Você está na página 1de 16

Ensino Secundário

ESCOLA SECUNDÁRIA DE JÁCOME RATTON 11º Ano - Filosofia

Sistematização
Março 2022
3. O Empirismo de David Hume

Tema: O conhecimento e a racionalidade científica e tecnológica


2. Análise comparativa de teorias explicativas do conhecimento
2.2. O empirismo de David Hume

Objetivos:
✓ Esclarecer o papel da experiência sensível no fundacionalismo empirista de David Hume.
✓ Distinguir impressões e ideias, bem como ideias simples e complexas.
✓ Esclarecer a Bifurcação de Hume
✓ Apresentar a distinção de Hume entre relações de ideias e questões de facto.
✓ Explicitar os princípios de associação de ideias propostos por Hume.
✓ Formular explicitamente o problema da causalidade.
✓ Caracterizar a resposta de Hume para o problema da causalidade.
✓ Explicitar as razões que levam Hume a considerar que as nossas crenças na uniformidade da
natureza e na existência do mundo exterior são racionalmente injustificáveis.
✓ Caracterizar o ceticismo moderado de David Hume.
✓ Avaliar criticamente o fundacionalismo empirista de Hume.
✓ Análise comparativa de duas teorias de conhecimento – Descartes e D. Hume.

Prof.: Isabel André 1


O fundacionalismo clássico ou empirista
David Hume – Filósofo escocês (1711/1776). Investiga profundamente a origem, a possibilidade e os limites
do conhecimento. Para ele, todo o conhecimento começa com a experiência, isto é, do conjunto das
sensações ou das impressões, como ele diz, que recebemos na consciência.
− David Hume recorre ao fundacionalismo para responder ao desafio cético. Diverge do
fundacionalismo cartesiano no que diz respeito ao tipo de crenças autoevidentes. Hume designa de
crenças básicas às crenças que provêm da experiência sensível imediata, como por exemplo a
crença “Estou, neste momento, a ter uma experiência da cor azul”.
− Em vez de recorrer a uma intuição puramente racional como o cogito, coloca na experiência
sensível o maior grau de evidência quando se procura saber como as coisas são. Por isso, esta
posição é conhecida por empirismo (do grego empeiría, que significa experiência).

O princípio da cópia
− Hume é um empirista e tem a crença de que quando nascemos, a nossa mente é como uma tábua
rasa, uma folha de papel em branco, que posteriormente seria preenchida pela experiência. São
os sentidos que fornecem informação sobre o mundo, registando nas nossas mentes as impressões
colhidas do exterior.
Hume afirma:
“Ora, para me expressar em linguagem filosófica, todas as nossas ideias, ou perceções mais fracas, são
cópias das nossas impressões ou perceções mais intensas.
Os dois argumentos seguintes serão, espero, suficientes para provar isto. Primeiro, ao analisarmos os
nossos pensamentos ou ideias, por muito compostas e sublimes que sejam, sempre descobrimos que elas
se resolvem em ideias tao simples como se fossem copiadas de uma sensação ou sentimento precedente.
Segundo, se acontecer que um homem, em virtude de um defeito dos órgãos, não é suscetível de qualquer
espécie de sensação, vemos sempre que ele é igualmente pouco suscetível das ideias correspondentes. Um
homem cego não pode formar nenhuma noção das cores, e um surdo, dos sons. Restitua-se a cada um
deles o sentido em que é deficiente; franqueando esta nova entrada para as suas sensações, patenteia-se
também uma entrada para as ideias, e ele não encontra dificuldade alguma em conceber esses objetos. O
mesmo acontece se o objeto, adequado para a excitação de alguma sensação, nunca se tiver aplicado aos
órgãos.”
(Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano)

