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Autopsicografia

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.


“Autopsicografia”

TEMÁTICA: teoria do fingimento poético (= intelectualização do sentir)

ASSUNTO: o eu poético define o processo de criação poética baseado no fingimento:


Assim, o poema é produto da imaginação, ou seja, é a dor fingida pelo poeta aquando do
momento da escrita, em que a emoção é intelectualizada (recordação da dor real).

 TEORIA DO FINGIMENTO POÉTICO  o poeta, em primeiro lugar, sente tudo o que a


realidade lhe dá a sentir; depois, reflete sobre essas emoções/sentimentos e só depois, e
em último lugar, é que escreve. Deste modo, a poesia não resulta do sentimento
imediato e irracional, mas da recordação e intelectualização desse(s) sentimento(s), para
depois escrever sobre ele. A palavra “intelectualizar” quer dizer, na sua essência, pensar
sobre um sentimento, para depois escrever sobre ele.

destruição do conceito romântico de inspiração (negação do culto da poesia


ultrarromântica)

 DIVISÃO DO POEMA EM PARTES


 1ª parte (1ª estrofe) – apresentação da tese, tendo como ponto de partida uma
asserção  poeta = fingidor (metáfora)
- definição de poeta: alguém que transforma as emoções através do intelecto: a dor
real (ponto de partida) não é a dor escrita (invenção criada pela imaginação)
- frases declarativas
- presente do indicativo: acentua a intemporalidade da mensagem que quer
transmitir
- uso da terceira pessoa do singular: confere uma universalidade e um
distanciamento que a primeira pessoa impossibilitaria
- oxímoro (vv.3-4): a dor real (1ª dor) transforma-se em dor fingida (2ª dor) depois
de intelectualizada/transfigurada

 2ª parte (2ª estrofe) – receção da produção poética


- leitores = “os que leem o que escreve”, v.5 (perífrase): não sentem as duas dores do
sujeito poético (a verdadeira/sentida e a fingida/escrita), mas aquela que imaginam
que o poeta teve
- leitor como participante no processo de criação poética: imagina/interpreta a dor.

 3ª parte (3ª estrofe) – conclusão, reflexão-síntese sobre o processo de criação


poética
- “assim” (v.9) – conector com valor semântico de conclusão
- a criação poética é o produto da permanente interação entre o “coração”
(emoções) e a “razão” (intelecto) entre o pensar e o sentir  processo de
intelectualização das emoções (= fingimento)  os sentimentos submetem-se à
razão (espírito analítico)
- metáforas:
- “esse comboio de corda” (v.11) = “coração” (v.12) = sentimento
- “calhas de roda” (v.9): o sentimento é condicionado pela razão  sugere um
movimento circular que remete para a permanente interação entre o sentir e o
pensar.
- hipérbato: acentua a ideia de que os sentimentos se submetem à razão.
NÚMERO TRÊS (número da criação)
- três estrofes
- três tipos de dor
- título com três constituintes/conceitos
- três componentes da criação poética: sentimento  razão  fingimento

ANÁLISE FORMAL
- 3 quadras
- rima cruzada (abab // cdcd // efef)
- verso em redondilha maior (7 sílabas métricas)

- segue a vertente tradicional ao adotar formas poéticas tradicionais


- simplicidade formal opõe-se à complexidade da teoria exposta

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