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Ano letivo 2022/2023

Português, 12.º Ano

Fernando Pessoa Ortónimo (Pessoa Ele Mesmo)

(obra que Pessoa escreveu em seu próprio nome, mas que corresponde a um desdobramento de si e
se distingue do Pessoa criador de várias personagens)

O Fingimento Artístico
Fernando Pessoa apresenta, nos poemas Autopsicografia e Isto, uma reflexão sobre a própria
poesia. Os dois poemas apresentam uma poética do fingimento: a poesia, sendo realizada com
palavras, num processo racional, é uma operação intelectual, que converte a matéria
original-emoções, sentimentos, sensações-, em ideias e conceitos. Ou seja, existe uma objetificação
da subjetividade, de modo a que esta possa ser trabalhada esteticamente. A poética do fingimento
opõe-se a uma poética tradicional, sentimental e romântica (representada pelo coração).
O Ortónimo escreve de acordo com o seguinte processo: sente (sentimento, coração), pensa sobre o
que sentiu (pensamento, razão, “fingimento” - que não é mentira, mas intelectualização e
transformação mental do que sentiu) e, só no final, escreve. Portanto, o que está escrito não é o
resultado de uma sensação pura, mas de uma já transformada pelo pensamento.
A noção de fingimento possui um importante papel na poética de Pessoa, tanto na questão da
heteronímia, como no Ortónimo. Os poemas Autopsicografia e Isto constituem o delinear de uma arte
poética. Uma expressão de arte superior pressupõe capacidade de fingimento; não é emotivamente
que o artista melhor se exprime, mas quando a dor já se transformou em experiência. Na
modernidade, a obra de arte deve expressar-se com objetividade e obliterar conjeturas meramente
subjetivas.

Autopsicografia
Os três radicais que constituem o título sugerem as várias partes envolvidas no processo de escrita e
que são indissociáveis: auto - remete para o próprio poeta que sente; psico - apresenta a sua mente,
o seu intelecto, necessários ao fingimento poético; grafia - aponta para a escrita de uma dor não
natural, mas já intelectualizada.
O poema pode dividir-se em três partes lógicas, que correspondem a cada uma das três estrofes.
Na primeira estrofe, é efetuada a apresentação e caracterização do poeta: aquele que intelectualiza
os seus sentimentos, isto é, submete-os ao pensamento, antes de os escrever. “Fingir” significa, na
sua origem latina (fingere), “modelar”, “dar forma”, “representar”, “esculpir”. O poeta finge dor, ou
seja, é construtor de imagens poéticas. Na sua função de criador, finge o mundo e todas as suas

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coisas e emoções. Nos três últimos versos da primeira estrofe, o ato de “fingir”, a dor sentida, em
imagens poéticas, atinge um grau de perfeição estética de tal ordem (“finge tão completamente”) que
a “dor fingida” (a da escrita) se afigura mais real ao eu lírico do que a que sentiu (na realidade) e
intelectualizou. O uso da terceira pessoa do singular torna a proposição universal, válida para todos
os poetas.
Na segunda estrofe, os leitores, tornados como personagem coletiva, são elementos fundamentais
para o processo literário. A poesia só faz sentido se for lida e interpretada pelos leitores. Estes são
aqueles que não vão sentir “ as dores” do poeta, mas apenas aquela que não é sua, mas alheia (do
poeta, portanto). Participam, assim, no processo literário três dores: aquela que o poeta
primeiramente sentiu, uma segunda, já intelectualizada/fingida e uma terceira que se prende com a
que os leitores leem (“dor lida”), isto é, uma dor que não é a sua. A “dor lida” corresponde ao
significado das palavras e a outra (“a que eles não têm”) corresponde ao sentido que o leitor percebe,
ou julga perceber, sendo construída pela imaginação. Também o leitor é criador de sentido. A fruição
artística por parte dos leitores dá-se pela intelectualização da dor fingida do poeta, cuja intensidade é
expressa pelo advérbio “bem”, é fruto da sua interpretação.
O ato de fingimento, de intelectualização, é de tal modo intenso e completo que a primeira dor (a dor
sentida) deixa de o ser para se transformar numa dor elaborada intelectualmente (a dor fingida). Em
suma, o poeta transmuta as emoções e experiências vividas no real para o plano do intelecto e das
ideias, transformando-as em imagens poéticas, disponibilizadas para a fruição e interpretação dos
leitores.
Na terceira estrofe, o sujeito poético conclui e esclarece os efeitos produzidos pelas quatro dores (a
que se pode juntar a -dor que integra a palavra “fingidor” - aquele que finge dor). Os diferentes
sentidos, as diferentes dores são construídas pelo poeta e pelo leitor, através da razão e do coração,
simultaneamente contrárias e complementares, pois o “coração” fornece os temas (as dores) que a
“razão” trabalha poeticamente. A dicotomia coração/razão está presente na medida em que o
coração do poeta é o responsável pelo seu sentir, pelos seus sentimentos dolorosos, mas a razão
leva a que reflita sobre o que sentiu (com a ajuda do pensamento ou do intelecto). Dos dois podemos
considerar, a partir da última parte, que é o coração que atua primeiro vai “entreter” a razão. Quem
dá “corda” ao “comboio” (coração) é claramente o sentimento imediato, neste caso, a “dor”. O
coração é orgão humano que adquire as características de um “comboio de corda”, trabalha como
um comboio movido a corda. Um brinquedo sem autonomia, que alimenta a razão, fornecendo-lhe
matéria-prima para a criação. A razão condiciona o movimento, mantendo-o entretido e, ao mesmo
tempo, disciplinado “nas calhas de roda”. Deste modo, o fingimento artístico é a transformação
intelectual da emoção, a matéria-prima do intelecto. O poema é um produto da intelectualização. As
metáforas presentes nos versos “O poeta é um fingidor” e “Esse comboio de corda/ que se chama
coração” confirmam a presença constante de coração, pensamento e razão.
No poema, Pessoa desenvolve uma teoria poética inovadora numa estrutura lírica tradicional e
popular: três quadras de versos heptassílabos - redondilha maior - dispostos em rima cruzada.