Prof.: Isabel André 2


− No texto, Hume reforça a diferença entre sentir e pensar. Justifica a aceitação do Princípio da Cópia
com base na ideia de que um cego de nascença seria incapaz de imaginar a cor azul porque não
possui qualquer impressão que corresponda a essa cor.
− Hume escolhe o conceito “perceções” para designar o conteúdo das nossas mentes, ou seja, tudo
aquilo que fazemos quando observamos, sentimos, recordamos…
− As nossas perceções podem ser de dois tipos:
1. Impressões – correspondem aos dados da experiência imediata, ou seja, às experiências
que temos no momento em que observamos, sentimos…, e caracterizam-se pelo seu
enorme grau de intensidade e vivacidade.
2. Ideias – são cópias enfraquecidas das impressões que surgem quando se recorre à
memória ou imaginação para representarmos mentalmente impressões que tivemos
anteriormente e, por isso, são menos intensas e menos vividas do que as impressões.
− Para Hume o Princípio da Cópia é verdadeiro, pois não lhe parece ser possível encontrar um único
contraexemplo capaz de o refutar. Acreditando que existe sempre uma impressão na base de uma
ideia.
▪ Não haverá ideias que não correspondem a nenhuma impressão?
▪ Como se pode ter as ideias de centauro e de sereia?
− Hume responde com a distinção de ideias simples e complexas:
1. Ideias simples – correspondem a impressões simples, ou seja, impressões de coisas que
não podem ser divididas em partes mais pequenas, como a cor ou a forma dos objetos.
2. Ideias complexas – correspondem a combinações de duas ou mais ideias.
− Mediante o Princípio da Cópia:
a. Todas as ideias ou são cópias diretas das impressões correspondentes.
b. Todas as ideias ou são compostas por ideias mais simples que, por sua vez, são cópias
diretas das impressões correspondentes.
− Estas combinações podem ter a sua origem na memória, quando apresentam a mesma
configuração que tinham quando surgiram na experiência, ou podem ter a sua origem na
imaginação, quando correspondem a combinação inéditas de ideias simples.
− Através da imaginação pode-se combinar a forma de um peixe com a forma de uma mulher para
criar a ideia de sereia. Apesar de nunca se ter visto uma sereia, existe as impressões
correspondentes à forma de peixe e de mulher.

Prof.: Isabel André 3


A Bifurcação de Hume (Conhecimento: relações de ideias e de questões de facto)
− Hume reduz todo o conhecimento a dois tipos: relações de ideias e questões de facto, que se
designa como a Bifurcação de Hume.
Hume afirma:
“Todos os objetos da razão ou investigação humanas podem naturalmente dividir-se em duas classes, a
saber, Relações de Ideias e Questões de Facto. Do primeiro tipo são as ciências da Geometria, Álgebra e
aritmética e, em suma, toda a afirmação que é intuitiva ou demonstrativamente certa. Que o quadrado da
hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos dois lados é uma proposição que exprime uma relação entre
estas figuras. Que três vezes cinco é igual à metade de trinta expressa uma relação entre estes números.
Proposições deste tipo podem descobrir-se pela simples operação do pensamento, sem dependência do
que existe em alguma parte no universo. Ainda que nunca tivesse havido um círculo ou um triângulo na
natureza, as verdades demonstradas por Euclides conservariam para sempre a sua certeza e evidência.
As questões de facto, que constituem os segundos objetos da razão humana, não são indagadas da mesma
maneira, nem a nossa evidência da sua verdade, por maior que seja, é de natureza semelhante à
precedente. O contrário de toda a questão de facto é ainda possível, porque jamais pode implicar uma
contradição, e é concebido pela mente com a mesma facilidade e nitidez, como se fosse idêntico à
realidade. Que o Sol não se há-de levantar amanhã não é uma proposição menos inteligível e não implica
maior contradição do que a afirmação de que ele se levantará. Por conseguinte, em vão tentaríamos
demonstrar a sua falsidade.”
(Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano)

1. Relações de ideias – é o tipo de conhecimento que pode ser obtido apenas mediante a análise do
significado dos conceitos numa proposição. Este tipo de conhecimento está presente na
geometria, na matemática e na lógica.
Exemplo: para saber que a proposição “Os solteiros não são casados” é verdadeira, basta saber o
significado dos conceitos de “casado” e de “solteiro”. Trata-se de uma verdade necessária, pois a
sua negação – “Há solteiros casados” – implica uma contradição nos termos.
▪ A relação de ideias refere-se apenas às relações entre o significado das ideias envolvidas,
mas nada dizem acerca do que existe (é verdade que nenhum solteiro pode ser casado,
mas isso não nos diz se existem solteiros, ou não).

Prof.: Isabel André 4


2. Questões de facto – é o tipo de conhecimento que só pode ser obtido através de impressões, ou
seja, através da experiência, e que nos fornece informação verdadeira acerca do mundo. Este tipo
de conhecimento está presente nas ciências da natureza como a Física.
Exemplo: “A neve é branca” é uma questão de facto, pois, para se saber que a neve é branca é
preciso ter experiência da neve e da sua cor. Não existe nada nos conceitos de “neve” e de
“brancura” que torne a proposição “A neve não é branca” uma contradição nos termos. Trata-se
de uma verdade contingente – a proposição é verdadeira, mas poderia não o ser.
▪ O conhecimento sobre questões de facto fornece-nos informações sobre o mundo, porque
tem de se basear na experiência e necessariamente em impressões.
− Hume rejeita a conclusão do Argumento Cético da Regressão Infinita, embora reconheça que as
nossas cadeias de justificações podem regredir infinitamente, deixando as nossas crenças
injustificadas, mas acredita que estas podem terminar num facto autoevidente, presente à nossa
memória ou aos nossos sentidos e, por isso, não precisarem de justificação adicional.

