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net/textos/683
Em negrito o texto que leremos
Foi durante a nossa primeira conversa. Como foi no sei, e ele disse: Est
aqui um rapaz Ricardo Reis que h-de gostar de conhecer: ele muito diferente
de si. E depois acrescentou, tudo diferente de ns, e por isso que tudo
existe.
Esta frase, dita como se fosse um axioma da terra, seduziu-me com um abalo,
como o de todas as primeiras posses, que me entrou nos alicerces da alma. Mas,
ao contrrio da seduo material, o efeito em mim foi de receber de repente, em
todas as minhas sensaes, uma virgindade que no tinha tido.
*
Referindo-me, uma vez, ao conceito directo das coisas, que caracteriza a
sensibilidade de Caeiro, citei-lhe, com perversidade amiga, que Wordsworth
designa um insensvel pela expresso:
A primrose by the river's brim
A yellow primrose was to him
And it was nothing more.
E traduzi (omitindo a traduo exacta de primrose, pois no sei nomes de
flores nem de plantas): Uma flor margem do rio para ele era uma flor amarela,
e no era mais nada.
O meu mestre Caeiro riu. Esse simples via bem: uma flor amarela no
realmente seno uma flor amarela.
Mas, de repente, pensou.
H uma diferena, acrescentou. Depende se se considera a flor amarela
como uma das vrias flores amarelas, ou como aquela flor amarela s.
E depois disse:
O que esse seu poeta ingls queria dizer que para o tal homem essa flor
amarela era uma experincia vulgar, ou coisa conhecida. Ora isso que no est
bem. Toda a coisa que vemos, devemos v-la sempre pela primeira vez, porque
realmente a primeira vez que a vemos. E ento cada flor amarela uma nova
flor amarela, ainda que seja o que se chama a mesma de ontem. A gente no j o
mesmo nem a flor a mesma. O prprio amarelo no pode ser j o mesmo. pena
a gente no ter exactamente os olhos para saber isso, porque ento ramos todos
felizes.
*
O meu mestre Caeiro no era um pago: era o paganismo. O
Ricardo Reis um pago, o Antnio Mora um pago, eu sou um
pago; o prprio Fernando Pessoa seria um pago, se no fosse um
novelo embrulhado para o lado de dentro. Mas o Ricardo Reis um
pago por carcter, o Antnio Mora um pago por inteligncia, eu
sou um pago por revolta, isto , por temperamento. Em Caeiro no
havia explicao para o paganismo; havia consubstanciao.
Vou definir isto da maneira em que se definem as coisas
indefinveis pela cobardia do exemplo. Uma das coisas que mais
nitidamente nos sacodem na comparao de ns com os gregos a
Lacunas completadas segundo o original. 1 publ. in Presena, n 30. Coimbra: Jan.-Fev. 1931.