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Filosofia da Religião

Sumário

 1) O que é a Filosofia da Religião?


 2) Conceito teísta de Deus.
 3) Argumentos a favor da existência de Deus:
 Argumento cosmológico.
 Argumento teleológico.
 Argumento ontológico.
 4) Argumentos contra a existência de Deus:
 Problema do mal – 1) Teísmo cético e
Teodicieia de Leibniz.
 5) Fideísmo de Pascal.
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Fé e Ciência
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Para refletir: será que a ciência é compatível com a fé religiosa?

1.º Visualiza o documentário Deus, um Delírio, o Vírus da Fé, de Richard Dawkins.

2.º Richard Dawkins distingue a explicação religiosa da explicação científica, defendendo que não é possível
conciliar estes dois tipos de abordagem dos problemas. Mas será mesmo assim? Porquê?
1. O que é a Filosofia da Religião?

 A filosofia da religião não é:


 O estudo da história das principais religiões;
 Teologia, pois na teologia já se parte de um corpo de doutrinas que não se colocam em causa.

 A filosofia da religião é um exame crítico dos conceitos e das crenças religiosas fundamentais, a
filosofia da religião examina criticamente:
 Conceitos religiosos fundamentais, como: o conceito de Deus; o conceito de fé; a noção de
milagre e a ideia de omnipotência.
 As crenças religiosas fundamentais: a crença de que Deus existe; de que há vida depois da morte;
de que Deus sabe, mesmo antes de nascermos, o que iremos fazer; de que a existência do mal é de
algum modo consistente com o amor de Deus pelas criaturas.
 Nesse exame crítico deve-se ter como ideal uma argumentação que seja: válida, sólida e cogente.
2. Conceito teísta de Deus
Quando as principais religiões (como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo) falam de “Deus”, a que
se estão a referir?

 Tipicamente quando as principais religiões falam de “Deus” estão a referir-se ao Deus teísta.
 E por “Deus teísta” entende-se o Deus com os seguintes predicados:
 Omnipotente (que pode fazer tudo),
 Omnisciente (que sabe tudo),
 Sumamente bom (moralmente perfeito),
 Criador (no sentido que criou o universo e ele próprio não foi criado),
 Pessoa (sujeito com estados mentais como crenças e desejos, um ser capaz de estabelecer uma relação
com as suas criaturas e não uma força da natureza).

- Tanto o cristianismo, como o judaísmo ou o islamismo, defendem a existência deste Deus teísta com
estes predicados, atributos, caraterísticas ainda que lhe atribuam diferentes nomes.
2. Conceito teísta de Deus

Richard Swinburne, por exemplo, carateriza o teísmo da seguinte forma:

«Teísmo é a tese de que há uma pessoa sem um corpo (isto é, um espírito) que é eterno, livre, capaz de
fazer qualquer coisa, conhecer tudo, é perfeitamente bom, é o objeto apropriado de adoração humana e
obediência, o criador e o sustento do universo. Cristãos, Judeus, Muçulmanos são todos, nesse sentido,
teístas.»
Richard Swinburne, The Coherence of Theism, Oxford University Press (1993), p.1

 Esta conceção de Deus teísta distingue-se de outras conceções de Deus, tal como o deísmo (em que
se defende que Deus é criador mas não intervém nem se importa com a criação, Deus tem o poder
suficiente para criar o universo, mas não se relaciona com o universo, nem tem de ser sumamente
bom ) ou o panteísmo (em que Deus não é distinto do mundo, Deus e o mundo, Deus e o universo
são a mesma coisa).
3. Argumentos sobre a existência do Deus
3.1. Argumento Cosmológico, de Aquino
Argumento Cosmológico

 O argumento cosmológico (também chamado argumento da causa primeira ou argumento


causal), baseia-se em alguma informação acerca do modo como o mundo é. Por isso, trata-se de um
argumento a posteriori.

 A versão clássica do argumento cosmológico é a de Tomás de Aquino (que viveu no século XIII).

 Neste argumento começa-se com factos simples acerca do mundo, como o facto de nele haver coisas
cuja existência é causada por outras coisas, para daí concluir que tem de haver uma primeira
causa, ou seja, Deus.
Argumento Cosmológico

 Uma acessível formulação do argumento cosmológico de Tomás de Aquino poderá ser a seguinte:

(1) Existem coisas no mundo.


(2) Se existem coisas no mundo, então tais coisas foram causadas a existirem por outra coisa.
(3) Se as coisas do mundo foram causadas a existirem por outra coisa, então há uma cadeia causal que
regride infinitamente ou há uma primeira causa que é a origem da cadeia causal.
(4) Mas não há uma cadeia causal que regride infinitamente.
(5) Logo, há uma primeira causa (a que chamamos Deus) que é a origem da cadeia causal. (De 1 a 4)
Argumento Cosmológico