Princípios de associação de ideias


− Hume procurou estabelecer três princípios de associação de ideias na mente humana.
1. A semelhança – quando duas ideias são semelhantes, a consideração de uma delas conduz-nos
à consideração da outra.
Exemplo: a contemplação de uma fotografia faz-nos pensar na pessoa fotografada.

2. A contiguidade – quando duas ideias são contíguas no espaço e no tempo, a consideração de


uma delas evoca a consideração da outra.
Exemplo: se sei que a sala de estar se situa no alinhamento da entrada na minha casa, é natural
que me venha à mente a representação de um desses espaços sempre que penso no outro.
O mesmo acontece quando dois acontecimentos são contíguos no tempo, se é costume jantar
depois do pôr do Sol, é natural que pense em comida de cada vez que o Sol se põe.

3. A causalidade – quando representamos duas ideias como correspondendo a uma relação


causa-efeito, é natural que a consideração da causa nos leve para a consideração do efeito.
Exemplo: se pensarmos numa ferida é comum pensarmos na dor que lhe está associada.
Nota:
− Estes três princípios de associação de ideias parecem comuns e inquestionáveis, mas o princípio de
causalidade irá colocar sérios problemas ao empirismo de Hume. A questão que será colocada é
de onde vem a ideia de causalidade?

Prof.: Isabel André 5


O problema da causalidade – De onde vem a ideia de causalidade?

− Os nossos conhecimentos factuais têm como base a relação de causa e efeito. Procuramos
descobrir as causas de certos efeitos e julgamos que certos acontecimentos têm o poder de
produzir outros: a água congela devido a uma determinada diminuição de temperatura, ao
relâmpago segue-se o trovão, a gravidade atrai os corpos para o chão….
− A ideia de causalidade coloca um problema no empirismo de Hume. É inquestionável que temos
esta ideia, mas a sua origem não é muito evidente e clara. De onde vem a ideia de causalidade?

Hume afirma:
“Todos os raciocínios relativos à questão de facto parecem fundar-se na relação causa e efeito. Só
mediante esta relação podemos ir além do testemunho da nossa memória e dos nossos sentidos. Um
homem que encontrasse um relógio ou qualquer outra máquina numa ilha deserta concluiria que noutros
tempos estiveram homens nessa ilha. Todos os nossos raciocínios acerca de factos são da mesma natureza.
E aqui supõe-se constantemente que existe uma conexão entre o facto presente e aquele que dele é
inferido. Se nada houvesse a ligá-los, a inferência seria inteiramente precária.”
(Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano)

