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1 Um Argumento cosmológico para a inexistência

Introdução:
Extraído do site Rebeldia Metafísica
Tradução: Gilmar Pereira dos Santos

O
advento da cosmologia do Big Bang no século XX foi um divisor de águas para os
teístas. Desde os tempos de Copérnico e Darwin, vários teístas consideraram a ciência
hostil à sua visão de mundo, exigindo defesa e retração contínuas da parte do teísmo.
Mas a cosmologia do Big Bang reverteu efetivamente esta situação. A ideia central desta
cosmologia, que o universo explodiu na existência num „big bang‟ há aproximadamente 15
bilhões de anos atrás, pareceu feita sob encomenda para uma perspectiva teísta. A cosmologia
do Big Bang aparentou oferecer evidências empíricas para a doutrina religiosa da criação ex
nihilo. As implicações teístas pareceram tão óbvias e excitantes que até mesmo o Papa Pio XII
foi levado a comentar que „A verdadeira ciência num grau cada vez maior descobre Deus como
se Deus estivesse à espera atrás de cada porta aberta pela ciência.„[1] Mas a interpretação
teísta do Big Bang recebeu não somente sanção oficial e ampla divulgação na cultura popular
como também uma sofisticada articulação filosófica. Richard Swinburne, John Leslie e
sobretudo William Lane Craig [2] formularam poderosos argumentos para o teísmo baseados
num conhecimento bem embasado dos dados e das ideias cosmológicas.

A reação de ateus e agnósticos a esta formulação foi comparativamente fraca, com efeito, quase
imperceptível. Um desconfortável silêncio parece ser a regra quando a questão é levantada entre
descrentes ou então o assunto é rapida e epigramaticamente descartado com um comentário no
sentido de que „a ciência é irrelevante para a religião‟. ´Não é difícil descobrir a razão do
aparente constragimento dos não-teístas. Anthony Kenny sugere nesta declaração sumária:

Segundo a Teoria do Big Bang, toda a matéria do universo começou a existir num instante
particular no passado remoto. Um proponente de uma teoria assim, pelo menos se ele for um
teísta, deve acreditar que a matéria do universo veio do nada e por nada. [3]

Esta ideia perturba a muitos pela mesma razão que perturba C. D. Broad:

Devo confessar que tenho uma dificuldade muito grande em imaginar que houve uma primeira
fase na história do mundo, isto é, a fase imediatamente anterior na qual não existiu nem matéria,
nem mentes, nem qualquer outra coisa… Eu suspeito que minha dificuldade em relação ao
primeiro evento ou fase na história do mundo decorre do fato de que, não importa o que eu
possa dizer quando tento dificultar as coisas para Hume, não sou capaz de realmente acreditar
em qualquer coisa começando a existir sem ser causada (no sentido obsoleto de produzido ou
gerado) por alguma outra coisa que existia antes e no momento em que a entidade em questão
começou a existir… Eu… acho impossível abrir mão deste princípio; e, com esta confissão de
impotência intelectual decorrente de uma idade avançada, abandono este tópico.[4]
Motivados por preocupações como as de Broad, alguns dos poucos não-teístas que se
pronunciaram sobre esse tema chegaram ao ponto de negar, sem uma justificação apropriada,
pilares centrais da cosmologia do Big Bang. Entre os físicos, o exemplo mais célebre é Fred

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2 Um Argumento cosmológico para a inexistência

Hoyle, que rejeitou veementemente a sugestão de um Big Bang que aparentasse implicar um
criador e tentou sem sucesso interpretar as evidências para um Big Bang como evidências para
uma „bolha‟ em expansão dentro de um universo imutável e infinitamente velho (refiro-me a sua
teoria pós-estado-de-equilíbrio da década de 1970)[5]. Um exemplo deste tratamento em sentido
contrário entre filósofos é patenteada por W. H. Newton-Smith. Newton-Smith sentiu-se
compelido a sustentar, em franca contradição com os teoremas da singularidade da cosmologia
do Big Bang (que implicam que não pode existir nenhum estado mais antigo do universo do que
a singularidade do Big Bang) que as evidências de que eventos macroscópicos tem origens
causais nos dão „motivos para pensar que algum estado anterior do universo levou à produção
desta singularidade específica„.[6]

Parece-me, contudo, que a cosmologia do Big Bang não coloca os não-teístas em tal beco sem
saída. As alternativas dos não-teístas não se limitam ao silêncio constrangedor, à confissões de
impotência, recusas epigramáticas ou a „negação‟ pura e simples quando confrontados com as
implicações aparentemente radicais da cosmologia do Big Bang. É meu objetivo nesta série
mostrar isto estabelecendo uma interpretação ateísta coerente e plausível do Big Bang, uma
interpretação que não somente é capaz de equiparar-se à interpretação teísta mas que na verdade
é melhor justificada do que a interpretação teísta. Mas meu argumento pretende estabelecer
ainda mais do que isso. Em outra ocasião elaborei o caso de que a cosmologia do Big Bang não
fornece quaisquer subsídios ao teísmo, mas aqui eu desejo construir o caso mais robusto de que
a cosmologia do Big Bang é efetivamente inconsistente com o teísmo. Defenderei que se a
cosmologia do Big Bang é verdadeira, então Deus não existe.

A teoria cosmológica que discutirei neste artigo é a assim chamada „teoria padrão do Big Bang
quente‟, baseada nas soluções de Friedmann para as equações da Teoria da Relatividade Geral
de Einstein e nos teoremas da singularidade de Hawking-Penrose. Explicarei estas ideias de uma
maneira introdutória e não-técnica no próximo capítulo, de modo que os filósofos que não
tenham familiaridade com esta teoria possam acompanhar meu argumento. Um ponto que
desejo enfatizar logo de início refere-se ao estatuto provisório da teoria do Big Bang. Os
cosmólogos acreditam que esta teoria um dia será substituída por uma cosmologia baseada
numa teoria quântica da gravidade e, consequentemente, às conclusões teístas ou ateístas
derivadas da „teoria padrão do Big Bang quente‟ deve ser atribuído um estatuto igualmente
provisório.

Após minha explicação introdutória da cosmologia do Big Bang no capítulo a seguir, delinearei
meu „argumento cosmológico a partir do Big Bang para a inexistência de Deus‟ no capítulo
subsequente. A maior parte da série, compreendendo os 5 capítulos finais, é reservada para
responder às objeções contra o argumento delineado no segundo capítulo.

Notas.
1. Veja o Bulletin of the Atomic Scientists 8 (1952), 143-146.
2. Veja Richard Swinburne, The Existence of God (Oxford: Clarendon Press, 1979) e Space and
Time, 2nd. ed. (New York: St. Martin‟s Press, 1982). Swinburne duvida que a previsão de um
primeiro evento pela cosmologia do Big Bang seja provavelmente verdadeira, mas não obstante
mostra como esta previsão pode ser teologicamente interpretada.
Veja também John Leslie, „Anthropic Principle, World Ensemble, Design‟, American
Philosophical Quarterly 19 (1982), 141-151, „Modern Cosmology and the Creation of Life,‟ em
E. McMullin (ed.), Evolution and Creation (South Bend: University of Notre Dame Press,

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3 Um Argumento cosmológico para a inexistência

1985), e vários outros artigos. Leslie, é claro, trabalha com uma concepção neoplatônica de
Deus, mas seus argumentos são obviamente relevantes para o teísmo clássico.
A mais bem elaborada interpretação teísta da cosmologia do Big Bang é a de William Lane
Craig. Veja seu The Kalam Cosmological Argument (New York: Harper and Row, 1979), „God,
Creation and Mr. Davies,‟ British Journal for the Philosophy of Science 37 (1986), 163-175,
„Barrow and Tipler on the Anthropic Principle vs. Divine Design,‟ British Journal for the
Philosophy of Science 39 (1988): 389-95; „What Place, Then, for a Creator?,‟ British Journal
for the Philosophy of Science, 41 (1990): 473-91; “The Caused Beginning of the Universe: A
Response to Quentin Smith,” (1989).
3. Anthony Kenny, The Five Ways (New York: Schocken Books, 1969), p. 66.
4. C. D. Broad, „Kant‟s Mathematical Antinomies,‟ Proceedings of the Aristotelian Society 40
(1955), 1-22. Esta passagem e a passagem de Kenny foram extraídas das páginas 142 e 141-
142, respectivamente, de The Kalam Cosmological Argument, de Craig.
5. Veja Fred Hoyle, Astrophysical Journal 196 (1975), 661.
6. W. H. Newton-Smith, The Structure of Time (London: Routledge and Kegan Paul, 1980), p.
111

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4 Um Argumento cosmológico para a inexistência

A Teoria Cosmológica do Big


Bang
por Quentin Smith

N
este capítulo os aspectos relevantes da teoria do Big Bang são explicados em quatro
etapas. Estes aspectos constituirão as quatro premissas científicas do argumento em
favor do ateísmo que formularei no próximo capítulo.