 A premissa 1 é trivial.
 A premissa 2 explicita a ideia de que essas coisas que existem no mundo não se causaram a si mesmas. Pelo contrário,
tais coisas foram causadas por outras coisas. Por exemplo, cada um de nós existe não porque nos causámos a nós
próprios, mas sim porque os nossos pais nos causaram a existir e, assim, sucessivamente. Do mesmo modo, uma cadeira
ou uma mesa não aparece do nada; é causada a existir pelo carpinteiro. (nada é causa de si mesmo, ou seja, tudo o que é
causado a existir é causado à existência por alguma coisa).
 Na premissa 3 elencam-se duas possibilidades que podem explicar o que poderá causar as coisas que existem no mundo.
A primeira é a hipótese de uma cadeia causal que regride infinitamente. Ou seja, as coisas que existem no mundo
devem-se às causas que as precederam; por sua vez, essas causas devem-se a outras causas que as precederam e assim
sucessivamente até ao infinito. A segunda hipótese é admitir que há apenas uma primeira causa, a qual não tem causa,
que é a origem de toda a cadeia causal. Assim, em vez da cadeia causal regredir infinitamente, essa cadeia irá parar
numa causa primeira incausada e sobrenatural, como Deus. Mas qual destas hipóteses é a mais plausível?
 Na premissa 4 afirma-se que a hipótese de uma regressão infinita na cadeia causal não é plausível. Porquê?
 Se a regressão das causas fosse infinita, então não haveria nada no seu início que desse origem à própria cadeia causal
que deu origem a tudo o que temos hoje. Para ilustrar esta ideia podemos estabelecer uma analogia: nós existimos porque
os nossos pais nos causaram e, por sua vez, os nossos pais existem porque os nossos avós os causaram e assim em diante.
Agora, suponha-se que não haveria um primeiro casal nos nossos antepassados; parece que nesse caso não haveria a
cadeia causal que nos causou a existência. Do mesmo modo, se não houver uma primeira causa (ou seja, Deus), deixaria
de haver a própria cadeia causal e nada existiria. Mas como existem coisas e cadeia causais, segue-se que terá de haver
uma primeira causa.
O argumento é logicamente válido, mas será sólido?
Possíveis Objeções

 A premissa (3) parece cometer a falácia do falso dilema, pois apresenta apenas duas opções para
explicar as coisas que existem no mundo quando podemos pensar em mais possibilidades relevantes.
Ou seja, além da opção de cadeia de regressão infinita, e da opção de haver apenas uma causa
primeira, por que razão não se poderá ter também em consideração a opção de haver várias
primeiras causas diferentes? Assim, a conclusão 5 já não seria que há apenas uma primeira causa.
Por outras palavras, se Tomás de Aquino queria concluir que há apenas uma única causa primeira
teria de explicar por que razão a possibilidade de haver várias primeiras causas não é plausível.
 Na premissa (4) não pode haver uma cadeia causal infinita. Tomás de Aquino argumenta que se
não existe uma primeira causa, também não existe qualquer cadeia causal e nada existiria, ou seja,
deixaria de haver tudo o que é causado por essa causa primeira. Por isso, conclui que as cadeias
causais não podem regredir infinitamente, como se lê na premissa 4. Porém, há aqui um problema:
por definição, uma cadeia causal que regride infinitamente não tem uma primeira causa.
Portanto, é falso que, se retirássemos a causa primeira (ou seja, se esta não existir), a cadeia causal e
tudo o que existe no mundo deixaria de existir.
 Por fim, a conclusão (5) não implica o Deus teísta. Mesmo que se possa concluir que existe uma
causa primeira, nada garante que essa causa seja o Deus teísta; ou seja, a primeira causa da cadeia
causal não precisa de ter os atributos tradicionais do teísmo, como a omnipotência, a omnisciência, ou
a suma bondade.
Outra versão do argumento cosmológico
William Lane Craig

Será esta versão melhor do que a anterior?


https://www.youtube.com/watch?v=KrGjeRBWlZQ&feature=emb_logo
3.2. Argumento teleológico
Argumento teleológico

 O ponto de partida do argumento teleológico, ou do desígnio, é o nosso sentimento de surpresa por


muitas das coisas que existem no nosso universo manifestarem ordem e desígnio. A partir disso,
procura mostrar-se que seja o que for que produziu o universo tem de ser um ser inteligente.
 Para ilustrar a estruturas lógica das várias versões do argumento teleológico considere-se que
enquanto passeamos por uma mata encontramos um relógio no chão e nos questionamos sobre como
esse objeto poderia estar naquele lugar. Tendo em conta os dados ou a evidência observada, isto é, as
caraterísticas específicas do relógio, temos duas hipóteses para explicar esse fenómeno: ou o relógio
foi concebido por um relojoeiro ou o relógio formou-se por acaso.
 Parece que a evidência observada não seria surpreendente se a hipótese do relojoeiro fosse
verdadeira, mas seria muito surpreendente caso a hipótese do acaso fosse verdadeira. Isto é, dada a
estrutura intrincada do relógio, que permite desempenhar uma certa função seria extremamente
surpreendente que este se tivesse formado por acaso. Assim , podemos dizer que a hipótese que
explica melhor os fenómenos observados é a hipótese do relojoeiro em vez da hipótese do acaso.
 Com base neste raciocínio, pode construir-se o seguinte argumento.
Argumento teleológico

(1) As caraterísticas específicas do relógio devem-se ou a um relojoeiro ou devem-se ao acaso.


(2) Mas tais caraterísticas não se devem ao acaso.
(3) Logo, tais caraterísticas devem-se a um relojoeiro. (De 1 e 2, por silogismo disjuntivo)

 É esta estrutura lógica que é utilizada nas várias versões do argumento teleológico.
Argumento teleológico
 Agora, em vez do relógio, suponha-se que partimos dos seguintes dados, evidências ou observações:

Maravilhas da natureza
Os seres vivos e os seus órgãos (por exemplo, o olho) exibem uma estrutura intrincada, com
desempenho de funções complexas (como a visão).
~
Para explicar esse fenómeno: ou os seres vivos foram concebidos por Deus ou formaram-se ao acaso. Ora,
presumivelmente, as maravilhas da natureza são menos surpreendentes se foram concebidas por Deus do
que foram concebidas por acaso. Assim, tais maravilhas da natureza confirmam a hipótese de Deus em
detrimento da hipótese do acaso. Por isso, podemos concluir que os dados ou observações sobre as
maravilhas da natureza conformam a existência de Deus.
O argumento pode ser explicitamente formulado como se segue:

(1) As maravilhas da natureza devem-se ou a uma conceção de Deus ou devem-se ao acaso.


