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Sistematização
Março 2022
3. O Empirismo de David Hume
Objetivos:
✓ Esclarecer o papel da experiência sensível no fundacionalismo empirista de David Hume.
✓ Distinguir impressões e ideias, bem como ideias simples e complexas.
✓ Esclarecer a Bifurcação de Hume
✓ Apresentar a distinção de Hume entre relações de ideias e questões de facto.
✓ Explicitar os princípios de associação de ideias propostos por Hume.
✓ Formular explicitamente o problema da causalidade.
✓ Caracterizar a resposta de Hume para o problema da causalidade.
✓ Explicitar as razões que levam Hume a considerar que as nossas crenças na uniformidade da
natureza e na existência do mundo exterior são racionalmente injustificáveis.
✓ Caracterizar o ceticismo moderado de David Hume.
✓ Avaliar criticamente o fundacionalismo empirista de Hume.
✓ Análise comparativa de duas teorias de conhecimento – Descartes e D. Hume.
O princípio da cópia
− Hume é um empirista e tem a crença de que quando nascemos, a nossa mente é como uma tábua
rasa, uma folha de papel em branco, que posteriormente seria preenchida pela experiência. São
os sentidos que fornecem informação sobre o mundo, registando nas nossas mentes as impressões
colhidas do exterior.
Hume afirma:
“Ora, para me expressar em linguagem filosófica, todas as nossas ideias, ou perceções mais fracas, são
cópias das nossas impressões ou perceções mais intensas.
Os dois argumentos seguintes serão, espero, suficientes para provar isto. Primeiro, ao analisarmos os
nossos pensamentos ou ideias, por muito compostas e sublimes que sejam, sempre descobrimos que elas
se resolvem em ideias tao simples como se fossem copiadas de uma sensação ou sentimento precedente.
Segundo, se acontecer que um homem, em virtude de um defeito dos órgãos, não é suscetível de qualquer
espécie de sensação, vemos sempre que ele é igualmente pouco suscetível das ideias correspondentes. Um
homem cego não pode formar nenhuma noção das cores, e um surdo, dos sons. Restitua-se a cada um
deles o sentido em que é deficiente; franqueando esta nova entrada para as suas sensações, patenteia-se
também uma entrada para as ideias, e ele não encontra dificuldade alguma em conceber esses objetos. O
mesmo acontece se o objeto, adequado para a excitação de alguma sensação, nunca se tiver aplicado aos
órgãos.”
(Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano)
1. Relações de ideias – é o tipo de conhecimento que pode ser obtido apenas mediante a análise do
significado dos conceitos numa proposição. Este tipo de conhecimento está presente na
geometria, na matemática e na lógica.
Exemplo: para saber que a proposição “Os solteiros não são casados” é verdadeira, basta saber o
significado dos conceitos de “casado” e de “solteiro”. Trata-se de uma verdade necessária, pois a
sua negação – “Há solteiros casados” – implica uma contradição nos termos.
▪ A relação de ideias refere-se apenas às relações entre o significado das ideias envolvidas,
mas nada dizem acerca do que existe (é verdade que nenhum solteiro pode ser casado,
mas isso não nos diz se existem solteiros, ou não).
− Os nossos conhecimentos factuais têm como base a relação de causa e efeito. Procuramos
descobrir as causas de certos efeitos e julgamos que certos acontecimentos têm o poder de
produzir outros: a água congela devido a uma determinada diminuição de temperatura, ao
relâmpago segue-se o trovão, a gravidade atrai os corpos para o chão….
− A ideia de causalidade coloca um problema no empirismo de Hume. É inquestionável que temos
esta ideia, mas a sua origem não é muito evidente e clara. De onde vem a ideia de causalidade?
Hume afirma:
“Todos os raciocínios relativos à questão de facto parecem fundar-se na relação causa e efeito. Só
mediante esta relação podemos ir além do testemunho da nossa memória e dos nossos sentidos. Um
homem que encontrasse um relógio ou qualquer outra máquina numa ilha deserta concluiria que noutros
tempos estiveram homens nessa ilha. Todos os nossos raciocínios acerca de factos são da mesma natureza.
E aqui supõe-se constantemente que existe uma conexão entre o facto presente e aquele que dele é
inferido. Se nada houvesse a ligá-los, a inferência seria inteiramente precária.”
(Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano)
“Quando olhamos para os objetos exteriores à nossa volta e consideramos a operação das causas, nunca
somos capazes de identificar, num caso singular, qualquer poder ou conexão necessária, qualquer
qualidade que ligue o efeito à causa e torne o primeiro uma consequência infalível da segunda.
Constatamos apenas que um efeito realmente se segue à causa. O impulso da primeira bolha de bilhar é
seguido pelo movimento da segunda, e isso é tudo o que é dado aos sentidos. Em consequência, em
nenhum caso singular, particular de causa e efeito, há alguma coisa capaz de sugerir a ideia de poder ou de
conexão necessária.”
(Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano)
− A causalidade não se trata de uma relação de ideias, pois da sua aplicação não resulta qualquer
contradição.
Exemplo: ao ver uma bola de bilhar mover-se em direção a outra posso perfeitamente conceber
uma série de acontecimentos alternativos: posso imaginar que ambas as bolas ficam paradas, que a
segunda fica parada e a primeira volta para trás, que a primeira para e a segunda se desloca numa
ou noutra direção …
− Resta-nos a possibilidade de se tratar de uma questão de facto, pelo que a veracidade do princípio
da causalidade só pode ser estabelecida através da experiência. No entanto, a experiência não
responde a isto, pois tudo o que vemos são dois acontecimentos surgirem frequentemente
associados, mas não há qualquer impressão sensível de que é essa suposta conexão necessária
entre ambos.
Prof.: Isabel André 6
Hume afirma:
“Apresente-se um objeto a um homem dotado da mais forte capacidade e razão natural; se esse objeto for
inteiramente novo para ele, mesmo o exame minucioso das suas qualidades sensíveis não lhe permitirá
descobrir quaisquer das suas causas ou efeitos. Adão, ainda que supuséssemos que as faculdades racionais
fossem inteiramente perfeitas desde o início, seria incapaz de inferir da fluidez e transparência da água que
o sufocaria, nem da luminosidade e calor do fogo que este o poderia consumir.
Observaria imediatamente uma contínua sucessão de objetos e um evento a seguir a outro, mas não
conseguiria descobrir nada mais além disso. Não seria, no início, capaz de apreender por meio de qualquer
raciocínio a ideia de causa e efeito; sem mais experiência, jamais poderia conjeturar ou raciocinar acerca de
qualquer questão de facto ou assegurar-se de alguma coisa além do que estivesse imediatamente presente
à sua memória e aos seus sentidos.
Suponhamos agora que ele tenha adquirido mais experiência e tenha vivido no mundo o suficiente para
observar que objetos ou acontecimentos similares estão constantemente conjugados uns com os outros.
Qual é a consequência desta experiência? Que ele passa imediatamente a inferir a existência de um objeto
a partir do aparecimento do outro. Há um princípio que o obriga a chegar a esta conclusão. Esse princípio é
o costume ou hábito.”
David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano
− Esta experiência mental serve para mostrar que alguém inexperiente, ainda que dotado das mais
desenvolvidas capacidades racionais, nunca poderia inferir um efeito a partir da sua respetiva
causa numa única ocorrência, apenas seria capaz de o fazer após verificar que estes dois
acontecimentos aparecem constantemente um a seguir ao outro.
− Assim, Hume conclui que a ideia de relação causal ou conexão necessária entre dois
acontecimentos mais não é do que a expetativa do que um deles, a que chamamos efeito, irá
ocorrer sempre que o outro, a que chamamos causa, ocorra. Esta expetativa resulta do hábito ou
costume, isto é, da experiência que temos de uma conjunção constante desses dois
acontecimentos, pelo que não se funda na razão, mas num impulso natural e fundamental para o
nosso dia a dia.
2. O Princípio da Uniformidade da Natureza não pode ser justificado a posteriori, por intermédio da
experiência. Afirmar que a natureza é uniforme significa dizer que toda a natureza se tem
comportado e se comportará sempre da mesma maneira. Mas não podemos observar toda a
natureza ou o futuro. Assim, como surge a crença em tal uniformidade?
▪ Baseados em repetidas experiências passadas em que, por exemplo, um dado aumento de
temperatura foi sempre seguido pela dilatação de um dado corpo, conclui-se que no futuro
assim será. Trata-se de um raciocínio indutivo. É precisamente aqui que reside o problema.
▪ O Princípio da Uniformidade da Natureza é a base dos nossos raciocínios indutivos. Para
se poder justificar comete-se a falácia da petição de princípio porque queremos justificar a
indução, mas a única resposta que se encontra é que a indução justifica a indução.
