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Fernando Pessoa - Ortónimo

Linhas de sentido / Temas recorrente;

· Procura da decifração do enigma do ser;

· Fragmentação do eu. Perda de identidade.

· Pendor filosófico;

· Obsessão da análise, dor de pensar, lucidez;

· Fuga da realidade para o sonho;

· Incapacidade de viver a vida;

· Inquietação, angústia existencial, solidão interior, melancolia, resignação;

· Tédio, náusea, desencontro dos outros, desamparo;

· Nostalgia do bem perdido, do mundo fantástico da infância;

· Fingimento poético;

· Transfiguração da emoção pela razão.

Estilo;

· Preferência pela métrica curta;

· Influência do lirismo lusitano (reminiscências de cantigas de embalar, toadas do


romanceiro, contos de fadas);

· Gosto pelo popular (uso frequente da quadra);

· Linguagem simples, espontânea, mas sóbria;

· Criação de metáforas inesperadas; uso frequente do paradoxo;

· Versos leves em que recorre frequentemente à interrogação, às reticências.

1
"Sou um Evadido"

Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.

Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?

Minha alma procura-me


Mas eu ando a monte
Oxalá que ela
Nunca me encontre.

Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.

Reflexão:

O sujeito poético neste poema procura caracterizar a sua realidade fragmentada,


servindo-se do campo semântico de prisão.

Através da reflexão filosófica a sua opção de fuga aos limites do ser, procura realçar
a naturalidade de cansaço que caracteriza o ser humano e afirma que ser uno é ser
prisão e que, por isso, só vivera plenamente fingido de si próprio.

"Viajar! Perder países!"

Viajar! Perder países!


Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!

Não pertencer nem a mim!


Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E a ânsia de o conseguir!

2
Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu.

Reflexão:

A noção de viagem presente no primeiro verso está associada á ideia de procura para
o sujeito poético viajar não implica ganhar países, ganhar lugares na rota da sua vida;
significa, antes, procura de si mesmo, encontro consigo mesmo.

No entanto, o poema parte de uma ideia paradoxal de viagem, falando-se aqui de


uma viagem permanente, de partidas constantes, na qual cada rosto de si mesmo
encontrado é um lugar imediatamente perdido. Ou seja, trata-se de uma viagem
permanente procura e descoberta do ser que é sempre outro e não tem amarras a
ninguém, nem a si mesmo.

"Não sei quantas almas tenho"

Não sei quantas almas tenho.


Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,


Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo


Como páginas, meu ser.
O que sogue não prevendo,
O que passou a esquecer.

3
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.

Reflexão:

Este poema é claramente ilustrativo da temática do “ser”. Mas outros temas ou ideias
nele se revelam poesia pesoante: o desconhecimento de si mesmo; a perda de
identidade, a ideia de mobilidade; a solidão e a angústia.

No poema, o sujeito poético assiste a sua fragmentação como se a sua consciência


fosse um ser exterior a si mesmo; como se, ao olhar-se visse uma paisagem de si
mesmo ou como se, auto-analisar-se lesse um livro cujas páginas são o seu próprio
“ser”. Estas ideias tornam-se evidentes na utilização de diversas metáforas que
sugerem a ideia do “eu” alheio e exterior a si mesmo.

"Autopsicografia"

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,


Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda


Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Reflexão:

Neste poema Fernando Pessoa fala da teoria do fingimento poético, pois um poema
não traduz aquilo que o poeta sente, mas sim aquilo que o poeta imagina a partir da
recordação do que anteriormente sentiu. O poeta é, assim, um fingidor que escreve
uma emoção fingida, pensada, por isso fruto da razão de da imaginação e não a
emoção sentida pelo coração, que apenas chega ao poema transfigurada na tal
emoção trabalhada praticamente.

4
O leitor não sente nem a emoção vivida realmente pelo poeta, nem a emoção por ele
fingida no poema, sentido apenas o que na sua inteligência é provocado pelo poema
– assim, a poesia, segundo Fernando Pessoa, é a intelectualização da emoção.

"Isto"

Dizem que finjo ou minto


Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,


O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio


Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Reflexão:

Neste poema o sujeito poético utiliza a imaginação, deixando de parte todas as


emoções.

O poeta neste poema compara todas as suas emoções a um terraço, esta comparação
permite salientar a separação entre as sensações e as emoções.

Basicamente, este poema foi escrito como resposta á falta de compreensão, por parte
dos leitores, do poema “Autopsicografia”. Como tal, no ultimo verso do poema, o
sujeito poético dirige-se aos leitores para salientar a ideia de que a eles caberá um
sentir diferente de poeta, isto é, cada leitor terá a liberdade de sentir o poema como
quiser, seja com emoção, ou seja. Com inteligência.