(2) Mas tais caraterísticas não se devem ao acaso.
(3) Logo, tais maravilhas devem-se a uma conceção de Deus. (De 1 e 2, por silogismo disjuntivo)
O argumento anterior é válido, mas será sólido?

 Como objeção, é importante salientar que na premissa 1 há uma falácia informal do falso dilema.
Isto porque, além de Deus e do acaso, há uma terceira hipótese muito relevante:

Darwinismo
Os seres vivos resultam de um processo de evolução por seleção natural.

 Ora, a hipótese do darwinismo parece constituir uma melhor explicação para dar conta das
maravilhas da natureza do que a hipótese de Deus. Assim, o darwinismo põe em causa o argumento
teleológico na versão anterior. Porém, há uma nova versão do argumento teleológico que não é
afetada pela anterior crítica baseada no darwinismo.
Nova versão do argumento teleológico

 Numa nova versão do argumento teleológico, em vez de se partir da evidência sobre as


maravilhas da natureza, parte-se de uma evidência diferente, nomeadamente parte.se da
observação do universo como altamente estruturado com parâmetros precisamente
definidos. A esse propósito, há quem observe que se a explosão inicial do big bang diferisse
em força por tão pouco quanto umas parte em 1060, o universo ou teria colapsado sobre si
mesmo ou teria expandido muito rapidamente, não permitindo que as estrelas se formassem.
Além disso, se a força nuclear forte, a força que liga protões e neutrões juntos num átomo,
bem como se a gravidade e a força eletromagnética fossem ligeiramente mais fortes ou mais
fracas, a vida seria impossível. Assim, na nova versão do argumento teleológico parte-se dos
seguintes dados:
Afinação minuciosa
As constantes físicas estão minuciosamente afinadas para a existência de vida.

 Tendo em conta a afinação minuciosa, temos as seguintes hipóteses para explicar esse fenómeno:
 Designer – a afinação minuciosa do universo deve-se a um designer sobrenatural: a um Deus.
 Acaso – a afinação minuciosa do universo é fruto do acaso.
Nova versão do argumento teleológico

 Com base nestas informações, podemos dizer com plausibilidade que, se o universo for resultado do
acaso, será surpreendente ele ter as caraterísticas de afinação minuciosa. A esse propósito podemos
estabelecer uma analogia: tal como é surpreendente que uma seta atirada ao acaso acerte no círculo
central de um alvo; assim também se o universo for um mero fruto do acaso será bastante surpreendente
que esteja tão precisamente afinado para a vida.
 Pelo contrário, se o universo for o resultado de algum tipo de designer inteligente, não será
surpreendente ele ter as caraterísticas de afinação minuciosa. Isto porque, se partimos da suposição de
que a vida em geral (bem como a vida racional, ou consciente) é algo bom, então não será surpreendente
que um designer inteligente e sobrenatural, tendo atributos tradicionais do teísmo (como a omnipotência
e a suma bondade), tenha criado um universo minuciosamente afinado para a vida.
 Assim, podemos dizer que a probabilidade de o universo exibir caraterísticas de afinação minuciosa,
tendo resultado do acaso, é baixa. Contudo, a probabilidade de o universo exibir as caraterísticas de
afinação minuciosa, tendo resultado de um designer inteligente, não é baixa.
 Por isso, é mais provável que o universo tenha constantes minuciosamente afinadas para a vida se houver
um designer do que se for fruto do acaso.
 Portanto, a afinação minuciosa do universo dá razão para acreditar em Deus.
Em suma, a estrutura do argumento é a seguinte:

(1) A afinação minuciosa do universo deve-se ou a um designer ou ao acaso.


(2) Mas não se deve ao acaso.
(3) Logo, deve-se a um designer. (De 1 e 2, por silogismo disjuntivo)

 Mas será este um bom argumento?


Objeções: 1) falácia do falso dilema - multiverso

 Na premissa 1 há uma falácia do falso dilema, pois as hipóteses do designer e do acaso não são as
únicas possíveis hipóteses relevantes para explicar a evidência da afinação minuciosa;
nomeadamente, há a seguinte terceira hipótese:

Multiverso
Existem muitos universos distintos: muitos domínios do espaço-tempo que divergem entre si em virtude
de terem constantes físicas ou leis naturais diferentes.

 Assim, entre os vários universos, acabará por surgir por acaso um universo em que as constantes
assumem os valores corretos para a existência de vida. Admitida esta pluralidade de universos, a
afinação minuciosa não será surpreendente. (1)

(1) Stephen Hawking (1942-2018). Físico inglês, é coautor de um estudo, publicado pouco antes de ter falecido, que procura provar
a teoria do «multiverso». O estudo, que afirma ser possível detetar os «big bang» dos universos paralelos através das ondas
gravitacionais do nosso Big Bang, contém todos os cálculos necessários para que uma sonda espacial viaje aos confins do nosso
universo e recolha as provas da existência de outros universos para além do nosso.
Objeções: 2) não se prova a existência do Deus teísta

 Um dos problemas que atinge as várias versões do argumento teleológico tem a ver com a ideia de
que com o argumento em consideração sabemos pouco sobre a natureza do designer: será que a
afinação minuciosa do universo se deve apenas a um Deus ou é um trabalho colaborativo de vários
deuses? Talvez o designer em questão tenha o poder suficiente para criar um universo favorável à
vida, mas será omnipotente, omnisciente ou moralmente perfeito? Será alguém com quem podemos
estabelecer uma relação pessoal, por exemplo, através da oração?
 O argumento da afinação minuciosa por si só não consegue responder a estes desafios.
3.3. Argumento Ontológico
Argumento Ontológico

 O argumento ontológico parte do conceito de Deus e de premissas a priori (premissas que podem
ser conhecidas independentemente da experiência do mundo) para concluir que Deus existe na
realidade.