− Hume considera que não se deve recorrer a qualquer tipo de intuição para justificar a existência do
Eu como substância dotada de realidade permanente, como sujeito imutável dos vários atos
psíquicos. Com efeito, só dispomos de ideias e impressões, e entre elas verifica-se a sucessão e a
mutabilidade; nenhuma delas apresenta um caráter de permanência. Sendo assim, a crença na
identidade, na unidade e na permanência do Eu é apenas um produto da imaginação, não sendo
possível afirmar que existe o Eu como substância distinta em relação às impressões e às ideias.
− No que se refere à existência de Deus, reconhecendo que o que concebemos existente também o
podemos conceber como não existente, conclui que não existe um ser cuja existência esteja à
partida demonstrada. Como tal, o argumento ontológico é desde logo excluído. Também as provas
da existência de Deus baseadas no princípio da causalidade são criticadas por Hume, uma vez que
partem das impressões para chegar a Deus; mas Deus não é objeto de qualquer impressão. A ideia
de Deus resulta de uma construção mental em que se elevam sem limites as qualidades da
bondade e sabedoria.
Exemplos:
1. A ideia de cavalo alado – um cavalo com asas. Esta ideia resulta da combinação da ideia de cavalo
com a ideia de animal com asas. Há impressões correspondentes às ideias de cavalo e de animal
com asas, mas não há nenhuma impressão correspondente à ideia de cavalo alado. Esta ideia
resultou do trabalho combinatório da mente e é falsa por não existir nenhuma experiência
sensorial desse animal.
2. A ideia de Deus – A ideia de Deus é uma criação da razão, a partir de ideias como inteligência,
sabedoria, bondade… Se nunca tivéssemos tido experiências da inteligência, da sabedoria e da
bondade, não poderíamos moldar estas ideias, nem a ideia de Deus, que é uma combinação destas.
Mas enquanto aquelas são verdadeiras, por terem uma impressão que lhes corresponde, esta, não a
tendo, é uma criação ilusória da razão e deve ser rejeitada.
3. Se aplicarmos este mesmo raciocínio às ideias que temos acerca das relações entre as coisas e os
acontecimentos, chegaremos a uma conclusão semelhante. Temos uma ideia de causalidade, pois
quando temos experiência de duas coisas que sucedem sempre uma a seguir à outra, concluímos
que uma é a causa ou a razão de ser da outra. Consideramos esta lei uma regra do funcionamento
da Natureza. A ideia de causalidade é subjetiva e não há fundamento para afirmar a sua realidade
objetiva.
− O critério de demarcação entre impressões e ideias, com base na força e vivacidade das primeiras
em relação às segundas, não explica o caso das alucinações percetivas que, como se sabe, por
ausência do objeto percebido, não podem ser incluídas no domínio das impressões, apesar da força
e da vivacidade com se apresentam.
− É um ceticismo mitigado ou moderado, uma vez que Hume reconhece as limitações das nossas
capacidades cognitivas e a nossa propensão ao erro. - “A capacidade cognitiva do entendimento
limita-se ao âmbito do provável”.
São considerados como fonte de erro, por isso Têm um papel ativo sendo o ponto de
não são fundamento válido de conhecimento. partida de todo o conhecimento.
Papel dos Os sentidos estão sujeitos ao erro, mas existe a Nada existe na razão que não tenha passado
primeiro pelos sentidos.
possibilidade de os corrigir através de um uso
sentidos
correto das faculdades racionais.
Para compreender a verdadeira natureza das
coisas devemos proceder a uma análise
matemática e geométrica das mesmas
(qualidades objetivas – mensuráveis).
Processos de Intuição racional e dedução. Captação sensorial das impressões e que são
fundamentadas no hábito.
construção do
conhecimento
O conhecimento é necessário e universal desde Dado que é construído com base nas
que seja intuitivo e dedutivo. perceções, o conhecimento universal é uma
mera probabilidade.
Só é real a ideia ou o conhecimento que dela for
Validade do deduzido. Não pode ser afirmada como realmente
conhecimento existente qualquer realidade que não tenha
uma impressão correspondente.
Podemos ter ideias claras e distintas dos Não encontramos qualquer princípio que
atributos essenciais de três tipos de confira unidade e conexão às perceções.
substâncias: Não temos impressões: