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Autopsicografia
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Se no senso comum o conceito do fingidor costuma ter um significado pejorativo, nos versos de
Fernando Pessoa temos a noção de que o fingimento é um instrumento da criação literária. Segundo o
dicionário, fingir vem do latim fingere e significa "modelar na argila, esculpir, reproduzir os traços de,
representar, imaginar, fingir, inventar".
A capacidade de fingir de Fernando Pessoa explica a criação dos vários heterónimos pelos quais ficou
conhecido. Os mais famosos heterónimos pessoanos foram Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo
Reis.
Fernando Pessoa consegue abordar várias emoções e se transformar em cada uma delas, criando assim
diferentes personagens com formas distintas de ser e de sentir.
Vemos na segunda estrofe que a capacidade do poeta de expressar certas emoções desperta
sentimentos no leitor. Apesar disso, o que o leitor sente não é a dor (ou a emoção) que o poeta sentiu
nem a que "fingiu", mas a dor derivada da interpretação da leitura do poema.
As duas dores que são mencionadas são a dor original que o poeta sente e a "dor fingida", que é a dor
original que foi transformada pelo poeta.
Na terceira e última estrofe, o coração é descrito como um comboio de corda, que gira e que tem a
função de distrair ou divertir a razão. Vemos neste caso a dicotomia emoção/razão que faz parte do
quotidiano do poeta. Podemos então concluir que o poeta usa o seu intelecto (razão) para transformar
o sentimento (emoção) que ele viveu.
“Autopsicografia” é erguido a partir de um jogo de repetições que cativa o leitor e o leva a querer saber
mais sobre a construção do poema e sobre a personalidade do poeta.
Podemos afirmar que se trata de um metapoema, ou seja, um poema que se dobra sobre si mesmo e
tematiza as suas próprias engrenagens. O que transparece para o leitor são os mecanismos de
composição da obra, dando ao leitor um acesso privilegiado aos bastidores da criação. O prazer é obtido
justamente do fato do poema explicar-se generosamente ao público.
Estrutura do poema
O poema é composto por três estrofes, com 4 versos (quadras) que apresentam rima cruzada.
Relativamente à escansão (a sua métrica), o poema qualifica-se como uma redondilha maior, o que
significa que os versos são heptassílabos, ou seja, têm 7 sílabas.
Isto
Resumindo
Na primeira estrofe do poema “Isto”, Fernando Pessoa, retoma a ideia do fingimento, apresentada como
algo que lhe atribuem:
Dizem que finjo ou minto /Tudo o que escrevo. Não.
Embora a negativa seja contundente, como se encerrasse um debate, a explicação, a seguir, matiza a noção
de fingimento; não significa que não diga a verdade, é que seu sentimento provém da imaginação, não do
coração, vale dizer, é invento, e não confissão:
Eu simplesmente sinto / Com a imaginação. / Não uso o coração.
Pessoa rejeita com firmeza o sentimentalismo, e com isso, afastando-se de um padrão poético
convencional que, confundindo lirismo e confissão, acredita que os versos exteriorizam o que o coração
sente. Situa os seus versos noutro pólo, o da seriedade, mas também o da invenção:
Por isso escrevo em meio / Do que não está ao pé, / Livre do meu enleio, / Sério do que não é.
É quando o leitor faz sua entrada, ali colocado para o poeta de novo referir o desencontro de duas
expetativas: Sentir? Sinta quem lê! O leitor, quem sabe, formado segundo o princípio de que poesia expõe
o sentimento, dada a procedência confessional, poderá sentir o texto, mas errará, pois não é isto que as
palavras querem exprimir.
Conforme a obra de Fernando Pessoa, não se trata de a leitura ser dispensável, porque a poesia nasce na
intimidade de um sujeito que não pode conter, nem controlar seu mundo interior. Pelo contrário, este
escritor não usa o coração, e seus textos provêm da imaginação, berço do fingimento e da criatividade. O
leitor, porém, está dominado pela ideia de que a génese dos versos situa-se no sentimento e, sendo assim,
equivoca-se. A leitura não é dispensável, mas o leitor tem dificuldade de chegar ao âmago do poema,
instalando-se então o desencontro e a impossibilidade de comunicação.