 Na versão clássica, do século XI, de Santo Anselmo (cf. Proslogion, 2) parte-se da definição de
Deus como “ ser maior do que o qual nada maior pode ser pensado”.

 E a partir desta definição conclui-se que Deus exista na realidade, pois se Deus não existisse na
realidade ou se apenas existisse no pensamento mas não na realidade, não seria aquele ser maior do
que o qual nada maior pode ser pensado.
Argumento Ontológico

 Numa versão simples, o argumento pode ser apresentado da seguinte forma:

(1)Deus existe no pensamento.


(2)Ora, se Deus existe no pensamento e não na realidade, então um ser mais perfeito do que Deus é
concebível.
(3)Mas, não é concebível um ser mais perfeito do que Deus.
(4)Logo, Deus existe na realidade. (De 1 a 3)
Argumento Ontológico

 Na premissa 1 afirma-se que Deus existe pelo menos como entidade mental. Mesmo um ateu aceita esta
premissa; ou seja, pode pelo menos pensar-se na existência de Deus. Isto porque, para se afirmar ou
negar a existência de Deus na realidade, deve compreender-se o que está a ser afirmado ou negado.
Assim, Deus existe pelo menos como entidade mental, ou conceito, se é afirmado ou negado.
 Na premissa 2 sustenta-se que se Deus existir apenas como entidade mental, mas não como existente na
realidade, então seria possível conceber um ser mais perfeito do que Deus. Mas porquê? Porque dessa
forma parece que podemos conceber um ser que além de existir no pensamento também exista na
realidade. Mas por que razão existir no pensamento e na realidade é mais perfeito do que existir apenas
no pensamento? Porque, por exemplo, parece que uma nota de 50 euros que exista apenas no pensamento
é uma coisa menor do que se existisse no meu pensamento e no meu bolso.
 Porém, na premissa 3 advoga-se que não se pode conceber um ser perfeito do que Deus. Mas porquê?
Repare-se que estamos a partir da definição de Deus como o «ser maior do que o qual nada pode ser
pensado». Ora, afirmar que Deus é o ser maior do que o qual nada pode ser pensado é o mesmo que dizer
que Deus é o ser maximamente perfeito, isto é, o ser com todas as qualidades (como a omnipotência, a
omnisciência e a suma bondade, entre outras) e, por isso, não se pode conceber outro ser melhor ou mais
perfeito do que Deus, tal como se lê nesta premissa.
Aceitando-se estas premissas, terá de se aceitar a conclusão de que Deus existe na realidade, dado que o
argumento é logicamente válido. Mas será sólido?
Objeções: 1) podem provar-se coisas que não existem

 Um monge da época de Anselmo, conhecido como Gaunilo, apresentou uma primeira crítica muito
interessante: seguindo a mesma estrutura argumentativa , pode provar-se coisas que não existem.
Para mostrar isso, definiu «ilha perfeita» como uma ilha maior do que a qual nada maior pode ser
pensado e concluiu, pelas mesmas razões de Anselmo, que essa ilha meramente imaginária também
existe na realidade. O seu argumento é o seguinte:

(1) A ilha perfeita existe no pensamento.


(2) Se a ilha perfeita existe no pensamento e não na realidade, então uma ilha mais perfeita do que a ilha
Perfeita é concebível.
(3) Mas não é concebível uma ilha mais perfeita do que a ilha Perfeita.
(4) Logo, a ilha Perfeita existe na realidade. (De 1 a 3)

 Chega-se, assim, a uma conclusão estranha com base na mesma estrutura do argumento ontológico.
Como não há qualquer ilha perfeita, na forma como Gaunilo a definiu, alguma das premissas terá de
ser falsa. Mas qual? Gaunilo não identificou com precisão qual é o erro, mas filósofos posteriores
tentaram realizar essa tarefa.
Objeções: 2) a existência não é um verdadeiro predicado

 Pode identificar-se um grave problema na premissa 2 (se Deus existe no pensamento e não na realidade, então um
ser mais perfeito do que Deus é concebível).
 Uma das razões a favor desta premissa assenta na ideia de que existir na realidade torna algo mais perfeito do
que existir apenas no pensamento. Mas contra essa ideia, Kant defende que a existência não é um verdadeiro
predicado. A existência não é um predicado tal como o é uma propriedade que pode caraterizar uma coisa (ou seja,
«existe» não é uma propriedade como «verde», «inteligente» ou «alto»). Isto porque a existência não acrescenta
nada ao conceito de uma coisa. Pelo contrário, a existência é apenas a exemplificação, ou instanciação de uma
coisa.
 Por exemplo, suponhamos que vemos um cão que parece ser branco com manchas pretas. Quando dizemos que o
cão é branco com manchas pretas estamos a acrescentar propriedades (de ser branco com manchas pretas) ao
conceito de cão. Esta não é uma propriedade essencial do conceito de cão, pois há outros cães que não são brancos
com manchas pretas. No entanto, quando dizemos que o cão existe não estamos a acrescentar nada ao conceito de
cão; simplesmente, estamos a afirmar que o conceito de cão é exemplificado ou instanciado.
 No argumento, Anselmo parece sustentar que a existência é um predicado que se acrescenta ao conceito de
Deus, definido como um ser maior do que o qual nada pode ser pensado (ou seja, é maior ter a propriedade de
existir do que não ter essa propriedade). Porém, como vimos, afirmar que algo existe não acrescenta nada ao
conceito de um tal ser; apenas afirma que o conceito é exemplificado ou instanciado. Não há diferença de
propriedades entre o conceito de um Deus existente e de um Deus não existente. A existência não envolve uma
nova propriedade. E se a existência não é uma propriedade ou um predicado, então um ser maximamente
perfeito não é maior se existir ou não existir.
Objeções: 3) falácia da petição de princípio

