade espiritual, ser sujeito é conquistar sua autonomia na história. Estes três
termos – pessoa, sujeito e indivíduo – resguardam, cada qual, sua especificidade, porém numa mútua
interpenetração. É em torno da categoria pessoa que esses termos encontram sua definição.
1
Este texto segue as trilhas abertas pela antropologia filosófica de Henrique de Lima Vaz.
2
VAZ, Antropologia filosófica II, p. 190.
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7 – Assim, podemos compreender a pessoa como particularidade de cada existência situada
na história. Ela possibilita que cada um seja reconhecido pelo que se é. Vive sua singularidade no
mundo ao mesmo tempo em que se abre para a transcendência. Todo humano quer e gosta de ser
reconhecido, individual e coletivamente. A pessoa dá ao indivíduo a identidade humana. Cada um é
reconhecido como humano por ser pessoa. Porém, para além do reconhecimento, Paul Ricouer3 propõe
compreender a identidade de duas maneiras, como idem e como ipse. A identidade idem, que
significa “o mesmo”, aponta para a dimensão estática, fixa de nossa identidade. Alguns anos são
fundamentais para a formação da personalidade humana. Depois de formada, ela está fixa, acabada. A
outra, identidade ipse, que significa “o próprio”, diz respeito à dimensão dinâmica da pessoa, mostra que
todo ser humano não se encontra acabado, mas em constante processo de construção. É alteridade
provocando reconstruções.
8 – A maneira como cada humano lida com estas dimensões, idem e ipse, permite que ele se
autocompreenda e conviva no ambiente social de forma mais aberta ou fechada. As duas dimensões
fazem parte da identidade humana; a questão é como são articuladas e, mesmo, priorizadas.
9 – Ser pessoa significa ser sempre fim em “si-mesmo”. Que quer dizer isso? Quer dizer que
nunca podemos ser instrumentalizados, direcionados, manipulados, pois aí deixamos de ser pessoa
humana e passamos a ser ‘coisa’. Martin Buber, filósofo existencialista, afirmava que, em uma relação
interpessoal, sempre que o eu domina um tu, ou vice-versa, perde-se o essencial do relacionamento e o
outro passa a ser uma coisa nas mãos do eu, pois ele deixa de ser pessoa humana. Nesse sentido, sempre
que houver dominação na relação pai e filho, marido e mulher, professor e aluno, namorado e
namorada, patrão e empregado, e assim por diante, há impedimento no processo de humanização,
pois tanto o eu quanto o tu deixam de ser pessoas e passam a ser coisas, objetos manipulados. Assim, ser
pessoa significa permitir que o relacionamento ocorra sem manipulação de nenhuma das partes.
Isso não é viver por determinação do destino ou “deixar a vida me levar”. Significa fazer a vida
acontecer, possibilitar que o desejo seja realizado, mas sem supressão do desejo alheio. Aqui está o
paradoxo, pois é na relação interpessoal que discernimos os próprios desejos, mas nem sempre os
realizamos. Este é o desafio do encontro de liberdades, característica essencial dos encontros
interpessoais. Se, por um lado, o outro possibilita discernimento quanto aos próprios desejos, por outro
lado, inibe e, em grande parte, censura a sua realização. As hipóstases sociais4 são as responsáveis pelo
controle social do comportamento humano na sociedade. Isso não anula e nem empobrece a liberdade
humana. Assinala que o ser humano não possui liberdade absoluta e que também não é totalmente
determinado pelo meio. Nesse espaço intermediário é que emerge o ser livre. Este reconhecimento que
demarca a relação interpessoal caracteriza a sua autonomia e aponta para outra noção básica do
3
Para maior aprofundamento ver: RICOUER, Paul. O si mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991. O autor mostra que
temos dentro de nós “um outro” de “nós mesmos”. Esse desconhecido é o mistério que perpassa todo ser humano.
4
Hipóstases sociais são, na compreensão de Peter Berger, as instituições que os seres humanos constroem nas sociedades e
que, depois de construídas, controlam os seus comportamentos sociais. Exemplos dessas hipóstases são: família, escola, estado.
