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Fingimento artístico

Segundo a arte poética pessoana, um poema não é um produto direto da emoção, mas
sim produto de uma construção mental, sendo que a sua elaboração se confunde com um
«fingimento» (uma simulação). O poeta assume-se como «fingidor», não sendo alguém
que, desonestamente, mente, mas alguém que simula uma emoção, que encena no seu
intelecto uma situação imaginária representativa da «dor que deveras sente», isto é,
intelectualiza e pensa essa dor. O poema «Autopsicografia» é uma espécie de tratado, em
que se explica o processo de criação artística (poética). Toda a arte é assim perspetivada
como resultado de um processo intelectual, em que a emoção constitui apenas um
estímulo.
O poeta não rejeita os sentimentos sinceros e reais, mas sente a necessidade de os
recriar por meio da imaginação e do intelecto. A verdadeira emoção é intransmissível (é
impossível verbalizar com exatidão o que sentimos). Com efeito, o poeta, ao utilizar as
palavras para a expressar, está automaticamente a adulterá-la, a transfigurá-la, a criar
convenções, fruto do que está a experienciar no momento em que a pretende comunicar.
A função do poeta não é «sentir» no poema; é provocar o «sentir» em quem o lê.
Nesta perspetiva, a dor sentida, que envolve os sentimentos, as emoções e as realidades
experienciadas pelo poeta, não é transmitida, mas sim reconstruída intelectualmente,
dando origem a uma nova dor, uma dor fingida, pensada, a qual, por sua vez, chegará ao
leitor, que, quando partiu para a leitura do poema, não conhecia essa dor. O ato criativo
completa-se quando este último realiza a leitura da dor fingida («dor lida») e consegue
sentir uma dor semelhante (nunca igual) à dor sentida pelo poeta.
As dicotomias sinceridade/fingimento, imaginação/coração estão, pois, bem patentes na
poesia do ortónimo e apoiam-se nas dicotomias inconsciente/consciente e sentir/pensar.

Dor de pensar
A atitude permanente de intelectualização das emoções e o estado consciente não só da
incapacidade de aceder a um «eu» inconsciente, mas também da efemeridade da vida e
de que nela tudo passa, fazem com que o poeta não consiga usufruir dos momentos que
esta lhe oferece. A consciência da realidade que o envolve, da sua pequenez em relação
a ela e das suas limitações e fragilidades impede-o de ser feliz.
A incapacidade de se libertar desse estado de hiperlucidez e de constante análise da
realidade (ou auto análise) provoca-lhe insatisfação e sofrimento, pois questiona tudo,
sofre e angustia-se, não conseguindo dar resposta às suas inquietações.
Em poemas como «Ela canta pobre ceifeira», «Gato que brincas na rua» ou «Não sei ser
triste a valer», o sujeito poético inveja a «alegre inconsciência» daqueles seres que vivem
instintivamente e que são felizes, porque não questionam a realidade nem a existência,
porque estão/são «viúvos» da consciência, porque são assim, profundamente «inteiros».
O que neles «é florescer», obedecendo às «leis fatais/ Que regem pedras e gentes», no
sujeito lírico «é ter consciência» da sua fragmentação, da sua impossibilidade de
autoconhecimento total, situação, que, de tão angustiante que é, o faz desabafar.
Por vezes , afirma que o seu desejo é sentir, no entanto, e de forma paradoxal, ambiciona
igualmente estar consciente desse estado inconsciente que lhe traria felicidade, facto que
também lhe causa frustração, pois compreende que tal feito é impossível.

Nostalgia da Infância
Dececionado com a vida e desfragmentado pela angústia que o invade e por essa
excessiva e alucinante «dor de pensar», Pessoa refugia-se, momentaneamente e pela
memória, no tempo da infância. A infância representa o tempo da inocência e o momento
em que todos somos felizes, porque inconscientes, porque mais próximos dos nossos
instintos e da nossa condição animal, porque mais próximos da essência do gato, que
brinca descontraidamente na rua.
O poeta remete-nos para uma infância que, recuperada pela memória e reconstruida pela
imaginação, é idealizada como um paraíso perdido, um porto de abrigo, o único momento
possível de felicidade. A infância surge, pois, como uma época recordada com saudade e
nostalgia, podendo até não corresponder à infância vivida pelo poeta, mas na qual ele era
feliz sem o saber.

Sonho/Realidade
A dor de pensar e a angústia existencial que dilaceram o «eu» fazem com que este se
tente evadir através do Sonho. A dimensão onírica surge, assim, como uma tentativa de
fuga à realidade que oprime e causa sofrimento em Pessoa. O poeta cria uma outra
realidade, imaginando-se outro, um ser capaz de ultrapassar as suas inquietações, um
ser realizado.
No entanto, o sonho não dissolve as frustrações e insatisfações do poeta, porque não
passa de uma ilusão, de um estado de felicidade efémera. Tendo consciência desse
fracasso, o poeta volta à realidade quotidiana, mas onde reencontra, desnorteado, as
suas dores e ansiedades, intensificando-se assim o seu estado de desilusão, a sua
angústia existencial.

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