 Pode também argumentar-se que o argumento ontológico comete a falácia informal da petição de
princípio, ou circularidade. Isto porque parte-se da definição de Deus como absolutamente
perfeito, contendo todos os predicados e perfeições, inclusive a existência na realidade. Assim,
quando se diz na premissa 1 que «Deus» existe no pensamento já se está comprometido, pela
definição apresentada de Deus, com a ideia de que Deus existe na realidade.
Outra versão do argumento ontológico
Anselmo da Cantuária

Será esta versão melhor do que a anterior?


https://www.youtube.com/watch?v=GUgecZXpEbk&t=8s
4. O argumento do mal para a discussão da existência de Deus

4.1. O argumento do mal


O argumento do mal

 O argumento do mal talvez constitua uma das razões mais fortes contra a existência do Deus Teísta, defendendo que a
presença de mal no mundo é um forte indício contra a existência de Deus. A versão mais forte deste tipo de
raciocínio é designada «argumento probabilístico do mal».
 São muitos os exemplos que se podem apresentar de mal natural e de mal moral existentes no mundo.
 Por um lado, o mal moral refere-se ao mal que tem origem nas ações humanas como os assassinatos, torturas, roubos,
etc.
 Por outro lado, o mal natural refere-se ao mal que não tem origem nas ações dos seres humanos, como terramotos,
furacões, alguns tipos de doenças, etc.
 Para desenvolver uma versão probabilística do argumento do mal, William Rowe baseia-se em exemplos de sofrimento
intenso, em seres humanos ou animais, que aparentemente não servem qualquer propósito benéfico.
 Para desenvolver o argumento devemos fazer a distinção entre mal justificado e mal não justificado.
 O primeiro é o mal que, se não existir, leva a que se perca algum bem maior. Por exemplo, uma má ação que é
perdoada ou uma doença que é suportada corajosamente; nestes casos, se o mal não existir, estamos ao mesmo tempo a
eliminar o bem maior do perdão ou da virtude da coragem. Por isso, nesses casos estamos perante males justificados.
 Pelo contrário, o mal não justificado é aquele que, se não existir, não leva a que se perca qualquer bem maior. Por isso,
este tipo de mal é sem sentido, ou gratuito.
Exemplo de mal gratuito

 Para ilustrar um mal gratuito, Rowe apresenta o seguinte caso:

«Suponha-se que um veado fica horrivelmente queimado durante um incêncio provocado pela descarga
de um raio, sofrendo terrivelmente durante cinco dias antes de morrer. Ao contrário dos seres humanos,
não se atribui livre-arbítrio aos veados, pelo que não podemos imputar o terrível sofrimento ao veado a
um mau uso do livre-arbítrio. Porque permitiria Deus que isso acontecesse quando, se existe, poderia tê-
lo impedido com tanta facilidade?
William Rowe «The Problem of Evil and Some Varieties of Atheism», in American Philosophical Quarterly, 16 (1979), p.337

 A ideia principal de Rowe é que o mal em questão, no caso do veado, não parece fazer qualquer
sentido; ou seja, parece meramente gratuito, pois é extraordinariamente difícil imaginar um bem
superior cuja realização dependa, sob qualquer perspetiva razoável, de Deus permitit que aquele mal
aconteça.
Mal gratuito

 Tendo em conta a argumentação de Rowe, partimos dos seguintes dados:

Mal gratuito
Pelo menos alguns dos males no nosso mundo parecem gratuitos.
(por exemplo, o sofrimento do veado)

 Tendo em conta essa evidência sobre o mal gratuito, temos duas hipóteses relevantes para explicar esse
fenómeno:
 Teísmo: há um designer sobrenatural omnipotente, omnisciente e moralmente perfeito.
 Ateísmo: não há um designer sobrenatural omnipotente, omnisciente e moralmente perfeito.

 Com base nestes dados, pode argumentar-se que a existência de mal gratuito que supostamente
encontramos no mundo é muito improvável do ponto de vista do teísmo, mas não é improvável do
ponto de vista do ateísmo. Isto porque se o Deus teísta existe, sendo omnisciente, moralmente perfeito e
omnipotente, ele sabe, quer e tem poder para eliminar os males gratuitos ou sem sentido; ora, se parecem
continuar a existir males gratuitos, isso parece evidenciar que Deus moralmente não existe. Então,
pode concluir-se que a existência de mal gratuito fornece razões para se preferir o ateísmo ao teísmo.
Uma formulação possível do argumento de Rowe

(1) Pelo menos alguns dos males no nosso mundo parecem ser gratuitos (por exemplo, o sofrimento do
veado).
(2) Logo, provavelmente, alguns dos males no nosso mundo são gratuitos.(De 1, por indução)
(3) Mas, se Deus existe, não há males gratuitos.
(4) Logo, provavelmente, Deus não existe. (De 2 e 3 , por modus tollens)

 Será este um bom argumento?