(i) A primeira etapa é a apresentação da assim chamada „equação de Einstein‟, que é o núcleo da
Teoria da Relatividade Geral de Einstein.[8] A equação de Einstein diz, em termos
simplificados, que a geometria (curvatura) do espaço-tempo é determinada pela distribuição de
massa e energia no espaço-tempo. A equação pode ser expressa de forma simplificada como

(curvatura do espaço-tempo) = 8*pi*(densidade da matéria)

Esta equação sugere que se a matéria no universo for suficientemente densa, a curvatura do
espaço-tempo aumentará tanto que o espaço tempo será reduzido a praticamente um ponto,
como o vértice de um cone. A história de uma partícula ou raio de luz é uma trajetória no espaço
tempo, e se o espaço tempo se curvar até ficar praticamente reduzido a um ponto, estas
trajetórias no espaço tempo convergirão e se interceptarão neste ponto. Se esta intersecção
ocorrer em algum momento no futuro, o ponto de intersecção constituirá o fim do espaço tempo.
Se a intersecção ocorreu no passado, de modo que as trajetórias no espaço tempo emerjam de
um ponto de intersecção e afastem-se gradualmente umas das outros, o ponto de intersecção
pareceria constituir o começo do espaço tempo. Esta possibilidade leva a uma discussão do
próximo aspecto relevante da cosmologia do Big Bang.

(ii) A equação de Einstein admite várias soluções e qual solução descreve nosso universo é uma
questão empírica. As soluções de Friedmann (primeiro obtidas por Friedmann em 1922 e
1924[9] são as consideradas válidas para nosso universo. H é a solução que descreve um
universo perfeitamente isotrópico (parece o mesmo em todas as direções) e perfeitamente
homogêneo (a matéria encontra0se distribuída uniformemente). Se aplicarmos à equação de
Einstein uma métrica que descreve um universo perfeitamente isotrópico e homogêneo, as
soluções de Friedmann são obtidas, que podem ser expressas numa forma simplificada como

-3*(aceleração da expansão ou desaceleração da contração do universo) = 4*pi*(densidade da


matéria)

As soluções de Friedmann nos dizem que se existe matéria uniformemente distribuída pelo
universo, então o universo deve estar se expandindo numa taxa decrescente ou se contraindo
numa taxa crescente (exceto no instante, se algum houver, em que a expansão para e reverte
para uma contração). Para ver isto, observe que o lado direito da equação (simplificada) acima
representa a densidade da matéria multiplicada por 4*pi. Se existe matéria no universo, então a
densidade da matéria do universo é positiva. Isto implica que o valor para a aceleração da
expansão ou para a desaceleração da contração é multiplicado por -3 e o resultado deve ser igual
ao número positivo representado pelo lado direito da equação. Se o valor da aceleração da
expansão é negativo, isto significa que o universo está se expandindo a uma taxa cada vez
menor. Se o valor da desaceleração da contração é negativo, isso significa que o universo está se

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5 Um Argumento cosmológico para a inexistência

contraindo a uma taxa cada vez maior. Este resultado é de uma significância crucial, pois
implica que se o universo contém matéria uniformemente distribuída então sua existência é
temporalmente limitada. Se o universo está se contraindo a uma taxa cada vez maior, então ele
não pode se contrair eternamente mas deve eventualmente alcançar um ponto final, quando se
curva até ficar reduzido a um ponto e seu raio se torna zero. Se o universo está se expandindo a
uma taxa cada vez menor, então ele não pode estar se expandindo eternamente, mas deve ter
começado a se expandir em algum momento no passado, quando seu raio começou a crescer a
partir de zero.

Consideremos também o caso da expansão, estado em que o universo encontra-se atualmente.


Quanto mais recuamos no passado seguindo a trajetória no universo, mais rápida é a taxa de
expansão que encontramos. À medida em que a taxa de expansão aumenta, a curvatura do
universo e a densidade da matéria aumentam e o raio do universo diminui, até que se atinge um
ponto em que a curvatura do universo é infinita, a densidade da matéria infinita e o raio do
universo é zero. Devido a esta curvatura infinita, as trajetórias rumo ao passado das partículas
no espaço tempo convergem, tal que cada trajetória no espaço tempo termina em algum ponto
no qual outras trajetórias no espaço tempo também terminam. Se as equações de Friedmann
descrevem um universo esférico, o universo é finito em extensão e consequentemente todas as
trajetórias no espaço tempo no sentido do passado se interceptam em um ponto. Toda a matéria
é comprimida neste único ponto, que possui zero dimensões espaciais. Este ponto existe
instantaneamente antes de explodir no Big Bang. O ponto instantaneamente existente é uma
singularidade, o que significa que é um ponto final do espaço tempo; não existe momento mais
antigo do que o instante da singularidade pois a própria singularidade é o primeiro instante do
tempo. Por outro lado, se o universo é plano (não-curvo) ou hiperbólico (curvado como uma
sela) ele é infinito em extensão, o que implica que as trajetórias no espaço tempo orientadas
para o passado terminam numa singularidade espacialmente unidimensional. Apenas um
volume finito de espaço pode ser comprimido num ponto; consequentemente, se existe um
número infinito de volumes espaciais de qualquer tamanho finito determinado (o que seria o
caso se o universo fosse plano ou hiperbólico), então deve haver um número infinito de pontos
constitutivos da singularidade. Estes pontos existem instantaneamente (no primeiro instante do
tempo) e então explodem num Big Bang infinitamente prolongado.

Entretanto, as soluções de Friedmann para as equações de Einstein por si próprias não mostram
que nosso universo começou numa singularidade do Big Bang. Há uma certa incongruência
entre suas soluções e as propriedades globais de nosso universo, uma incongruência que pode
tornar inaplicável sua previsão de uma singularidade do Big Bang. O enunciado e a resolução
deste problema levam a um terceiro aspecto da cosmologia do Big Bang que é pertinente para
meu argumento.

