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Análise do Poema

"Sou um Evadido"

Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.
Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?
Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte
Oxalá que ela
Nunca me encontre.
Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.

Reflexão:
O sujeito poético neste poema procura caracterizar a sua realidade
fragmentada, servindo-se do campo semântico de prisão.
Através da reflexão filosófica a sua opção de fuga aos limites do ser,
procura realçar a naturalidade de cansaço que caracteriza o ser
humano e afirma que ser uno é ser prisão e que, por isso, só vivera
plenamente fingido de si próprio.
Análise do Poema

"Viajar! Perder países!"

Viajar! Perder países!


Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!
Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E a ânsia de o conseguir!
Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu.

Reflexão:
A noção de viagem presente no primeiro verso está associada á ideia de
procura para o sujeito poético viajar não implica ganhar países, ganhar
lugares na rota da sua vida; significa, antes, procura de si mesmo,
encontro consigo mesmo.
No entanto, o poema parte de uma ideia paradoxal de viagem, falando-
se aqui de uma viagem permanente, de partidas constantes, na qual
cada rosto de si mesmo encontrado é um lugar imediatamente perdido.
Ou seja, trata-se de uma viagem permanente procura e descoberta do
ser que é sempre outro e não tem amarras a ninguém, nem a si mesmo.
Análise do Poema

"Não sei quantas almas tenho"

Não sei quantas almas tenho.


Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que sogue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.

Reflexão:
Este poema é claramente ilustrativo da temática do “ser”. Mas outros
temas ou ideias nele se revelam poesia pesoante: o desconhecimento
de si mesmo; a perda de identidade, a ideia de mobilidade; a solidão e a
angústia.
No poema, o sujeito poético assiste a sua fragmentação como se a sua
consciência fosse um ser exterior a si mesmo; como se, ao olhar-se
visse uma paisagem de si mesmo ou como se, auto-analisar-se lesse um
livro cujas páginas são o seu próprio “ser”. Estas ideias tornam-se
evidentes na utilização de diversas metáforas que sugerem a ideia do
“eu” alheio e exterior a si mesmo.

Análise do Poema

"Não sei ser triste a valer"

Não sei ser triste a valer


Nem ser alegre deveras.
Acreditem: não sei ser.
Serão as almas sinceras
Assim também, sem saber?
Ah, ante a ficção da alma
E a mentira da emoção,
Com que prazer me dá calma
Ver uma flor sem razão
Florir sem ter coração!
Mas enfim não há diferença.
Se a flor flore sem querer,
Sem querer a gente pensa.
O que nela é florescer
Em nós é ter consciência.
Depois, a nós como a ela,
Quando o Fado a faz passar,
Surgem as patas dos deuses
E ambos nos vêm calcar.
'Stá bem, enquanto não vêm
Vamos florir ou pensar.

Reflexão:
Este poema foi escrito para caracterizar o homem, que sente e pensa.
Nele a razão e a emoção são mentira porque não se conjugam. Por seu
lado, a flor, nem sente nem pensa e, no entanto, desabrocha sem
precisar de razão e de coração. Para a flor, florescer é um ato
involuntário, tal como é um ato involuntário para o homem pensar.
O sujeito poético procura realçar um apelo irónico ao “carpe diem” que
procura sugerir que, enquanto a morte não chega, devemos aproveitar
cada momento da vida, seja florindo inconscientemente como uma flor,
seja pensando, como é inevitável no homem.

Análise do Poema

"Bóiam leves, desatentos"

Bóiam leves desatentos,


Meus pensamentos de mágoa,
Como, no sono dos ventos,
As algas, cabelos lentos
Do corpo morto das aguas.
Bóiam como folhas mortas
Á tona de águas paradas
São doisas vestindo nadas,
Pós remoinhando nas portas
Das casas abandonadas.
Sono de ser, sem remédio,
Vestígio do que não foi,
Leve magoa, breve tédio,
Não se para, se flui;
Não se existe ou de doí.

Reflexão:
Este poema foi feito para caracterizar os pensamentos do sujeito
poético que eram “leves” e “desatentos”, semelhantes a “algas” ou
“cabelos” que “bóiam” lentamente “á tona de águas”; são as coisas
insignificantes como “pós” ou como “nadas”. O sujeito poético,
observando o seu mundo inteiro, redu-lo a uma insignificância
insuportável. Sobressaem, na caracterização dos pensamentos, os
seguintes recursos: a metáfora, a comparação, a adjetivação expressiva
e o paradoxo.
O sujeito poético visiona neste poema um espelho coberto de
elementos físicos sem vida, que fazem lembrar desperdício e que não
permitem o encontro consigo mesmo. Deste desencontro resulta a
angústia, a “mágoa”, o tédio, a dor, a frustração e o sentimento de
vazio que dominam o sujeito poético.