 Antes de se avançar para as objeções, vale a pena notar que mesmo que a conclusão seja verdadeira
isso não negará qualquer tipo de designer sobrenatural. Por exemplo, ainda que esse argumento seja
bom, não constitui uma refutação da existência de um designer sobrenatural que seja omnisciente e
moralmente perfeito, mas não seja omnipotente. Portanto, o argumento não consegue dar razões para
uma versão forte do ateísmo que nega qualquer tipo de designer sobrenatural.
 Mas será este um argumento forte contra o Deus teísta?
4. 2. O Teísmo cético
Objeção: teísmo cético

 Uma via de crítica muito peculiar nos dias de hoje é conhecida como teísmo cético. Chama-se
teísmo cético porque nega que possamos conhecer as razões que Deus possa ter para fazer algo, caso
Deus exista. Com base nesta teoria, procura mostrar-se que a inferência de 1 para 2 não é uma boa
inferência indutiva. Isto porque o teísmo cético alega que somos ignorantes sobre as razões totais
de Deus e, por isso, não se pode fazer uma inferência indutiva de 1 para 2; ou seja, pelo facto de nos
parecer, de um ponto de vista subjetivo, que existem males gratuitos não se segue que existem
realmente, de um ponto de vista objetivo, males gratuitos e injustificáveis. Aplicando o teísmo cético
ao argumento do mal, tal como propõe Michael Bergmann, pode sustentar-se que:

«O facto de os seres humanos não conseguirem pensar em qualquer razão que justifique a Deus permitir
um mal não torna provável que não existam tais razões; isto porque, se Deus existe, a mente de Deus
será muito maior do que as nossas, de modo que não será surpreendente se Deus tiver razões que não
somos capazes de pensar».
Michael Bergmann «Commonsense Skeptical Theism», in Science, Religion, and Metaphysics, Oxford University Press (2012), p. 11
Analogias que suportam o argumento de Bergmann

 Para suportar o seu argumento, Bergmann usa a seguinte analogia: não podemos usar a nossa incapacidade
para ver quaisquer insetos na garagem (quando estamos a olhar da rua) para concluir que é improvável que
haja insetos na garagem. De forma similar, não podemos usar a nossa incapacidade para compreender as
razões que justificam que Deus permita um mal para concluir que é improvável que haja qualquer razão que
justifique que Deus permita o mal.
 Uma outra analogia: suponha-se que um novato está a assistir a uma partida de xadrez entre o campeão
mundial Magnus Carlsen e o seu oponente Sergey Karjakin; pelo facto de o novato não conseguir pensar
numa boa razão para Carlsen fazer um movimento particular no tabuleiro não se segue que não haja uma
boa razão para tal movimento. Algo similar ocorre com o problema do mal.
4.2 Teodiceia de Leibniz
Objeção: teodiceia de Leibniz

 Tradicionalmente, como crítica ao argumento do mal, construiu-se uma teodiceia para mostrar que a
premissa 2 é falsa. Mas o que é uma teodiceia?
 Construir uma teodiceia consiste em dar uma resposta à questão de saber por que motivo Deus
permite o mal, mostrando-se dessa forma que nenhum mal é injustificável. Uma das teodiceias mais
influentes foi desenvolvida por Gottfried Leibniz. A teodiceia de Leibniz apresenta a seguinte
estrutura argumentativa:

(1) Deus criou o melhor de todos os mundos possíveis.


(2) O melhor de todos os mundos possíveis tem partes indesejáveis, ou seja, males.
(3) Se 1 e 2 são verdadeiras, então Deus permite o mal.
(4) Logo, Deus permite o mal. (De 1 a 3)

 Com este tipo de raciocínio constata-se que Deus permite o mal precisamente porque o melhor de
todos os mundos possíveis não implica um mundo sem males.
Fundamentação das premissas do argumento de Leibniz

 Na premissa 1, de acordo com Leibniz, Deus criou o melhor de todos os mundos possíveis. Isto decorre da
definição de Deus teísta. Porque sendo Deus omnipotente e omnisciente, nada há que o possa impedir de
criar o melhor mundo, e a sua perfeição moral obriga-o a criar o melhor mundo possível. Portanto, se Deus
existe, o nosso mundo é o melhor mundo. Mas haverá realmente «o melhor mundo»? Para cada mundo
que se conceba, não será possível pensar num mundo ainda melhor e assim sucessivamente até ao infinito,
sendo que desta forma não há «o melhor mundo»? A resposta de Leibniz é que isso é implausível. Pois, se
fosse verdade que não há o melhor de todos os mundos possíveis, não haveria razão suficiente para explicar
por que razão Deus criaria o nosso mundo e não um outro qualquer. Portanto, nesta premissa Leibniz
defende que o mundo como um todo é o melhor mundo possível.
Fundamentação das premissas do argumento de Leibniz

 Em relação à premissa 2, Leibniz salienta que um mundo sem qualquer tipo de mal não seria o melhor
mundo possível. Mas porquê? Porque algumas partes más do mundo são tais que, se Deus as eliminasse,
estaria a eliminar partes boas e valiosas do mundo que superam esses males. Por exemplo, vamos supor que
o ato de perdoar é um aspeto valioso e bom do nosso mundo; todavia, é impossível perdão sem haver
algum tipo de ofensa, ou seja, algum tipo de mal. Leibniz usa o exemplo de um general de um exército que
prefere uma vitória significativa ainda que daí resultem alguns ferimentos em vez de uma situação em que
não há qualquer ferimento nem, sequer, vitória.
 Com estes casos parece plausível aceitar a ideia de que haver partes indesejáveis pode ser necessário par
a haver uma maior perfeição do todo, neste caso, do mundo. Assim, qualquer candidato a ser um melhor
mundo possível tem simultaneamente aspetos bons e aspetos maus, sendo que «o melhor mundo» possível é
aquele em que o valor dos aspetos bons supera o valor dos maus aspetos.
Fundamentação das premissas do argumento de Leibniz