Para maior aprofundamento ver: BERGER, Peter. Dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São
Paulo: Paulinas, 1985.
10
conceito de pessoa que é a compreensão da liberdade. Ser livre é poder articular internamente,
porém, provocado pelo outro, o ser-em-si e o ser-para-si.
10 – Kant já compreendia o ser humano como fim absoluto, e, portanto, nunca como meio. Com
ele podemos afirmar que a pessoa é valor absoluto e não pode ser instrumentalizada. Mesmo com a
força de um sistema econômico que quer mudar este imperativo, a humanidade não pode se dobrar à
exigência do mercado atual. Toda pessoa deve ser cuidada em sua dignidade própria. Esse é o sentido
de respeito. No trato interpessoal, respeitar alguém é cuidar para que aconteça tal como foi combinado
entre as partes. Nas relações sociais, respeitar é cumprir o contrato social, fonte e possibilidade da
democracia.
A guisa de conclusão:
Sobre a condição humana retratada na literatura, com a palavra o escritor Hadj Garm’ Oren:
"Todo indivíduo, mesmo o mais restrito à mais banal das vidas, constitui, em si mesmo,
um cosmo. Traz em si suas multiplicidades internas, suas personalidades virtuais, uma
infinidade de personagens quiméricos, uma poliexistência no real e no imaginário, o
sono e a vigília, a obediência e a transgressão, o ostensivo e o secreto, pululâncias
larvares em suas cavernas e grutas insondáveis. Cada um contém em si galáxias de
sonhos e de fantasias, de ímpetos insatisfeitos de desejos e de amores, abismos de
infelicidade, vastidões de fria indiferença, ardores de astro em chamas, ímpetos de
ódio, débeis anomalias, relâmpagos de lucidez, tempestades furiosas...”
II – Fragmento 02
4. EXPLIQUEM, a partir das ideias do fragmento 02, mas com suas palavras, o significado
expresso no termo “pessoa” quando aplicado ao ser humano e MOSTRE em que sentido esse
termo mostra-se capaz de revelar a dignidade inalienável de cada ser humano.
5. Segundo E. Mounier, “a vida de uma pessoa é busca, até a morte, de uma unidade pressentida,
cobiçada e que não se realiza nunca”. EXPLICITEM, a partir das ideias do fragmento 02, o
sentido da afirmação de Mounier.
III – Fragmento 03
6. ESCOLHAM, entre as doze dimensões da pessoa humana descritas, as três que vocês julgam
merecer maior atenção da geração atual, por estar sendo pouco trabalhada ou desenvolvida e
que deveríamos melhor cuidar. JUSTIFIQUEM as suas escolhas.
7. INDIQUEM outras duas dimensões da pessoa humana que não estejam contempladas entre as
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doze acima. USEM a criatividade e deem nomes para elas.
IV – Fragmento 04
8. EXPLICITEM o sentido das três dimensões – exterioridade, interioridade e transcendência –
para o autor apresentar a complexidade da condição humano.
9. SINTETIZEM as contribuições de (a) Paul Ricoeur, de (b) Matin Buber e de (c) Peter Berger
(cf. Nota de rodapé n. 4) na reflexão do autor para explicitar a complexidade e a dignidade do
ser humano enquanto PESSOA.
10. MOSTREM, em que sentido a noção de respeito é capaz de sistematizar os elementos centrais
desenvolvidos na reflexão do prof. Roberlei Panasiewicz, autor do fragmento 04, para
demonstrar a importância da categoria PESSOA na busca de compreensão da dignidade de cada
ser humano.
Juntos na construção de um MUNDO MELHOR PARA TODOS. Este somente é concretizável com
PESSOAS MELHORES. Depende de mim, depende de você, DEPENDE DE NÓS! Com estima e votos
de cada um SEJA UM CIDADÃO ÉTICO.
Prof. Edward Guimarães
E-mail: edwardpucminas@gmail.com
WhatsApp: 98273-0858
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