A relação existente entre os dois poemas “Autopsicografia” e “Isto” tem como tema
comum o fingimento poético, funcionando ambos como uma espécie de arte poética,
nos quais o sujeito poético expõe a sua teoria da poesia como intelectualização da
emoção.

5
"Ela canta, Pobre ceifeira"

Ela canta, pobre ceifeira,


Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,

Ondula como um canto de ave


No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,


Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão !


O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando !

Ah, poder ser tu, sendo eu !


Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso ! Ó céu !
Ó campo ! Ó canção ! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve !


Entrai por mim dentro ! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve !
Depois, levando-me, passai !

Reflexão:

[não efectuado]

"Gato que brincas na rua"

Gato que brincas na rua


Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

6
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,


Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

Reflexão:

Neste poema o sujeito poético revela trsiteza e desolação por não conseguir abolir o
viço excessivo do pensamento. O poeta afirma que gostaria de ser a ceifeira, com a
sua “alegre inconsciência” – gostaria de sentir sem pensar; mas paradoxalmente,
gostaria também de ser ele mesmo, ou seja, ter a consciência de ser inconsciente – o
que ele deseja é unir o plano do sentir e o plano de pensar

A relação existente entre os dois poemas existentes no tema “a dor de pensar”


apresentam um tema central idêntico: “a dor de pensar” provocada pela
intelectualização do sentido. “Ceifeira” e “Gato” são símbolos de uma alegre
inconsciência, enquanto Pessoa afirma para si uma espécie de trituração mental que o
conduz a parte alguma – “o que em mim sente, ‘stá pensado!”

"Não sei ser triste a valer"

Não sei ser triste a valer


Nem ser alegre deveras.
Acreditem: não sei ser.
Serão as almas sinceras
Assim também, sem saber?

Ah, ante a ficção da alma


E a mentira da emoção,
Com que prazer me dá calma
Ver uma flor sem razão
Florir sem ter coração!

Mas enfim não há diferença.


Se a flor flore sem querer,
Sem querer a gente pensa.

7
O que nela é florescer
Em nós é ter consciência.

Depois, a nós como a ela,


Quando o Fado a faz passar,
Surgem as patas dos deuses
E ambos nos vêm calcar.

'Stá bem, enquanto não vêm


Vamos florir ou pensar.

Reflexão:

Este poema foi escrito para caracterizar o homem, que sente e pensa. Nele a razão e a
emoção são mentira porque não se conjugam. Por seu lado, a flor, nem sente nem
pensa e, no entanto, desabrocha sem precisar de razão e de coração. Para a flor,
florescer é um acto involuntário, tal como é um acto involuntário para o homem
pensar.

O sujeito poético procura realçar um apelo irónico ao “carpe diem” que procura
sugerir que, enquanto a morte não chega, devemos aproveitar cada momento da vida,
seja florindo inconscientemente como uma flor, seja pensando, como é inevitável no
homem.

"Bóiam leves, desatentos"

Bóiam leves desatentos,


Meus pensamentos de mágoa,
Como, no sono dos ventos,
As algas, cabelos lentos
Do corpo morto das aguas.

Bóiam como folhas mortas


Á tona de águas paradas
São doisas vestindo nadas,
Pós remoinhando nas portas
Das casas abandonadas.

Sono de ser, sem remédio,


Vestígio do que não foi,
Leve magoa, breve tédio,

8
Não se pára, se flui;
Não se existe ou de doí.

Reflexão:

Este poema foi feito para caracterizar os pensamentos do sujeito poético que eram
“leves” e “desatentos”, semelhantes a “algas” ou “cabelos” que “bóiam” lentamente
“á tona de águas”; são as coisas insignificantes como “pós” ou como “nadas”. O
sujeito poético, observando o seu mundo inteiro, redu-lo a uma insignificância
insuportável. Sobressaem, na caracterização dos pensamentos, os seguintes recursos:
a metáfora, a comparação, a adjectivação expressiva e o paradoxo.

O sujeito poético visiona neste poema um espelho coberto de elementos físicos sem
vida, que fazem lembrar desperdício e que não permitem o encontro consigo mesmo.
Deste desencontro resulta a angústia, a “mágoa”, o tédio, a dor, a frustração e o
sentimento de vazio que dominam o sujeito poético.

"Tudo o que faço ou medito"

Tudo o que faço ou medito


Fica sempre pela metade,
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada e' verdade.

Que nojo de mim me fica


Ao olhar para o que faço!
Minha alma e' lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço ---

Um mar onde bóiam lentos


Fragmentos de um mar de alem...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.

Reflexão:

O sujeito poético neste poema procura auto-analisar-se com a sua lucidez aguda, a
sua alma “lúcida e rica”, na tentativa de se auto conhecer. No entanto, aquilo que
encontra é um espelho sem reflexo, “um mar de sargaço” que impede o encontro
consigo mesmo.

Este poema revela a tentativa da descoberta de si mesmo, que lhe revela a


impossibilidade de se conhecer.

9
"Não sei se é sonho, se realidade"

Não sei se é sonho, se realidade,


Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul de olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri

Talvez palmares inexistentes,


Áleas longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.

Mas já sonhada de desvirtua,


Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, á luz da lua,
Sente-se o frio de haver luar.
Ah, nesta terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem

Não é com ilhas do fim do mundo,


Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.

Reflexão:

O sujeito poético neste poema, numa primeira fase procurou colocar a hipótese de
poder alcançar o sonho, numa segunda fase contradiz a hipótese colocada, expondo a
concretização do sonho. Finalmente conclui que não é necessário fingir para o sonho,
porque aquilo que procuramos está dentro de nós mesmos. No entanto, ao referir que
é “Ali, ali / A vida é jovem e o amor sorri”, deixa entender que mesmo estando
dentro de nós, o sonho e a felicidade estão distantes, pois são difíceis de alcançar.

Este poema foi escrito para explorar o tema tipicamente pessoano do binómio,
sonho/realidade.

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"Contemplo o que não vejo"

Contemplo o que não vejo.


É tarde, é quase escuro.
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.

Por cima o céu é grande;


Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.

Tudo é do outro lado,


No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.

Confunde-se o que existe


Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste.
Mas triste é o que estou.

Reflexão:

Este poema foi escrito com o intuito de caracterizar a palavra “muro” que, neste
caso, representa metaforicamente a ideia de fronteira ou de divisão entre a realidade
e o sonho, uma separação que estabelece os limites do sujeito poético.

O sujeito poético neste poema pretende, provavelmente, exprimir a sua incapacidade


de sentir (uma vez que a imaginação só sobrepôs á sensação), ao mesmo tempo que
afirma a sua angústia.

"Porque esqueci quem fui quando criança?"

Porque esqueci quem fui quando criança?


Porque deslembra quem então era eu?
Porque não há nenhuma semelhança
Entre quem sou e fui?
A criança que fui vive ou morreu?
Sou outro? Veio um outro em mim viver?
A vida, que em mim flui, em que é que flui?

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Houve em mim várias almas sucessivas
Ou sou um só inconsciente ser?

Reflexão:

Trata-se de um dos temas fundamentais da obra de Fernando Pessoa ortónimo, mas


que também é partilhado pelo seu heterónimo Álvaro de Campos.

Para Fernando Pessoa, a sua infância é o passado irremediavelmente perdido, o


tempo longínquo em que era feliz sem saber que o era, o tempo em que ainda não
tinha iniciado a procura de si mesmo, e por isso, ainda não se tinha fragmentado. Em
muitos poemas, o poeta exprime a memória dessa infância provocada por um
qualquer estímulo – “velha música”, um simples som (“Quando as crianças
brincavam / E eu as oiço brincar), uma imagem ou uma palavra – para concluir
amargamente que o rosto presente, não há coincidência entre o “eu – outrora” e o “eu
– agora”

Em Fernando Pessoa, a passagem da infância a idade adulta não é um processo de


ruptura, de corte, de morte: “A criança que fui vive ou morreu?”; “Porque não há
semelhança / Entre quem sou e fui?”. Todo o poema “Porque esqueci quem fui
quando criança?” exprime essa admiração perturbante de se sentir habitado por
outro, diferente da criança que foi “sou outro?”.

Desta forma, o passado e o presente opõem-se na poesia de Fernando Pessoa, não se


complementam. O passado é infância, alegria, felicidade “inconsciente”; o presente é
nostalgia, inquietação, desconhecimento de si mesmo e do futuro: “se quem fui é
enigma, / E quem serei visão, / Quem sou ao menos sinta / Isto no meu coração”.

"O menino da sua mãe"

No plaino abandonado
Que a morta brisa aquece,
De balas traspassado
- Duas, de lado a lado -,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.


De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

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Tão jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O menino da sua mãe".

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada


Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:


"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.

Reflexão:

Este poema foi escrito para poder ser visto de modo metafórico, a representação do
próprio poeta que sabe ser impossível o regresso ao regresso materno, porque a
infância ficou para trás, inevitavelmente perdida, ideia que pode relacionar-se com a
temática pessoana “a nostalgia da infância” – a época de ouro, da felicidade
inconsciente, para sempre perdida, que contrasta com a situação presente
caracterizada por consciência aguda que provoca no poeta a sensação de
desconhecimento de si mesmo, a perda de identidade.

O sujeito poético neste poema fala também da cigarreira dada pela sua mãe e o
lenço dado pela alma que o ajudou a criar, são representações do seu passado de
“menino” que viveu junto a quem o amava.

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