Análise do Poema

"Tudo o que faço ou medito"

Tudo o que faço ou medito


Fica sempre pela metade,
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada e' verdade.
Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma e' lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço ---
Um mar onde bóiam lentos
Fragmentos de um mar de alem...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.

Reflexão:
O sujeito poético neste poema procura auto-analisar-se com a sua
lucidez aguda, a sua alma “lúcida e rica”, na tentativa de se auto
conhecer. No entanto, aquilo que encontra é um espelho sem reflexo,
“um mar de sargaço” que impede o encontro consigo mesmo.
Este poema revela a tentativa da descoberta de si mesmo, que lhe
revela a impossibilidade de se conhecer.

Análise do Poema

"Não sei se é sonho, se realidade"

Não sei se é sonho, se realidade,


Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul de olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri
Talvez palmares inexistentes,
Áleas longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.
Mas já sonhada de desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, á luz da lua,
Sente-se o frio de haver luar.
Ah, nesta terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem
Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.
Reflexão:
O sujeito poético neste poema, numa primeira fase procurou colocar a
hipótese de poder alcançar o sonho, numa segunda fase contradiz a
hipótese colocada, expondo a concretização do sonho. Finalmente
conclui que não é necessário fingir para o sonho, porque aquilo que
procuramos está dentro de nós mesmos. No entanto, ao referir que é
“Ali, ali / A vida é jovem e o amor sorri”, deixa entender que mesmo
estando dentro de nós, o sonho e a felicidade estão distantes, pois são
difíceis de alcançar.
Este poema foi escrito para explorar o tema tipicamente pessoano do
binómio, sonho/realidade.

Análise do Poema

"Contemplo o que não vejo"

Contemplo o que não vejo.


É tarde, é quase escuro.
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.

Por cima o céu é grande;


Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.
Tudo é do outro lado,
No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.
Confunde-se o que existe
Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste.
Mas triste é o que estou.
Reflexão:
Este poema foi escrito com o intuito de caracterizar a palavra “muro”
que, neste caso, representa metaforicamente a ideia de fronteira ou de
divisão entre a realidade e o sonho, uma separação que estabelece os
limites do sujeito poético.
O sujeito poético neste poema pretende, provavelmente, exprimir a sua
incapacidade de sentir (uma vez que a imaginação só sobrepôs á
sensação), ao mesmo tempo que afirma a sua angústia.

Análise do Poema

"Porque esqueci quem fui quando criança?"

Porque esqueci quem fui quando criança?


Porque deslembra quem então era eu?
Porque não há nenhuma semelhança
Entre quem sou e fui?
A criança que fui vive ou morreu?
Sou outro? Veio um outro em mim viver?
A vida, que em mim flui, em que é que flui?
Houve em mim várias almas sucessivas
Ou sou um só inconsciente ser?

Reflexão:

Trata-se de um dos temas fundamentais da obra de Fernando Pessoa ortónimo,


mas que também é partilhado pelo seu heterónimo Álvaro de Campos.

Para Fernando Pessoa, a sua infância é o passado irremediavelmente perdido, o


tempo longínquo em que era feliz sem saber que o era, o tempo em que ainda não
tinha iniciado a procura de si mesmo, e por isso, ainda não se tinha fragmentado.
Em muitos poemas, o poeta exprime a memória dessa infância provocada por um
qualquer estímulo – “velha música”, um simples som (“Quando as crianças
brincavam / E eu as oiço brincar), uma imagem ou uma palavra – para concluir
amargamente que o rosto presente, não há coincidência entre o “eu – outrora” e o
“eu – agora”
Em Fernando Pessoa, a passagem da infância a idade adulta não é um processo de
ruptura, de corte, de morte: “A criança que fui vive ou morreu?”; “Porque não há
semelhança / Entre quem sou e fui?”. Todo o poema “Porque esqueci quem fui
quando criança?” exprime essa admiração perturbante de se sentir habitado por
outro, diferente da criança que foi “sou outro?”.

Desta forma, o passado e o presente opõem-se na poesia de Fernando Pessoa, não


se complementam. O passado é infância, alegria, felicidade “inconsciente”; o
presente é nostalgia, inquietação, desconhecimento de si mesmo e do futuro: “se
quem fui é enigma, / E quem serei visão, / Quem sou ao menos sinta / Isto no meu
coração”.

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