(iii) As soluções de Friedmann são baseadas na hipótese de que o universo é perfeitamente


isotrópico e homogêneo. Mas esta hipótese é inconsistente com as evidências observacionais,
que revelam que o universo consiste de aglomerados ou superaglomerados de galáxias
separados por vastas extensões de espaço vazio ou aproximadamente vazio. O universo é
isotrópico e homogêneo somente de um ponto de vista estatístico, calculando-se a média ao
longo de distâncias de bilhões de anos-luz. (Por exemplo, podemos assumir que diferentes
regiões cúbicas do espaço diferem quanto a sua massa por menos de um porcento somente se se
considera que estas regiões tenham três bilhões ou mais de anos-luz de diâmetro.) Isto pode
sugerir que a previsão de uma singularidade do Big Bang é inaplicável ao universo já que esta
previsão é baseada nas hipóteses de perfeitas homogeneidade e isotropia. A hipótese de perfeita

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6 Um Argumento cosmológico para a inexistência

isotropia implica que o movimento relativo de qualquer par de partículas é puramente radial e a
hipótese de perfeita homogeneidade implica a inexistência de gradientes de pressão. O fato de
que nosso universo é imperfeitamente isotrópico e homogêneo implica que as trajetórias espaço
temporais orientadas para o passado de partículas exibem velocidades transversas e
aglomerações que produzem agregados de matéria. Isto sugere que as trajetórias divergirão em
vez de convergir num único ponto. Isto por sua vez sugere que a atual fase de expansão do
universo resulta de um „ricochete‟ que terminou uma fase de contração anterior do universo.
Mas esta sugestão de um universo oscilante foi contestada no final da década de 1960 pelos
teoremas da singularidade Hawking-Penrose, [9A] que demonstram que sob certas condições
imperfeitamente isotrópicas e homogêneas universos também se originam numa singularidade
do Big Bang. Formulados com precisão, os teoremas enunciam que uma singularidade é
inevitável dadas as cinco condições a seguir:

a) A Teoria da Relatividade Geral de Einstein é verdadeira em nosso universo.

b) Não existem curvas de natureza temporal fechadas (isto é, viajar no tempo rumo ao próprio
passado é impossível e o princípio de causalidade não é violado).

c) A gravidade é sempre uma força de atração.

d) A superfície do espaço tempo não é demasiadamente simétrica; isto é, toda trajetória de uma
partícula ou raio de luz no espaço tempo encontra alguma matéria ou curvatura aleatoriamente
orientada.

e) Existe algum ponto p tal que todas as trajetórias espaço temporais orientadas para o passado
(ou futuro) partindo de p começam a convergir novamente. Esta condição implica que existe
matéria suficiente no universo para concentrar toda trajetória espaço temporal orientada para o
passado ou futuro a partir de algum ponto p.

As soluções para os teoremas Hawking- Penrose mostram, como Hawking observa, que “em
geral existirá uma curvatura-singularidade que interceptará qualquer linha do mundo. Portanto,
a relatividade geral prevê um começo do tempo.‟[10]
(iv) O último aspecto da cosmologia do Big Bang que preciso como premissa em meu
argumento em favor do ateísmo é o princípio de ignorância de Hawking, que declara que
singularidades são inerentemente caóticas e imprevisíveis. Nas palavras de Hawking,
Uma singularidade é um lugar em que os conceitos clássicos de espaço e tempo, bem como
todas as leis conhecidas da física, são inaplicáveis porque são todas formulados num contexto
de espaço-tempo clássico. Neste artigo afirma-se que esta inaplicabilidade não é meramente
uma consequência de nossa ignorância da teoria correta mas que constitui uma limitação
fundamental à nossa habilidade de prever o futuro, uma limitação análoga porém suplementar à
limitação imposta pelo princípio da incerteza da mecânica quântica ortodoxa.[11]
Uma das relações de incerteza da mecânica quântica refere-se à posição q e ao momento p de
uma partícula. Esta relação declara que (delta p)*(delta q) = h/(4*pi), que implica que se a
posição de uma partícula é definidamente previsível então seu momento não o é, e vice versa. O
princípio da ignorância é mais forte no sentido de que implica que não se pode definidamente
prever nem a posição nem o momento de qualquer partícula emitida por uma singularidade. Na
verdade, este princípio implica que nenhum dos valores físicos das partículas emitidas são

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7 Um Argumento cosmológico para a inexistência

definidamente previsíveis. De acordo com este princípio, a singularidade do Big Bang “emitiria
todas as configurações de partículas com igual probabilidade.”[12]

A imprevisibilidade da singularidade implica que deveríamos esperar um transbordamento


caótico de seu “interior”. Esta expectativa está alinhada com a representação feita pelos
cosmologistas do Big Bang dos estágios primordiais do universo, pois estes estados são
concebidos como maximamente caóticos (envolvendo a mais completa entropia). A
singularidade emitiu partículas com microestados aleatórios, e isto resultou num macroestado
global de equilíbrio térmico.

A significância do princípio de ignorância pode facilmente passar despercebida. Ele implica que
a singularidade do Big Bang possui um comportamento completamente imprevisível no sentido
de que nenhuma lei física governa seu comportamento. A imprevisibilidade da singularidade
não é simplesmente uma questão epistêmica, significando que „nós humanos não somos capazes
de prever o que surgirá dali, mesmo que haja uma lei governando a singularidade que, se
conhecida, nos habilitaria a fazer previsões precisas.‟ William Lane Craig assume que a
imprevisibilidade é meramente epistêmica; ele escreve que „a imprevisibilidade [é] uma questão
epistêmica que pode ou não resultar de indeterminismo ontológico. Pois claramente, seria
inteiramente consistente manter o determinismo no nível quântico mesmo se não pudéssemos,
mesmo em princípio, prever com precisão tais eventos.‟[13] Agora, eu reconheço que há usos
legítimos do termo „imprevisibilidade‟ que são meramente epistêmicos em sentido, mas este não
é o sentido em que a palavra é utilizada na formulação do princípio da ignorância de Hawking.
A imprevisibilidade que diz respeito ao princípio da ignorância de Hawking é uma
imprevisibilidade derivada da ausência de leis, não da incapacidade humana de conhecer as leis.
Não há nenhuma lei, nem mesmo uma lei probabilística, governando a singularidade que
coloque restrições sobre o que ela pode emitir. Hawking escreve que
Uma singularidade pode ser considerada um local em que há um colapso do conceito clássico de
espaço-tempo como uma superfície com uma métrica pseudo-Reimanniana. Porque todas as leis
da física são formuladas num contexto de espaço-tempo clássico, todas irão entrar em colapso
numa singularidade. Este é um resultado crítico para a física; pois significa que não é possível
prever o futuro. Não é possível saber o que surgirá de uma singularidade.[14]
Leis deterministas ou mesmo probabilísticas não podem vigorar em nível quântico no interior da
singularidade, pois não há nenhum nível quântico no interior da singularidade; a superfície do
espaço-tempo que os processos quânticos pressupõem ruiu. A singularidade é um violento e
aterrorizante caldeirão de anarquia. Como Paul Davies observa, „qualquer coisa pode surgir de
uma singularidade aberta – no caso do Big Bang o universo surgiu. Sua criação representa a
suspensão instantânea das leis físicas, o lampejo de anarquia nomológica abrupto e repentino
que permitiu que alguma coisa surgisse do nada‟.[15] A questão que examinarei é se esta
anarquia nomológica primordial é consistente com a hipótese de uma criação divina.
Argumentarei contra esta hipótese.

Notas.
7. Quentin Smith, „The Anthropic Principle and Many-Worlds Cosmologies,‟ The Australasian
Journal of Philosophy 63 (1985): 336-348, „World Ensemble Explanations‟, Pacific
Philosophical Quarterly 67 (1986): 73-86, „The Uncaused Beginning of the
Universe,‟ Philosophy of Science 55 (1988), 39-57, „A Natural Explanation of the Existence and
Laws of Our Universe,‟ Australasian Journal of Philosophy 68 (March 1990): 22-43.