“Quando olhamos para os objetos exteriores à nossa volta e consideramos a operação das causas, nunca
somos capazes de identificar, num caso singular, qualquer poder ou conexão necessária, qualquer
qualidade que ligue o efeito à causa e torne o primeiro uma consequência infalível da segunda.
Constatamos apenas que um efeito realmente se segue à causa. O impulso da primeira bolha de bilhar é
seguido pelo movimento da segunda, e isso é tudo o que é dado aos sentidos. Em consequência, em
nenhum caso singular, particular de causa e efeito, há alguma coisa capaz de sugerir a ideia de poder ou de
conexão necessária.”
(Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano)
− A causalidade não se trata de uma relação de ideias, pois da sua aplicação não resulta qualquer
contradição.
Exemplo: ao ver uma bola de bilhar mover-se em direção a outra posso perfeitamente conceber
uma série de acontecimentos alternativos: posso imaginar que ambas as bolas ficam paradas, que a
segunda fica parada e a primeira volta para trás, que a primeira para e a segunda se desloca numa
ou noutra direção …
− Resta-nos a possibilidade de se tratar de uma questão de facto, pelo que a veracidade do princípio
da causalidade só pode ser estabelecida através da experiência. No entanto, a experiência não
responde a isto, pois tudo o que vemos são dois acontecimentos surgirem frequentemente
associados, mas não há qualquer impressão sensível de que é essa suposta conexão necessária
entre ambos.
Prof.: Isabel André 6
Hume afirma:
“Apresente-se um objeto a um homem dotado da mais forte capacidade e razão natural; se esse objeto for
inteiramente novo para ele, mesmo o exame minucioso das suas qualidades sensíveis não lhe permitirá
descobrir quaisquer das suas causas ou efeitos. Adão, ainda que supuséssemos que as faculdades racionais
fossem inteiramente perfeitas desde o início, seria incapaz de inferir da fluidez e transparência da água que
o sufocaria, nem da luminosidade e calor do fogo que este o poderia consumir.
Observaria imediatamente uma contínua sucessão de objetos e um evento a seguir a outro, mas não
conseguiria descobrir nada mais além disso. Não seria, no início, capaz de apreender por meio de qualquer
raciocínio a ideia de causa e efeito; sem mais experiência, jamais poderia conjeturar ou raciocinar acerca de
qualquer questão de facto ou assegurar-se de alguma coisa além do que estivesse imediatamente presente
à sua memória e aos seus sentidos.
Suponhamos agora que ele tenha adquirido mais experiência e tenha vivido no mundo o suficiente para
observar que objetos ou acontecimentos similares estão constantemente conjugados uns com os outros.
Qual é a consequência desta experiência? Que ele passa imediatamente a inferir a existência de um objeto
a partir do aparecimento do outro. Há um princípio que o obriga a chegar a esta conclusão. Esse princípio é
o costume ou hábito.”
David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano

− Esta experiência mental serve para mostrar que alguém inexperiente, ainda que dotado das mais
desenvolvidas capacidades racionais, nunca poderia inferir um efeito a partir da sua respetiva
causa numa única ocorrência, apenas seria capaz de o fazer após verificar que estes dois
acontecimentos aparecem constantemente um a seguir ao outro.
− Assim, Hume conclui que a ideia de relação causal ou conexão necessária entre dois
acontecimentos mais não é do que a expetativa do que um deles, a que chamamos efeito, irá
ocorrer sempre que o outro, a que chamamos causa, ocorra. Esta expetativa resulta do hábito ou
costume, isto é, da experiência que temos de uma conjunção constante desses dois
acontecimentos, pelo que não se funda na razão, mas num impulso natural e fundamental para o
nosso dia a dia.

Prof.: Isabel André 7


Hume afirma:
“O costume, pois, é o grande guia da vida humana. Unicamente este princípio nos torna útil a experiência
e nos faz esperar, para o futuro, uma série de eventos semelhantes àqueles que apareceram no passado.
Sem a influência do costume, seríamos plenamente ignorantes em toda a questão de facto para além do
que está imediatamente presente à memória e aos sentidos. Nunca saberíamos como ajustar os meios aos
fins ou empregar as nossas potências naturais na produção de qualquer efeito. Dar-se-ia de imediato o
termo de toda a ação e da principal parte da especulação.”
(Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano)
− A partir deste texto, de acordo com Hume, inferimos uma relação necessária entre causa e efeito
pelo facto de nos termos habituado a constatar uma relação constante entre factos semelhantes
ou sucessivos. Contraímos o hábito de, de um dado acontecimento, esperamos sempre o outro. Se
não existe essa impressão, então temos de concluir que a lei da causalidade:

1. Resulta da confusão entre sucessão cronológica e correlação causal necessária;


2. Não pode ser afirmada como tendo existência real para além da nossa consciência.

− Só a partir da experiência é que se pode conhecer a relação entre a causa e o efeito. É um


conhecimento a posteriori e não a priori. A única coisa que percecionamos foi que entre dois
fenómenos se verificou, no passado, uma sucessão constante (um deles ocorreu sempre a seguir
ao outro). Isto não nos pode levar a concluir que entre os factos haja uma conexão necessária.
− O nosso conhecimento acerca dos factos futuros não é um rigoroso conhecimento. Trata-se
apenas de uma crença, no sentido de suposição ou de probabilidade. Tal significa que não
tenhamos a certeza de que o “fogo queimará ou de que a água molhará”. Contudo, esta certeza
tem apenas um fundamento psicológico: o hábito ou costume. É o hábito de ver um facto suceder
ao outro que nos leva à crença de que sempre assim sucederá.
− O hábito é um guia imprescindível da vida prática, mas não constitui um princípio racional. O
hábito é o princípio com base no qual da simples constatação da contiguidade e sucessão entre
dois fenómenos se infere a necessidade da conexão entre dois fenómenos, considerando um a
“causa” e o outro o “efeito.”
− Hume afirma que a experiência não justifica esta crença, sendo “um salto no desconhecido”
porque se reduz às impressões atuais e passadas. Não se pode ter experiência acerca do que
ainda não aconteceu. Segundo o Princípio da Cópia, o critério de verdade de um conhecimento
de facto é o de que a uma ideia corresponda uma impressão sensível, não temos legitimidade para
falar de uma relação causal entre os dados da nossa experiência.