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Isto
O poema parece ser uma resposta a possíveis reações à teoria da criação poética expressa em
Autopsicografia.Os dois primeiros versos, na primeira estrofe, confirmam esta hipótese. O sujeito
nulo indeterminado (“Dizem”) sugere que houve reações (erróneas e negativas) à teoria poética
apresentada. Pessoa responde a essas hipotéticas interpretações deturpadas e acusações com um
incisivo “Não”. Seguidamente, esclarece os conceitos basilares da sua teoria poética, nomeadamente
as distintas funções do poeta e do leitor. Nos últimos três versos da primeira estrofe, surge uma nova
dicotomia: imaginação/emoção. Fingir não é mentir. Fingir poeticamente não equivale a mentir, mas,
sim, a sentir imaginária e imaginativamente. O sujeito poético refuta a acusação de que é alvo,
afirmando a sinceridade e espontaneidade do ato de criação poética (através do advérbio de modo
“simplesmente”), ao sentir “com a imaginação”, não usando “ o coração”. Reforça a ideia de que a
criação poética implica, apenas, a emoção intelectualizada, a que foi filtrada pela inteligência, ou
seja, as sensações/emoções são somente matéria poética “em bruto”, que devem ser, primeiro,
ficcionadas/imaginadas e só posteriormente materializadas em poesia.
Na segunda estrofe, o sujeito poético utiliza a comparação para desenvolver a dicotomia e reforçar
a sua teoria. Compara as suas emoções (os seus anseios, as suas vivências, os seus insucessos,
isto é, a realidade que vive e experiencia) a “um terraço”, uma espécie de capa (“sobre outra cousa
ainda”), sobre aquilo que considera ser perfeito e que o fascina: a poesia, o produto da
intelectualização dessas emoções. Sentir “com a imaginação” é a atitude que possibilita a própria
criação artística, sendo esta uma procura da perfeição. A segunda estrofe define a permanente
demanda do poeta.
A terceira estrofe finaliza a explicação esplanada no poema: o poeta busca o inalcançável, é livre e
paradoxal (“sério do que não é”). Nos quatro primeiros versos, o sujeito poético conclui,
argumentando que, ao escrever, se distancia da realidade, liberta-se “do que está ao pé” (o mundo
material, o “coração”, as aparências, o “terraço”), pois está ciente de que a criação da obra poética,
aquilo que é realmente verdadeiro e belo, só se pode concretizar através desse distanciamento. O
último verso, de grande valor expressivo, define o estatuto do leitor: se, para o poeta, “sentir” é uma
ato da imaginação criadora, para o leitor, pode ser um ato de emoção, será essa a função da leitura.
O sujeito poético vem, uma vez mais, reforçar a sua teoria: o distanciamento do poeta do “coração”
no ato de criação, pela intelectualização das sensações, introduzindo um novo interveniente, o leitor,
a quem reserva as emoções suscitadas pela leitura do poema.
O título “Isto”- pronome demonstrativo-, remete, assim, para a teoria poética apresentada pelo sujeito
poético, tudo aquilo que escreve e como escreve.
Recorrendo novamente a uma estrutura formal de índole tradicional (três quintilhas de verso
hexassílabo, com rimas cruzadas e emparelhadas), Pessoa esclarece a sua teoria do fingimento que
se opõe a uma poética tradicional: o “eu” poético não coincide com o “eu” do autor, nem é
necessariamente uma sua projeção;o poeta cria e o leitor, livremente, sente o que e como quiser.

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