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8 Um Argumento cosmológico para a inexistência

8. Veja „The Foundation of the General Theory of Relativity‟ de Einstein e „Cosmological


Considerations on the General Theory of Relativity‟ em Einstein et al.,The Principle of
Relativity (London: Dover, 1923). A equação de Einstein expressa

Rab – 1/2*R*gab + lamda*gab = (8*pi*G/c2)*Tab

Rab é o tensor Ricci da métrica gab, R é o escalar Ricci, lambda é a constante cosmológica
(provavelmente zero), c é a velocidade da luz e G é a constante gravitacional de Newton.
9. Alexander Friedmann, „Uber die Krummung des Raumes,‟ Zeitschrif fur Physik 10 (1922),
377-386; uma tradução deste ratigo aparece em A Source Book in Astronomy and Astrophysics:
1900-1975, eds. by K. R. Lang and O. Gingerich (Cambridge, MA: Harvard University Press,
1979). O segundo artigo de Friedmann sobre modelos com curvatura negativa foi publicado
originalmente em Zeitschrift fur Physik 21 (1924), 326. As soluções de Friedmann, com a
constante cosmológica omitida, são
-3*(d2a/dt2 = 4*pi*G*(p+3*P/c2)*a
3*(da/dt)2 = 8*pi*G*pa2 – 3*k*c2
Nestas equações, a é o fator escalar representando o raio do universo num dado instante. da/dt é
a taxa de variação de a com o tempo; é a taxa em que o universo se expande ou se
contrai. d2a/dt2 é a taxa de variação de da/dt; é a aceleração da expansão ou a desaceleração da
contração. G é a constante gravitacional de Newton e c a velocidade da luz. P é a pressão da
matéria e p sua densidade. k é a constante que assume um dos seguintes valores: zero para um
espaço euclidiano plano, -1 para um espaço hiperbólico ou +1 um espaço esférico.
9A. Veja Penrose, „Gravitational Collapse and Space-Time Singularities,‟ Physical Review
Letters 14 (1965), 57-59; S. W. Hawking, „Singularities in the Universe,‟Physical Review
Letters 17 (1966), 444-445 e „The Occurrence of Singularities in Cosmology. III. Causality and
Singularities,‟ Proceedings of Royal Society of London A, 300 (1967), 187-201; S. W. Hawking
e R. Penrose, „Singularities in Homogenous World Models,‟ Physical Letters 17 (1965), 246-
247 e „The Singularities of Gravitational Collapse and Cosmology,‟ Proceedings of the Royal
Society of London A, 314 (1970), 529-548.
10. S. W. Hawking, „Theoretical Advances in General Relativity,‟ Some Strangeness in the
Proportion, ed. H. Woolf (Addison-Wesley, 1980), p. 149.
11. S. W. Hawking, „Breakdown of Predictability in Gravitational Collapse,‟ Physical Review
D, 14 (1976), 2460.
12. Ibid.
13. W. L. Craig, „The Caused Beginning of the Universe: A Response to Quentin Smith,‟ op.
cit., p. 29, n. 2.
14. S. W. Hawking, ibid.
15. P. Davies, The Edge of Infinity (New York: Simon and Schuster, 1981), p. 161.

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9 Um Argumento cosmológico para a inexistência

Exposição Formal do Argumento


por Quentin Smith

U
tilizarei os quatro aspectos da cosmologia do Big Bang explicados na última seção como
premissas científicas de meu argumento ateológico. As três primeiras premissas
científicas articuladas na última seção, a equação de Einstein, as soluções de Friedmann
para esta equação e o teorema da singularidade Hawking-Penrose, nos municiam com as duas
premissas

(1) A singularidade do Big Bang é o estado mais antigo do Universo.


(2) O estado mais antigo do universo é inanimado.

(2) segue a partir de (1) já que a singularidade possui temperatura infinita, curvatura infinita e
densidade infinita, condições estas hostis à vida.

A quarte ideia científica explicada na última seção, o princípio da ignorância, nos dá a premissa
concisa

(3) Nenhuma lei governa a singularidade do Big Bang e consequentemente não há garantias de
que ela emitirá uma configuração de partículas que se desenvolverá num universo animado.

(1)-(3) Implicam

(4) Não há garantias de que o estado mais antigo do universo evoluirá num estado animado do
universo.
Meu argumento é que (4) é inconsistente com a hipótese de que Deus criou o estado mais antigo
do universo, já que é verdade a respeito de Deus que se ele criou o estado mais antigo do
universo, então ele teria assegurado que este estado seria animado ou evoluiria num estado
animado do universo. É essencial à concepção de Deus na tradição judaico-cristã-islâmica que
se ele criou o universo, ele criou um universo animado, e portanto que se ele criou um primeiro
estado do universo, ele criou um estado que é animado ou que seguramente evoluiria até um
estado animado. Se alguém diz, „não faz diferença para Deus se o universo que ele criou é
animado ou inanimado‟, esta pessoa está operando com um conceito de Deus que está em
conflito com o teísmo clássico. Penso que seria reconhecido por praticamente todos os teístas
contemporâneos na tradição analítica (M. e R. Adams, Craig, Menzel, Morris, Plantinga, Quinn,
Schlesinger, Swinburne, Wainwright, Wolterstorff e vários outros) que, se Deus cria um
universo, ele tenciona que sua criação seja animada. Richard Swinburne escreve, por exemplo,
que „universos ordenados‟ são aqueles requeridos por criaturas animadas e que „se Deus cria um
universo, então Ele tem razões supremas para criar um universo ordenado.‟[16]

A formulação acima do „argumento cosmológico a partir do Big Bang para a inexistência de


Deus‟ é obviamente apenas um ponto de partida, já que o teísta tem à sua disposição numerosos
contraargumentos ou objeções. No restante da série algumas destas objeções serão formuladas e
respondidas.

Notas.
16. Swinburne, The Existence of God, op. cit., p. 147. A definição completa de Swinburne é que
universos ordenados são aqueles exigidos tanto pela beleza natural como pela vida. Cf. p. 146.

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10 Um Argumento cosmológico para a inexistência

A Questão da Intervenção Divina


por Quentin Smith

U
ma objeção ao argumento da seção 3 é que ele não leva em conta a possibilidade de uma
intervenção divina. Se a singularidade do Big Bang é anômica, então é possível para
Deus intervir no instante da singularidade e força-la sobrenaturalmente a explodir de um
modo específico, nomeadamente, explodir emitindo uma configuração de partículas
maximamente produtora de vida. Deste modo, Deus pode garantir que o estado mais antigo do
universo evoluirá até um estado animado.

Mas não nem um pouco é óbvio que esta objeção seja consistente com a concepção teísta
clássica da natureza divina. Deus é onisciente, onipotente e perfeitamente racional e não é um
indício de um ser com estes atributos criar como primeiro estado do universo alguma entidade
inerentemente imprevisível que demande uma intervenção „corretiva‟ imediata a fim de que o
rumo do universo seja retificado. Se Deus almeja criar um universo que em algum momento não
especificado de sua história abrigará seres vivos, não há razão para Ele começar o universo com
uma singularidade completamente imprevisível. Com efeito, escolher tal começo é tanto
irracional como ineficiente. É um sinal de incompetência planejar ou projetar grosseiramente
como o primeiro estado natural do universo algo que requeira, „de cara‟, uma intervenção
sobrenatural que assegure que o resultado desejado seja alcançado. A coisa racional e eficiente a
se fazer é criar algum estado que por sua própria natureza nômica evolua até um universo
contendo vida.
O problema a que aludo não é que Deus institua leis que ele deve imediatamente violar se suas
intenções devem ser realizadas. O problema refere-se à intervenção de Deus em sua criação, não
à violação das leis que a regem. „Deus viola a lei natural L‟ implica „Deus intervém em sua
criação‟ mas não há nenhuma implicação no sentido contrário, já que Deus pode intervir em
eventos ou processos naturais que não são governados por leis. Como a singularidade do Big
Bang não é regida por nenhuma lei, a restrição imposta por Deus para que sua singularidade
emita uma configuração produtora de vida seria uma instância de intervenção que não é uma
violação nomológica. Consequentemente, a objeção de que „Deus pode intervir na explosão da
singularidade de modo a faze-la emitir uma configuração de partículas produtora de vida sem
violar as leis que ele próprio determinou‟ é umaignoratio elenchi, já que, em vez disso, meu
argumento é que esta intervenção implica um primeiro estado planejado com incompetência ou
desleixo.