Prof.: Isabel André 8


O problema da uniformidade da Natureza (ou o problema da indução)
− O problema da indução e da causalidade estão intimamente ligados. A ideia de causalidade e as
inferências indutivas são a base da formação das nossas crenças acerca do mundo. Na seguinte
proposição: “A causa do congelamento da água é um determinado arrefecimento da
temperatura.”
▪ Não se está a afirmar que umas vezes um dado arrefecimento congela a água e outras
vezes não. Não se diz que esta relação só vale no momento em que se observa. Pensa-se
que sempre foi assim e sempre será assim.
− Afirmar que um dado arrefecimento de temperatura é sempre seguido pelo congelamento da água
e que por isso pode-se prever este último acontecimento de cada vez que o primeiro ocorrer é ir
para lá do que a experiência imediata (limitada ao presente) nos permite. Ir para além da
experiência imediata em direção ao que não observamos só é possível se raciocinarmos
indutivamente. O nosso conhecimento acerca dos factos futuros não é um conhecimento rigoroso.
Trata-se apenas de suposições ou de probabilidades que assenta numa expetativa.

Que crença está na base das inferências indutivas?


− A crença de que a natureza se comporta sempre da mesma maneira e de que o futuro repete o
passado. A esta crença dá Hume o nome de Princípio da Uniformidade da Natureza. Justificar esta
crença é condição necessária da justificação da indução. Será possível justificá-la? A reflexão de
Hume defende duas teses:
1. O Princípio da Uniformidade da Natureza não pode ser justificado a priori, através do simples
recurso à razão. Uma justificação a priori implicaria que o Princípio da Uniformidade da Natureza
seria uma verdade necessária, cuja negação seria contraditória. Mas é logicamente possível
pensar que, apesar de até agora a natureza se ter comportado sempre do mesmo modo, no futuro
ela deixe de se comportar assim.

2. O Princípio da Uniformidade da Natureza não pode ser justificado a posteriori, por intermédio da
experiência. Afirmar que a natureza é uniforme significa dizer que toda a natureza se tem
comportado e se comportará sempre da mesma maneira. Mas não podemos observar toda a
natureza ou o futuro. Assim, como surge a crença em tal uniformidade?
▪ Baseados em repetidas experiências passadas em que, por exemplo, um dado aumento de
temperatura foi sempre seguido pela dilatação de um dado corpo, conclui-se que no futuro
assim será. Trata-se de um raciocínio indutivo. É precisamente aqui que reside o problema.
▪ O Princípio da Uniformidade da Natureza é a base dos nossos raciocínios indutivos. Para
se poder justificar comete-se a falácia da petição de princípio porque queremos justificar a
indução, mas a única resposta que se encontra é que a indução justifica a indução.

Prof.: Isabel André 9


Exemplo: análise de uma inferência indutiva
1. Até hoje o Sol nasceu todos os dias.
2. Logo, o Sol irá nascer amanhã.
− Verifica-se que a verdade das premissas não é suficiente para garantir a verdade da conclusão. A
única forma de tornar esta inferência mais forte é acrescentar o Princípio da Uniformidade da
Natureza (PUN) como uma das suas premissas. O argumento seria:
1. A Natureza irá comportar-se no futuro conforme se tem comportado até hoje (PNU)
2. Se PUN é verdadeiro, então se até hoje o Sol nasceu todos os dias, irá nascer amanhã.
3. Até hoje o Sol nasceu todos os dias.
4. Logo, o Sol irá nascer amanhã.
− Esta inferência é válida, mas a sua solidez depende da veracidade do Princípio da Uniformidade
da Natureza. Porque não se trata de uma relação de ideias, não temos forma de demonstrar a
veracidade deste princípio sem recorrer à experiência, mas isso implicaria justificar a nossa
confiança nesse princípio com base na nossa experiência de que até hoje a Natureza se tem
comportado de modo uniforme.
− Isso significa que estaríamos a recorrer à indução para justificar a nossa confiança em PUN. A
nossa confiança na indução pressupõe a aceitação de PUN e a nossa justificação torna-se
viciosamente circular, pois pressupõe justamente aquilo que pretende justificar, incorrendo numa
petição de princípio.

