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COMUNHÃO

Tal como o camponês, que canta a semear


A terra,
Ou como tu, pastor, que cantas a bordar
A serra
De brancura,
Assim eu canto, sem me ouvir cantar,
Livre e à minha altura.
Semear trigo e apascentar ovelhas
É oficiar à vida
Numa missa campal.
Mas como sobra desse ritual
Uma leve e gratuita melodia,
Junto o meu canto de homem natural
Ao grande coro dessa poesia.

de Miguel Torga

Análise externa:

poema constituído por apenas uma estrofe de catorze versos.

Este poema apresenta rimas cruzadas, emparelhas e interpoladas, possuindo


ainda uma sonoridade leve e calma.

Análise interna:

Miguel Torga apresenta nos seus poemas um grande apego à terra e ao


campo, ou seja, à vida campestre. Este apego é profundo, é da sua origem
transmontana, aldeã.

O poema fala-nos da semente, da seiva, da colheita, enfim, que remetem para


os símbolos bíblicos.

A Bíblia é o livro sagrado de um povo de agricultores e pastores e, por isso, não


é de admirar o uso da linguagem simbólica das sementeiras e das sementes
para falar de realidades espirituais e transmitir mensagens de fé.
A semente, embora pequena, tem a capacidade de produzir uma enorme
quantidade de outros grãos e de estar na origem de uma grande árvore. A
semente já contém em si o que no futuro se vai manifestar. Ela é o símbolo de
todas as capacidades e possibilidades, da abundância de vida.

O sujeito poético inicia a sua composição lírica com duas comparações: “Tal
como o camponês” e “Ou como tu pastor”. O sujeito poético compara o canto
destes dois seres ao seu próprio canto, isto é, o canto através da palavra que é
a poesia. E qual é a sua forma de cantar? O sujeito poético canta “livre” e “sem
me ouvir”, pelo facto de ser um canto que provém de dentro, dentro de si, razão
pelo qual ninguém não o ouve e nem mesmo a ele próprio.

O sujeito poético remete a seguir para o ofício de pastor, tendo esta palavra um
sentido duplo: o pastor de ovelhas e o das missas, ou seja, o sujeito “compara”
por assim dizer que o bom pastor era Jesus e o povo eram as suas ovelhas.

Através da conjunção coordenativa adversativa “Mas”, o sujeito marca uma


oposição. Assim, a única coisa que vai sobrar “desse ritual” é o que vai restar na
recordação daquela melodia “leve” e “gratuita” da sua poesia.

Toda a poesia exprime um conjunto de mitos agrários de uma forma pessoal que
é a sua visão.

Feita a análise interna, retornemos ao título deste poema. O título deste poema
é comunhão, porque o eu lírico está em comunhão com a natureza e com todo o
ambiente pastoril e campestre.

Desfecho
Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte).
Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente,
Do teu vulto calado,
E paciente...
E lutei, como luta um solitário
Quando, alguém lhe perturba a solidão
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.
Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.
Miguel Torga,
Câmara Ardente

1.      Divida o poema nas suas partes ló9icas e identifique o assunto de cada uma. 

2.      Identifique e caracterize o destinatário do poema.


3.      Explicite a relação estabelecida entre o sujeito poético e esse destinatário:

-         no passado;

-         no presente.

4.      "Soltei a voz, arma que tu não usas, / Sempre silencioso na agressão."

4.1  - Explique o sentido dos versos transcritos.

4.2  - Identifique os recursos estético - estilísticos.

5          Comprove, a partir do poema, que a negação do Divino é, para Torga, uma
forma de afirmar o Homem.

II

Elabore uma dissertação em que aborde o seguinte tema: o mito de Anteu na poesia

de Cesário Verde.

(Cenários de resposta)

1. · Duas primeiras estrofes (versos 1 a 10) - A situação da luta:

- a presença obsessiva de Deus;

- a tentativa de negação da divindade;

- o medo de enfrentar o absoluto - "o terror de te ver / em toda a


parte";

- a impertinência e a paciência da "divina presença".

· Terceira estrofe (versos 11 a 1 5) - Os processos utilizados:

- o refúgio na recusa;

- a voz solta como arma;

- a obstinação.

· Última estrofe (versos 1 6 a 20) - O desfecho sem catástrofe: a


obstinação e a teimosia do humano e do divino.

2. Deus surge como o destinatário do poema.


É - nos apresentado como alguém que o sujeito poético vê "em toda a
parte"; como "divina presença", embora "impertinente"; "vulto calado e
paciente".

3. No passado, o sujeito poético negou a "divina presença"; temia ver o


"vulto calado / e paciente"; lutou e isolou-se; revoltou-se pela voz....

No presente, sente que o tempo lhe trouxe uma certa conformação, embora
permaneça obstinado, a "par na teimosia ...

4.1. O primeiro verso "Soltei a voz, arma que tu não usas," exprime as
palavras de alguém inconformado, que só consegue recorrer ás palavras
para traduzir a sua revolta ou inconformismo; o verso "Sempre
silencioso na agressão" remete para a imagem de que o silêncio vale
muitas vezes mais do que qualquer palavra. Esta surge como a arma do
divino.

41. Recursos estilísticos: metáfora (voz como arma); aliteração da


sibilante ("Sempre silencioso na agressão"); antítese (entre a voz solta e
o silêncio)...

5. A problemática religiosa é uma constante na poesia de Torga. Neste


poema, nota-se:

- o conflito entre o humano e o divino;

- a negação de Deus e a obsessão da sua presença;

- a revolta contra a transcendência.

Neste poema, Torga procura afirmar o Homem, recorrendo à negação do divino.


Considera necessário enfrentar a transcendência, embora continue a sentir a
"divina presença".

Resta-lhe a luta das palavras.

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