Eu também observaria que meu argumento não pressupõe que exista uma „maneira mais
racional, competente ou eficiente de criar um universo animado‟ e por conseguinte não sucumbe
à um análogo da teodiceia do „nenhum melhor mundo possível‟, tal como a desenvolvida por
George Schlesinger.[17] Meu argumento pressupõe apenas que existem maneiras eficientes e
ineficientes, onde uma maneira eficiente é uma através da qual estados animados evoluem
previsivelmente de acordo com leis naturais e uma maneira ineficiente é uma pela qual estados
animados não evoluem de acordo com leis naturais mas exigem intervenções divinas.

Notas.
17. George Schlesinger, Religion and Scientific Method (Boston: D. Reidel, 1977). Para uma
crítica sólida da teodicéia de Schlesinger, veja Keith Chrzan, „The Irrelevance of the No Best
Possible World Defence,‟ Philosophia 17 (1987): 161-167.

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11 Um Argumento cosmológico para a inexistência

A Questão da Realidade de
Singularidade
por Quentin Smith

P
ode ser objetado que uma premissa crucial do argumento ateológico, a premissa (1), que
afirma que „a singularidade do Big Bang é o estado mais antigo do universo‟, é falsa,
pois incorre numa reificação da singularidade. A singularidade não é um estado físico
real mas uma ficção matemática. O estado físico mais antigo universo é a explosão do Big
Bang, que é governado por leis físicas. Esta explosão leva, através de uma evolução natural e
regida por leis, a um estado do universo que contém criaturas vivas. Consequentemente, somos
capazes de concluir que Deus criou como o estado mais antigo algum estado que por sua própria
natureza nômica evoluiu até alcançar o estado de um universo animado.

Minha resposta a esta objeção é que ela é baseada num interpretação errônea da cosmologia do
Big Bang, pois esta cosmologia representa a singularidade como uma entidade física real. Por
exemplo, Penrose escreve que „concebemos a singularidade inicial como um único ponto que
dá origem a uma infinidade de regiões causalmente desconexas no instante seguinte‟,[18] o que
implica que o ponto é mais antigo que a explosão e portanto real.
Mas esta resposta pode passar ao largo do questionamento mais importante da objeção, que não
é que os cosmólogos do Big Bang representam a singularidade como irreal, mas que a
singularidade é irreal, considerando-se os princípios razoáveis para a interpretação de teorias
científicas. Esta é a posição de William Lane Craig e Richard Swinburne. Craig observa que a
singularidade do Big Bang é representada como possuindo volume zero e duração zero e que
isto é razão suficiente para considera-la irreal. Ele assevera que „um estado físico em que todas
as dimensões espaciais e temporais são zero é uma idealização matemática cuja contraparte
ontológica é nada.‟[19] Mas Craig não oferece nenhuma justificação para esta alegação. Os
cosmólogos não encontram nenhuma dificuldade no conceito de um espaço que possui zero
dimensões (um ponto espacial) e que existe por um instante e uma mera alegação de que um
espaço 0D não pode existir instantaneamente parece ser uma expressão de um ceticismo
injustificado.

Richard Swinburne também acredita que o ponto singular é uma idealização matemática. Ele
fornece um argumento para isto, qual seja, o de que é logicamente necessário que o espaço seja
3D. Swinburne apresenta um argumento contra a possibilidade lógica de objetos 2D e sugere
que argumentos análogos podem ser construídos contra objetos 1D e 0D. Ele solicita que
consideremos uma superfície bidimensional que contém objetos bidimensionais:

…claramente, é logicamente possível que „objetos materiais‟ bidimensionais sejam elevados


acima da superfície ou afundados abaixo dela… a possibilidade lógica existe mesmo se a
possibilidade física não existe. Como é logicamente possível que os „objetos materiais‟ sejam
movidos para fora da superfície, devem haver locais, e portanto pontos, fora da superfície, já
que uma localização está seja lá onde for que seja logicamente possível que um objeto material
possa estar.[20]

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12 Um Argumento cosmológico para a inexistência

Por conseguinte, Swinburne conclui, se existem objetos ou superfícies bidimensionais também


deve existir uma terceira dimensão espacial. O argumento de Swinburne instancia a seguinte
forma argumentativa inválida:

(1) Fx é logicamente possível (isto é, é logicamente possível que x possua a propriedade F).
(2) C é uma condição necessária de Fx.
(3) x existe.
(4) Portanto, C existe.

O fato de que o argumento de Swinburne possui esta forma torna-se patente se o enunciamos da
seguinte maneira:

(1A) É logicamente possível que qualquer objeto numa superfície bidimensional possua a
propriedade de mover-se acima ou abaixo da superfície.
(2A) Uma terceira dimensão espacial é uma condição necessária do movimento de qualquer
objeto numa superfície bidimensional acima ou abaixo desta superfície.
(3A) Existe um objeto numa superfície bidimensional.
(4A) Portanto, existe uma terceira dimensão espacial.

Se (1A)-(4A) prova que objetos em superfícies bidimensionais exigem uma terceira dimensão
espacial, então o argumento a seguir prova que existe um paraíso celestial:

(1B) É logicamente possível que qualquer corpo humano seja ressuscitado após a morte e ocupe
um espaço celestial.
(2B) Um paraíso celestial é uma condição necessária para a ressurreição de qualquer corpo.
(3B) Corpos humanos existem.
(4B) Portanto, existe um paraíso celestial.

A falácia, caso o leitor ainda não a tenha percebido, é a pressuposição de que uma condição
necessária para que um objeto possua uma certa propriedade deve ser real se o objeto é real.
Obviamente isto não é o caso; a condição necessária precisa ser real somente se a posse da
propriedade pelo objeto for real. Concluo que Swinburne não nos deu nenhuma razão para
acreditarmos que é impossível que exista uma singularidade do Big Bang que ocupe menos de
três dimensões espaciais. Dado que o argumento de Swinburne fracassa, e que nenhum outro
argumento contra a coerência da singularidade do Big Bang tenha sido apresentado (pelo menos
até onde sei), as considerações acima garantem a conclusão de que não há nenhuma razão para
negar a realidade da singularidade do Big Bang. Portanto, o problema da imprevisibilidade
permanece.

Notas.
18. R. Penrose, „Singularities in Cosmology,‟ in Confrontation of Cosmological Theories with
Observational Data, ed. M. S. Longair (IAU, 1974), p. 264.
19. W. L. Craig, „The Caused Beginning of the Universe: A Response to Quentin Smith,‟ op.
cit., p. 8.
20. R. Swinburne, Space and Time, op. cit., p. 125.

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13 Um Argumento cosmológico para a inexistência

A Questão da Simplicidade
Relativa das Hipóteses Ateísta e
Teísta
por Quentin Smith

P
ode não haver nenhuma verdade a priori que exclua de consideração a singularidade do
Big Bang, mas existe um argumento probabilístico que respalda a visão de que o
universo começou com uma explosão divinamente criada em vez de com uma
singularidade incompatível com a concepção ortodoxa de Deus. A hipótese da criação divina
é mais simples e por esta razão é mais provável de ser verdadeira do que a hipótese ateísta.
O argumento de que a hipótese teísta é mais simples foi formulado por Swinburne. Ele afirma
que Deus é mais simples do que o universo físico e portanto é mais provável do que o universo
físico de existir inexplicado. „Se algo tem que ocorrer inexplicado, um universo físico complexo
deve ser menos esperado do que outras coisas (por exemplo, Deus).‟[21] Se o universo físico é
criado por Deus então ele tem sua explicação em Deus e consequentemente não existe
inexplicado; neste caso, somente Deus existe inexplicado. Como a hipótese de que Deus existe
inexplicado é mais mais simples do que a hipótese ateísta, é mais provável de ser verdadeira.