Formulação do argumento do Princípio da Uniformidade da Natureza (PUN)


1. Se a nossa crença no PUN é racionalmente justificável, então ou é dedutivamente demonstrável
(a priori) ou é indutivamente justificável (a posteriori) com base na experiência.
2. Se a nossa crença em PUN pudesse se dedutivamente demonstrada, então PUN corresponderia a
uma relação de ideias, mas nesse caso PUN seria uma verdade necessária cuja negação implicaria
uma contradição.
3. Mas PUN não corresponde a uma relação de ideias, pois a sua negação não implica qualquer
contradição, não se trata de uma verdade necessária. (“Ainda que o Sol tenha nascido todos os
dias até hoje, não é necessariamente verdade que irá nascer amanhã”).
4. Portanto, a nossa crença em PUN não é dedutivamente demonstrável.
5. No entanto, a nossa crença em PUN também não pode ser indutivamente justificada com base na
experiência que até hoje tivemos da uniformidade da Natureza, mas isso seria justificar a nossa
confiança em PUN através da indução que depende da verdade de PUN para ser fiável. Tal
justificação pressupõe justamente aquilo que se pretende justificar; logo, é viciosamente circular
ou se, uma petição de princípio.
6. Logo, a nossa crença em PUN não é racionalmente justificável.

Prof.: Isabel André 10


O Mundo, o Eu e Deus
− A crença no Princípio da Uniformidade da Natureza não é a única crença comum cujo fundamento é
posto em causa por Hume.
− Para Hume não é legítimo passar das impressões para algo de que nunca tenhamos tido qualquer
impressão, já que nos devemos limitar à experiência.
Hume afirma acerca do mundo exterior:
“Nada pode estar presente à mente a não ser uma imagem ou perceção e os sentidos são apenas as
entradas por onde as imagens são transportadas, sem conseguirem suscitar uma comunicação imediata
entre a mente e o objeto”.
(Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano)
− Portanto, é um erro confundir os objetos exteriores e o mundo exterior à nossa mente com as
nossas perceções acerca dos mesmos.
− Em relação à realidade exterior/Mundo considera que as perceções constituem a única realidade
acerca da qual dispomos de alguma certeza. Afirmar a existência de uma realidade que seja a
causa das nossas impressões e que seja distinta delas e exterior a elas é algo desprovido de sentido.
Trata-se de uma crença injustificável, já que não temos experiência ou impressão de tal realidade.
São a coerência e a constância de certas perceções que nos levam a acreditar que há coisas
externas, dotadas de uma existência contínua e independente.
Hume afirma:
“A mesa que vemos parece diminuir à medida que dela mais nos afastamos, mas a mesa real, que existe
independentemente de nós, não sofre qualquer alteração; não era, pois, nada a não ser a sua imagem o
que estava presente ao espírito. Estes são os óbvios ditames da razão; e ninguém capaz de refletir jamais
duvidou de que as existências que consideramos quando dizemos esta casa e aquela árvore não passam de
perceções na mente, cópias ou representações transitórias de outras existências que permanecem
uniformes e independentes.”
(Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano)
Formalizando este argumento:
1. Se a mesa que está presente na nossa mente fosse a mesa real, o seu tamanho não se alterava em
função da nossa perspetiva.
2. Mas a mesa que está presente na mente parece diminuir à medida que dela mais nos afastamos, ou
seja, o seu tamanho altera-se em função da nossa perspetiva.
3. Logo, aquilo que está presente na nossa mente não é a mesa real, mas sim uma imagem ou
representação mental da mesma.
− Porque se trata de uma questão que diz respeito à existência, a sua resolução deve ser com
recurso à experiência, mas a nossa experiência não pode estender-se para além das nossas
impressões, e estas não devem ser confundidas com os objetos exteriores em si mesmos.