 Mas não poderíamos pensar num mundo com menos mal? Será que o exemplo do veado dado por Rowe não
parece um caso de mal gratuito que não contribui para qualquer bem maior? Não será isso evidência de que
o nosso muindo não é o melhor mundo possível?
 Como resposta, Leibniz, advoga que, considerando todas as coisas, não temos justificação para afirmar isso.
Pois não podemos saber se é possível criar um mundo melhor sem esses aspetos negativos, dado que
não sabemos quais as conexões entre estes aspetos e os outros aspetos do mundo. É verdade que se
pudéssemos eliminar o sofrimento do veado sem que com isso se alterasse o mundo teríamos um mundo
melhor. O problema é que não temos forma de saber se essa mudança deixaria o mundo inalterado ou se, em
vez disso, tornaria as coisas piores. Portanto, o caso do veado não parece permitir rejeitar a premissa 2 do
argumento de Leibniz.
 Mas, assim, aceitando as premissas 1 e 2 de Leibniz, estamos a aceitar que Deus tem razões para permitir
a existência de mal no mundo, não havendo dessa forma males gratuitos ou injustificados.
5. O Fideísmo de Pascal
O fideísmo de Pascal

 Suponha-se que nenhum dos argumentos anteriores é realmente bom. Imagine-se que não conseguiu provar que Deus
existe nem que Deus não existe. Seria assim racional acreditar que Deus existe? Para se entender bem esta questão pode
fazer-se uma distinção entre dois diferentes tipos de racionalidade: a racionalidade epistémica e a racionalidade
prudencial.
 Racionalidade epistémica – é o terceiro elemento da definição tradicional do conhecimento: a justificação(como se viu
na definição tripartida do conhecimento). Com este tipo de racionalidade aumenta-se a probabilidade de descobrir novas
crenças verdadeiras.
 Racionalidade prudencial – é o tipo de racionalidade que, não sendo conducente à verdade, é conducente a benefícios
práticos. Ou seja, justifica crenças que são práticas ou que ajudam as pessoas de alguma forma.
 Parece ser possível e legítimo, em alguns casos, possuir-se a racionalidade prudencial sem ter a racionalidade
epistémica. Isso acontece em muitas situações das nossas vidas quotidianas. Por exemplo, alguns doentes terminais têm
pensamento positivo e a crença que vão recuperar rapidamente; esse tipo de crença ajuda-os a enfrentar melhor a
situação de enfermidade em que se encontram, ainda que essa crença afinal seja falsa. Portanto, há situações em que é
plausível ter racionalidade prudencial sem ter racionalidade epistémica.
 E no caso da crença de Deus: será que acontece algo semelhante ou não? Ou seja, se os argumentos tradicionais a favor
da existência de Deus não são bons e se , por isso, não há racionalidade epistémica para acreditar na existência de Deus,
será que pode ainda assim haver racionalidade prudencial para essa crença?
O fideísmo de Pascal

 De acordo com Blaise Pascal, mesmo sem argumentos a favor da existência de Deus, o mais racional,
do ponto de vista prudencial, é acreditar que Deus existe, dado que essa é a melhor «aposta», a que traz
mais benefícios práticos para nós. Por outras palavras, ainda que a crença em Deus não tenha
racionalidade epistémica (por exemplo, porque os argumentos a favor da existência de Deus não são
bons), a crença em Deus tem racionalidade prudencial na medida em que nos proporciona benefícios
práticos. Esta posição, de que se pode acreditar legitimamente em Deus sem qualquer racionalidade
epistémica, é conhecida por «fideísmo».

Fideísmo
Não é necessária qualquer razão epistémica para acreditar em Deus.
 É importante sublinhar que Pascal, sendo fideísta, não está a procurar provar que Deus existe ou que a
existência de Deus é mais provável do que a não existência (tal como acontece nos argumentos
tradicionais). Pelo contrário, está simplesmente a sustentar que, tendo em conta os custos e benefícios
para a nossa vida, apostar e acreditar na existência de Deus é uma boa coisa para nós; por isso, a
racionalidade prudencial leva-nos a acreditar em Deus.
 Mas porquê?
O fideísmo de Pascal - O raciocínio de pascal pode ser dividido em duas partes.

 Na primeira parte, Pascal começa por dizer, trivialmente, que Deus existe ou não existe; contudo,
perante isso, não podemos ficar indiferentes – temos de escolher ou «apostar». Para fazer essa escolha
não podemos usar a racionalidade epistémica, pois de acordo com Pascal nenhum argumento nos
permite estabelecer isso. Por isso, temos de olhar para os custos e benefícios de cada opção, apostando
naquela em que há uma maior hipótese de sermos recompensados. Assim, segundo Pascal, perante a
proposição de que ou Deus existe ou Deus não existe, temos duas opções: ou acreditamos que Deus
existe ou não acreditamos que Deus existe.
 Mas qual é a melhor opção?
 Para se ver que é a opção mais racional, do ponto de vista prudencial, Pascal começa por explicar que,
se Deus existe e acreditamos nele, a recompensa é a felicidade eterna, ou seja, um resultado positivo
com valor infinito – o paraíso. Contudo, se Deus existe e não acreditamos nele, a punição será eterna,
isto é, receberemos um resultado negativo com valor infinito – o inferno. Além disso, no caso de Deus
não existir, pouco ou nada ganharemos ao acreditar em Deus (talvez possamos ganhar, por exemplo,
alguma paz interior e subjetiva) e pouco ou nada ganharemos ao não acreditar em Deus (talvez
possamos ganhar, por exemplo, algum tempo extra). De qualquer forma, se Deus não existe, o resultado
de acreditar em Deus será igual ao resultado de não acreditar – ou seja, será algum valor finito.
O fideísmo de Pascal - O raciocínio de pascal pode ser dividido em duas partes.