O princípio a que Swinburne está recorrendo é

(1) Quanto mais simples um existente é, mais provável é que ele exista inexplicado.
Eu acredito, contudo, que mesmo se concedermos a Swinburne esta e outras de suas premissas,
pode-se demonstrar que considerações de simplicidade favorecem o ateísmo em vez do teísmo.
O critério de simplicidade de Swinburne é que existe uma simplicidade „relativa ao zero e ao
infinito ausente em números finitos particulares.‟[22] Por exemplo, „a hipótese de que alguma
partícula tenha massa zero, ou velocidade infinita, é mais simples do que a hipótese de que ela
tenha uma massa de 0.34127 de alguma unidade, ou uma velocidade de 301 000 km/seg. ‟[23]
Igualmente, uma pessoa com poder, conhecimento e bondade infinitos é mais simples do que
uma pessoa com um certo grau finito de poder, conhecimento e bondade. Além disso, uma
pessoa com poder, conhecimento, etc., infinitos é mais simples do que um objeto físico que tem
valores finitos particulares para seu tamanho, duração, velocidade, densidade, etc. Assumindo
estas premissas, examinemos a hipótese de que um universo finito começa com uma
singularidade incausada. A singularidade em questão possui volume espacial zero e duração
temporal zero e não possui valores finitos particulares para sua densidade, temperatura ou
curvatura. Parece razoável supor que em virtude destes valores zero e não-finitos este ponto
instantâneo é o objeto físico mais simples possível. Se concedermos a Swinburne que Deus é a
pessoa mais simples possível e mantermos que Deus e a singularidade incausada não podem
ambos existir (pelas razões enunciadas no argumento ateológico da seção 3), então nossas
alternativas são supor que ou a pessoa mais simples possível existe e criou o universo espaço
temporal quadridimensional ou que o objeto físico mais simples possível existe e emite o
universo espaço temporal quadridimensional. Se usamos o critério de simplicidade, existe
alguma razão para preferirmos uma destas hipóteses em detrimento da outra? Parece razoável
supor que o objeto físico mais simples possível é igualmente tão simples quanto a pessoa mais
simples, de modo que não há razão para preferir um em detrimento do outro com base na
simplicidade intrínseca. Swinburne sustenta que Deus existe inexplicado e portanto Deus e o

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14 Um Argumento cosmológico para a inexistência

mais simples objeto físico também se equiparam neste aspecto. Mas a hipótese de que o
universo espaço temporal quadridimensional começou a partir do mais simples objeto físico é,
em um aspecto decisivo, mais simples do que a hipótese teísta. É mais simples imaginar que o
universo físico 4D começou a partir da instância mais simples possível de uma mesma categoria
básica a que pertence o próprio universo, qual seja, a dos objetos físicos, do que imaginar que
este universo começou a partir da instância mais simples possível de uma categoria básica
diferente, qual seja, a das coisas não-físicas e pessoais. A explicação ateísta da origem do
universo 4D postula fenômenos de apenas uma categoria básica (fenômenos físicos), ao passo
que a explicação teísta de sua origem postula fenômenos de dois tipos básicos (fenômenos
físicos e fenômenos pessoais incorpóreos). Assim, por razões de simplicidade a postulação de
uma singularidade que explode num Big Bang prevalece sobre a postulação de uma divindade
que cria a explosão do Big Bang ex nihilo.
Notas.
21. R. Swinburne, The Existence of God, op. cit., p. 130.
22. Ibid., p. 94.
23. Ibid.

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15 Um Argumento cosmológico para a inexistência

A Questão de uma Necessidade


Metafísica de um Universo a
partir do Big Bang
por Quentin Smith

D
e acordo com o essencialismo, as leis naturais, tal como a lei de que a água é H 2 O, são
metafisicamente necessárias; elas vigoram em todos os mundos possíveis, de modo que
Deus não poderia ter criado um universo em que elas são violadas. Consequentemente,
se é uma lei natural que um universo sujeito às soluções de Friedmann para a equação de
Einstein e aos teoremas da singularidade de Hawking-Penrose começa numa singularidade,
então Deus não poderia ter criado um universo Friedmann-Hawking-Penrose (FHP) de outra
maneira que não primeiro criando uma singularidade imprevisível. Dado isto, e dado seu desejo
de que o universo fosse animado, ele então seria obrigado a intervir para assegurar que o
universo fosse animado. Isto não seria um sinal de ineficiência ou incompetência já que este
seria o único modo possível pelo qual se poderia garantir que o universo fosse animado.

Minha resposta a esta objeção é que mesmo se esta hipótese essencialista for sólida, não se
segue que Deus deve criar uma singularidade do Big Bang se ele almeja criar um universo
animado. Pois o fato de que certas leis naturais são metafisicamente necessárias não implica que
elas sejam necessariamente instanciadas. Se pegamos emprestado o simbolismo, se não o ponto
de vista, de D. M. Armstrong,[24] podemos dizer que uma lei natural metafisicamente
necessária possui uma forma como

(L) [ ] (N(F,G))

onde F e G são universais e N uma relação entre eles. N é a relação da necessitação nômica.
Armstrong considera N primitiva, mas penso que podemos definir N em termos de
coexemplificação. (L) significa que em todos os mundos possíveis em que F é exemplificado, G
é coexemplificado. Se F é água e G H 2 O, então (L) declara que em cada mundo possível em
que ser água é exemplificado, ser H2 O é exemplificado por seja lá o que for que
exemplifique ser água. Mas (L) não implica que F ou G são exemplificados. O fato de que água
é H2 O em todos os mundos possíveis em que há água não implica que exista água em todos os
mundos. Analogamente, o fato de que um universo que satisfaz as leis FHP começa numa
singularidade do Big Bang em todos os mundos possíveis em que tal universo existe não
implica que exista um universo FHP em todos os mundos. Pois outras espécies de universo
também são possíveis, universos que satisfazem outros conjuntos de leis, incluindo conjuntos de
leis que permitem que o estado mais antigo seja, ou evolua previsivelmente até, um estado
animado. Se Deus existe e almeja que exista um universo animado, ele teria criado um destes
universos (ou um universo animado sem princípio).
Esta resposta à objeção essencialista pode ser rejeitada com base em que o essencialismo e a
teoria FHP conjugados implicam que os únicos universos metafisicamente possíveis são
universos FHP. Seja F a propriedade ser um universoe G a propriedade ser um universo FHP.
De acordo com (L), ser um universo não pode ser exemplificada a menos que ser um universo
FHP seja coexemplificada.

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16 Um Argumento cosmológico para a inexistência

Acredito, contudo, que podemos conceder até mesmo esta objeção consistentemente com a
solidez do argumento ateológico. Para ver porque isto é possível, devemos refletir sobre as
evidências aduzidas para a necessidade metafísica das leis naturais. Kripke, Putnam e outros
pioneiros do essencialismo reconhecem que alguma razão deve ser dada para sustentar que uma
lei natural seja necessária que anule a razão usual para considera-las contingentes,
nomeadamente, que pode-se conceber coerentemente que elas não vigoram. A razão para
sustentar que alguns princípios sejam necessários, tal como as tautologias (todos os homens não
casados são homens), princípios analíticos (todos os homens não casados são solteiros) e
princípios sintéticos a priori (todos os objetos completamente verdes não são simultaneamente
completamente vermelhos) é que não se pode conceber coerentemente que eles sejam falsos.
Mas este não é o caso das leis naturais. Como Putman assinala, „podemos nos imaginar
perfeitamente bem tendo experiências que nos convenceriam (e que tornariam racional
acreditar que) água não é H 2 O. Nesse sentido, é concebível que água não seja H 2 O.‟[25] Mas
neste caso, a conceptibilidade de ser um caso diferente é um guia anulado para a contingência,
pois considerações de como a referência de „água‟ é estabelecida, em conjunção com
observações científicas, mostram que „água‟ é necessariamente „H 2 O‟. Mas eu não seguirei
Putnam à risca ao apresentar “o argumento a partir da rigidez de „água‟” já que formulações
subsequentes proporcionaram versões aprimoradas. Keith Donnellan[26] ofereceu uma versão
melhorada em relação à de Putnam e Nathan Salmon[27] aprimorou a versão de Donellan. Mas
Paul Copeck[28] recentemente refinou a versão de Salmon e tomarei parcialmente emprestada a
versão de Copeck na seguinte declaração resumida deste argumento. A primeira premissa é uma
formalização do significado rígido de „água‟ em termos da definição ostensiva da palavra e a
segunda premissa é retirada da teoria científica corrente:
(1) É necessariamente o caso que: alguma coisa é uma amostra de água se e somente se tal coisa
exemplifica d-isso (as propriedades P 1 , …P n tal que P 1 , …P n são causalmente responsáveis pelas
propriedades observáveis [por exemplo, ser incolor, inodora e insípida] da substância da
qual isso é uma amostra).
(2) Isto (amostra líquida) possui a estrutura química H 2 O, tal que ser H2 O é a propriedade
causalmente responsável pelas propriedades observáveis de ser incolor, inodora, insípida, etc.