Prof.: Isabel André 11


Hume afirma acerca da existência do Eu
“Deve haver uma impressão que dê origem a toda a ideia real. Mas o Eu ou pessoa não é uma impressão,
mas aquilo a que se supõe que as nossas várias impressões têm referência. Se alguma impressão gerar a
ideia do Eu, essa impressão deve permanecer invariavelmente a mesma em todo o curso da nossa
existência, uma vez que se supõe que o Eu existe dessa maneira. Ora não há impressão constante e
invariável. A dor e o prazer, a tristeza e a alegria, as paixões e sensações sucedem-se umas às outras e
nunca existem todas ao mesmo tempo. Não pode, portanto, ser de nenhuma destas impressões, nem de
qualquer outra, que a ideia do Eu é derivada, portanto tal ideia não existe.”
(Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano)

− Hume considera que não se deve recorrer a qualquer tipo de intuição para justificar a existência do
Eu como substância dotada de realidade permanente, como sujeito imutável dos vários atos
psíquicos. Com efeito, só dispomos de ideias e impressões, e entre elas verifica-se a sucessão e a
mutabilidade; nenhuma delas apresenta um caráter de permanência. Sendo assim, a crença na
identidade, na unidade e na permanência do Eu é apenas um produto da imaginação, não sendo
possível afirmar que existe o Eu como substância distinta em relação às impressões e às ideias.

Hume afirma acerca da existência de Deus:


“A ideia de Deus, enquanto significa um Ser infinitamente inteligente, sábio e bom, promana da reflexão
sobre as operações da nossa própria mente, e eleva sem limite essas qualidades da bondade e sabedoria”.
(Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano)

− No que se refere à existência de Deus, reconhecendo que o que concebemos existente também o
podemos conceber como não existente, conclui que não existe um ser cuja existência esteja à
partida demonstrada. Como tal, o argumento ontológico é desde logo excluído. Também as provas
da existência de Deus baseadas no princípio da causalidade são criticadas por Hume, uma vez que
partem das impressões para chegar a Deus; mas Deus não é objeto de qualquer impressão. A ideia
de Deus resulta de uma construção mental em que se elevam sem limites as qualidades da
bondade e sabedoria.

Prof.: Isabel André 12


− A nossa razão pode juntar ideias resultantes de diferentes impressões e construir uma ideia
composta ou complexa de algo que não existe. Porém, todos os elementos que constituem essa
ideia começaram por ser impressões/sensações; por isso, Hume tem a preocupação de examinar as
nossas ideias complexas para:

1. Determinar as ideias simples que as constituem;


2. Verificar se essas ideias simples têm ou não uma impressão que lhes corresponda;
3. Decidir se são ideias falsas de coisas que não existem na realidade, por não terem fundamento
numa impressão correspondente.

Exemplos:
1. A ideia de cavalo alado – um cavalo com asas. Esta ideia resulta da combinação da ideia de cavalo
com a ideia de animal com asas. Há impressões correspondentes às ideias de cavalo e de animal
com asas, mas não há nenhuma impressão correspondente à ideia de cavalo alado. Esta ideia
resultou do trabalho combinatório da mente e é falsa por não existir nenhuma experiência
sensorial desse animal.

2. A ideia de Deus – A ideia de Deus é uma criação da razão, a partir de ideias como inteligência,
sabedoria, bondade… Se nunca tivéssemos tido experiências da inteligência, da sabedoria e da
bondade, não poderíamos moldar estas ideias, nem a ideia de Deus, que é uma combinação destas.
Mas enquanto aquelas são verdadeiras, por terem uma impressão que lhes corresponde, esta, não a
tendo, é uma criação ilusória da razão e deve ser rejeitada.

3. Se aplicarmos este mesmo raciocínio às ideias que temos acerca das relações entre as coisas e os
acontecimentos, chegaremos a uma conclusão semelhante. Temos uma ideia de causalidade, pois
quando temos experiência de duas coisas que sucedem sempre uma a seguir à outra, concluímos
que uma é a causa ou a razão de ser da outra. Consideramos esta lei uma regra do funcionamento
da Natureza. A ideia de causalidade é subjetiva e não há fundamento para afirmar a sua realidade
objetiva.

Prof.: Isabel André 13


Críticas ao empirismo de Hume

1. Em que medida a natureza da distinção entre impressões e ideias é consistente?

− O critério de demarcação entre impressões e ideias, com base na força e vivacidade das primeiras
em relação às segundas, não explica o caso das alucinações percetivas que, como se sabe, por
ausência do objeto percebido, não podem ser incluídas no domínio das impressões, apesar da força
e da vivacidade com se apresentam.

2. Poderá o princípio da causalidade reduzir-se à mera conjunção constante?

− A proposta de Hume do princípio de causalidade em termos de simples relação de constância entre


fenómenos não fornece o critério de demarcação que permita distinguir as leis da natureza de
generalizações acidentais dado que a conjunção constante aparece como um critério necessário,
mas não suficiente para se falar em relação causa e efeito. Mas se Hume estiver certo, como se
explica essa conjunção constante? Parece mais racional admitir que as relações causais, de facto,
existem do que supor que essas conjunções constantes simplesmente ocorrem no mundo de modo
causal.