 Com base na explicação de Pascal e para visualizar melhor os resultados de cada opção, pode
construir-se a seguinte matriz:

Deus existe Deus não existe


Acreditar em Deus Valor infinito positivo Valor finito
(paraíso)
Não acreditar em Deus Valor infinito negativo Valor finito
(inferno)

 Ao visualizarmos esta matriz, podemos constatar que a opção de acreditar em Deus tem um melhor
resultado do que não acreditar em Deus.
O fideísmo de Pascal

 Com base nestes dados, vamos à segunda parte do raciocínio de Pascal. Esta segunda parte consiste
essencialmente em aplicar o princípio da racionalidade prudencial aos dados apresentados na
matriz. Segundo este princípio, exige-se que devemos escolher a opção que tem para nós o melhor
resultado em termos de benefícios práticos. Mais especificamente:

Princípio da racionalidade prudencial


Se uma das opções de escolha X, disponível para nós tiver um resultado melhor do que o das outras
opções disponíveis, e nunca tiver um resultado pior do que as outras opções, devemos escolher X.

 Assim, se a opção de acreditar em Deus tem um melhor resultado do que a alternativa de não acreditar,
devemos escolher acreditar que Deus existe
O fideísmo de Pascal

 Em suma, o raciocínio de Pascal pode ser apresentado nestes termos

(1) Ou Deus existe ou Deus não existe.


(2) Se Deus existe, estaremos melhor como crentes em Deus do que como não crentes. (Dado que é
melhor ter um valor infinito positivo do que negativo.)
(3) Se Deus não existe, não é pior acreditar do que não acreditar. (Dado que em ambos os casos
haverá algum valor finito.)
(4) Logo, quer Deus existe quer Deus não exista, acreditar que Deus existe tem um melhor
resultado do que não acreditar em Deus, e nunca um resultado pior. (De 1 a 3)
(5) Se o passo 4 é verdadeiro, então devemos escolher acreditar que Deus existe (Dado o princípio
da racionalidade prudencial.)
(6) Logo, devemos escolher acreditar que Deus existe. (De 4 e 5, por modus ponens).

 O raciocínio de Pascal é válido, mas será sólido? Teremos realmente um dever, do ponto de vista da
racionalidade prudencial, para acreditar em Deus?
Objeção – A matriz não está bem construída

 Pode colocar-se em causa a matriz apresentada por Pascal de duas formas: por um lado, seguindo a
teoria do teísmo cético, vale a pena questionar sobre como se pode saber que a recompensa tem um
valor infinito positivo quando Deus existe e nós acreditamos em Deus. Talvez Deus tenha uma razão
para recompensar todos com valor infinito positivo (isto é, com paraíso), mesmo aqueles que não
acreditam em Deus. Pode questionar-se igualmente se Deus beneficia de igual forma com valor infinito
positivo os crentes que têm fé apenas por interesse mesquinho da recompensa e aqueles crentes que
têm fé de forma desinteressada e honesta. A matriz formulada por Pascal não permite dar conta destas
subtilezas.
 Por outro lado, a matriz apenas considera o Deus teísta. Mas por que razão não se considera
igualmente muitas outras hipóteses, como algum Deus deísta (o qual, por exemplo, não dava qualquer
recompensa mas que poderia castigar infinitamente os teístas), ou um Deus malévolo (que só dava
recompensa infinita aos maus ou aos descrentes?) Com esta objeção dos vários deuses sustenta-se que
a matriz apresentada por Pascal é muito incompleta, uma vez que não considera outras possíveis
hipóteses de divindade e os seus respetivos valores; todavia, caso se considere essas várias hipóteses,
já não será óbvio que a racionalidade prudencial exija que se acredite no Deus teísta.
Objeção – A fé religiosa não se pode basear num cálculo

 Pode observar-se que Pascal baseia a crença em Deus num cálculo de forma a averiguar os melhores
resultados. Contudo, uma devoção religiosa baseada no mero cálculo de custos e benefícios parece
meramente interesseira e egoísta e, como tal, seria moralmente repugnante para a relação com Deus
(se ele existir). A este propósito, William James nota que:

«Sentimos que uma fé (…) adotada voluntariamente depois de um cálculo tão mecânico careceria
de alma interior da realidade da fé; e se estivéssemos nós próprios no lugar da divindade,
provavelmente teríamos um prazer especial em impedir a crentes deste calibre o acesso à
recompensa infinita.»
William James (1896) «A Vontade de Acreditar», in A ética da Crença, Bizâncio (2010), p.143
Objeção – A crença em Deus não é voluntária

 No argumento de Pascal pressupõe-se que se pode simplesmente decidir passar a acreditar em Deus (dado os
benefícios resultantes). Ou seja, o argumento de Pascal pressupõe que a crença está sob controlo voluntário e
livre da pessoa. Todavia, tal tese é bastante implausível dado que não temos esse controlo voluntário sobre a
maioria das coisas em que acreditamos. Alguns casos intuitivos para se mostrar que não temos controlo sobre
muitas das nossas crenças são apresentados por William Alston:

«Poderá, neste momento, começar a acreditar que o Império Romano ainda está sob o controlo da Europa
Ocidental, apenas por tomar a decisão de fazê-lo? Se acha que é inacreditável que deva ser suficientemente
motivado para sequer tentar acreditar nisso, suponha que alguém lhe oferece 500 milhões de dólares para
acreditar nisso, e que está muito mais interessado no dinheiro do que em acreditar na verdade? Recorde que
estamos a falar de acreditar por vontade. (…) Poderá mudar de atitudes proposicionais com respeito a essa
proposição apenas por decidir fazê-lo? Parece-me claro que não tenho tal poder.» William Alston,
Beyond «Justification»: Dimensions of Epistemic Evaluation, Cornell University Press (2005), p.63

 Deste modo, parece que aquilo em que acreditamos é em grande medida não voluntário e não depende do nosso
livre-arbítrio. Mas, assim, se não há um controlo voluntário sobre as nossas crenças, então não se pode
simplesmente decidir acreditar ou desacreditar eem Deus tal como proposto por Pascal.

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