Portanto,

(3) É necessariamente o caso que: todas as amostras de água possuem a estrutura química H 2 O.
O termo „d-isso‟ na premissa (1) é o operador rigidificante de Kaplan, que opera sobre „isso‟
para produzir uma referência demonstrativa que é rígida. Agora se construirmos um argumento
análogo para a necessidade de um universo ser FHP, ele seria como
(4) É necessariamente o caso que: alguma coisa é uma instância de um universo se e somente se
tal coisa exemplifica d-isso (as propriedades P 1 ,…,P n tais que P 1 ,…,P n são causalmente
responsáveis pelas propriedades observáveis [por exemplo, aglomerados de galáxias se
afastando, a radiação de micro-ondas de fundo de 2.7 K] de cujo tipo isso é uma instância)
(5) Esta instância de um universo tem uma estrutura FHP, tal que ser um universo FHP é a
propriedade causalmente responsável pelas propriedades observáveis de aglomerados se
afastando, radiação de fundo, etc.

Portanto,

(6) É necessariamente o caso que: toda instância de um universo tem a propriedade de ser um
universo FHP.

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17 Um Argumento cosmológico para a inexistência

Não desafiarei a solidez de (4)-(6) mas meramente mostrarei que sua solidez é consistente com
a solidez do argumento cosmológico a partir do Big Bang para a inexistência de Deus. Será útil
esboçar um paralelo com o exemplo da água. Como Putnam assinalou, há outro mundo possível
em que uma substância possui uma certa estrutura química, XYZ, tal que XYZ é causalmente
responsável pelas propriedades observáveis da substância de ser um líquido incolor, inodoro e
insípido. Esta substância mão é água mas algo cujas propriedades observacionais são
indistinguíveis das da água. Esta substância pode ser chamada „água 1 ‟, tal que é
metafisicamente necessário que água1 é XYZ. Analogamente, há outro mundo possível W em
que a estrutura cósmica responsável pelas propriedades observáveis de aglomerados se
afastando, radiação de fundo, etc. não é uma estrutura FHP mas alguma outra estrutura, digamos
ABC. Aquilo que tem esta estrutura não é um universo, já que „universo‟ refere-se rigidamente
a alguma coisa com uma estrutura FHP. Mas podemos chama-lo de „universo1 ‟, assim como
podemos chamar XYZ de „água 1 ‟. Ainda existem outros mundos em que as propriedades
observacionais relevantes não incluem aglomerados se afastando e radiação de fundo mas
propriedades como as que se considera que os sistemas de Ptolomeu, Copérnico ou Newton
exemplifiquem. O que é causalmente responsável por estas propriedades pode ser chamado „um
universo2 ‟, „um universo3 ‟, etc. Consequentemente, o proponente do argumento ateológico pode
conceder que Deus não poderia ter criado um universo animado sem criar uma singularidade do
Big Bang, mas ele ressaltará que Deus estaria sendo irracional e incompetente ao criar um
universo animado; a coisa racional a ser feita seria criar um universo1 animado, ou um
universo2 animado, etc., tal que estes sistemas não exigissem intervenções divinas para garantir
estados animados.
Notas.
24. D. M. Armstrong, What Is A Law of Nature? (Cambridge: University Press: 1983), p. 163.
Armostrong rejeita a ideia de que as leis da natureza são metafisicamente necessárias. Alfred J.
Freddoso, por outro lado, argumenta que as leis naturais são corretamente representadas por (L).
Veja seu „The Necessity of Nature,‟ em Midwest Studies in Philosophy XI, ed. P. French, et al.
(Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986), pp. 215-42.
25. Hilary Putnam, Philosophical Papers, Vol. 2 (Cambridge: University Press, 1975), p. 233.
26. Keith Donnellan, „Substance and Individuals,‟ APA address, 1973.
27. Nathan Salmon, Reference and Essence (Princeton: University Press, 1981).
28. Paul Coppock, „Review of Nathan Salmon‟s Reference and Essence‟, em The Journal of
Philosophy 81 (1984): 261-270.

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18 Um Argumento cosmológico para a inexistência

A Questão do Princípio Causal


por Quentin Smith

O
teísta pode retorquir a esta altura que a interpretação ateísta da cosmologia do Big Bang
padece de um problema mais grave do que os problemas do projeto ineficiente e da
menor simplicidade que assolam a interpretação teísta. O ateu deve supor que o universo
começou a existir incausado e esta suposição viola o princípio de causalidade (P 1 ), segundo o
qual tudo o que começa a existir tem uma causa, uma condição suficiente de seu vir -à-
existência.
Admitir-se-á que esta objeção aparenta possuir alguma força, visto que alguns não-teístas
consideram-na convincente (como C. D. Broad, citado na introdução) e tem-lhes provocado
reações que variam entre a negação, o embaraço e o silêncio quando confrontados com as
implicações da cosmologia do Big Bang. Entretanto, acredito que esta objeção seja
insustentável. Uma razão é que se o princípio causal (P 1 ) é considerado uma generalização
empírica ele é falso, já que a mecânica quântica tem mostrado que inúmeras partículas
(partículas virtuais) começam a existir sem serem causadas a faze-lo. Se (P 1 ) for considerado
sintético e a priori, cuja evidência é sua obviedade intuitiva, então mais uma vez a mecânica
quântica o solapa fornecendo diversos casos intuitivamente claros de partículas vindo a existir
incausadas. Se (P 1 ) fosse verdadeira a priori, então a mecânica quântica, a teoria científica mais
bem sucedida elaborada até o momento, deveria ser jogada no lixo, uma possibilidade que
nenhuma pessoa racional cogitaria.
O teísta, contudo, pode recuar para uma de duas posições mais conservadoras, cada uma das
quais contorna o problema levantado pela mecânica quântica. Uma destas posições é permitir
que coisas particulares dentro do universo possam começar a existir espontaneamente, mas que
o próprio universo não possa começar a existir espontaneamente. O princípio causal que é
sinteticamente a priori é não (P 1 ), mas o mais fraco (P 2 ), segundo o qual é impossível para o ser
surgir incausado a partir de absolutamente nada.
A segunda posição mais conservadora consiste em preservar a afirmação original sobre todos os
começos de existência mas redefinir „causa‟ de modo que o termo não mais signifique uma
condição suficiente mas uma condição probabilística em algum grau. Uma teoria probabilística
da causalidade, como as de Wesley Salmon, Patrick Suppes, Richard Ottes ou David
Papineau[29], pode ser adotada, em que x é uma causa de y se e somente se x é antecedente ou
simultâneo a y e x tem uma probabilidade, que pode ser baixa, de estar associado de certo modo
com y. (As definições de Salmon et al. são, obviamente, consideravelmente mais complicadas e
precisas mas não é necessário explicar os detalhes aqui.) Considere partículas virtuais que
começam a existir num vácuo. Poderia ser dito que o vácuo tem uma probabilidade de grau
muito baixo de estar associado ao nascimento de um par específico de partículas virtuais e, neste
sentido, é uma causa das partículas virtuais. Estas reflexões sugerem um princípio causal que
não é violado pela mecânica quântica mas é violado pela singularidade do Big Bang
ateisticamente interpretada, nomeadamente, (P 3 ), segundo o qual tudo o que começa a existir
tem uma causa probabilística, com a probabilidade relevante sendo maior que zero e
possivelmente um.
Meu comentário sobre (P 3 ) é que se tal princípio é uma generalização empírica, ele é baseado
em observações da categoria de eventos para os quais é logicamente possível que existam
causas naturais e, portanto, que não existe nenhuma justificação para supor que (P 3 ) se aplica a
eventos de uma categoria diferente, a eventos para os quais é logicamente impossível que