3. O ceticismo moderado de Hume revela um duplo aspeto:


− É um ceticismo relativamente às teorias metafisicas, que procuram ultrapassar o âmbito da
experiência e da observação. - “Como a realidade a que temos acesso se reduz às perceções, a
crença na existência de algo para lá dos fenómenos carece de fundamento.”

− É um ceticismo mitigado ou moderado, uma vez que Hume reconhece as limitações das nossas
capacidades cognitivas e a nossa propensão ao erro. - “A capacidade cognitiva do entendimento
limita-se ao âmbito do provável”.

Prof.: Isabel André 14


Análise Comparativa de duas teorias de conhecimento:

Racionalismo – Descartes Empirismo – D. Hume

A razão – ideias inatas. A experiência – impressões.

Todo o conhecimento absolutamente Todo o conhecimento deriva das impressões.


verdadeiro fundamenta-se em ideias inatas.
Todo o conhecimento procede da
A razão é a fonte do conhecimento verdadeiro – experiência, e todas as ideias acabam por ter
racionalismo. Devidamente guiada pelo uma origem empírica – empirismo.
A origem do método, a razão poderá alcançar As ideias que conduzem a proposições
conhecimento conhecimentos evidentes, claros e distintos, evidentes e necessárias (relações de ideias)
independente da experiência não fornecem qualquer conhecimento
acerca do mundo.

Fornecer os instrumentos básicos do Receção e composição dos dados da


pensamento, justificando a verdade e experiência. A origem empírica do
Papel da razão universalidade do conhecimento com base em conhecimento impede a validade universal
ideias inatas. do conhecimento reduzindo-o a uma mera
probabilidade.

São considerados como fonte de erro, por isso Têm um papel ativo sendo o ponto de
não são fundamento válido de conhecimento. partida de todo o conhecimento.
Papel dos Os sentidos estão sujeitos ao erro, mas existe a Nada existe na razão que não tenha passado
primeiro pelos sentidos.
possibilidade de os corrigir através de um uso
sentidos
correto das faculdades racionais.
Para compreender a verdadeira natureza das
coisas devemos proceder a uma análise
matemática e geométrica das mesmas
(qualidades objetivas – mensuráveis).

Processos de Intuição racional e dedução. Captação sensorial das impressões e que são
fundamentadas no hábito.
construção do
conhecimento

O conhecimento é necessário e universal desde Dado que é construído com base nas
que seja intuitivo e dedutivo. perceções, o conhecimento universal é uma
mera probabilidade.
Só é real a ideia ou o conhecimento que dela for
Validade do deduzido. Não pode ser afirmada como realmente
conhecimento existente qualquer realidade que não tenha
uma impressão correspondente.

Prof.: Isabel André 15


Existem ideias factícias, adventícias e as ideias Não existem ideias inatas.
inatas. A partir destas últimas, é possível obter Todas as ideias derivam das impressões.
o verdadeiro conhecimento, mediante as As diversas operações da mente baseiam-se
Operações da operações fundamentais da mente: a intuição e nos princípios da associação de ideias: a
mente e ideias a dedução. semelhança, a contiguidade no tempo e no
espaço e a causalidade.

Usando a dúvida, Descartes adotou um A realidade a que temos acesso reduz-se ao


ceticismo metódico. Mas, uma vez que âmbito das perceções. A capacidade
Possibilidade depositava inteira confiança na razão, cognitiva do entendimento humano limita-se
(validade) do podemos, de certo modo, inseri-lo no quadro ao âmbito do provável, pelo que nos
conhecimento do dogmatismo (crença de que é possível se encontramos no campo do ceticismo
conhecer). moderado.

Podemos ter ideias claras e distintas dos Não encontramos qualquer princípio que
atributos essenciais de três tipos de confira unidade e conexão às perceções.
substâncias: Não temos impressões:

1. A substância pensante; 1. Do eu pensante;


Perspetivas 2. A substância extensa; 2. De uma realidade exterior;
3. A substância divina. 3. De Deus.
metafísicas
Deus é o fundamento do ser e do conhecimento Não se pode afirmar a existência de
– fundamento metafísico do conhecimento. qualquer fundamento metafísico para o
conhecimento.

Prof.: Isabel André 16

Você também pode gostar