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19 Um Argumento cosmológico para a inexistência

existam causas naturais. Por definição, o estado inicial do universo não tem nenhuma causa
natural, e por conseguinte situa-se fora do escopo de (P 3 ).
Entretanto, se (P 3 ) fosse sinteticamente necessário sua aplicação não seria restrita a um domínio
empírico específico mas poderia ser interpretado como aplicável a tudo, até mesmo à
singularidade do Big Bang. (P 3 ), assim como (P 2 ), poderia ser utilizado para excluir em bases a
priori a interpretação ateísta da cosmologia do Big Bang. Mas será qualquer um destes dois
princípios sinteticamente a priori? As evidências de que um deles seria sinteticamente a
priori seria sua „obviedade intuitiva‟. Esta é a posição de Craig, por exemplo; ele insiste que
„é intuitivamenteóbvio que qualquer coisa que começa a existir, sobretudo o universo inteiro,
deve ter uma causa para sua existência‟.[30] Minha resposta é negar que qualquer destes dois
princípios seja intuitivamente óbvio. Sugeri numa seção anterior que há quatro espécies de
verdades necessárias, quais sejam, (1) tautologias, (2) verdades analíticas, (3) verdades
sintéticas a priori e (4) verdades metafisicamente necessárias a posteriori. Verdades sintéticas a
priori são exemplificadas por „Nada que seja completamente verde num momento t é
completamente vermelho no momento t‟ e verdades metafisicamente necessárias a posteriori são
exemplificadas por „Água é H2 O‟. Agora a questão com a qual estamos a lidar concerne às
verdades sintéticas a priori, já que as proposições causais devem alegadamente ser deste tipo.
Como sugeri na seção anterior, a evidência de que uma proposição é uma verdade sintética a
priori é que não se pode conceber que ela seja falsa (em qualquer mundo possível) e ela não é
tautológica ou analítica. Este é claramente o caso de „Nada que seja completamente verde num
instante t é completamente verde no mesmo instante t.‟ Não se pode conceber ser possivelmente
o caso que alguma coisa, digamos, uma porção de capim, seja completamente verde em t e além
disso seja simultaneamente vermelha. Mas este não é o caso de nossas proposições causais.
Posso conceber a possibilidade do universo começar a existir incausado. Este começo incausado
pode ser completamente desconcertante, maspode ser concebido que ele possivelmente ocorra,
ao contrário de uma folha de capim sendo simultaneamente tanto completamente verde como
completamente vermelha.
Craig responde a esta linha de argumentação da seguinte maneira: „Podemos representar no olho
da mente o universo saltando na existência incausado, mas o fato de que podemos construir e
identificar tal quadro mental não quer dizer que a origem do universo poderia realmente ter
acontecido desta maneira.‟[31] Mas esta resposta não se sustenta já que é baseada num fracasso
em distinguir entre verdades metafisicamente necessárias a priori e a posteriori. É verdade
acerca das necessidades metafísicas a posteriori que a concepção delas como possivelmente não
vigorando não é evidência de que elas não são necessárias. Posso conceber que a água seja XYZ
em vez de H2 O, mas essa não é uma razão para pensar que não é metafisicamente necessário
que a água seja H2 O. Mas é um traço distintivo das necessidades metafísicas a priori que não se
pode conceber que elas possivelmente não vigorem; é exatamente por isso que se diz que elas
são „conhecidas a priori‟. Se é possível conceber que o universo possivelmente comece a existir
incausado, então isto é evidência conclusiva de que “o universo não pode começar
incausado” não é uma proposição sintética a priori. Negar isto é supor que este princípio causal
é uma verdade necessária metafisicamente a posteriori, e ninguém, até onde sei, sustentou ou
sustenta essa hipótese implausível. Portanto, penso que é racional acreditar que o universo pode
começar incausado e , consequentemente, que a objeção baseada no „princípio causal‟ fracassa.
A título de conclusão, eu ressaltaria que mesmo que meus argumentos neste artigo sejam
sólidos, isso não implica que Deus não exista. Pois a cosmologia do Big Bang pode ser falsa.
Mas mesmo se ela for verdadeira, o ateísmo não se segue, já que há outras objeções a meu
argumento que não considerei. Contudo, algumas destas objeções não consideradas foram

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20 Um Argumento cosmológico para a inexistência

discutidas em outras ocasiões. Por exemplo, eu defendi[32] que não faz sentido imaginar que
Deus sabe, logicamente antes da criação, que se o universo começasse com uma singularidade,
esta singularidade emitiria uma configuração de partículas produtora de vida, já que a hipótese
de que este contrafactual seja verdadeiro logicamente antes da criação é inconsistente com as
propriedades semânticas essenciais dos contrafactuais. Mas há também outras objeções que não
considerei em nenhum outro lugar (incluindo, obviamente, as que até agora nem mesmo foram
formuladas). Portanto, minha posição final é que, para ser sustentada racionalmente, à conclusão
ateísta deste artigo deve atribuído um caráter provisório.[33][34]
[Um arquivo em formato pdf com a série completa pode ser baixado aqui.]
Notas.
29. Wesley Salmon, Scientific Explanation and the Causal Structure of the World (Princeton:
University Press, 1984); Patrick Suppes, A Probabilistic Theory of Causality (Amsterdam:
North-Holland, 1970); Richard Otte, „Indeterminism, Counterfactuals, and
Causation,‟ Philosophy of Science 54 (1987): 45-62; David Papineau, „Probabilities and
Causes‟, The Journal of Philosophy 82 (1985): 57-74.
30. W. L. Craig, The Kalam Cosmological Argument, op. cit., p. 148. Itálicos meus.
31. Ibid., p. 145.
32. Quentin Smith, „Atheism, Theism and Big Bang Cosmology,‟ Australasian Journal of
Philosophy 69 (March 1991): 48-66.
33. Esta conclusão ateísta não precisa ser tomada como uma rejeição de uma visão de mundo
religiosa (num sentido amplo de „religião‟). Pois pode-se em vez disso rejeitar a pressuposição
tradicional de que se Deus não existe, nada é sagrado. Se o ateísmo é verdadeiro,
incontestavelmente ainda haverá algo que é sagrado, nomeadamente a existência do universo.
Cf. Quentin Smith, „An Analysis of Holiness,‟ Religious Studies 24 (1988): 511-528. Além
disso, o próprio universo é alvo de „emoções religiosas‟ num senso amplo. Cf. Quentin
Smith, The Felt Meanings of the World: A Metaphysics of Feeling (West Lafayette: Purdue
University Press, 1986).
34. Gostaria de agradecer a William P. Alston e a um resenhista anônimo por críticas úteis a
uma versão preliminar deste artigo, embora considerações editoriais e de espaço exijam que
minhas respostas a algumas de suas críticas sejam reservadas para publicação futura.

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21 Um Argumento cosmológico para a inexistência

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